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INTRODUÇÃO.
Antes mesmo de Marx, Proudhon já afirmara que la propriété c’est le vol, ou seja,
que “a propriedade é o roubo”, introduzindo uma visão totalizante da realidade social,
orientada pela integral coletivização da atividade produtiva e pela negação da propriedade
privada. A propriedade seria um roubo não porque o proprietário toma os bens dos demais,
mas porque o proprietário dos meios de produção fica, por inteiro, com o produto de uma obra
que é social; apropria-se, em conseqüência, de algo que não lhe pertence, mas a todos 1. Com a
Théorie de la propriété, Proudhon imputara à propriedade funções que permitiriam a
construção de uma sociedade livre, dominada pelo trabalho, com uma nova forma de
legitimação da posse dos bens; “uma propriedade [...] dirigida à realização de fins existenciais
e sociais, ao progresso e ao exercício das responsabilidades morais”2.
À crise das concepções individualistas, soma-se também o pensamento social
cristão, externado em vários documentos pontífices, a iniciar pela Encíclica Rerum Novarum,
de Leão XIII (1891); seguindo-se as Encíclicas Quadragesimo anno e Divini Redemptoris, de
Pio XI; Mater et magistra, de João XXIII; Populorum progressio, de Paulo VI; duas
mensagens de Pio XII, veiculadas por rádio no Natal de 1942 e em 1º de setembro de 1944;
até a própria Constituição do Concílio Vaticano II.
Segundo a Igreja, a propriedade privada deve ser garantida como necessidade natural
dos homens; porém, tem ela estrutura e função social, ao excluir o monopolismo e impor
uma redistribuição mundial dos meios de produção, com equânime retribuição aos
trabalhadores por sua força produtiva. Isso facilitaria o acesso de todos à propriedade, como
forma de garantia do livre desenvolvimento social dos indivíduos, das famílias, das
associações e de toda a coletividade humana. A livre iniciativa continua essencial, bem como
a propriedade privada que dela resulta; no entanto, torna-se necessário que toda a atividade
econômica, assim como o intervencionismo estatal, sejam balizados por razões de ordem
moral, sempre voltados à consecução do bem comum. O Estado não pode abolir a livre
iniciativa nem a propriedade privada, mas deve fazer com que todos sejam verdadeiramente
livres, capazes de gozar dos bens econômicos e ascender à condição de proprietários, na
plenitude de suas vidas humanas 3.
1
A observação quanto a essa visão simplista e antecipada da teoria da plusvalia de Marx é feita por Manoel
Gonçalves Ferreira Filho. “A propriedade e sua função social”, p. 32.
2
Tradução livre do original italiano: “una proprietà [...]rivolta alla realizzazione di fini esistenziali e
sociali, al progresso ed all’esercizio delle responsabilità morali”. COMPORTI, Marco. “Ideologia e
norma nel diritto de proprietà”, p. 305.
3
Ver PIACENTINI, apontado por Marco Comporti, op. cit., p. 306-7.
5
4
Tradução livre do original italiano: “[...] la società [...] tenda a strutturarsi secondo gruppi di potere
basati non exclusivamente sulla proprietà, ma piuttosto sull’appartenenza a categorie determinate, su
raporti di fiducia, su criteri di cooptazione; [...] Il potere politico ed economico può talora prescindere
dalla proprietà, essendo divenute importanti forme di accumulazione della riccheza distinte del profitto dal
proprietario (...) La antica identificazione può in molti casi essere revocata in dubbio, e con essa
l’identificazione di proprietà e libertà.” RODOTÁ. Novissimo Digesto, p. 134.
6
discurso “A missão social do direito privado”, publicado em Viena no ano de 1889, afirmava
que à propriedade deveriam ser impostos deveres sociais; que a propriedade não deveria
servir unicamente ao interesse egoístico dos indivíduos, mas ser ordenada no interesse de
todos; que todo o direito imobiliário deveria transformar-se radicalmente para constituir um
sistema especial, pois as normas que regulam a propriedade dos imóveis não podem ser as
mesmas que governam a propriedade das coisas móveis 5.
Em termos de direito positivo, o reconhecimento da função social da propriedade, no
direito continental europeu, deu-se com o artigo 153 da Constituição de Weimar de 1919,
em que estabelecida a subordinação do exercício do direito ao bem comum: “A propriedade
será amparada pela Constituição. Seu conteúdo e seus limites serão fixados pelas leis. A
propriedade obriga. Seu uso deve estar a serviço do bem comum”. Já na legislação latino-
americana, a função social foi introduzida pelo artigo 10 da Constituição Colombiana de
1936: “Se garantiza la propiedad privada y los demás derechos adquiridos con justo título,
con arreglo a las leyes civiles, por personas naturales o jurídicas, los cuales no pueden ser
desconocidos ni vulnerados por las leyes posteriores. Cuando de la aplicación de una ley
expedida por motivos de utilidad pública o interés social, resultaren en conflicto los derechos
de los particulares con la necesidad reconocida por la misma ley, el interés privado deberá
ceder al interés público o social. La propiedad es una función social que implica
obligaciones”6.
Aduziu-se, preliminarmente, a uma incompatibilidade conceitual entre as noções de
direito subjetivo e função social, visto que a idéia de função, como vínculo, repugnaria a
concepção de direito, como liberdade. No entanto, a explicitação constitucional de que a
propriedade deveria cumprir uma função social pôs termo às discussões, impedindo que se
tomasse a função social como qualquer coisa estranha ao conceito de propriedade, já que na
verdade ela o legitimaria7. O que fizeram os textos constitucionais foi continuar atribuindo
formalmente ao particular a titularidade do direito de propriedade, apenas determinando que a
esse poder acompanhasse a respectiva funcionalização, em senso social, harmonizando ambos
conceitos.
5
GRAU, Eros Roberto. “Função social da propriedade”, p. 16ss.
6
Sobre a questão agrária na Colômbia e seus reflexos no Brasil, ver MORAES, Sílvia Helena, “A questão
da propriedade da terra: conceitos e princípios incorporados ao direito agrário latino-americano e a
necessidade de uma evolução” p. 52-74.
7
No direito brasileiro, as mesmas considerações são feitas por Roger Raupp Rios, in A função social da
propriedade e desapropriação para fins de reforma agrária, item. 3.1..
7
No que toca à exatidão do termo “social”, geralmente tem sido definido em sentido
negativo, contrapondo-se a “individual”, como na expressão “utilidade social”. A própria
palavra “utilização” já foi objeto de controvérsias, restando entendida como obtenção de um
“máximo social”, às vezes com sacrifício de outros interesses que não sejam coincidentes com
o fim social perseguido. Pertinente lembrar, a esse respeito, que a noção de interesse coletivo
ou social não obedece necessariamente a um critério quantitativo, não representando a soma
dos interesses particulares de cada membro da coletividade, mas subordina-se ao critério
qualitativo de suficiente idoneidade a promover uma melhora das condições sociais.
Se função é o “modo concreto de um instituto ou um direito de características
morfológicas particulares operar no mundo dos fatos”, como ensina Rodotà8; função social da
propriedade é, portanto, o modo como opera a propriedade no mundo dos fatos, segundo os
objetivos, valores, princípios e fundamentos definidos pelo texto constitucional. No caso da
Constituição Federal de 1988, a propriedade deixa de ser uma mera atribuição de poder
tendencialmente plena, cujos confins são definidos externamente e de modo negativo, para ter
o conteúdo fixado de forma dependente dos centros de interesse “extraproprietários”, que são
regulados no âmbito da relação de propriedade9.
8
Citado por André Osorio Gondinho, na obra coletiva organizada por Gustavo Tepedino Problemas de
Direito Civil-Constitucional, p. 405.
9
Cfe. Gustavo Tepedino, Temas de Direito Civil, p. 280.
8
10
Ver PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado, tomo XI, § 1.165.
11
A expressão é de Pontes de Miranda. Ibidem, tomo XI, § 1.165.
12
Adélia Moreira Pessoa, in Propriedade da terra e função social, p. 142-3.
9
13
Sobre a mesma crise, mas vista do ângulo do urbanismo brasileiro, consultar Rogério Gesta Leal, in A
função social da propriedade e da cidade no Brasil: aspectos jurídicos e políticos principalmente Capítulo
II.
10
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá sua função social;
14
Cf. RUSSOMANO, Rosah, op. cit., p. 266ss.
11
[...]
tem deveres perante a comunidade que dá sentido e valor econômico ao bem objeto da
propriedade urbana.
Nesse senso, a propriedade urbana passa a ser assegurada sempre que direcionada a
uma cidade mais eqüitativa, sustentável e democrática, abandonando-se o patrimonialismo e o
individualismo que marcavam esse direito até então. Tais características não se coadunam a
um direito civil que se constitucionaliza, abandonando o status de “Constituição” das relações
privadas, para ressurgir com fundamento de validade haurido diretamente da Constituição da
República.
Passado o período de extremo individualismo que identificou os códigos
oitocentistas, elaborados à sombra do Code Napoléon18 mesmo durante o século XX – caso do
caso do Código Civil brasileiro de 1916; e superado o intervencionismo estatal, de produção
legislativa fragmentária e setorizada, que mereceu a denominação de microssistema19;
começa-se a reconhecer um movimento teórico de busca e retomada do fundamento de
validade do direito civil, atrelando-o diretamente à norma fundamental do próprio sistema
jurídico, qual seja, a Constituição. Ao mesmo tempo, cumpre assinalar que o período seguinte
à II Guerra Mundial foi também marcado pela superveniência de Constituições analíticas, que
trouxeram para o âmbito de positivação do texto constitucional não apenas direitos humanos
já conhecidos, como vida e liberdade, mas um amplo leque de novos direitos – com
titularidade não apenas individual, mas também coletiva e difusa – e princípios, dotando-os,
todos, da força normativa e da supremacia constitucionais. A Constituição, e o que nela está
inserido, valem de modo prioritário: têm supremacia hierárquica sobre a legislação
infraconstitucional que, sendo incompatível, torna-se carente de fundamento de validade;
indicam novas pautas de conduta, determinando comportamentos positivos pelo legislador,
pelo administrador e pela sociedade; impedem a prevalência da interpretação contrária aos
novos standards previstos, etc..
Não se trata, por conseguinte, de um movimento setorizado nem bi-partido entre as
esferas do direito público e do direito privado, mas da constatação da complementaridade e
mútua influência dos movimentos sociais sobre o sistema jurídico. O direito constitucional se
“privatiza”, trazendo para o corpo da Constituição institutos que até então tinham caráter
tipicamente privado – as normas sobre família, criança e adolescente, são exemplo inequívoco
18
O Código Civil francês outorgado por Napoleão Bonaparte data de 1804.
19
A alusão à alegoria de um sistema como o solar, onde o Código Civil apareceria como centro em torno do
qual gravitam as demais leis especiais, como centros dotados de certa independência e autonomia, foi
inicialmente proposta por Natalino Irti e apresentada no Brasil por Orlando Gomes, conforme refere
Gustavo Tepedino, in Temas de Direito Civil, p. 1ss.
14
população de baixa renda dirige-se às zonas periféricas, ocupando áreas que são mais baratas
exatamente pela falta de infra-estrutura urbana, ou pior, pela fragilidade das condições
ambientais, resultando, com isso, na expansão indefinida dos limites da cidade20.
Na verdade, essa alegada “falta de planejamento” de muitas cidades é decorrência de
“uma interação bastante perversa entre os processos sócio-econômicos, opções de
planejamento e de políticas urbanas, e práticas políticas que construíram um modelo
excludente em que muitos perdem e pouquíssimos ganham”21. O planejamento de “cidades
virtuais”, como acontecia com os poucos planos diretores produzidos na década de 1970; bem
assim a contradição entre planejamento e gestão das cidades, talvez possam ser indicados
como as principais deficiências a serem superadas pelo novo modelo instituído pelo Estatuto
da Cidade.
Dando concreção às normas constitucionais de política urbana, o Estatuto da Cidade
altera o paradigma predominante da propriedade privada nas cidades brasileiras. Mediante
instrumentos de indução de condutas, a propriedade urbana deve contemplar
fundamentalmente o direito à moradia, com adequado uso e ocupação do solo urbano, ante as
funções que a cidade deve proporcionar. Se o proprietário que não dá uso urbano à
propriedade pode ser penalizado até mesmo com a desapropriação, àquele que pretende
empreender correta utilização do solo são previstos mecanismos de parceria, inclusive com o
poder público municipal, incentivando a gestão adequada do solo urbano. A busca por cidades
sustentáveis e a repartição dos ônus resultantes da urbanização são balizas essenciais ao
regime jurídico instaurado com a nova lei, destacando-se igualmente o papel de relevo
atribuído ao Município para viabilização e implementação dessas medidas.
Esclarecido o contexto jurídico e fático em que se insere o Estatuto da Cidade, passa-
se primeiro à análise dos objetivos e diretrizes da lei; e, mais adiante, a um exame, ainda que
perfunctório, dos instrumentos nela previstos.
20
Nesse sentido, consultar Estatuto da Cidade, p. 25/26.
21
Idem, ibidem.
16
22
A ordem urbanística foi incluída entre os objetos de tutela por meio de ação civil pública, conforme a nova
redação dada ao artigo 1º da Lei nº 7.347/85 pelo artigo 53 da Lei nº 10.257/2001.
23
In “Globalização, regionalização, reforma do Estado e da Constituição”, p. 4.
17
instituída pela Constituição da República de 1988: tornar as cidades mais justas, humanas,
democráticas e sustentáveis.
Cidade sustentável é aquela caracterizada por condições dignas de vida, em que a
cidadania e os direitos fundamentais são exercidos de modo pleno (direitos civis e políticos,
econômicos, sociais, culturais e ambientais), inclusive por meio da participação na gestão da
cidade; em suma, é “viver numa cidade com qualidade de vida, sob os aspectos social e
ambiental”24. Nelas se concretizam os direitos à moradia, ao ambiente ecologicamente
equilibrado, à prestação de serviços públicos tipicamente urbanos – como saneamento,
transporte, infra-estrutura urbanística (ruas, iluminação, trânsito) – ao trabalho e ao lazer.
Trata-se da cidade como locus da pessoa humana, como espaço onde o homem se relaciona
com os demais e com o meio, onde lhe deve ser assegurado não apenas o mínimo à existência
digna, mas a concreta possibilidade de desenvolvimento enquanto cidadão (participação
política ) e pessoa (participação social e comunitária).
A esse princípio se acresce a gestão democrática, quer por meio da participação
popular, individual ou associativa, na formulação, execução e acompanhamento das políticas
públicas de desenvolvimento urbano; quer pela cooperação entre o poder público e os setores
da sociedade civil no processo de urbanização, com vistas ao interesse social (art. 2º, II e III,
respectivamente). Assume-se, assim, que a cidade é composta por diferentes atores, com
concepções e necessidades de vida diversas, todas as quais devem ser atendidas e
incrementadas na cidade, pela mediação de conflitos numa seara de democracia participativa.
A concreção do direito à cidade, nesse sentido, passa pela viabilização do direito à
participação nos processos de gestão da cidade, dos projetos de desenvolvimento urbano, da
decisão quanto aos planos implementados e da parceria entre poder público e iniciativa
privada. Pressupõe, ademais, a organização da sociedade civil, para que atue em conjunto
com o poder público na concretização de políticas urbanas.
Especificamente no que tange ao regime jurídico de uso e ocupação do solo urbano,
o Estatuto da Cidade definiu de forma negativa os fins a que se destina, elencando as
situações que devem ser evitadas (art. 2º, VI)25. Depreende-se que a ordenação e o controle do
24
Cfe. Estatuto da Cidade, op. cit., p. 34.
25
Lei nº 10.2571 – Art. 2º. (...) VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar: a) a utilização
inadequada dos imóveis urbanos; b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; c) o
parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infra-estrutura
urbana; d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores de
tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente; e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que
resulte na sua subutilização ou não utilização; f) a deterioração das áreas urbanizadas; g) a poluição e a
degradação ambiental.
18
solo devem permitir a utilização adequada dos imóveis urbanos, compatível com a infra-
estrutura urbana existente ou conformada àquela que se intente incrementar. Coíbe-se a
retenção especulativa de imóveis, o que possibilita, entre outras medidas, a intervenção direta
do poder público municipal no mercado imobiliário, atuando no processo de formação de
preços; a indução de usos e ocupações específicas, a fim de solucionar distorções entre a
capacidade e a real utilização do imóvel; a intervenção como forma de proteger o ambiente,
evitando a poluição e a degradação ambiental, bem assim a ocupação de áreas de risco pela
população. No conceito de ambiente, aliás, deve-se compreender a tutela do patrimônio
artístico, histórico, paisagístico e cultural da cidade, eventualmente postos em risco pelo
processo de urbanização descontrolada.
Ainda entre as diretrizes, cabe destacar a justa distribuição dos benefícios e ônus
decorrentes da urbanização (art. 2º, IX), que fundamenta, entre outros, a forma de cálculo
das indenizações a serem pagas na desapropriação por não-uso ou uso inadequado do solo
urbano, assim como o ressarcimento em caso de consórcio imobiliário. Esse mesmo princípio
também respalda a transferência do direito de construir, permitindo, por exemplo, que o
proprietário de imóvel tombado, ou de imóvel onde se tenha constituído área de preservação
ambiental, não seja penalizado pela inviabilização do uso pleno da propriedade. Se a
propriedade funcionalizou-se ao interesse público de preservação do ambiente cultural ou
natural, como nas hipóteses cogitadas, a justa distribuição dos ônus de urbanização permite ao
proprietário transferir o potencial construtivo correspondente à área, daí retirando o proveito
econômico que a propriedade lhe poderia proporcionar. Devem ser assim buscadas formas de
corrigir eventuais distorções provocadas pelo processo de urbanização, amenizando impactos
econômicos e sociais referentes ao patrimônio imobiliário, de maneira a compensar ganhos e
perdas excessivos decorrentes de alterações na dinâmica e nos investimentos públicos e
privados na cidade.
Últimas diretrizes a serem especificadas, pela pertinência com o estudo da função
social da propriedade urbana, são as concernentes à simplificação da legislação de
parcelamento, uso e ocupação do solo urbano, notadamente mediante a edição de normas
especiais que facilitem os processo de regularização fundiária (art. 2º, XIV e XV). É clara a
incidência do princípio de justiça distributiva nesse objetivo da lei, autorizando-se o
tratamento especial de situações também diferenciadas, com intuito de facilitar a efetivação
do direito constitucional à moradia. A “cidade irregular e clandestina” deve ser trazida para
dentro da “cidade legalizada e planejada”, providência agora incentivada pela edição de
19
propriedade urbana imantada pelos princípios constitucionais concretizados por essa nova
normativa.
Nesse sentido e conforme já aludido, o Estatuto da Cidade trouxe uma série de
instrumentos que buscam, em última análise, viabilizar a concretização dos princípios
constitucionais da função social da propriedade urbana e da função social da cidade. Na
esteira da norma constitucional, esses instrumentos devem ter previsão no Plano Diretor,
obrigatório para as cidades que intentem aplicá-los, ademais de regulação em lei municipal
específica.
Constata-se, por conseguinte, que o Plano Diretor foi elevado a principal ato
normativo regulador da função social da propriedade urbana e da função social da cidade.
Abandonada a técnica dos Planos Diretores de Desenvolvimento Integrado (PDDI’s), comum
nos anos de 1970 e responsável por um planejamento muitas vezes divorciado da realidade
social das cidades26, o Plano Diretor assume o papel de instrumento normartivo que traduz o
pacto social da “cidade que queremos”, identificando-se com o interesse público da cidade. O
plano decorre de um processo político, no âmbito do qual são canalizadas as políticas públicas
em torno de alguns objetivos prioritários27.
Nos termos do artigo 39 do Estatuto da Cidade, o Plano Diretor têm por princípios a
função social da propriedade, o desenvolvimento sustentável, as funções sociais da cidade28, a
igualdade e justiça social e a participação popular. Cumpre ao Plano Diretor estabelecer o
equilíbrio entre as formas de desenvolvimento econômico – donde proteger-se o direito de
propriedade, inclusive pelos mecanismos que visam à preservação do proveito econômico do
bem imóvel – e o desenvolvimento social e humano, centrado no incremento das condições
para desenvolvimento da dignidade humana. O interesse econômico do proprietário e dos
mercados da cidade devem submeter-se ao princípio da cidade sustentável, em que
assegurados o direito à moradia, aos serviços públicos básicos (saneamento, transporte, luz,
26
Cfe. Estatuto da Cidade, p. 40/41.
27
“O Plano Diretor pode ser definido como um conjunto de princípios e regras orientadoras da ação dos
agentes que constroem e utilizam o espaço urbano. [...] O objetivo do Plano Diretor não é resolver todos os
problemas da cidade, mas sim ser um instrumento para a definição de uma estratégia para a intervenção
imediata, estabelecendo poucos e claros princípios de ação para o conjunto dos agentes envolvidos na
construção da cidade, servindo também de base para a gestão pactuada da cidade. Desta forma, é definida
uma concepção de intervenção no território que se afasta da ficção tecnocrática dos velhos Planos Diretores
de Desenvolvimento Integrado [...] Assim, mais do que um documento técnico, normalmente hermético e
ou genérico, distante dos conflitos reais que caracterizam a cidade, o Plano passa significar um espaço de
debate dos cidadãos e de definição de opções, conscientes e negociadas, por uma estratégia de intervenção
no território.” Idem, p. 42/43.
28
Para uma abordagem mais ampla do fenômeno urbano, com exame das múltiplas e diferentes funções da
cidade, consultar As funções da cidade, de Marcella della Donne.
21
lixo), à proteção do ambiente natural e cultural, ao lazer e à saúde – tudo isso sob o prisma
constitucional de erradicação da pobreza e redução da desigualdades sociais e regionais.
Assentadas tais premissas, passa-se ao exame dos novos institutos previstos pelo
Estatuto da Cidade. Esses instrumentos podem ser divididos, para fins didáticos, em
instrumentos de indução do desenvolvimento urbano, instrumentos de regularização fundiária
e instrumentos de gestão urbana, segundo o desiderato a que fundamentalmente procurem
atender29. Serão assim tratados no decorrer deste texto, que apenas excluirá os mecanismos
ligados à gestão democrática da cidade, por não apresentarem pertinência direta com o estudo
do direito de propriedade.
que não esteja sendo edificada ou utilizada, ou que seja subutilizada, devendo fixar as
condições e os prazos para que sejam implementadas tais medidas. Por área subutilizada,
entenda-se o imóvel cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no próprio Plano
Diretor, ou na legislação dele decorrente. A obrigação será comunicada ao proprietário
mediante notificação, que deverá ser averbada no registro de imóveis. Na hipótese de grandes
empreendimentos, a lei específica poderá excepcionalmente prever a conclusão em etapas,
“assegurando-se que o projeto aprovado compreenda o empreendimento como um todo”.
Ademais, tais obrigações aderem ao imóvel, sendo transferidas por ato inter vivos ou causa
mortis, sem interrupção de prazos. A lei possibilita a não-transferência apenas na hipótese de
notificação anterior à data do ato de transmissão. Trata-se, portanto, de obrigações propter
rem.
O imposto predial e territorial urbano progressivo no tempo – IPTU é o segundo
mecanismo de indução de uso adequado da propriedade urbana. Não cumpridos os prazos
para edificação, parcelamento ou utilização compulsórios, poderá o Município cobrar do
proprietário o chamado IPTU progressivo, num prazo de cinco anos. A alíquota pode ser
majorada ano a ano, até um máximo de quinze por cento do valor fiscal do imóvel. Evidente,
nesse caso, o caráter de extrafiscalidade do imposto, que não tem por fundamento a
arrecadação, mas o cumprimento do objetivo de adequado aproveitamento do solo urbano.
Nesse sentido, também se deve sustentar a vedação de cobrança do IPTU progressivo visando
à formação de receita pública, pois a autorização constitucional para penalizar o proprietário
atrela-se ao atendimento da função social da propriedade urbana, e não ao incremento das
receitas municipais.
A desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública, de prévia
aprovação pelo Senado Federal, assume uma natureza eminentemente punitiva, a justificar o
apelido de “desapropriação-sanção”. Quando o proprietário de imóvel urbano, depois de
notificado para a realização do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; e depois
de transcorridos os cinco anos de cobrança de IPTU progressivo no tempo, continua sem dar à
propriedade a destinação fixada pelas normas urbanísticas, em desrespeito à função social da
propriedade e da cidade, terá lugar essa especial modalidade de desapropriação.
De salientar-se que o valor da indenização tem regras próprias, devendo refletir o
valor da base de cálculo do IPTU, descontadas eventuais quantias decorrentes de obras
efetuadas pelo poder público posteriormente à notificação para utilização, bem como
expectativas de ganhos, lucros cessantes e juros compensatórios. A diferença entre as parcelas
23
30
No caso da propriedade urbana, o direito de superfície atrela-se mais propriamente às necessidades de
construção e edificação, do que de cultivo em terreno alheio. Marise Pessôa Cavalcanti, in Superfície
Compulsória, p. 14.
31
Cfe. José Tadeu Chiara, in “Propriedade Urbana e Direito de Construir no Direito Urbanístico
Comparado”, RT 536, p. 43/44.
32
In “A propriedade urbanística”, RF 300, p. 53.
25
Ainda prevê o Estatuto da Cidade que lei municipal, também respaldada no Plano
Diretor, poderá autorizar o proprietário a proceder à transferência do direito de construir,
documentada em escritura pública. O proprietário de imóvel urbano, privado ou público –
nesta hipótese, mediante licitação – fica autorizado a exercer em outro local, ou a alienar o
direito de construir correspondente à propriedade considerada necessária, ou doada ao poder
público, para o atendimento dos fins previstos na lei, quais sejam: (a) implantação de
equipamentos urbanos e comunitários; (b) preservação, quando o imóvel for considerado de
interesse histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural; (c) implementação de
programas de regularização fundiária, de urbanização de áreas ocupadas por população de
baixa renda e de habitação de interesse social.
A pedido do proprietário atingido pelas obrigações compulsórias de parcelamento,
edificação e utilização da propriedade urbana, o poder público municipal poderá facultar-lhe o
estabelecimento de consórcio imobiliário, como meio de viabilizar financeiramente o
aproveitamento do imóvel. Pelo consórcio imobiliário, o proprietário transfere o imóvel ao
poder público municipal, que depois de realizadas as obras, recebe o pagamento em unidades
imobiliárias urbanizadas e edificadas. Ressalve-se, no entanto, que o valor das unidades
imobiliárias dadas em pagamento terá pertinência com o valor do terreno antes de executadas
as obras, observadas as mesmas restrições existentes à indenização na “desapropriação-
sanção”, pelo idêntico fundamento de penalidade e preservação da isonomia em relação aos
proprietários que dão adequada destinação ao imóvel.
As operações urbanas consorciadas objetivam implementar políticas públicas
urbanas, numa espécie de interface entre poder público e particulares, em área assim
delimitada por lei específica, com base no Plano Diretor. Cuida-se “do conjunto de
intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos
proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de
alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e valorização
ambiental”, na dicção do artigo 32, § 1º do Estatuto da Cidade.
Nesses grandes projetos, são admitidas alterações dos índices e características de
parcelamento, uso e ocupação do solo e subsolo, bem como alterações das normas edilícias,
considerado o impacto ambiental; e também a regularização de construções, reformas ou
ampliações executadas em desacordo com a legislação vigente. Na lei específica que aprovar
a operação urbana consorciada ainda poderão ser leiloados, como meio de angariar fundos,
certificados de potencial adicional de construção, conversíveis em direito de construir na
28
fornecidas pelo poder público local. O EIV tem por meta verificar os aspectos positivos e
negativos do empreendimento ou atividade planejados sobre a qualidade de vida da população
residente na área e nas proximidades, motivo por que deve ficar à disposição para consulta de
qualquer interessado, junto ao órgão municipal competente. O artigo 37 do Estatuto da Cidade
fixa o conteúdo mínimo da análise do EIV (adensamento populacional, equipamentos urbanos
e comunitários, uso e ocupação do solo, valorização imobiliária, geração de tráfego e
demanda por transporte público, ventilação e iluminação, paisagem urbana e patrimônio
natural e cultural) e esclarece que esse instrumento não exclui estudo de impacto ambiental,
porventura necessário.
37
Betânia Alfonsin, in Instrumentos e experiências de Regularização Fundiária nas Cidades Brasileiras,
FASE-GTZ – IPPUR-UFRJ, p. 24, citada em Estatuto da Cidade, op. cit., p. 153.
38
Um exemplo de gerenciamento de demandas sociais bastante graves que cabe indicar consiste na remoção,
em Porto Alegre, da chamada vila “Cai-Cai”, que se localizava numa estreita faixa de terra entre o rio
Guaíba e uma movimentada avenida da cidade, com 700 metros de extensão por 30 metros de largura,
composta de 234 famílias e 904 pessoas. Consoante o relato feito por Zilá Mesquita, experiências anteriores
demonstraram que não bastava simplesmente a retirada da vila e a realocação das casas num local
considerado seguro pelos órgãos de fiscalização municipal. Questões como a fonte de renda e o emprego da
população envolvida; a preparação, ou não, para o trato de assuntos de higiene básica, pessoal e ambiental;
a escola das crianças; as desavenças e amizades com vizinhos, todos esses foram assuntos abordados ao
30
condições semelhantes, previu-se a concessão de uso especial de imóveis públicos para fins
de moradia, procurando-se funcionalizar a propriedade pública de imóveis urbanos à
efetivação do direito à moradia, bem como ao pequeno comércio. Num sentido prospectivo,
autorizou-se o estabelecimento de zonas especiais de interesse social, como forma de definir a
prioridade de uso de certas áreas – moradia, ou outra destinação social.
De modo mais preciso, pode-se dizer que o usucapião coletivo caracteriza-se como
o condomínio instituído a partir da posse de área urbana, por população de baixa renda, onde
não é possível a individualização dos terrenos ocupados por cada pessoa (Lei nº 10.257/2001,
art. 10). O usucapião será declarado por sentença judicial, em que fixada a fração ideal de
terreno atribuída a cada indivíduo, independentemente da dimensão do área até então
ocupada, salvo acordo entre os condôminos para estabelecer frações ideais diversas. Tal
sentença servirá de título para transcrição no registro de imóveis. O condomínio especial
constituído é indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação favorável de pelo
menos dois terços dos condôminos, se executada urbanização posterior à constituição do
condomínio. A pendência de qualquer das ações de usucapião especial de imóvel urbano
determina o sobrestamento de todas outras ações, petitórias e possessórias, que venham a ser
ajuizadas relativamente ao mesmo bem.
Tanto o usucapião especial urbano, como o usucapião especial coletivo de imóvel
urbano têm por finalidade a garantia do direito à moradia, explicitado como direito
fundamental no caput do artigo 6º (Emenda Constitucional nº 26). Ademais, buscam a
proteção da família, assegurando-se o direito de propriedade a quem possuir, como sua, área
ou edificação urbana, utilizada para moradia própria ou da família. Trata-se de direito que
pode ser reconhecido ao homem ou à mulher, ou a ambos, não podendo beneficiar o mesmo
possuidor mais de uma vez e transmitindo-se ao herdeiro legítimo que residir no imóvel
quando da abertura da sucessão.
Semelhante ao usucapião urbano, o Estatuto da Cidade previa a concessão de
especial de uso de bem público para fins de moradia 40. Conquanto os dispositivos originais
tenham sido objeto de veto pelo Executivo, a superveniência da Medida Provisória nº 2.220,
de 05 de setembro de 2001, veio a regulamentar a matéria. Pela concessão não se reconhece o
direito de propriedade, dada a natureza pública do objeto do direito, transferindo-se ao
40
A concessão de uso especial para fins de moradia não deve ser confundida com a concessão de direito real
de uso de imóveis públicos, regulamentada pelo Decreto-lei nº 271, de 28 de fevereiro de 1967, cujos
requisitos e forma de incidência são distintos, ainda que possam igualmente atender à consecução do direito
à moradia.
32
particular apenas o direito de uso da área pública para fins de moradia. Só pode ser
implementado em imóveis públicos ocupados por população de baixa renda, não sendo
admitida a concessão, portanto, a pessoas de renda média ou alta. Pelo termo administrativo
ou a sentença judicial, se necessária, fica estabelecida a composse, dividindo-se as frações do
mesmo modo que no usucapião coletivo. Uma vez que há justiciabilidade – isto é, a
possibilidade de veicular-se judicialmente uma pretensão – pode-se afirmar a existência de
um direito subjetivo à concessão de uso de imóvel público para fins de moradia, nos termos
do artigo 6º da referida medida provisória. A concessão de uso pode ser transmitida, por ato
inter vivos ou causa mortis, e se extingue caso haja desvio de finalidade, qual seja, uso do
bem para fim diverso que a viabilização do direito de moradia à população de baixa renda.
Ponto a ser observado é a possibilidade de o poder público conceder o uso especial
para fins de moradia em área diversa daquela que esteja sendo ocupada. Isso acontece
necessariamente quando a ocupação de certa área pública oferecer risco à vida ou à saúde dos
ocupantes, donde não se conceder uso de áreas de risco. Já na hipótese de ocupação de imóvel
de uso comum do povo destinado a projeto de urbanização, de interesse da defesa nacional, de
preservação ambiental, de proteção de ecossistemas naturais, reservado à construção de
represas e obras congêneres ou situado em vias de comunicação, faculta-se ao poder público
assegurar o exercício do direito à concessão de uso em outro local (MP nº 2.220/2001, arts. 4º
e 5º). As áreas urbanas que ensejarão o reconhecimento da concessão em local diverso devem
ser previstas pelo Plano Diretor.
O mesmo diploma normativo ainda prevê a autorização de uso comercial de
imóveis públicos, beneficiando a população de baixa renda que ocupe área pública para
exercício de pequeno comércio – e não é incomum que o mesmo imóvel sirva à moradia e ao
comércio da comunidade. A autorização somente é permitida para atendimento da população
de baixa renda, sendo importante nos processos de urbanização e regularização fundiária.
Destinada a atender à função social de imóveis públicos, a autorização de uso comercial é
conferida de forma gratuita. À semelhança da concessão de uso especial para fins de moradia,
a autorização de uso comercial poderá ser outorgada em local diverso, sempre que presentes
condições de risco à vida ou à saúde, ou quando a área pública tenha alguma das destinações
previstas no artigo 5º, adrede referidas.
Último instrumento de regularização fundiária a ser examinado são as zonas
especiais de interesse social (Lei nº 10.257/2001, art. 4º, V, alínea “f”), aplicadas
primordialmente na criação e manutenção de habitações de interesse social. Essas zonas
33
CONCLUSÕES
41
In Estatuto da Cidade, p. 90.
34
imediata para o problema da cidade irregular, clandestina e ilegal, trazendo-a para o âmbito da
legalidade e da igualdade social.
Lei há; que a esperança da implementação seja suplantada por uma realidade urbana
de maior justiça e valorização do homem.
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