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FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA: UMA INSTITUIÇÃO SOCIAL DE

DIFÍCIL DEFINIÇÃO1

Lesliane Caputi

RESUMO
A presente discussão sobre “Família Contemporânea: uma instituição social de difícil
definição” nos coloca frente a reflexões a partir do lugar que estamos situados enquanto ser
humano, sujeito social e político, pertencente a uma família ou mais, conforme o
entendimento que se tem deste espaço, bem como, de nossa trajetória profissional enquanto
assistente social no trabalho com famílias. Buscamos aqui, apontar reflexões que explicitam a
impossibilidade de uma única definição para família e, por tal razão, também nos colocamos
em desafios, já que discutir tal temática não é tarefa fácil, mas veemente na área das ciências
sociais e em especial no Serviço Social.

1. Introdução

As definições de família são insuficientes para dar conta de toda a sua complexidade e
particularidades atuais, levando a uma diversidade de conceitos.
Tradicionalmente, a família tem sido definida como agrupamento de pessoas unidas
por meio do matrimônio (ou da convivência conjugal), construindo laços de parentesco
através da consanguinidade e da adoção, com função reprodutiva (da família e da herança:
cultural, patrimonial, moral entre outros), econômica (de produção e consumo), de proteção,
educação e socialização.
Na contemporaneidade, dada as transformações no mundo do trabalho, as conquistas
dos movimentos feministas, e os rebatimentos da dinâmica da sociedade na instituição família,
há uma tendência na ampliação do conceito de família, partindo da perspectiva da função de
proteção social2. Nesse sentido, a conceituação se baseia nos laços de solidariedade que
possibilitam as condições necessárias para a proteção do grupo.

1 O presente texto é oriundo de reflexões da autora no decorrer da trajetória profissional e do curso da


disciplina
“Desigualdades de Género en Salud y Relaciones Familiares” ministrada pela profa. Dra. Reina Fleitas
Ruiz (Universidad de Habana), cursada no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social na Universidade
Estadual Paulista - UNESP/Franca-SP no ano letivo de 2011, na qualidade de doutoranda.
2 De acordo com a Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004), a proteção social deve garantir a
segurança de sobrevivência (de rendimento e de autonomia); de acolhida; e, de convívio ou vivência familiar.
2. Família e Sociedade

Podemos dizer que a família é o primeiro grupo social que pertencemos, e que este
agrupamento varia conforme o tempo, o espaço, a conjuntura, o mercado de trabalho, enfim,
conforme as transformações da sociedade e do mundo do trabalho como um todo.
A família como instituição social primária e célula mater da sociedade sempre existiu.
De acordo com Castel (1998), desde a Idade Média, a família estabelece modos de
organização coletiva e protege os membros mais carentes da comunidade por meio de uma
assistência mínima, constituindo o que ele denomina de “socialização primária”, em que a
perda dessa referência para o indivíduo seria o início do processo de desfiliação.
As famílias constituem como atores fundamentais no provimento de serviços, de
proteção social aos indivíduos frente aos riscos e vulnerabilidades em que estão expostos; tem
função sexual, reprodutiva, econômica, social, cultural e educacional. Trata-se de um espaço
de distribuição de recursos materiais, econômicos, de afetividade, cuidados, herança e
construção de valores, de cultura e de troca de saberes. É um espaço permeado de conflitos, de
socialização dos seus membros; é fonte de referencias morais, de vínculos afetivos e sociais;
de identidade grupal, bem como de mediação das relações dos seus membros com outras
instituições sociais, com a comunidade e com o Estado.
Para a psicóloga Szymanski (2002, p.15) “as famílias buscam uma adequação entre os
valores herdados, os partilhados com os pares e os novos valores, que vêm de seu contato com
outras informações e com outros segmentos da sociedade”.
Família pode ser constituída por grupo de pessoas com ou sem consanguinidade que
convivem ou não no mesmo teto. Pode se configurar ainda, como associação de pessoas que
escolhem conviver por razões afetivas e assumem um compromisso de cuidado mútuo.
No contexto da sociedade brasileira, a instituição família tem passado por
transformações datadas especialmente do século XX, as quais se evidenciam nas alterações de
papéis da pessoa de referência da família. Alterações do lugar que o trabalho ou o não
trabalho ocupa no processo de reprodução social, nas múltiplas referências psicológicas e
sociais que adentram o universo familiar e determinam o desenvolvimento de crianças e
jovens, desalojando referências de figuras como pai, mãe, avós; entre outros fenômenos
sociais da atualidade.
Que transformações são estas e a que estão atreladas?
Tais transformações são marcadas pela relação família e mundo do trabalho, cujo
desenvolvimento tecnológico, reestruturação produtiva traz alterações nas relações sociais
como um todo.
A família contemporânea passa a ter uma dimensão pública em detrimento singular da
dimensão privada. Vive as transformações advindas tanto das transformações do mundo do
trabalho, dos avanços tecnológicos, do aumento da expectativa de vida, bem como das
conquistas do movimento feminista.
Assim, apontamos os seguintes indicadores que influenciaram e influenciam nas
mudanças da dinâmica da instituição família na contemporaneidade: a superação da
sexualidade voltada somente para a reprodução; o advento das pílulas anticonceptivas; a
inserção da mulher no mercado de trabalho e neste contexto também o aumento da
participação da mulher na renda familiar3; diminuição de casamentos religiosos; aumento da
união consensual e aumento de divórcios ou separações legais 4; aumento significativo de
mulheres chefes de famílias4; surgimento de famílias monoparentais5; criação de creches para
as crianças; aumento da expectativa de vida; proteção social garantida em leis; planejamento
familiar entre tantos outros fatores que alteram as relações familiares inclusive reduzem o
número de filhos e passa-se a existir outros arranjos ou composições familiares.

3. Família e os diferentes arranjos sociais

3 Segundo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre os anos de 1996 e 2006, o nível
de ocupação das mulheres aumentou quase 5 pontos percentuais, ao passo que para os homens ocorreu uma
redução de cerca de 1 ponto percentual. 4
De acordo com censo 2010 realizado pelo (IBGE), “a taxa geral de divórcio atingiu, em 2010, o seu maior valor,
1,8% (1,8 divórcios para cada mil pessoas de 20 anos ou mais) desde o início da série histórica das
Estatísticas do Registro Civil no Brasil, em 1984, um acréscimo de 36,8% no número de divórcios em
relação a 2009”.
4 Conforme IBGE, entre 1996 e 2006, o percentual de mulheres chefes de famílias aumentou de 10,3
milhões para 18,5 milhões. Em termos relativos, esse aumento corresponde a uma variação de 79%, enquanto,
neste período, o número de homens “chefes” de família aumentou 25%. A Síntese de Indicadores Sociais – 2007
nos mostram que o aumento da “chefia” feminina ocorreu principalmente nas famílias compostas por casal com
ou sem filhos. Ainda de acordo com a pesquisa, o aumento de mulheres chefes de família, pode se dar pelos
seguintes fatores: maior participação das mulheres no mercado de trabalho e, consequentemente, maior
contribuição para o rendimento da família; a alta expectativa de vida da mulher; casamentos desfeitos; migração
dos homens por motivos diversos e aspectos culturais (as mulheres que valorizam a autonomia, independência e
busca profissional muitas vezes preferem morar sozinhas).
5 De acordo com Vitale (2002, p. 46) Famílias monoparentais são aquelas em que vive um único
progenitor com os filhos que não são ainda adultos. E diz a autora (p.47) que “a expressão famílias
monoparentais, segundo Nadine Lefaucher, na França, desde a metade dos anos setenta, para designar as
unidades domésticas em que as pessoas vivem sem cônjuge, com um ou vários filhos com menos de 25 anos e
solteiros”.
Considerando os diferentes arranjos ou tipos de composição familiar, estudiosos
brasileiros, como Kaslow, Foster, Sarti, Szymanski, entre outros, partindo do pressuposto de
que não há uma única definição para família, mas que é imprescindível compreender este
agrupamento humano como um núcleo em torno do qual as pessoas se unem,
primordialmente, por razões de um projeto de vida em comum, em que compartilham o
cotidiano, e, no decorrer das trocas intersubjetivas, transmitem tradições, culturas, valores,
planejam seu futuro, acolhem-se, atendem as necessidades de seus membros, formam crianças
e adolescentes. (SZYMANSKI, 2002, p. 10). Neste contexto, tais autores, apontam algumas
possibilidades de definição para família6, a saber:
1. Família Nuclear: inclui duas gerações com filhos biológicos;
2. Família extensa7: inclui 3 ou 4 gerações (avós, netos, filhos, pais ....).
3. Famílias adotivas, que podem ser bi-raciais e/ou multiculturais;
4. Família homoafetivas: compostas por parceiros do mesmo sexo com ou sem filhos/as.
5. Famílias reconstituídas depois do divórcio;
6. Famílias monoparentais: chefiadas por pai ou mãe;
7. Família mononuclear: inclui apenas uma geração com filhos biológicos.
8. Famílias alternativas: o objetivo é buscar novas formas de convivência,
compartilhando as despesas, o consumo etc. Exemplo: comunidades hippies,
repúblicas.
9. Famílias Fraternais aquelas em que não há relacionamento sexual entre os adultos. Há
uma relação fraterna.
10. Casais.
11. Outras.
Considerando a relação de exercício de poder na família, esta pode ainda ser classificada
como:
a) Patriarcal: o homem detém o poder sobre a mulher, filhos, negócios – relação de
submissão; homem é o “chefe”; relação sexual com esposa voltado mais para a
procriação.
b) Matriarcal: a mulher detém o poder
c) Democrática: o poder é compartilhado.
6 Ver mais em (SZYMANSKI, 2002, p. 10).
7 Atualmente, é comum encontrarmos famílias extensas, considerando que avós exercem sozinha a
responsabilidade por seus netos e filhos, devido a ausência dos pais ou ainda por questões econômicas as
gerações vivem juntas para contemplar as necessidades materiais.
Entretanto, quaisquer que seja a composição da família, esta se encontra subordinada
as relações afetivas, sociais e econômicas estabelecidas entre seus membros que estão em
permanentes processos de construção e reconstrução da visão de homem e de mundo, a qual
influencia diretamente nas relações familiares e tão logo na composição familiar.
Diante das “classificações” acima, para buscar refletir sobre os diferentes arranjos
familiares, nos deparamos com o desafio, de como classificar as relações institucionais, já que
muitas pessoas institucionalizadas têm neste espaço a constituição de suas relações familiares?
Ou seja, como classificar instituições, tipo abrigo, que têm a figura, por exemplo, de pais
sociais? Poderíamos denominar como família social ou como família artificial (partindo do
pressuposto que família natural é a família biológica)?
Ao se constituir, a família passa a ter deveres, responsabilidades com os seus
membros: proteção, cuidados, educação, socialização, (re)produção e consumo de bens
materiais, entre outros elementos supracitados em linhas anteriores deste texto. Ao mesmo
tempo, a família também tem direitos: como o direito da posse e da guarda das crianças e dos
adolescentes, além do direito à herança, entre outros. O Estado, a não ser por fortes razões que
coloquem em risco a vida de uma pessoa por negligência ou violência, não pode retirar o
poder familiar. Entretanto, existem famílias que vivenciam a perda do poder sobre seus
membros e que o Estado para garantir a proteção integral conta com instituições sociais para
abrigar tais pessoas.
Essas instituições têm como objetivo atender a pessoa institucionalizada e garantir a
ela a proteção social, seus direitos a vida, a saúde, à alimentação, o lazer, à cultura, à
dignidade, o respeito, à liberdade, entre outros elementos para vivência humana. Como
exemplo, quando se trata de criança e/ou adolescente, a instituição deve atender o que
preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA, (Lei n. 8.069/1990), em especial ao
artigo 4º. e 19º. :

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder


público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos
referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária. (ECA, artigo. 4º)

Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da


sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a
convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de
pessoas dependentes de substâncias entorpecentes. (ECA, artigo. 19º)
No âmbito institucional, tais crianças e adolescentes encontram os denominados “pais
sociais”, que são profissionais, remunerados pelo Estado para exercer a atribuição de
pais/mães. A diferença entre essa família institucionalizada (que aqui para facilitar a
compreensão, podemos denominá-la de família artificial e “chefiada” pelos Pais Sociais), é
que recebem remuneração governamental para exercerem a atribuição de pais para as crianças
e/ou adolescentes institucionalizados. Vale advertir que os Pais Sociais não têm o direito de
brigar pela posse e guarda das crianças e adolescentes institucionalizados. A guarda é de posse
da direção da instituição, do Estado, enquanto aqueles ali permanecerem.
Além do exposto, é fato que família também é um espaço de conflitos, os quais podem
ser resultantes de diferentes fatores, como por exemplo: a presença de pessoas de gerações
diferentes (que certamente têm necessidades, vontades e formas de pensar diferentes conforme
a idade de cada um); a presença de gêneros diferentes (cujas diferenças foram construídas
socialmente no processo de socialização entre homens e mulheres); origens sociais e culturais
diferentes (de, pelo menos, dois dos adultos residentes, pois antes de se unirem pertenciam a
outro grupo familiar); as diferenças étnicas, culturais, econômicas, de origem de classe entre
membros da família, principalmente entre os adultos responsáveis.
Diante das diferentes formas de se classificar a família, bem como diante das
transformações que essa instituição vem sofrendo ao longo do desenvolvimento do processo
social e histórico, concluímos que

“(...) a família como uma instituição social deve progredir na mesma


proporção com que progrida a sociedade, se modificando a medida que a
sociedade se modifique. A família é então o produto do sistema social e
refletirá o estado de cultura desse sistema.” (ENGELS, 1984,p.124)

4. A Família brasileira no contexto das legislações e a proteção social

O reconhecimento da importância da família no texto da lei, no Brasil, se dá no artigo


226 da Constituição Federal do Brasil de 1998 (CF, 1988), quando declara que a “família,
base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Tal texto referenda o artigo 16 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos que afirma que “a família é o elemento natural e
fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do Estado”.
A partir da CF (1988), o reconhecimento da família como primeira instituição social se
firma em legislações específicas como a Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS que mais
tarde, nos anos de 2005, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), traz em sua
estrutura a matricialidade sócio-familiar; o Estatuto da Criança e Adolescente – ECA, Estatuto
do Idoso, entre outras legislações que trazem a família como elemento central da sociedade e
de proteção de seus membros. Entretanto, é claro, que tal proteção para ser amplamente
garantida, ou seja, na impossibilidade da família garantir o todo da proteção social para seus
membros cabe ao Estado subsidiá-la.
Embora haja o reconhecimento explicito sobre a importância da família na vida social
e, da proteção do Estado, tal proteção no Brasil, tem sido, cada vez mais discutida, na medida
em que a realidade tem dado sinais cada vez mais evidentes de processo de penalização e
desproteção das famílias (ainda que o Estado propicie ações, programas e políticas sociais
diversas para atenção das famílias conforme suas necessidades).
De acordo com Mioto (2007), as legislações brasileiras expressam uma orientação para
a proteção social, que se pauta numa lógica de que a família deve exercer um papel decisivo,
até substitutivo, em relação ao acesso, cada vez mais incerto, ao sistema de direitos sociais.
Ressalta que a família e o mercado são os canais naturais para satisfação das necessidades dos
indivíduos, havendo intervenção do Estado quando estes “falham”, classificando-as em
“capazes e incapazes”.
A família é tida como ator fundamental no provimento de serviços e proteção sociais
aos indivíduos frente aos riscos e vulnerabilidades a que estão expostos. No entanto, não atua
isoladamente. Mas, junto com o mercado e o Estado, forma o tão conhecido triângulo das
políticas públicas8, cujo relacionamento entre os vértices é responsável pela conformação dos
Estados de Bem-Estar Social.
Esping Andersen (1999) aponta que a família é uma instituição social fundamental da
sociedade junto ao Estado e ao mercado, e tem papel importante na provisão de bem-estar de
seus membros. O autor aponta dois modelos de proteção de bem-estar: 1. “Sistema
Familiarista” (aquele sistema que pressupõe que as unidades familiares se encarreguem das
responsabilidades pelos seus membros. Neste regime as intervenções (públicas) só devem
ocorrer quando houver fracasso das redes sociais primárias, ou seja, da família) e, 2. “Sistema

8 Referimos-nos à Política Social como forma estratégica do Estado na amenização dos conflitos de classe entre
– burguesia e trabalhadores (Behring, 2006) em sua concepção clássica. E, na contemporaneidade, compreendida
nos dizeres de Ivo (2004, 2006) como a “reconversão do social” na produção de um novo “fetiche” no contexto
da desregulamentação do mercado de trabalho, no qual as políticas sociais setoriais e focalizadas são estratégias
de construção desta reconversão.
desfamiliarizador” (aquele que tenta descarregar a família e reduzir a dependência de
bemestar de seus membros das relações de parentesco e do mercado. O conceito de
desfamiliarização não tem um conteúdo pejorativo, anti-família. Ao contrário, refere-se ao
grau com que o Estado ou o mercado retira da família responsabilidades quanto ao provimento
de assistência e bem estar aos seus integrantes. A ideia não é maximizar a dependência da
família, mas capacitar à independência individual.).
O Estado brasileiro, para atender, a diferentes realidades e necessidades das famílias
brasileiras, cria as políticas sociais com diferentes objetivos, enfoques e concepção de família.
A PNAS, por exemplo, tem dado destaque na matricialidade sócio-familiar. Tal ênfase
está ancorada na premissa de que a centralidade da família e a superação da focalização das
ações sociais partem do pressuposto de que para a família prevenir, proteger, promover e
incluir seus membros é necessário, garantir condições de sustentabilidade para tal, e por isso
as políticas sociais devem estar pautadas nas necessidades das famílias, de seus membros e
dos indivíduos.
Na PNAS, podemos dizer que estamos diante de uma família quando encontramos um
conjunto de pessoas que se acham unidas por laços consanguíneos, afetivos e/ou de
solidariedade. Os programas sociais de transferência de renda respaldam-se nesta concepção
de família para construção de seus critérios de elegibilidade. No caso, do Programa Bolsa
Alimentação, unificado ao Programa Bolsa Família 9 a partir de 2003, encontramos, por
exemplo, a concepção de família como unidade nuclear formada pelos pais e filhos, ainda que,
eventualmente, possa ser ampliada por outros indivíduos que possuam laços de parentesco ou
de afinidade, que forme um grupo doméstico, vivendo na mesma moradia e que se e que se
mantém pela contribuição de seus membros.
Tal política destaca ainda a necessidade de considerar os diversos desenhos que se
apresentam as famílias (monoparentais, chefiadas por mulheres, reconstituídas, entre outras),
as demandas e necessidades particulares de cada arranjo e membros da família. Considera,
contudo, o direito à convivência familiar, que é uma das garantias da proteção social. Supera o
conceito de família como unidade econômica e entende como núcleo afetivo, vinculado por
laços consanguíneos, de aliança ou afinidade, que circunscreve obrigações recíprocas e
mútuas, organizadas em torno de relações de geração e gênero.

9 Programa de transferência de renda – destinado a famílias em situação de pobreza e com renda per
capita até R$100,00 mensais – que associa a transferência do benefício financeiro e o acesso aos direitos sociais
básicos: saúde, alimentação, educação e assistência social. Tal programa é resultado da unificação dos programas
de transferência de renda do governo federal. O objetivo dessa unificação é aumentar a qualidade dos gastos
públicos, a partir de uma gestão coordenada e integrada, de forma intersetorial.
A PNAS, assim, dá ênfase na instituição família, aponta as funções da família,
preconiza a convivência familiar; é estruturada na perspectiva da matricialidade sóciofamiliar,
ou seja, tem a centralidade na família para a concepção e implementação de benefícios,
serviços, programas e projetos sociais10. A lógica de proteção social desta política esta
centrada nos seguintes eixos: Segurança alimentar; Matricialidade sócio-familiar; Programas
de transferência de renda; Segurança de rendimento; Segurança de acolhida; Segurança
convivência familiar – combate da institucionalização do sujeito12.
Vale destacar que apesar da PNAS trazer essa concepção mais abrangente de família, o
Benefício de Prestação Continuada11 (BPC) previsto pela Lei Orgânica de Assistência Social,
Lei n. 8.742/1993 (LOAS), utiliza o conceito de família conforme a política de previdência
social, já que este benefício (da política de assistência social) é operacionalizado pelo Instituto
Nacional de Seguridade Social/INSS 14. Definido pelo art. 16 da Lei nº 8.213 de 1991 15, o BPC
traz um conceito restritivo, baseado na família mononuclear, por consanguinidade ou por
aliança, e ainda com limite de idade. Para o BPC a família é composta pelos cônjuges, a
companheira, o companheiro, o filho não emancipado menor de 21 anos ou inválido; pelos
pais e pelo irmão não emancipado menor de 21 anos ou inválido, como vemos abaixo nos
termos da lei:

Para cálculo da renda familiar é considerado o número de pessoas que vivem


na mesma casa: assim entendido: o requerente, cônjuge, companheiro(a), o
filho não emancipado de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido,
pais, e irmãos não emancipados, menores de 21 anos e inválidos. O enteado
e menor tutelado equiparam-se a filho mediante a comprovação de
dependência econômica e desde que não possua bens suficientes para o
próprio sustento e educação. O benefício assistencial pode ser pago a mais
de um membro da família desde que comprovadas todas a condições
exigidas. Nesse caso, o valor do benefício concedido anteriormente será
incluído no cálculo da renda familiar. (Lei n. 8.742/1993 - LOAS).

10 Ver mais em Revista Serviço Social e Sociedade n. 80, encarte PNAS, ano XXV, novembro. São
Paulo: Cortez, 2004 ou na Política Nacional de Assistência Social, disponível no site www.mds.gov.br 12 Idem.
11 Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social – BPC-LOAS, é um benefício da
assistência social, integrante do Sistema Único da Assistência Social – SUAS, pago pelo Governo Federal, cuja a
operacionaliização do reconhecimento do direito é do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS e assegurado
por lei, que permite o acesso de idosos e pessoas com deficiência às condições mínimas de uma vida digna 14 A
Seguridade Social, nos termos da Constituição Federal Brasileira (1988), art. 194, compreende um conjunto
integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e as sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos
à saúde, previdência e assistência social. Cabe ressaltar que a saúde é um direito universal (de todos), a
previdência social, é de direitos dos contribuintes e a assistência social de todos aqueles que precisarem. 15
Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), parte do pressuposto de que
família refere-se ao conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco, dependência
doméstica ou normas de convivência, residente na mesma unidade domiciliar 12, ou pessoa que
mora só em uma unidade domiciliar. Entende-se por dependência doméstica a relação
estabelecida entre a pessoa de referência e os empregados domésticos e agregados da família,
e por normas de convivência as regras estabelecidas para o convívio de pessoas que moram
juntas, sem estarem ligadas por laços de parentesco ou dependência doméstica. Consideramse
como famílias conviventes as constituídas de, no mínimo, duas pessoas cada uma, que
residam na mesma unidade domiciliar (domicílio particular ou unidade de habitação em
domicílio coletivo).
Para o Ministério da Saúde13, família é o conjunto de pessoas ligadas por laços de
parentesco, dependência doméstica, normas de convivência, que residem na mesma unidade
domiciliar. Inclui todos os moradores do domicílio ocupado. Sendo que cada domicílio
corresponde a uma família. Nesta concepção observamos que há uma preocupação voltada
para o cuidado dos membros, já que se trata de uma questão de saúde.
Observamos, que os conceitos aqui trazidos sobre família, predominantemente, têm
como referência a moradia, o que configura uma restrição a ser considerada, pois se
pensarmos o domicílio como referencia, parcela da população brasileira, por exemplo, aqueles
em situação de rua ou os integrantes de populações tradicionais (quilombolas e indígenas),
não são contemplados.
Assim, pelo todo, temos que uma única definição para família jamais abarcará todas as
relações sociais construídas entre homens, mulheres, crianças, adolescentes, idosos. A
definição de família varia conforme objetivos e as relações sociais estabelecidas ou a serem
construídas, o que a nosso ver acarreta em desafios na elaboração, implantação,
implementação e execução de políticas sociais, bem como aos profissionais no âmbito do
trabalho com família.

12 Conforme o Instituto Brasileiro Geografia e Estatísticas (IBGE), domicilio “é o local estruturalmente


separado e independente que se destina a servir de habitação a uma ou mais pessoas, ou que esteja sendo
utilizado como tal. Os critérios essenciais para definir a existência de mais de um domicílio em uma mesma
propriedade ou terreno são os de separação e independência, que devem ser atendidos simultaneamente.
Entende-se por separação quando o local de habitação for limitado por paredes, muros ou cercas e coberto por
um teto, permitindo a uma ou mais pessoas, que nele habitam, isolar-se das demais, com a finalidade de dormir,
preparar e/ou consumir seus alimentos e proteger-se do meio ambiente, arcando, total ou parcialmente, com suas
despesas de alimentação ou moradia. Por independência, entende-se quando o local de habitação tem acesso
direto, permitindo a seus moradores entrar e sair sem necessidade de passar por locais de moradia de outras
pessoas.
(IBGE 2010).
13 Informações disponíveis no Manual CadSus Brasil.
Por tais razões, entendemos que cabe ao profissional, para realização deste trabalho, ter
clareza, dos objetivos, objeto de intervenção profissional, referencial teórico-metodológico e
ético-político capazes de apreender a dinâmica da complexidade das relações sociais que
envolvem a instituição família.
Faz-se, fundamental conhecer a família em suas múltiplas configurações e formas de
organização, apreendendo suas particularidades como pertencentes a diferentes culturas,
etnias, religiões e classes sociais. É sine qua non a realização de pesquisas para ampliar o
conhecimento sobre os diferentes tipos de configurações familiares que se prevalecem no
campo de atuação do profissional e buscar compreender o porque das mudanças nas vidas
familiares e nas diferentes organizações das mesmas, o que requer também conhecer o
percurso sócio-histórico da vida da família, e assim, identificar, qual concepção de família
adotar para a determinada ação social e saber para quem das políticas sociais construídas
(partindo aqui do pressuposto, que toda população deve ter garantido a proteção social do
Estado). Eis o grande desafio, nestes “tempos de divisas e de gente cortada”.(Carlos Drumond
de Andrade)

5. Reflexões a guisa de conclusão

A família deve ser entendida como a que é vivida no concreto, com suas diferenças
internas, de gerações e de gênero, e em termos de suas distintas relações com as condições
sociais, culturais e econômicas. Deve especialmente ser apoiada pelos sistemas de proteção
social, para que tenha condições de exercer sua função protetiva.
A diversidade cultural, étnica, racial, sexual, deve ser pensada e discutida na
concretude das ações sócio-educativas, além das garantias constitucionais, da cobertura das
necessidades sociais básicas do núcleo social família, uma questão de fundo é “o que deve
orientar a formulação de ações públicas de atenção à família”, refere-se a elementos teóricos e
ídeoculturais da sociedade contemporânea e que devem ser refletidos à luz da teoria social
crítica, atrelada as teorias políticas e econômicas.
Concluímos com as reflexões elencadas neste texto que uma única definição jamais
abarcará todas as possibilidades e, nesse caso, as exceções serão muitas. Entretanto, os
formuladores de políticas públicas devem buscar um conceito com o rigor necessário para
orientar a implementação, mas que tenha flexibilidade suficiente para dar conta de toda
complexidade da situação apresentada.
E, diante desse desafio, fica a dúvida quanto à possibilidade de considerar a família
como parâmetro para a concessão de benefícios. Não seria mais fácil, eficiente e efetivo,
talvez, atender as necessidades individuais, sem levar em consideração as estratégias
familiares de sobrevivência. Em outras palavras, o indivíduo deve ser atendido por sua
posição no ciclo de vida e condições socioeconômicas, independente da sua inserção familiar?
Eis algumas reflexões que o presente texto nos convoca a dar continuidade no estudo da
temática “família” e com isso, continuando com o pressuposto que o assunto está longe de ser
esgotado.
Ainda neste interregno trazemos a música “Família” do conjunto musical brasileiro:
Titãs, que propicia reflexões de que família é um espaço do cotidiano marcado por relações de
conflito, também de proteção, de educação, constituição de valores, hábitos, cultura, de
convivência, de resistência, de companheirismo, de compartilhamento, enfim, família:
instituição social de definição e conceitos longe de serem contemplados com somente
palavras.

Família
Titãs
Composição: Arnaldo Antunes / Toni Bellotto

Família! Família!
Papai, mamãe,
titia Família!
Família!
Almoça junto todo dia Nunca
perde essa mania...
Mas quando a filha
Quer fugir de casa
Precisa descolar um ganha-pão
Filha de família se não casa
Papai, mamãe
Não dão nem um tostão...
Família êh! Família ah!
Família! oh! êh! êh! êh!
Família êh! Família ah!
Família!...
Família! Família!
Vovô, vovó, sobrinha
Família! Família!
Janta junto todo dia
Nunca perde essa mania...
Mas quando o nenêm
Fica doente Uô! Uô!
Procura uma farmácia de plantão
O choro do nenêm é estridente
Uô! Uô!
Assim não dá pra ver televisão...
Família êh! Família ah!
Família! oh! êh! êh! êh!
Família êh! Família ah!
Família! hiá! hiá! hiá!...
Família! Família!
Cachorro, gato,
galinha Família!
Família!
Vive junto todo dia
Nunca perde essa mania... A
mãe morre de medo de barata
Uô! Uô!
O pai vive com medo de ladrão
Jogaram inseticida pela casa
Uô! Uô!
Botaram cadeado no portão...
Família êh! Família ah! Família!
Família êh! Familia ah!
Família! oh! êh! êh! êh! Família
êh! Família ah!
Família! hiá! hiá! hiá!...

REFERÊNCIAS

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