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Um conceito de atribuição para o direito do não cumprimento

Pedro Múrias1

(para a revista O Direito)

Índice
1. Introdução 1
2. Nota sobre a necessidade do conceito de atribuição 3
3. Extensão 6
4. Traços comuns 13
5. Definição de atribuição 16
α) Perturbações da atribuição 16
β) Definição 17
γ) «Norma» 17
δ) Qualificar um acontecimento como satisfatório 19
ε) Satisfatório para o titular 26
ζ) Imputável ao atribuinte 29
6. Estruturas das atribuições 33
7. Conclusão 43

1. Introdução

Este artigo apresenta um conceito de «atribuição» utilizável na dogmática daquilo a que


normalmente chamamos o direito do não cumprimento. A palavra «atribuição» deve ser tomada
em grande medida como um neologismo, destinado a alargar o conceito comum de obrigação,
que não cabe nalguns casos de «não cumprimento», e, assim, a expor adequadamente o conteúdo
dos contratos e de outras fontes. Não defendemos que esta «atribuição» coincida com a «atribui-
ção» a que se referem as dogmáticas do enriquecimento sem causa e da distinção entre gratuiti-
dade e onerosidade, embora também não defendamos o contrário. No não cumprimento, o
nosso conceito não se destina tanto à matéria da responsabilidade civil quanto aos problemas de

1 Pedro Múrias é doutorando da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, bolseiro da FCT em dedicação
exclusiva. A autoria deste escrito não é linear. O seu sentido é a inserção numa série de estudos com Maria de
Lurdes Pereira, a quem se devem muitas das ideias de direito civil usadas e cuja concordância foi crivo das restantes.
Por isso, o «nós» e o «nosso» que aparecem, inclusive nas citações, não são só um pluralis modestiae.
Agradecimentos académicos ao Conselheiro José de Sousa e Brito, ao Prof. Doutor Romano Martinez e aos Drs.
José António Veloso, Susana Brasil de Brito, Margarida Lima Rego e Luís Duarte d’Almeida.
Os artigos indicados apenas pela numeração pertencem ao Código Civil português vigente. Usamos abreviaturas
correntes e ainda «CCVI», para a Convenção de Viena sobre a Compra e Venda Internacional de Mercadorias, de
1981, e «LVC», para a Lei da Compra e Venda a Consumidores (D.L. 67/2003, de 8 de Abril).

1
efeitos de uma «perturbação» na própria atribuição primária atingida ou em atribuições primárias
associadas, embora esta restrição não seja muito visível ao longo do artigo. Como exemplo de
efeitos na própria atribuição atingida, considerem-se os problemas de o credor exigir uma cor-
recção de defeitos ou uma renovação da prestação, ou tratar uma prestação atrasada ou defei-
tuosa como definitiva e plenamente não cumprida. Exemplo central de reflexos em atribuições
associadas são os problemas do sinalagma, i.e., os dos reflexos do não cumprimento na contra-
prestação.2
Na secção seguinte, tentamos mostrar sumariamente a necessidade do nosso conceito de
atribuição, indicando grupos claros de casos que não podem ser tratados com referência a hipo-
téticas obrigações das partes, e aludimos ao uso da palavra «atribuição» no direito do enriqueci-
mento sem causa e na distinção entre onerosidade e gratuitidade. A secção 3, sobre a extensão
do conceito de atribuição, começa com uma longa lista de figuras jurídicas que correspondem a
atribuições, depois brevemente analisada para evidenciar a variedade das figuras aí incluídas e a
dificuldade de unificá-las na linguagem das situações jurídicas, maxime direitos e obrigações, e
dos efeitos jurídicos, a constituição, transmissão, etc., de situações jurídicas. Abrimos novo
número para apontar, como traços comuns às atribuições, a sua juridicidade, a relação que esta-
belecem entre duas pessoas e o paralelismo entre o conceito de atribuição e o conceito filosófico
de acontecimento.
No número 5, depois de uma nota sobre «perturbações da atribuição», definimos atribui-
ção como uma norma válida que, dadas duas pessoas, qualifica como satisfatório para uma delas
o acontecimento que preencha certa descrição sendo imputável à outra, e como não satisfatória
a sua ausência. Tentamos esclarecer cada uma das palavras escolhidas e discutimos possíveis
alternativas. Os elementos centrais da definição são os de «satisfação» e «imputação», palavras
cujo sentido será a seu tempo estipulado. Adiantando, e grosso modo, a satisfação das atribuições é
um conceito indicativo de valor jurídico — a não satisfação, de desvalor — e equivale ao cum-
primento das obrigações, mas abrangendo um conjunto mais vasto de figuras, porque as obriga-
ções são um subconjunto das atribuições, no sentido que damos ao termo. A primeira finalidade
daquela definição é contribuir para iluminar um conceito que temos por útil ao «direito dos con-
tratos e das obrigações». A segunda finalidade da definição de atribuição é oferecer um esquema,
«uma linguagem» de representação e análise das múltiplas atribuições, para melhor explicar ou
ilustrar o seu «conteúdo». A secção 6, a última antes da conclusão, contém um exercício de apli-
cação desse esquema.
Começamos por aceitar sem grande questionamento a linguagem dos «direitos», das outras
«situações jurídicas» e dos «efeitos jurídicos». Depois, defendemos uma linguagem diferente,
sobre «atribuições», para ser usada nas matérias do cumprimento e não cumprimento, entretanto
alargadas a todas as formas de «satisfação» e «não satisfação». Ainda assim, não procuramos

2 Cf. o nosso Sobre o conceito e a extensão do sinalagma, nos Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Oliveira Ascensão, no

prelo.

2
substituir o conceito de obrigação, como melhor se dirá nos últimos números. A obrigação é a
atribuição principal e paradigmática.
Este não é um estudo dogmático. Não discutimos soluções de problemas jurídicos. Pelo
contrário, damos por correctas e não fundamentamos detidamente as soluções de alguns casos
apresentados. Aliás, mesmo que essas soluções não sejam correctas em tese geral, podem por
regra sê-lo em resultado de cláusulas contratuais adequadas, pois temos em vista matérias inten-
samente subordinadas à autonomia privada. Por outro lado, não estamos preocupados com
soluções num concreto sistema jurídico vigente, mas sim com um conceito de atribuição que
sirva para vários sistemas, com soluções variadas. As referências à lei portuguesa, como a uma
ou outra estrangeira, devem ser tomadas como meros exemplos. Os exemplos de casos, também
por isso, não são em princípio prejudicados por algum erro de apreciação jurídica. Sem tal inten-
ção dogmática, tentamos aqui apenas uma análise de conceitos. Mas é uma análise instrumental,
visto pressupormos que estes conceitos são dogmaticamente úteis. O propósito é em grande
medida análogo ao dos capítulos sobre situações jurídicas e efeitos jurídicos, ou sobre os con-
ceitos de «objecto», «conteúdo» ou «elemento» dos negócios jurídicos,3 que aparecem em muitos
manuais de «teoria geral do direito civil». A análise do conceito de atribuição restringe o seu
valor instrumental a uma parte do chamado «direito das obrigações».

2. Nota sobre a necessidade do conceito de atribuição

No direito civil de influência alemã, pode falar-se de um «direito da obrigação». Esta é a


parte do direito das obrigações formada pelos institutos cuja invocação pressupõe a existência de
uma obrigação com certo conteúdo,4 tendo, entre nós, o seu assento legal mais amplo nos arts.
512.º a 561.º e 577.º a 873.º CC. Dentro do direito da obrigação, encontramos o direito do não
cumprimento, por vezes também designado, para abranger mais problemas, «direito das pertur-
bações da prestação». O Código Civil português tem-lhe dedicada uma secção nos arts. 790.º a
816.º, mas várias regras gerais importantes surgem noutros lugares, p. ex. em sede de alteração das
circunstâncias ou de obrigações genéricas.
A grande abrangência da obrigação não pode encobrir que alguns problemas tipicamente
contratuais e que quereríamos designar como problemas de «não cumprimento» ocorrem na
ausência de obrigações. Neste estudo, querendo aludir à fonte da atribuição, referimo-nos ao
contrato, por simplicidade, sem esquecer que há outras fontes de atribuições e de relações atri-
butivas tão complexas quanto as contratuais. Alguns dos casos mais importantes ou mais claros
de «perturbação do contrato» sem violação de uma obrigação surgem nas seguintes situações:

3 E também à análise da «estrutura textual» e da «fórmula canónica» do negócio jurídico, nas expressões de FERREIRA
DE ALMEIDA, Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico, Almedina, 1992, 327 e ss.
4 Cf. P. MÚRIAS, Programa de Direito das Obrigações, RFDUL XLIII/1, 2002, 865-7.

3
- Na matéria da «não conformidade» na compra e venda e noutros contratos envolvendo
coisas específicas, quando se trate de defeitos originários e que seja impossível corrigir ou
quando a coisa já antes do contrato estivesse em poder do comprador.5
- Nos casos de impossibilidade originária de uma prestação, em sistemas jurídicos que não
extraiam daí a invalidade do negócio. Mesmo sendo válido o contrato, continua a não haver nem
ter havido uma obrigação, sob pena de o conceito perder a sua caracterização básica.6
- Em todos os contratos de transmissão de obrigações, pelo menos quanto à inexistência da
posição contratual e à inexistência ou inexigibilidade dos créditos transmitidos. P. ex., os arts.
426.º e 587.º, estatuindo quanto àquilo que o transmitente de obrigações «garante», identificam o
equivalente ao não cumprimento nessa transmissão.7
- No contrato de mútuo, quanto à disponibilização temporária do dinheiro ou outra coisa
fungível entregue, que formará um sinalagma com a obrigação de pagamento de juros, quando
houver juros a pagar. As perturbações surgem quando o capital é devolvido antes ou depois do
tempo próprio, ou em reflexo de um não cumprimento quanto aos juros.8
- No contrato de seguro, quanto à cobertura, que perfaz um sinalagma com o prémio e que
não é uma obrigação, mas uma possibilidade de obrigação. Aqui, as perturbações surgem, p. ex.,

5 O termo «conformidade» vem na sequência da CCVI (cf. arts. 35 ss., bem como já os arts. 33 ss. da Lei Uniforme
de 1964) e ocorre hoje tb. na lei portuguesa (cf. art. 2.º LVC). As técnicas e terminologias seguidas pelo Código
Civil variaram (cf. arts. 892.º, 905.º, 913.º, 956.º, 957.º, 1032.º, 1034.º, 1134.º, etc.). O conceito de conformidade
surgiu para sujeitar a compra e venda de coisas defeituosas a um regime de não cumprimento, e não ao regime do
erro (cf. arts. 905.º e ss.), questão discutida entre nós, depois de 1966, nos conhecidos estudos de BAPTISTA
MACHADO, CARNEIRO DA FRADA, FERREIRA DE ALMEIDA e ROMANO MARTINEZ, entre outros, com uma visão
mais próxima da letra do código defendida, p. ex., por PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA. A «obrigação de
conformidade» prescinde, porém, nos casos que indicámos, de uma obrigação em sentido próprio. Quanto aos pro-
blemas específicos das atribuições temporárias, como na locação, cf. infra, n. 25.
6 A impossibilidade originária ainda é tratada pela lei portuguesa na perspectiva tradicional (cf. arts. 280.º e 401.º),

mas os exemplos estrangeiros (como o § 311a BGB, desde 2002, antecedido pela CCVI, o NBW, os PUC, os
PDEC e o CC do Quebeque) fazem esperar mudanças. Os PUC e os PDEC têm disposição geral expressa, que
também afasta o equivalente ao nosso 892.º (arts. 3.3 e 4.102, resp.te). Na nossa lei, o caso mais notório de excepção
aos arts. 280.º e 401.º é o art. 938.º/1, a). Em qualquer caso, a validade do contrato que estipule uma «obrigação de
prestação impossível» não afasta a contradição nestas palavras, como bem se vê por a impossibilidade superveniente
continuar a extinguir as obrigações. O que as novas leis fazem é exigir uma figura jurídica distinta da obrigação, a
que aqui chamamos «atribuição».
7 A interpretação que fazemos do termo «garante» dogmatiza os preceitos nos quadros mais amplos do sistema, per-

mitindo, v.g., a distinção entre perturbações culposas e não culposas, e entre relações onerosas e gratuitas (esta últi-
ma explícita na lei; os arts. 425.º e 578.º apontam no mesmo sentido). Em disposições com a amplitude destes arti-
gos, seria difícil conceber fundamento para especialidades. A «garantia» na transmissão de obrigações, acima de
tudo, não é a «garantia» do art. 921.º. Esta não é uma leitura consensual dos artigos, mas não cabe aqui desenvolvê-
-la. P. ex., C. MOTA PINTO, Cessão da posição contratual, Almedina, 1970, 454-467, para os casos de inexistência da
posição contratual, estrutura as suas teses em torno da ideia de nulidade do contrato de cessão. MENEZES LEITÃO,
Cessão de créditos, Almedina, 2005, 351-8, mais perto do texto legal, defende a validade e favorece indemnizações pelo
interesse positivo. Ambos os autores usam fórmulas como «o cedente tem de prestar a garantia de...», sugerindo que o
cedente teria alguma obrigação. Contra o termo «garantia», cf. tb. infra, o parágrafo das nn. 11 a 14.
8 Cf. a segunda parte da alínea b) do nosso Sinalagma, cit. A primeira parte dessa alínea trata problema análogo

respeitante ao sinalagma entre o pagamento do preço e a transmissão da propriedade nas vendas com reserva de
domínio. Cf. ainda M.ª LURDES PEREIRA, Conceito de prestação e destino da contraprestação, Almedina, 2001, 256-257, n.
668.

4
quando a cobertura se extingue antes do tempo estipulado ou quando o risco coberto é ou se
torna diferente do que consta do contrato.9

Perante casos como estes e sobretudo com vista a aplicar as regras do não cumprimento, é
natural que a doutrina, a jurisprudência e a própria lei sejam tentadas a ficcionar obrigações e
prestações. Não vamos aqui tentar demonstrar que estes exemplos não se referem a obrigações e
prestações. Damo-lo por certo. Assente, então, que os «não cumprimentos», nestes casos, não o
são, porque não há obrigações para cumprir ou deixar de cumprir, torna-se necessário um
conceito que substitua neles a obrigação. Seria temerário redefinir «obrigação» ampliando o seu
sentido, pois o direito da obrigação, na sua maior parte, visa obrigações em sentido próprio.10
Em vez disso, há que recorrer a um novo termo, e o termo utilizável é «atribuição».

Para alguns casos, maxime os da conformidade e da transmissão de obrigações, o termo tradicional,


popular e, em parte, legal oferecido seria «garantia», que tem inúmeros e profundos inconvenientes. A
começar, a palavra suscita as maiores dúvidas e ambiguidades, mercê dos seus usos em diversos con-
textos.11 Depois, é conceptualmente inadequada à generalidade das atribuições, desde logo nos contra-
tos obrigacionais — nestes, pela diferença entre garantir e prometer ou obrigar-se — o que a afastaria por
si. Dogmaticamente, é defeito da «garantia» fazer supor um mecanismo directo entre alguma anomalia
do bem económico a que se refere o contrato e uma nova vinculação da parte que «garante», sem
passar por um juízo comparável ao do não cumprimento das obrigações (hoje, em certos lugares, a
«desconformidade»). Segundo defeito dogmático, a «garantia», para manter-se como conceito reco-
nhecível, teria o significado de dispensar o juízo de culpa, particularmente relevante, em sistemas
como o português, para a matéria da responsabilidade civil.12 Na verdade, este defeito decorre do
anterior, numa recusa geral do direito do não cumprimento. Finalmente, a «garantia» convida a um
discurso ficcioso e desregrado, ora na referência tradicional a uma «obrigação de prestar garantia»,13
ora na confusão com as cláusulas de garantia eventualmente estipuladas.14

9 Cf. o estudo para breve de M. LIMA REGO, Contrato de seguro e direitos de terceiro, em que tb. se esclarecem os casos
em que não há obrigação de pagar o prémio. Damos infra, perto da n. 164, uma representação da cobertura
enquanto atribuição.
10 Quando se diz que o «direito da obrigação» é o «direito da atribuição» (P. MÚRIAS, Programa, cit., 877-8), visa-se, é

claro, apenas parte dos casos. A obrigação continua a ser a figura central, como melhor se dirá mais à frente.
11 Desde logo na matéria da garantia patrimonial das obrigações (cf. arts. 601.º e ss.). No direito do não cumpri-

mento, para um confronto entre os usos legal e popular do termo, cf., resp.te, o art. 9.º e, pelo outro lado, o art. 1.º e
o preâmbulo (em que a «garantia» do art. 9.º surge entre aspas!) da LVC (o popularismo atinge o clímax no D.L.
84/2008, de 21 de Maio, ao introduzir uma definição do termo «garantia legal», que não vem a ser usado). A confu-
são começa por o universo da garantia patrimonial das obrigações ter o seu Big Bang num dos efeitos do não cum-
primento, o poder de o credor provocar a realização da prestação através do Estado e à custa do património do
devedor (cf. art. 817.º/2.ª parte). Trata-se apenas de um dos efeitos do não cumprimento, mas a vasta matéria da
garantia patrimonial desenvolve-se como sistema de concretizações, alternativas e reforços desta «garantia geral».
Sublinhamos que, no nosso entender, toda a execução é, neste sentido, execução específica, embora execução de uma
obrigação primária, de uma obrigação de indemnizar, de uma obrigação de restituir a contraprestação ou qualquer
outra. A expansão do direito da garantia patrimonial é que o unifica sob a ideia distinta de «satisfação do interesse
do credor» (cf., infra, o parágrafo da n. 78).
12 O equivalente na CCVI é o critério do «fora do seu controlo» («beyond his control») do art. 79.
13 Cf. os exemplos supra, n. 7, ou a literatura alemã associada aos §§ 434 a 445 e 459 a 493 BGB, na versão anterior à

Modernisierung. Obviamente, a expressão é adequada para muitos temas da garantia patrimonial.


14 A que se refere o art. 921.º ou, hoje, o art. 9.º LVC.

5
O pressuposto deste artigo é, pois, que, não só nos contratos15 obrigacionais, mas também
nos dos exemplos agora dados e noutros muito diferentes, são estipuladas «atribuições». As
atribuições são elementos do conteúdo, a que se chega pela interpretação negocial, por vezes
também através da integração, com os limites que a lei imponha à validade do estipulado. Dada
a definição que defenderemos, pressupomos que, em todos os contratos, as partes estipulam que
será «satisfatório» para o «titular da atribuição» um acontecimento que preencha certa descrição
e seja «imputável» ao atribuinte, e «não satisfatória» a sua ausência, convocando ambas as qualifi-
cações a aplicação do direito. Com esse pressuposto, a intenção do estudo é esclarecer tais con-
ceitos, analisá-los enquanto determinantes da compreensão de problemas jurídicos e da sua
solução fundamentada.
A palavra «atribuição» já aparece em, pelo menos, duas áreas do direito civil. Por um lado,
como figura mais ampla e com menos requisitos do que a «prestação», no direito do enriqueci-
mento sem causa.16 Por outro, como figura mais ampla ou algo diferente da «prestação» ou do
«negócio obrigacional», na distinção entre onerosidade e gratuitidade.17 As matérias estão eviden-
temente relacionadas, embora seja reconhecido que os conceitos e a terminologia podem não
coincidir. A «atribuição» a que agora nos referimos tem, por sua vez, uma relação óbvia com as
«atribuições» referidas nessas áreas, mas não tem de corresponder-lhes. Desde logo, a nossa
«atribuição» não é idêntica às outras, pois consideramos a «atribuição jurídica», uma entidade
abstracta colocada no plano dos «efeitos jurídicos» ou do «conteúdo» do contrato, e não no dos
«factos» tidos em vista no enriquecimento sem causa ou no dos «actos jurídicos» ou «acções» a
que se refere, pelo menos aparentemente, a distinção entre onerosidade e gratuitidade. O nosso
conceito generaliza o conceito de obrigação, não o de prestação. Quanto à concretização da atri-
buição jurídica (talvez a «atribuição de facto») e ao acto ou facto atributivo (a fonte da atribuição),
não vamos procurar saber se coincidem com as atribuições estudadas noutras áreas.

3. Extensão

A atribuição de que tratamos deve ser uma figura genérica capaz de abranger qualquer ele-
mento do «conteúdo», dos «efeitos» ou porventura do «objecto imediato» de um contrato (ou
outra fonte), pelo menos quando é esse o elemento principal do contrato e, quanto a ele, podem

15 Insistimos que nos referimos aos contratos por simplicidade; outras vezes, mais amplamente, aos negócios jurí-
dicos, mas sem nunca esquecer as restantes fontes de atribuições.
16 Cf. MENEZES LEITÃO, O enriquecimento sem causa no direito civil, CEF, 1996, 654-657, LARENZ/CANARIS, Lehrbuch

des Schuldrechts, II/1, 13.ª ed., Beck, 1994, 132-3, ou BEUTHIEN, Zweckerreichung und Zweckstörung im Schuldverhältnis,
Mohr Siebeck, 1969, 285. BEUTHIEN propõe conceitos de «prestação» e «atribuição» comuns ao direito do
cumprimento e ao do enriquecimento sem causa (281-292).
17 Cf. ANTUNES VARELA, Ensaio sobre o conceito de modo, Atlântida, 1955, 82, 131-146, LARENZ/WOLF, Allgemeiner Teil

des Bürgerlichen Rechts, 9.ª ed., Beck, 2004, 420-423, LARENZ, Lehrbuch des Schuldrechts, II/1, 13.ª ed., Beck, 1986, 196-7,
ESSER/WEYERS, Schuldrecht, II, 7.ª ed., F. Müller, 1991, 120-121, FIKENTSCHER, Schuldrecht, 9.ª ed., de Gruyter, 1997,
481, FISCHER, Die Unentgeltlichkeit im Zivilrecht, Heymanns, 2002, 21-27, 34-36 e 41-44.

6
suscitar-se problemas de não cumprimento ou análogos aos do não cumprimento, ou seja, as
restantes «perturbações» da atribuição. Todos os itens da lista seguinte se mostram de modo
muito óbvio como atribuições quando se integrem num contrato sinalagmático,18 i.e., quando
tenham como «correspectivo» um preço ou outra contraprestação. E isso pode acontecer com
qualquer um deles. A atribuição deve, pois, abranger, sem intenção de exaustividade:

a) A obrigação, entendida como conjunto do crédito e do débito;


b) Um direito potestativo com a correspondente sujeição, pelo menos quando estabele-
cidos como elementos centrais de um contrato;
c) A extinção de uma obrigação ou de um par direito potestativo/sujeição;
d) A transmissão de um direito, de uma obrigação ou de outra situação jurídica ou con-
junto de situações jurídicas;
e) A constituição ou extinção de um direito menor, como um usufruto, uma servidão,
etc., pelo menos quando resultante de contrato celebrado para esse efeito;
f) Qualquer modificação de uma situação jurídica, como uma alteração do seu tempo ou
do lugar a que respeite;19
g) A limitação de um direito de personalidade, com o direito a fazer uso dela;20
h) O prolongamento da vigência de um contrato, o adiamento do seu início ou termo,
etc., «concedido» por uma parte à outra;
i) A «obrigação de conformidade» de vendedores, locadores e afins,21 com os direitos
correspondentes de compradores e locatários;
j) Uma «obrigação» cuja prestação seja originariamente impossível, nos ordenamentos
em que daí não resulte a invalidade do negócio que a constitui;22
k) Aquilo que distingue uma obrigação principal de coisa de uma obrigação de reddere,23
que inclui a «obrigação de conformidade» e outros aspectos da «vinculação» de um
vendedor ou locador;
l) O «efeito jurídico» da realização da sua prestação pela parte não vinculada nos casos
de meio sinalagma,24 que dá «direito» à parte vinculada a reter a prestação e «consolida»
a sua obrigação;
m) O par «direito»/«vinculação»25 relativo à disponibilidade temporária de dinheiro ou
outra coisa, fungível ou infungível, como sucede entre as respectivas partes no mútuo,
na locação ou no comodato;26

18 Na terminologia que usamos no nosso cit. estudo sobre o sinalagma. Na terminologia corrente, o sinalagma só
relaciona obrigações.
19 Só tem interesse autonomizar este caso quando a modificação não se reduza à constituição, extinção ou transmis-

são de situações jurídicas em que a situação principal se analise.


20 Cf. art. 81.º e, p. ex., os casos comuns no âmbito do art. 79.º.
21 A que nos referimos supra, no número 2. A «obrigação de conformidade» não é sempre uma obrigação.
22 Cf. supra, n. 6.
23 Sobre estas, cf. o nosso Prestações de coisa: transferência do risco e obrigações de reddere, em breve nos Cadernos de Direito

Privado. P. ex., um vendedor que mantém a coisa em seu poder para uso próprio, conforme convencionado, tem
uma «vinculação» muito mais forte, a respeito da coisa, do que um locatário, que a devolverá finda a locação.
24 Cf. o nosso cit. estudo sobre o sinalagma, na al. c).

7
n) O conjunto de uma «expectativa jurídica» com a sua «contra-expectativa», na medida
em que mereçam tratamento autónomo;
o) A «cobertura» no contrato de seguro, enquanto possibilidade de surgimento da obriga-
ção da seguradora, condicional da verificação do sinistro;
p) A «transmissão da posição contratual», em que a «posição contratual» pode incluir
atribuições de qualquer tipo;
q) A «extinção» ou «prevenção» de um litígio, ou das «incertezas» a seu respeito;27
r) Os efeitos da afirmação de certo facto juridicamente relevante;28
s) A «inversão» contratual do ónus da prova, concedida por uma parte à outra;29
t) A transmissão de uma qualidade institucional não jurídica, como um título nobiliár-
quico, religioso ou lúdico.

Cabem agora algumas observações sobre esta lista.

Mas comecemos por afastar dificuldades próprias do último caso, relativo à transmissão de uma
qualidade institucional não jurídica.30 A venda de títulos nobiliárquicos nem é um fenómeno raro,
nem depende de um reconhecimento jurídico desses títulos,31 e o exemplo incorpora outras institui-
ções concebíveis. Um contrato com semelhante conteúdo não cai pela letra do art. 398.º/2, in fine, por

25 Aqui, a terminologia começa a faltar. Essa pode ter sido uma das razões para se defender que o locador, o como-
dante, etc., teriam uma obrigação (de «proporcionar» a coisa na vigência do contrato; cf. art. 1031.º/b)), o que
suscitou uma polémica bem conhecida. Note-se que o termo «direito» serve para algumas das posições activas aqui
referidas, mas não para a do mutuário, a que nos referimos no número 2. Ainda assim, é expressivo e conveniente
dizer que o mútuo lhe dá «direito a não devolver o dinheiro» e cria a «sujeição» ou «vinculação» do mutuante a que
o dinheiro não lhe seja devolvido. Em rigor, o mutuário apenas não tem a obrigação de entregar o capital durante a
vigência do contrato, o que poderia ser dito de qualquer pessoa.
26 Nem todo o contrato constitutivo de situações jurídicas temporárias determina uma atribuição temporária (no

sentido em que se diz que certas obrigações são duradouras). Dado que um contrato transmissivo de uma situação
temporária determina uma atribuição instantânea («definitiva»), há-de ser possível às partes, no âmbito da autono-
mia privada, estipular a mesma atribuição definitiva criando uma situação jurídica temporária, i.e., sem que ela antes
existisse. No exemplo mais claro, o contrato pode constituir um direito temporário estipulando-se uma contrapres-
tação para essa constituição, e não para a subsistência do direito ao longo do tempo, e sem que as eventuais pertur-
bações do direito contem como análogas a um «não cumprimento» pelo atribuinte (aumentando, pois, os «riscos
suportados» pelo adquirente). Talvez se encontre aqui parte da distinção entre uma locação ou um comodato, por
um lado, e um contrato constitutivo de um usufruto, por outro.
27 Tem-se em vista o contrato de transacção, em que há atribuições de parte a parte. Cf. art. 1248.º e ANTUNES

VARELA, Ensaio, 78-9, em nota.


28 Considera-se o sentido de actos de linguagem a que pode rigorosamente chamar-se «afirmações» ou «asserções».

Em direito, são as «declarações de ciência», como a confissão (de factos; cf. art. 352.º), as certidões, as actas, etc.
Será normalmente nulo um contrato em que se pague pela afirmação feita num desses actos (cf. art. 280.º). Mas não
é assim em confissões que façam parte de contratos de transacção. Pelo contrário, o serviço de emitir uma certidão,
acta, etc., comummente pago, não tem interesse para a lista, por caber num contrato obrigacional vulgaríssimo.
29 Cf. art. 345.º. Estas cláusulas contratuais são, por regra, acessórias, o que lhes retira algum interesse.
30 Fazemos aqui uma excepção ao projecto de não discutir as soluções dos problemas jurídicos. Uma remissão

como a do discreto art. 40.º CRCiv não afasta o problema quanto aos títulos nobiliárquicos aí não abrangidos, nem
quanto aos religiosos ou lúdicos. A proximidade destas matérias com a do direito ao nome (cf. MENEZES COR-
DEIRO, Tratado de direito civil português, I/3, Almedina, 2004, 217-8, e infra, n. 33) não deve ignorar que os títulos são
qualidades institucionais específicas, e não meras designações.
31 Depende da admissibilidade institucional não jurídica da transmissão contratual e, salvo quanto a uma alienação

meramente «de facto», depende da validade jurídica do contrato, a que nos referimos de seguida. Para a nossa expo-
sição, é irrelevante que os sistemas nobiliárquicos europeus se declarem avessos à transmissão de títulos inter vivos,
aliás muitas vezes realizável indirectamente através de uma renúncia.

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não respeitar à constituição de uma obrigação. Também não é invalidado — pelo menos, sempre —
pela sua eventual razão de ser, desde logo porque o título pode ter valor patrimonial — justamente
em virtude da sua transmissibilidade, se não for por outras vantagens materiais que traga — e pode
inclusive ser transmitido nesse contrato contra o pagamento de dinheiro, o que dificilmente caberá no
pensamento do art. 398.º/2. O contrato, por outro lado, só violaria o art. 280.º em casos contados. A
juridicidade deste contrato é necessária sobretudo para «dar causa» ao pagamento do preço, afastando
quer o art. 476.º, quer a qualificação desse pagamento como doação,32 e facultando antes disso a pos-
sibilidade de uma acção de cumprimento (cf. art. 817.º). A validade da transmissão depende das insti-
tuições que conferem a qualidade transmitida, não do direito. Por outro lado, é concebível que o
próprio direito crie qualidades simbólicas transmissíveis como estas. Também devemos resistir à ten-
tação de conceber aqui a transmissão de um direito de personalidade, dada a cláusula geral do art. 70.º,
não só porque estariam a banalizar-se os direitos de personalidade e porque estes são normalmente
entendidos como intransmissíveis, mas também porque o que se transmitiu foi a qualidade institucio-
nal referida, e não ou não só um direito que a tivesse por objecto.33

A lista de atribuições inclui entidades jurídicas de natureza variada. Por um lado, situações
jurídicas, nos casos a) e b), imediatamente relacionáveis com figuras básicas da teoria do direito
como os deveres e competências34 ou as normas primárias (de conduta) e secundárias.35 Depois,
efeitos jurídicos, nos casos c) a g), facilmente descritos como mudanças em situações jurídicas do
tipo incluído nos primeiros casos e certamente recondutíveis a normas secundárias. No caso h),
com o prolongamento ou adiamento, temos a não produção de efeitos jurídicos, ou «conservação».36
Uma nota terminológica para dizer que as próprias situações jurídicas podem ser qualifi-
cadas como «efeitos jurídicos», pois correspondem à «estatuição», ao «consequente» ou ao
«efeito» da suposta estrutura de certas normas jurídicas. P. ex., a propriedade de alguém sobre
certa coisa é efeito de uma norma jurídica. Quando, porém, contrapomos «situações jurídicas» e
«efeitos jurídicos», não incluímos as primeiras nos segundos. Efeitos jurídicos, na terminologia
que nos interessa, são a «constituição», «modificação», «extinção» ou «transmissão» de situações
jurídicas. Também se usam termos menos genéricos como «criação», «aquisição», «alienação»,

32 A qualificação como doação seria esp.te injustificada nas situações assinaladas em que a qualidade institucional é

avaliável em dinheiro. Não é exactamente a estes casos que se refere ANTUNES VARELA, Ensaio, 143-144, em n., e
213-9, pois o autor tem em vista obrigações e prestações, enquanto que aqui o «resultado prático» se dá «por mero
efeito do contrato». De qualquer modo, não aderimos à posição do autor, como noutro estudo se dirá a propósito
do art. 398.º/2. As partes podem, de facto, estabelecer o que quiserem como «correspectivo» de uma atribuição sua,
salvo o disposto no art. 280.º e disposições particulares equiparáveis, e sem prejuízo das regras do negócio indirecto
ou da simulação. As consequências negativas para credores que queiram invocar a pauliana e para legitimários não
são muito diferentes das que resultam da facilidade com que podem torrar-se milhares de contos em voos para
Paris, em primeira, para oferecer almoços a amigos no Alain Ducasse.
33 Analogamente, o direito ao nome (cf. art. 72.º) não parece transmissível, mas seria pensável, dentro dos princípios

do nosso sistema civil, um regime que permitisse a transmissão do nome. Tal regime quanto à firma ou à
designação de pessoas colectivas talvez tenha até acolhimento na nossa lei.
34 Cf. HOHFELD, Some fundamental legal conceptions as applied in judicial reasoning, Yale University, 1964 (1913-1917),

agora com trad. port. de M. LIMA REGO (Os conceitos jurídicos fundamentais aplicados na argumentação judicial, FCG, 2008),
na última secção da primeira parte.
35 Cf. HART, O conceito de direito, 2.ª ed., FCG, 1994 (1961), 101-9.
36 Termo usado em P. MÚRIAS, Por uma distribuição fundamentada do ónus da prova, Lex, 2000, 82-7. Sobretudo no caso

do prolongamento, podia querer ver-se ainda um efeito jurídico, enquanto modificação de uma situação jurídica
prévia, alterando o seu tempo de vigência. Contudo, com maior análise, o que se observa é que situações jurídicas
elementares «deixam de extinguir-se» a certo momento.

9
«sucessão», «oneração», etc. Trata-se das «vicissitudes» das situações jurídicas, da «eficácia jurí-
dica». Os efeitos, nesta terminologia, são o que acontece às situações jurídicas.37
Nos casos i) e k), relativos à «obrigação de conformidade» e a outros aspectos da posição
dos vendedores, temos uma situação jurídica de elevada complexidade, cuja redução a deveres e
poderes envolve uma exposição mais ou menos longa do «direito do cumprimento» e do «não
cumprimento». O mesmo se passa na alínea j), respeitante à impossibilidade originária. Dado o
problema da imensidão, quiçá infinitude, das «excepções» às regras jurídicas,38 para não falar da
inconveniência de tal tentativa de exposição, o texto contratual que constitua uma atribuição
destas dificilmente fugirá a metáforas ou ficções como «obrigação de conformidade», a remissões
forçosamente incompletas39 ou a termos de sentido incerto como «garantia».40 No caso l), com-
plexidade equivalente respeita a um efeito jurídico. No caso m), das relações temporárias, uma
situação jurídica algo complexa volta a sugerir uma analogia, ou uma metáfora, com uma simples
obrigação (de manter o bem em poder do mutuário, locatário, etc.). Na verdade, a atribuição é a
delimitação temporal da obrigação de restituir o capital ou a coisa locada, junto, nos casos de coisas
infungíveis (locação e comodato), com o direito temporário de gozo. Ou, numa perspectiva ana-
lítica e que veja as situações jurídicas localizadas no tempo,41 é a inexistência da obrigação de resti-
tuir o capital ou a coisa durante um certo período, acrescida daquele direito nos casos indicados.
No caso n), da expectativa,42 a complexidade aumenta, por se falar de uma situação jurídica
reportada a um efeito jurídico apenas possível. No caso o), da cobertura no contrato de seguro,
mais claro do que o anterior, a atribuição é a possibilidade de um efeito jurídico, a possibilidade de
constituição de uma obrigação. No caso p), que tem interesse quando a «posição contratual»

37 Cf. MENEZES CORDEIRO, Tratado de direito civil português, vol. I/1, Almedina, 1999, 233-5, OLIVEIRA ASCENSÃO,
Teoria geral do direito civil, vol. III, Coimbra Ed., 2002, 140-151, e C. MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, 4.ª ed.,
trab. P. MOTA PINTO/A. PINTO MONTEIRO, Coimbra Ed., 2005, 355 e 359-377. Os «efeitos jurídicos» são muito
referidos a propósito do ónus da prova (cf. art. 342.º; cf. os cap. 4 a 7 de P. MÚRIAS, Distribuição, cit., para as termi-
nologias alemã e italiana a este respeito). Um exemplo da terminologia das situações jurídicas como efeitos é K.
ENGISCH, Introdução ao pensamento jurídico, 6.ª ed., trad. J. B. MACHADO da 8.ª ed., FCG, 1988 (1983), 29-35.
38 Cf. F. BRONZE, A metodonomologia entre a semelhança e a diferença, Coimbra Ed., 1994, 506-515.
39 Em vez de se dizer «o vendedor tem a obrigação de entregar coisas conformes», pode dizer-se «o vendedor será

tratado como se houvesse uma obrigação de entregar coisas conformes». O problema destas remissões — em que
podemos incluir ficções jurídicas e presunções inilidíveis — é que não pode remeter-se quanto a todos os aspectos.
P. ex., não é possível uma acção de cumprimento ou uma excepção de não cumprimento sem uma obrigação em
sentido próprio, ainda que haja figuras análogas para outros casos: para um análogo à excepção de não cumprimento,
cf. a al. b) do nosso cit. estudo sobre o sinalagma.
40 Incerto e ambíguo. Cf. supra, o parágrafo das nn. 11 a 14,
41 Quer as situações compreensivas, quer as analíticas, como outras instituições, não têm localização espacial, mas

têm-na temporal. Cf. A. REINACH, Die apriorischen Grundlagen des bürgerlichen Rechtes, no Jahrbuch für Phil. und phänomeno-
logische Forschung, vol. 1, 1913, cit. pela Sonderdruck da Max Niemeyer, Halle a. d. S., 1913, p. 10, e MACCORMICK,
Law as institutional fact, in MACCORMICK/WEINBERGER, An institutional theory of law, D. Reidel (Kluwer), 1986, 52-5.
Neste modo de ver, a duração não é um predicado que defina o objecto, mas um referencial ou uma coordenada
exterior a ele. É assim que falamos mais vulgarmente dos objectos: dizemos que o Bobi existiu entre 1980 e 2000, e
não tanto que existiram o Bobi-de-1980-a-1990 e o Bobi-de-1990-a-2000 (e o Bobi-de-1985-a-1995...). Tudo isto,
claro, são modos de dizer. Quanto à distinção entre situações analíticas e compreensivas, cf. MENEZES CORDEIRO,
Tratado, I/1, cit., 104. Para o efeito do texto, aliás, talvez bastasse a distinção entre situações simples e complexas
(ibidem, 100-1).
42 Cf., p. ex., MENEZES CORDEIRO, Tratado, I/1, cit., 136-7, e ANA PERALTA, A posição jurídica do comprador na compra

e venda com reserva de propriedade, Almedina, 1990, 154-168.

10
transmitida já inclua um efeito jurídico, como uma transmissão de uma situação jurídica,
podemos ter um «efeito jurídico sobre um efeito jurídico». Neste exemplo, há uma «transmissão
de uma aquisição», ou mesmo uma «transmissão da transmissão», figura que não quadra bem
com a organização corrente dos conceitos, mas que é difícil apresentar doutra forma.43 No caso
q), das atribuições próprias da transacção, temos um efeito jurídico possível sobre um conjunto
indefinido, mas porventura vazio, de situações jurídicas. No caso r), da afirmação de factos,
maxime na confissão, dá-se um efeito jurídico probatório complexo, que pode ser sintetizado,
algo metaforicamente, como «ficar comprometido» com a verdade do afirmado.44 O caso
seguinte, s), do ónus da prova, é semelhante ao anterior, apesar de tudo, embora as fórmulas
sintéticas de exprimir esta atribuição tenham de ser diferentes. No último caso, t), temos um
efeito institucional não jurídico.
Não inserimos a constituição de uma obrigação na lista de atribuições, que inclui outros
efeitos jurídicos relativos a obrigações e a constituição de outras situações jurídicas. A obrigação
é a atribuição paradigmática, e o não cumprimento é a perturbação paradigmática, ambos consti-
tuem instrumentos centrais do discurso jurídico civil. Pelo contrário, a constituição da obrigação
é poucas vezes tida em conta. Sendo a obrigação ela própria uma atribuição, parece dispensável
referir a sua constituição, que ocorre no mesmo contrato e entre as mesmas pessoas. Numa
perspectiva menos jurídica, dir-se-ia que a constituição da obrigação e a própria obrigação repre-
sentam o mesmo valor, não precisando de ser autonomizadas. Na verdade, as coisas talvez não
sejam bem assim, já que poderia dar-se a constituição por perturbada quando a obrigação não
fica, de facto, constituída, como na impossibilidade originária, enquanto que a obrigação é per-
turbada pelo não cumprimento. Voltaremos ao ponto.45
Haverá quem pergunte pela possibilidade de uma perturbação da atribuição, ou seja, de
algo semelhante a um não cumprimento, com todas as atribuições listadas. Afinal, o interesse da
figura da atribuição está no direito do cumprimento e não cumprimento. As possibilidades, no
entanto, não têm limite. Tomemos o caso menos provável: perturbações de uma confissão. É
perturbação directa toda a perda de valor probatório da confissão. Surge causada pelo confitente
que torne notório o facto contrário (cf. arts. 514.º CPC e 354.º/c) CC), induza a contraparte a
confessar esse facto contrário, destrua o documento de que conste a confissão, etc. E pode
surgir devido à contraparte, em circunstâncias análogas. Em qualquer caso, pode haver culpa ou
não. Também não é precisa muita imaginação para «violar» um direito potestativo: basta impedir

43 Designadamente, não seria adequado dizer que a atribuição é apenas a (re)transmissão da situação jurídica inicial-
mente transmitida, porque a relação entre as partes na «transmissão da aquisição» pode ser julgada perfeita e imper-
turbada mesmo que haja uma perturbação na transmissão inicial (e, portanto, tb. não seja perfeita a retransmissão,
dada a regra nemo plus iuris). Trata-se aqui de subir um nível no pensamento dos arts. 587.º/2 e 426.º/2. Aumentos
de complicações como este são frequentes e explícitos em certos contratos nas bolsas, esp.te no chamado mercado
de derivados (cf., v.g., FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos, vol. II, Almedina, 2007, 153-5).
44 Outra hipótese é utilizar o conceito jurídico de «ficar provado» («contra o confitente»; cf. art. 358.º). O conceito

de provado, de pro veritate haberi, é por sua vez bastante profundo no discurso jurídico (e fora dele). Quer dizer,
talvez seja um conceito primário e, se não o for, a sua análise em permissões e poderes terá elevadíssima complexi-
dade. Por isso, talvez se preferisse o «ficar comprometido», por ser mais expressivo do que o «ficar provado contra
o confitente».
45 Infra, nos parágrafos das nn. 65 e 168.

11
o titular do direito de emitir declarações ou impossibilitar o efeito jurídico que a declaração
produziria. A culpa continua a ser contingente. Os restantes exemplos têm perturbações mais
conhecidas. O seu número aumenta se incluirmos as originárias. Podendo estabelecer-se contra-
tualmente uma contraprestação, um «preço», para qualquer atribuição, vemos que todos os
problemas de «não cumprimento» podem surgir com toda a atribuição.
Em síntese: uma atribuição pode ser uma situação jurídica, a inexistência de uma situação
jurídica, um efeito jurídico, um não-efeito jurídico, uma possibilidade de efeitos jurídicos, um
efeito jurídico meramente possível46 e até um efeito institucional mas não jurídico.
O facto de trabalharmos com abstracções permite alguma simplificação. Assim, a inexis-
tência de uma situação jurídica pode ser vista ainda como situação jurídica,47 o que se prova facil-
mente por estes nomes de objectos, de situações jurídicas, poderem ser substituídos por predi-
cados:48 em vez de falarmos de quem tem ou não tem a propriedade de certo bem, podemos falar
de quem é ou não proprietário desse bem. No primeiro caso, relacionamos três objectos: a pessoa,
a propriedade e o bem; no segundo, apenas dois: a pessoa e o bem. As qualidades de proprie-
tário e não proprietário, por sua vez, limitam-se a identificar os conjuntos das pessoas que são
ou que não são proprietárias. A linguagem realista quanto a situações jurídicas e efeitos jurídicos
não se opõe a um nominalismo de reserva para efeitos de clarificação, quando necessário.49 Os
efeitos jurídicos e os não-efeitos jurídicos também podem ser reduzidos a uma categoria
comum, a sucessão de situações jurídicas (analíticas), que pode ser sucessão de situações idên-
ticas ou diferentes. Há conservação jurídica no primeiro caso, eficácia no segundo. Claro que
isto já traz um enorme analitismo, sem correspondência ou utilidade na linguagem dos juristas.
Mas sempre serviria de conforto filosófico, ao descortinar uma unidade no conceito de atribui-
ção jurídica, transponível num parágrafo para a linguagem mais comum das situações e dos
efeitos.
Contudo, não é fácil prosseguir a unificação. A sucessão de situações jurídicas não é uma
situação jurídica, nem vice-versa. Um efeito jurídico não é uma situação jurídica, nem vice-versa.
Esta contraposição é muito semelhante à que, na metafísica filosófica geral, se faz entre objectos
e acontecimentos,50 por sua vez capaz de integrar a distinção jurídica corrente entre coisas e

46 Um «efeito jurídico meramente possível» não é um efeito jurídico e, em rigor, está perto de não ser coisa
nenhuma, salvo para quem aceite alguma espécie de realismo modal como o de D. LEWIS, On the plurality of worlds,
Blackwell, 2001 (1986), 97-135. Parecidos com efeitos possíveis são os possíveis filhos de quem afinal não os tem,
não teve, nem terá. Vale o mesmo, por maioria de razão, para a possibilidade de um efeito jurídico.
47 Era assim mesmo na taxinomia de HOHFELD, Fundamental, loc. cit.. Cf. tb. ENGISCH, Introdução, loc. cit.. Há um

paralelo total com a interdefinibilidade dos modos ou dos predicados deônticos. Cf., p. ex., DAVID DUARTE, Os
Argumentos da Interdefinibilidade dos Modos Deônticos em Alf Ross, RFDUL XLIII/1, 2002, 257-281.
48 Salvo para quem admita os pouco úteis «direitos sem sujeito».
49 O que, em última análise, nem sequer pressupõe resolvida a oposição — que se mantém até aos nossos dias —

entre nominalistas e realistas. Cremos que a posição do texto é a de J. A. VELOSO, nalguns escritos inéditos. Um
nominalismo como o de ROSS, On law and justice, Univ. of California, 1959, 170-188, próprio dos «realismos jurídi-
cos», é não só menos reader-friendly, mas tb. algo equívoco e bastante datado (ao ponto de dizer que as expressões de
direitos são «semanticamente vazias»).
50 Cf. tb. infra, o texto das nn. 56 e 57. O tratamento dos acontecimentos como indivíduos, ao lado dos objectos, é

comum na filosofia anglófona desde o estudo de DAVIDSON, The logical form of action sentences, de 1967, nos Essays on
actions and events, Oxford Univ., 2001 (1967), 105-122. Mas as dificuldades de conceptualizar os acontecimentos,

12
prestações. Indo ao caso menos favorável, não pode confundir-se uma obrigação com a subsis-
tência dessa obrigação desde que se constituiu até à sua extinção. O único aspecto comum a
efeitos jurídicos e situações jurídicas é que são «realidades» ou «entidades» jurídicas, mas «realida-
des» (ou «entidades») não identifica género nenhum. Também não deve haver optimismo quanto
a unificar efeitos jurídicos e possibilidades de efeitos jurídicos. A possibilidade de um efeito jurí-
dico não é um efeito jurídico, e um efeito jurídico não é a respectiva necessidade.51 O tempo e a
relação com ele são essenciais à distinção entre situações jurídicas e efeitos jurídicos. Quer o
tempo, quer a possibilidade são categorias fundamentais,52 pelo que as expectativas de uma
unidade que passasse pela sua redução não suscitam a menor confiança.
A linguagem jurídica refere-se a entidades como situações jurídicas, efeitos jurídicos e
possibilidades de efeitos jurídicos. As distinções entre elas são, todavia, tão profundas que não
pode esperar-se alguma unificação sem, pelo menos, uma mudança de perspectiva. Situações
jurídicas, efeitos jurídicos e possibilidades de efeitos jurídicos colocam-se «em planos distintos».
Esta imagem dos «planos distintos» também nos convence de que um efeito jurídico «de
segundo grau», como uma «transmissão de uma aquisição», não poderá ser integrado numa cate-
goria comum com os efeitos jurídicos de primeiro grau, as mudanças nas situações jurídicas.
Quanto a um «efeito jurídico possível», nem se compreende bem o que seja. E a união entre
efeitos jurídicos e efeitos não jurídicos, como o do caso t), pareceria inclusive pôr em causa a
distinção básica entre «os factos» e «o direito».

4. Traços comuns

De qualquer maneira, há traços comuns a todas as atribuições. A definição de atribuição


tem de fazer referência à sua juridicidade e ao facto de ela relacionar duas pessoas, em posições
distintas, a respeito de algum acontecimento.
Com uma aparente excepção, nos exemplos dados, todas as atribuições são jurídicas. Não
se trata aqui de realidades «económicas» ou «fácticas», ainda que possam ter correspondência em
realidades económicas ou fácticas. Por exemplo, uma obrigação é uma entidade jurídica, mas
pode ter uma realização ou concretização fáctica, o respectivo cumprimento. A obrigação é uma
entidade jurídica porque a afirmação da sua existência é um juízo de realização do direito, quer
interpretando o contrato, quer apreciando juridicamente outros factos relevantes. Uma maneira
fácil de ver que as atribuições arroladas são realidades jurídicas é observar que elas dependem da

designadamente na tentativa de reduzi-los a uma relação entre os objectos e o tempo, são gigantescas. Cf., p. ex., os
artigos seguintes de DAVIDSON na colectânea referida, e BENNETT, What events are, in CASATI/VARZI (org.), Events,
Dartmouth, 1996, 137-151, ou MOLTMANN, Events, Tropes, and Truthmaking, nos Philosophical Studies, 134/3, 2007,
363-403. Por outro lado, as dificuldades com os próprios objectos talvez não sejam menores...
51 Necessidade, possibilidade, contingência e impossibilidade, essas sim, são interdefiníveis.
52 Incluídos nas fundamentais «categorias do ser» quer por ARISTÓTELES ou KANT, quer em sistemas contempo-

râneos. Cf. THOMASSON, Categories, na Stanford Encyclopedia of Philosophy, http://plato.stanford.edu, 2004.

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validade do contrato de que resultem. Realidades «económicas» ou «fácticas» não se sujeitam a
semelhante juízo de validade. Quanto à transmissão de qualidades não jurídicas, como alguns
títulos nobiliárquicos, religiosos, etc., ela não questiona verdadeiramente a separação entre «o
facto» e «o direito». Trata-se apenas de alargar um pouco o ponto de referência. O direito é um
campo «institucional» ou «normativo», hoc sensu. Se algumas «atribuições jurídicas» já não são
estritamente jurídicas, continuam, porém, a ser normativas. Seria aceitável falar, em termos
gerais, de «atribuições normativas». Construção alternativa, mas mais forçada, seria dizer que
todo o acto atributivo juridifica um efeito inicialmente não jurídico, numa «recepção» de regras
extrajurídicas. Mais à frente, contudo, aderiremos a uma terceira formulação.
Toda a atribuição relaciona duas pessoas53 e tem uma «direcção». Uma das partes «faz» a
atribuição «à» outra, no sentido de que a atribuição tem um lado mau ou «desvantajoso» para
uma das partes e um lado bom ou «vantajoso» para a outra. P. ex., diz-se normalmente que a
obrigação é composta pelo débito do devedor, uma situação jurídica passiva ou «desvantajosa», e
pelo crédito do credor, a situação activa ou «vantajosa». Na transmissão de um direito, a
atribuição é, em princípio, do transmitente ao transmissário; na transmissão de um débito ou de
uma sujeição, pelo contrário, a atribuição é normalmente do transmissário ao transmitente.
Chamemos «atribuinte» à parte que suporta o «lado desvantajoso» da atribuição; «titular da
atribuição», à outra parte.

«Titular» não é uma escolha perfeita. Poderíamos chamar-lhe «atributário»,54 mas o termo é pouco
expressivo. Na verdade, esta parte não é um mero alvo ou destinatário da atribuição, tem frequente-
mente poderes específicos a seu respeito. Também seria inconveniente chamar-lhe «beneficiário», já
que nem sequer os credores das obrigações têm de ser quem beneficia com elas.55 Sugestões da
linguagem corrente, como «dono», «senhor» ou «dominante» também não parecem adequadas. A
etimologia e o sentido corrente da palavra sugerem «titular». Infelizmente, é já assente na gíria jurídica
que se é titular quer de situações activas quer de passivas, de modo que, em toda a obrigação, o credor
é titular do crédito e o devedor é titular do débito. «Titular» é o sujeito da situação jurídica na lingua-
gem jurídica hoje comum, tornando a palavra sinónima de «aquele que tem». Com o sentido que
agora lhe damos, o de titular «activo» da atribuição, ficamos mais próximos da etimologia, dos senti-
dos de dicionário e da conotação positiva que aparece também em expressões jurídicas como «titu-
lado». Supomos que não se geram confusões. O titular da atribuição é o credor quando a atribuição
seja uma obrigação; o titular do débito não é titular da atribuição. Não se geram confusões porque,
como melhor se verá no número seguinte, a linguagem das atribuições e a linguagem das obrigações
levam a perspectivas distintas. Como teremos de usar o termo nos dois sentidos, tentamos sempre
formulações que evitem a ambiguidade.

Um outro traço comum a todas as atribuições é um certo modo de relacionamento com o


tempo. Insista-se na distinção, da linguagem corrente e da filosofia, entre acontecimentos e

53 Os casos ditos de contitularidade relacionam dois grupos de pessoas ou são conjuntos de atribuições empa-
relhadas por um conteúdo comum. E não há atribuições poligonais. Aí, temos conjuntos de atribuições associadas
umas às outras. Cf. o nosso cit. estudo sobre o sinalagma, al. c).
54 Não «atribuído», que seria como chamar «doado» ao donatário, «abusada» à pessoa de quem se abusa, ou «gosta-

do» ao doce de que se gosta... «Atributário» é a expressão escolhida por M. LIMA REGO, loc. cit. supra, n. 9.
55 P. ex., posso contratar alguém para limpar as ruas de uma vila aonde nunca fui e que nem sei bem onde fica. Cf.

tb. infra, o número 5/ε e a n. 156. «Interessado» seria evidentemente pior do que «beneficiário». Não devemos
deixar o art. 398.º/2 induzir-nos em erro a este respeito (cf. tb. as nn. 32 e 111).

14
objectos. O António e o boné do António são objectos, o nascimento do António, a sua vida e a
permanência do boné na sua cabeça são acontecimentos. Os objectos, diz-se, existem; os aconte-
cimentos acontecem. Os acontecimentos demoram mais ou menos tempo, podendo chegar a ser
instantâneos; os objectos não podem durar apenas um momento56 e subsistem ao longo do
tempo. As partes ou estádios dos acontecimentos distribuem-se no tempo; os objectos existem
integralmente em cada momento.57 Ora, esta distinção corresponde à distinção entre situações
jurídicas (os «objectos») e efeitos jurídicos (os «acontecimentos»).
Uma atribuição pode ser uma situação jurídica (a obrigação) ou um efeito jurídico, entre
outras coisas. Contudo, a própria obrigação tem uma relação com o tempo parecida com a dos
acontecimentos. É assim porque o objecto de58 uma obrigação é uma prestação, e as prestações
são acontecimentos. Talvez possa dizer-se o mesmo do par direito potestativo/sujeição, já que o
seu exercício conduz sempre a um efeito jurídico. Pelo contrário, situações jurídicas que não são
atribuições, como o direito de propriedade ou o direito à vida, não têm esta relação com o
tempo, e o seu objecto é um objecto, não um acontecimento.59 A relação com o tempo própria
dos acontecimentos repete-se nas atribuições temporárias do exemplo m), dado acima, pois a
atribuição está «dividida» pela sua duração. Os juristas sabem que, nestes casos, a atribuição é
maior ou menor consoante o tempo que decorra entre a sua constituição e extinção. E o mesmo
vale para a possibilidade de um efeito jurídico a que se refere o exemplo o), da cobertura nos
contratos de seguro.60 Estas relações com o tempo são indiferentes ao facto de os contratos
poderem ser «retroactivos». A relação das atribuições desses contratos com o tempo é a mesma,
embora o tempo em causa seja total ou parcialmente anterior ao contrato que as sustenta.
A relação com o tempo característica dos acontecimentos parece faltar em algumas atri-
buições. Na chamada «obrigação de conformidade» do exemplo i), dado atrás,61 há uma situação
jurídica — à partida, portanto, uma entidade sem as características dos acontecimentos — cujo
objecto não será um acontecimento, mas sim um objecto: a coisa corpórea, com as suas qualida-
des, que perdura no tempo e existe integralmente a cada momento. Muitas qualidades vão mu-
dando, e a conformidade respeita a qualidades, mas algumas qualidades relevantes para a confor-

56 Pelo menos, um objecto físico.


57 Tudo isto, claro, é uma metafísica discutida, mas corresponde a intuições básicas. Outros modos de distinção
usados por CASATI/VARZI, Events, na Stanford Encyclopedia of Philosophy, http://plato.stanford.edu, 2006, por
respeitarem apenas a objectos e acontecimentos físicos, interessam-nos menos. Note-se que em geral, na filosofia
anglófona, a distinção entre objectos e acontecimentos se reporta justamente apenas a entidades físicas.
58 Não se confundam as expressões «ser um objecto» (por oposição a um acontecimento) e «ser objecto de x» (por

oposição a ter outras relações com x ou não ter com x relação nenhuma).
59 Havia aqui, aliás, um modo tradicional de distinção entre «obrigações» e «direitos reais», embora falho pela sua

formulação e pela variedade dos direitos reais. Cf. a crítica de MENEZES CORDEIRO, Direitos reais, reimp., Lex, 1993
(1979), 341. Também não aderimos totalmente ao modo como REINACH, Grundlagen, cit., p. 68, faz a distinção
entre direitos absolutos e relativos pela sua relação com o tempo.
60 A importância para os juristas destas relações com o tempo é bem conhecida e com referências legais (v.g., art.

434.º/2). Sobre a temporalidade essencial da atribuição no contrato de empréstimo, cf., p. ex., o nosso cit. estudo
sobre o sinalagma, al. b). A relação essencial entre o seguro e o decurso do tempo é genericamente reconhecida.
61 Cf. tb. a secção 2 supra.

15
midade podem ser eternas.62 Mesmo nesses casos, contudo, a atribuição respeita a um aconteci-
mento ou é um acontecimento. Quando há uma «obrigação de conformidade» o contrato deter-
mina que o comprador receba um bem com certas qualidades ou adquira tal bem, em geral ambas
as coisas. As qualidades, mesmo que eternas, são sempre elementos de identificação de um
acontecimento que é o cumprimento da obrigação ou o «cumprimento» de outra atribuição.

5. Definição de atribuição

α) Perturbações da atribuição
Há uma assimetria entre a obrigação e, pelo menos, algumas das atribuições correspon-
dentes a efeitos jurídicos. A obrigação é perturbada pelo seu não cumprimento, mas este não
afecta a existência da obrigação. O não cumprimento pressupõe a existência da obrigação.
Mesmo quando o não cumprimento é acompanhado da extinção da obrigação — v.g., em casos
de impossibilidade da prestação — a preexistência da obrigação é necessária para qualificar o
acto como não cumprimento. Pelo contrário, quando a atribuição é, p. ex., a transmissão de um
direito, encaramos como perturbação, entre outras coisas, a própria inexistência desse direito ou
uma deficiência do direito, como a inexibilidade de um crédito.63 Ou seja, em várias circunstân-
cias, vemos a atribuição transmissiva perturbada quando não ocorre a própria transmissão nos
termos contratados.64 Pelo contrário, as atribuições obrigacionais (as obrigações) são perturbadas
quando não ocorre o seu cumprimento, um facto totalmente distinto da obrigação. Só considerando
como atribuição a constituição da obrigação é que talvez pudéssemos dizer algo semelhante ao que
dizemos das transmissões, vendo uma perturbação nos casos em que a obrigação não fica, afinal,
constituída.65
Ora, dizer-se que um efeito jurídico é perturbado quando não acontece não manteria a
analogia com as obrigações nem representaria bem a linguagem dos juristas. Por outras palavras,
faz pouco sentido dizer que a transmissão de um direito é perturbada, no sentido em que o não
cumprimento perturba a obrigação, quando a própria transmissão não ocorre, ou sequer quando
não ocorre nos termos contratuais. O que daqui, de imediato, se sugere é que a atribuição com-
parável à obrigação é a «determinação» contratual de que ocorra um efeito jurídico, e não o

62 Assim, p. ex., a qualidade de ter sido assim ou assado é eterna. Começou a existir a dado momento, mas isso não é
exclusivo dos acontecimentos.
63 Cf. de novo os arts. 426.º/1 e 587.º/1. Não afirmamos que as perturbações de contratos transmissivos sejam

apenas a não aquisição da situação jurídica transmitida. Ao lado da transmissão podem existir outras atribuições,
como a «obrigação de conformidade» ou obrigações proprio sensu. Por outro lado, a transmissão pode ser definida de
modo a incluir qualidades do objecto da situação jurídica transmitida, de modo que o transmissário não adquire o
determinado pelo contrato se essas qualidades não existirem.
64 Por outro lado, para a atribuição ser imperturbada, não é necessário que o direito exista antes do contrato, mas

apenas que, por causa do contrato, o titular da atribuição adquira o direito sem deficiências. Cf. infra, no texto
correspondente às nn. 141 e 142.
65 Cf. supra, no parágrafo da n. 45, e infra, no da n. 168.

16
próprio efeito jurídico. Aproximamo-nos inclusive de uma das definições tradicionais de atribui-
ção na teoria da onerosidade e da gratuitidade, que vê a atribuição no negócio ou no acto jurídico
com certas características,66 embora apontando nós para uma unidade de sentido ou de con-
teúdo do acto ou de factos, e não para o próprio acto. Temos assim em mente a distinção entre
as expressões linguísticas (os actos) e os seus significados. Passar do efeito jurídico à determi-
nação do efeito jurídico é uma mudança de perspectiva que permite unificar as atribuições,
resolvendo problemas variados.
Daqui também resulta um apuramento terminológico. No caso da obrigação, a atribuição
paradigmática, poderíamos chamar ao cumprimento, ou à prestação, «atribuição de facto». Nas
restantes atribuições, porém, o equivalente ao cumprimento é, ele próprio, uma realidade jurí-
dica. Portanto, a expressão «concretização da atribuição» não pode ser substituída por «atribui-
ção de facto». Pela mesma razão, concluímos que, bem vistas as coisas, o rol de atribuições que
iniciou o n.º 2 não enumerava, na maior parte dos casos, atribuições jurídicas, mas sim as respec-
tivas concretizações.

β) Definição
Uma atribuição é uma norma válida que, dadas duas pessoas, qualifica como satisfatório
para uma delas o acontecimento que preencha certa descrição sendo imputável à outra. A
atribuição também qualifica como não satisfatória — ou «insatisfatória» — a falta desse aconte-
cimento. Por simplicidade, vamos por vezes omitir a referência a este segundo aspecto, embora,
manifestamente, as consequências do não cumprimento, rectius, da não satisfação, sejam tão ou
mais importantes do que as da satisfação.

γ) «Norma»
Uma atribuição é uma norma. Escolhemos a palavra «norma» para aquilo a que há dois
parágrafos chamávamos «determinação», optando agora por um termo mais claro. Não há
inconveniente em usar a palavra «norma» para uma unidade de sentido que refira apenas duas
pessoas, e não uma categoria.67 Não valerá a pena dizer «duas pessoas determinadas», pois o
adjectivo «determinado» levanta mais dúvidas do que as que resolve. Duas pessoas são sempre
duas pessoas. Os contratos e outros actos atributivos identificam-nas, muitas vezes, pelos nomes
próprios ou por pronomes como «eu» e «tu». Cada atribuição refere o atribuinte e o titular.

66 Era assim a definição de VON TUHR referida e em parte seguida nos locais indicados supra, n. 17.
67 Cf., p. ex., KELSEN, Teoria pura do direito, trad. BAPTISTA MACHADO (da 2.ª ed.), 7.ª ed., rev. edit. e trad. dos índi-
ces L. DUARTE D’ALMEIDA, Almedina, 2008 (1960), 95, VON WRIGHT, Norm and action, reimp., Routledge & Kegan,
1971 (1963), 81-3, ROSS, Directives and norms, Routledge & Kegan, 1968, 106-110, RAZ, Practical reason and norms, 2.ª
ed., Oxford Univ., 1990, 49-50 e 78. Pelo contrário, quando se exige que as normas sejam «gerais» (ou «abstractas»),
fica-se sem expressão adequada (e breve!) para os seus equivalentes «individuais» (ou «concretos»), contribuindo
para fazer esquecer o que uns e outros têm em comum. Assim, p. ex., os «sentidos de dever ser individuais» de
DAVID DUARTE, A norma de legalidade procedimental administrativa, Almedina, 2006, 32-3.

17
Uma atribuição jurídica é uma norma «válida». Com isto, mantém-se um «conceito semân-
tico» de norma.68 No discurso civil, deixamos assim a discussão da validade no plano do con-
trato, surgindo as obrigações e outras atribuições no momento posterior.69 Os contratos são
válidos ou inválidos, as atribuições existem ou não conforme a validade do contrato.
O ganho em incluir a «norma» na definição é lidar com uma abstracção no plano dos
significados. As normas são significados de frases.70 O significado de uma frase é o que têm em
comum essa frase e a sua tradução noutra língua, ou essa frase e uma sua sinónima. É lícito,
pois, categorizar significados de acordo com categorias de frases, desde que essas categorias não
dependam da língua ou do sinónimo usados.71 Vimos que as atribuições podem corresponder a
efeitos jurídicos, a não-efeitos jurídicos, a possibilidades de efeitos jurídicos, a efeitos sobre
efeitos jurídicos, etc. Avistam-se aqui categorias semânticas fundamentais bem conhecidas. A
saber, com estes exemplos, afirmação, negação, modalidade e, porventura, metalinguagem72 ou
quantificação de segunda ordem. Mas não excluímos que as atribuições sejam normas com uma
estrutura mais simples do que as mais complicadas destas.
A linguagem das situações jurídicas trata-as como corpos físicos, ou melhor, como a
linguagem corrente trata corpos físicos. As situações jurídicas são coisas que as pessoas «têm» e
«perdem», «compram» e «vendem», de que «dispõem», que «passam» de uma pessoa para outra.
É-se titular de uma situação jurídica como se é proprietário de uma coisa. Daqui, aliás, resulta
uma conhecidíssima confusão de planos, como quando se diz que alguém tem «vastas proprie-
dades» ou quando o próprio Código Civil qualifica certos direitos como «coisas imóveis» (cf. art.
204.º). Esta linguagem é útil aos juristas,73 mas, para análise, pode ser integralmente substituída
por uma linguagem sobre normas (individuais). Em vez de dizermos que alguém «tem a permis-
são de» fazer alguma coisa, podemos dizer que «se lhe permite» fazer essa coisa. Passar a uma
linguagem de normas abre caminho para uma análise das situações jurídicas como análise semân-
tica de frases. Podemos inclusive referir-nos às frases como se fossem as normas.74 Considerar
as atribuições como normas simplifica toda a análise.

68 Ou seja, para distinguirmos entre normas válidas e inválidas, podendo entender as normas como significados de
frases, sem mais, o que é útil em vários contextos. Cf. ALEXY, Theorie der Grundrechte, 3.ª ed. inalt., Suhrkamp, 1996
(1985), 42-7. Pelo menos para falar de atribuições, essas frases não têm de corresponder a enunciados efectivamente
produzidos, sendo elas próprias abstracções. Aliás, é esse o alcance de distinguir «enunciado» e «frase». Cf. I. HUB
FARIA et al., Introdução à linguística geral e portuguesa, Caminho, 1996, 336-7. As atribuições não têm de corresponder a
enunciados porque há atribuições (designadamente, obrigações) decorrentes de «factos jurídicos stricto sensu».
69 Embora, é claro, as noções jurídicas de «validade» sejam amplas, incluindo designadamente a anulabilidade, o que

aumenta bastante as complicações.


70 Cf. a n. 68, para não considerarmos as normas significados de (efectivos) enunciados.
71 Por isso mesmo, estas categorias são comummente referidas a entidades não linguísticas, como juízos, proposi-

ções, crenças, etc.


72 Pode usar-se o termo «metalinguagem» também para a referência a significados, e não só a significantes.
73 Inclusive porque convém aos juristas, por razões metodológicas ou, pelo menos, metódicas, reservar o discurso

das «normas» para a consideração de leis e costumes, deixando para os contratos, actos administrativos, sentenças e
«factos jurídicos stricto sensu» os «direitos» e «obrigações».
74 Pressupondo a interpretação das frases pelo leitor. Neste escrito, também desconsiderámos a diferença entre

normas e proposições normativas, dada a correspondência biunívoca entre umas e outras. Sobre a diferença, cf., v.g.,
R. ALEXY, Grundrechte, cit., 50-3, ou D. DUARTE, A norma, cit., 43-53.

18
Sendo normas, as atribuições são unidades de sentido. Assim, quando afirmamos que
estas normas incluem uma descrição de um acontecimento, entende-se por «descrição», não
certas palavras, mas o significado de palavras. Na verdade, pode não haver palavras nenhumas,
como em certas «declarações tácitas» ou nas atribuições que se constituem devido a factos não
linguísticos, v.g., a gestão de negócios. A atribuição é uma reconstrução racional em face da sua
fonte, de tudo o que deva ser considerado contexto da fonte e do direito objectivo.

δ) Qualificar um acontecimento como satisfatório


Nas obrigações, o acontecimento satisfatório é a realização da prestação; na transmissão
de um direito, a aquisição do direito pelo transmissário; em ambos os casos, só se imputável ao
atribuinte. Veremos no número seguinte as restantes atribuições. De qualquer modo, a atribui-
ção inclui a descrição de um acontecimento futuro, presente ou passado — este último, quando
a fonte for retroactiva — e qualifica como satisfatório o acontecimento identificado por tal
descrição, desde que imputável ao atribuinte. Veremos o aspecto da imputação na alínea ζ. Por
agora, centremo-nos no conceito de satisfação, que generaliza para todas as atribuições o con-
ceito de cumprimento, próprio das obrigações. Nas obrigações, a satisfação é o cumprimento.75
Nas outras atribuições, há outros modos de satisfação.

A lei civil, com apoio tradicional e clássico,76 usa «satisfação» e «satisfazer» em inúmeros lugares. O
sentido não é o mesmo que damos à palavra. Por um lado, a lei refere-se sempre a obrigações, o que
evidentemente não podemos fazer aqui. Por outro, quando a lei usa o termo «satisfação», inclui não
só o cumprimento, mas todos os modos de o credor obter um bem que por alguma razão deva consi-
derar-se substitutivo do cumprimento, como a dação em cumprimento, a compensação, a consigna-
ção em depósito, a indemnização por não cumprimento, etc.77 Este sentido de «satisfação» é muito
útil ao direito da garantia patrimonial,78 e o alvo natural da satisfação é «o» interesse do credor. Ao
invés, a nossa «satisfação», no que toca a obrigações, é apenas o cumprimento, não os seus sucedâ-
neos. Recorde-se que o cumprimento não pressupõe a «satisfação», no outro sentido, de nenhum
interesse do credor, tal como nenhum interesse do credor tem de ser prejudicado para haver não
cumprimento, mesmo levando à letra o art. 398.º/2 (basta que o interesse desapareça antes do cum-
primento).79 Note-se também que, ao falar em «satisfazer a obrigação», a lei pressupõe este conceito,
enquanto nós definimos «atribuição» com o conceito central de «satisfação».

Uma atribuição é uma norma válida. Porque ela «qualifica como satisfatório» o aconteci-
mento que reúna certas características, tal acontecimento é, em virtude da atribuição, satisfató-
rio. Na obrigação, a norma que relaciona devedor e credor qualifica como cumprimento um

75 Para casos em que uma obrigação é satisfeita, stricto sensu, mas já não se usa o termo «cumprimento», cf. infra, o
texto a seguir à n. 133.
76 Cf. SEBASTIÃO CRUZ, Da «Solutio», s. e., Coimbra, 1962, 227-328, concluindo que a satisfactio clássica «nunca» (it. do

A.) inclui a solutio, distinguindo-se ainda da satisdatio. O alargamento do conceito de satisfactio é pós-clássico.
77 Cf., v.g., o art. 523.º. Nalguns casos, diz-se «satisfazer a prestação», mas não parece haver mudança de sentido.
78 Cf. JANUÁRIO GOMES, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, 2000, 5-11.
79 No direito do não cumprimento, os interesses do credor intervêm mais conspicuamente para avaliar a materiali-

dade de uma perturbação, identificada por si (cf., v.g., arts. 792.º/2, 793.º/2, 802.º/2, 808.º, etc.). Cf. ainda o que
dissemos no nosso Obrigações de meios, obrigações de resultado e custos da prestação, para breve nos Estudos em Memória do
Prof. Doutor Paulo Cunha, sobre os «resultados exteriores» à prestação.

19
acontecimento futuro (contingente) com certas características e qualifica como não cumprimento
a sua falta. Tal acontecimento só é cumprimento devido à norma que é a obrigação. Aos conceitos
jurídicos de cumprimento e não cumprimento estão associados regimes desenvolvidos. O pres-
suposto do nosso estudo, explicitado no número 2, é que uma parte, aliás significativa, do direito
do cumprimento e do não cumprimento vale para a satisfação ou não satisfação de atribuições
distintas das obrigações. Justamente, o que faz um conteúdo contratual válido ser uma atribuição
é qualificar um acontecimento, e a sua falta, com um conceito que fundamenta a aplicação dessa
parte do direito do cumprimento e não cumprimento. Escolhemos o termo «satisfação» para
expressá-lo.
Num exemplo de direito português: se resulta de um contrato80 que «António aliena a
Bento, livre de quaisquer ónus ou encargos, o seu direito de superfície sobre» certo prédio, o
intérprete deve concluir,81 nos casos normais, que haverá uma «perturbação do contrato», algo
de semelhante a um «não cumprimento» por parte de António, se Bento não adquirir efectiva-
mente, naquele momento, um direito de superfície não onerado sobre o prédio, em princípio
provindo do património da outra parte. Se adquirir, temos uma situação análoga a um cumpri-
mento de uma obrigação. Este juízo jurídico é o juízo de que a aquisição por Bento daquela
superfície sem ónus ou restrições será a satisfação de uma atribuição; e a não aquisição, a não
satisfação.
Visto isto, podemos dizer que «satisfação» e «não satisfação» são palavras de síntese, pala-
vras que condensam regimes jurídicos. A satisfação é a ocorrência de um de vários possíveis
acontecimentos distintos,82 que desencadeará vários e diversificados efeitos jurídicos. O mesmo
vale para a não satisfação, excepto quanto a que são outros e «opostos» os factos e os efeitos em
causa. Trata-se, pois, de «termos intermédios», numa terminologia conhecida da filosofia do
direito escandinava,83 termos que permitem reduzir o número de formulações de regras adequa-
das a exprimir uma disjunção de «previsões» que partilham uma conjunção de «estatuições».
Assim, explicitar por completo, nesta perspectiva, os conceitos de satisfação e não satisfação é
expor a dogmática completa da satisfação e da não satisfação das atribuições, cujo lugar idóneo
seria um tratado de direito civil.
Dado o problema de complexidade aqui gerado, sobretudo pelas «excepções» às regras,84 a
tarefa de uma «dogmática completa», tomada à letra, é humanamente irrealizável. Por outro lado,
não é possível uma dogmática senão no quadro de um sistema jurídico, e o conceito de atribui-
ção não se restringe a um sistema jurídico. Pensar-se-ia então em surpreender os conceitos de

80 Damos exemplos com o contrato para simplificar, como alertámos de início, sem nunca esquecer que as atribui-
ções têm as mais variadas fontes.
81 O enquadramento exacto deste tipo de problemas tem suscitado as dúvidas a que aludimos supra, n. 5.
82 Que esses acontecimentos possíveis são relevantemente distintos, vê-se melhor na alínea ζ infra.
83 Cf. WEDBERG, Some Problems in the Legal Analysis of Legal Science, Theoria, n.º 17, 1951, 246-75, e o famoso artigo

de ALF ROSS, Tû-tû, publicado designadamente na Harvard Law Review, n.º 70, 1957, 812-825. Os autores preocu-
pam-se com termos jurídicos como «propriedade», «crédito», «território», «nacionalidade» e «casamento», chegando
à conclusão «negativista» que referimos supra, n. 49. Para uma visão actual e já aceitável, cf. LINDAHL, Deduction and
Justification in the Law. The Role of Legal Terms and Concepts, na Ratio Juris, 17/2, 2004, 182-202.
84 A que já aludimos supra, no final do número 3 e no parágrafo das nn. 38 e 39.

20
satisfação e não satisfação através de um núcleo de aspectos de regime comuns a todas as atri-
buições em todos os sistemas jurídicos, sob pena de inaplicabilidade do conceito. Seria promis-
sor procurar aspectos constantes de regime do lado do titular. Dir-se-ia que o titular, por existir
a atribuição, pode vir a ter certos poderes, de exercício meramente permitido, destinados a pro-
vocar a satisfação ou a «reagir» à não satisfação.85 E talvez também o poder de extinguir a atri-
buição num acto de linguagem com esse conteúdo.86 Em suma, parece que ao titular é concedida
pela atribuição uma posição de poder, pelo menos eventual, de exercício permitido.

Em muitos casos, a posição do titular será um direito subjectivo, um direito à satisfação. Mas seria
imprudente afirmá-lo para todos, pelo menos sem indagar melhor da extensão do conceito de direito
subjectivo, o que manifestamente não cabe no presente estudo. O perigo é o de esvaziar o conceito,
ao mesmo tempo em que não se acrescentaria clareza nenhuma usando-o. A dificuldade principal está
em os direitos serem normalmente concebidos com um «objecto», de modo que todo o direito é
«direito a» ou «direito sobre» qualquer coisa. Com muitas das atribuições listadas, já concedendo na
ontologia generosa típica do discurso jurídico,87 não se antolha objecto suficiente. Pense-se na extin-
ção de um crédito, na limitação de um direito de personalidade, numa prestação impossível, na cober-
tura de seguro, no contrato de transacção...88 Dos exemplos listados, só os das alíneas a) e b) é que
inequivocamente dão um direito ao titular da atribuição. O fenómeno da «oscilação» entre obrigações
e outras atribuições, que expomos no final da presente alínea, mostra ainda que, por vezes, há um
direito de crédito «latente» em atribuições não obrigacionais, mas não é suficientemente abrangente.

A tentativa de reduzir os conceitos de satisfação e não satisfação a uma posição de poder


permitido do titular falha, contudo, em vários aspectos. Para começar, nas atribuições não obri-
gacionais, muitas vezes instantâneas e satisfeitas no momento em que a fonte se produz, não se
vislumbram nenhuns poderes do titular senão como eventualidade, dependente de uma pertur-
bação, e de contornos à partida indefinidos.89 Isto não impede que se reconheça a atribuição, o

85 Quanto à obrigação, discutiam-se tradicionalmente as relações entre o seu conceito e a acção de cumprimento, a
responsabilidade patrimonial e a responsabilidade civil por não cumprimento, sem especial atenção a outros aspec-
tos do regime do cumprimento e não cumprimento. Cf., p. ex., GOMES DA SILVA, Conceito e estrutura da obrigação,
reimp., Centro de Estudos de Direito Civil da FDL, 1971 (1943). A perspectiva alarga-se bastante com as doutrinas
da complexidade das obrigações, como a de LARENZ, Lehrbuch des Schuldrechts, vol. I, 14.ª ed., Beck, Munique, 1987,
26-29.
86 Quanto ao poder de renunciar à prestação, cf., numa perspectiva filosófica, REINACH, Grundlagen, cit., 39-40, e

HART, Bentham on Legal Rights, nos Essays on Bentham, Clarendon, 1982, 163-193, 184-8. Na filosofia moral, cf. F.
KAMM, Intricate Ethics, Oxford Univ., 2007, 242-4, invocando HART. As dúvidas sobre este suposto aspecto de
regime começam em disposições como a do art. 863.º/1, embora caiba distinguir entre a remissão e a desistência da
prestação. Sobre a faculdade de desistência da prestação pelo credor no direito português e sistemas próximos, cf.
LURDES PEREIRA, Conceito, cit., 237-264. Sobre a inexistência de um «direito a cumprir» no direito inglês, cf. M.
LIMA REGO, No right to perform a contract?, supl. Themis, Almedina, 2006. Na obrigação como noutras atribuições,
afirmar um poder de renúncia não significaria que o titular pudesse (sempre) destruir os efeitos que resultam do
contrato, tal como o credor nem sempre pode impedir o devedor de realizar o que era definido como prestação. O
que caberia ao titular, se não por necessidade conceptual, pelo menos como «tendência conceptual», como aspecto
típico associado ao conceito, seria o poder de «desistir» dos seus poderes próprios, desfigurando a atribuição.
87 Usamos neste estudo, aqui e ali, o termo «ontologia» e seus derivados. Vai no sentido de discurso sobre aquilo

que há, sobre o que existe, sem outras especificações. Nalguns casos, referimo-nos ao discurso sobre aquilo de que
convém falar como se existisse. Cf. o que dizemos infra, no parágrafo das nn. 100 e 101, sobre a tendência para reificar
a «prestação».
88 Cf. tb. o que dissemos na n. 25 sobre o mútuo.
89 A eventualidade do exercício, e mesmo da possibilidade de exercício, não exclui o poder, nem o torna eventual

(ou «virtual»), como acentuava GOMES DA SILVA, Conceito, cit., 122-5 e 137-145. Julgamos que as coisas mudam de

21
que dificulta associá-la a tais poderes. Quanto ao poder de provocar a satisfação, ele não é essen-
cial sequer ao conceito de obrigação. Em especial, a acção de cumprimento com consequente
execução específica é uma figura famosamente «excepcional» no common law e com «excepções»
(menos famosas) até num sistema generoso como o português.90 Um poder de provocar a satis-
fação chega a não ter sentido nalgumas das atribuições não obrigacionais, como se descobre pela
sua mera consideração. Por fim, um poder de «reagir» à não satisfação é insuficiente para carac-
terizar a posição do titular pelo próprio pouco conteúdo da ideia de «reagir». Os «meios de
tutela» de que aquele goze podem consistir apenas no surgimento de nova atribuição, como uma
obrigação de indemnizar, ou a reflexos em atribuições associadas, como no sinalagma, o que nos
levaria a um regresso infinito se quiséssemos definir a atribuição através desses meios de tutela.
Sobretudo, a definição pelas consequências não pode obliterar a tentativa de compreender o seu
pressuposto comum.91
Em qualquer caso, os regimes da satisfação e não satisfação não se reduzem a poderes de
exercício permitido do titular, embora possamos de facto dizer, assumindo a vagueza da expres-
são, que o titular tem uma «posição de poder permitido». Esta é uma descrição substancial.
Aponta que as reacções do direito à não satisfação vão depender de exercícios de liberdade do
titular. Contudo, não chega certamente como caracterização. Com a mesma vagueza, cabe subli-
nhar que a posição do atribuinte é «passiva»,92 no sentido de que, pelo menos, potencia deveres,
sujeições e perdas de direitos para o próprio. Ao mesmo tempo, o que define o atribuinte é o
aspecto estrutural de ter de ser-lhe imputável o acontecimento descrito na atribuição para que
haja satisfação, a que dedicamos a alínea ζ. O conceito de satisfação é o conceito unificador do
direito da atribuição, mas, afastadas as hipóteses de uma dogmática completa e de um regime
mínimo comum suficientemente identificativo, o que há a fazer é defini-lo por exemplos e analo-
gias, por remissões com ressalvas genéricas e por recurso a conceitos valorativos. Quanto à defi-
nição por exemplos, ficou feita nos parágrafos anteriores.

figura quanto à indefinição inicial dos poderes do titular. Que poderes tem o transmissário de um direito (para os
casos de não transmissão)?
90 Os arts. 827.º a 829.º não cobrem todas as obrigações, e o mesmo se diga de outro mecanismo destinado a pro-

vocar o cumprimento (cf. CALVÃO DA Silva, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, sep. do vol. XXX do Supl.
BFDUC, 1986, 393-6) como a sanção compulsória (cf. art. 829-A). Também é explícito nas excepções o art. 830.º
— que, visto estar em causa a produção de efeitos jurídicos (cf. tb. infra, n. 99), tem simultaneamente um sentido
equivalente a uma acção de cumprimento e a uma execução específica (não sendo, é claro, uma «execução»). A
própria acção de cumprimento (cf. art. 817.º, 1.ª parte) falha nalgumas obrigações, maxime nas de termo essencial
(não sendo cumpridas no momento devido, deixa de ser possível o cumprimento e, logo, a acção de cumprimento).
Há ainda alguns limites a uma acção de cumprimento anterior ao vencimento, relacionados com o pressuposto do
«interesse processual» (cf. tb. arts. 472.º e 662.º CPC).
91 Esta uma dificuldade análoga à de definir regra (de dever) pela ideia de sanção. Cf., p. ex., N. BOBBIO, Diritto e

forza, nos Studi per una Teoria Generale del Diritto, Giappichelli, 1970 (1966), 120-3 e 131. A tese de BRIAN BIX, Contract
Rights and Remedies, and the Divergence between Law and Morality, na RaJu 21/2, 2008, 194-211, de que a variabilidade dos
meios de tutela de sistema para sistema «apoia fortemente a conclusão de que [...] não pode haver nenhuma teoria
geral e universal do direito dos contratos» nasce de uma compreensão das obrigações através da obrigação de indem-
nizar, propiciada pela peculiaridade do common law que acabámos de referir. Não cabe aqui impugnar os pressupos-
tos jurídico-filosóficos de um entendimento tão radicalmente oposto ao nosso, sublinhe-se apenas o absurdo de
pensar que a compra de um isqueiro em Boston seria essencialmente diferente da sua compra em Braga (problema
que, reconheçamos, o autor não deixa de considerar).
92 Recolhemos a palavra de uma expressão como «situação jurídica passiva».

22
Na verdade, o cerne do conceito de satisfação é de valor. A qualificação normativa de um
acontecimento com certas características como satisfação significa que o contrato ou outra fonte
estabelece que, juridicamente, tudo correrá bem naquela relação entre aquelas pessoas se tal acon-
tecimento ocorrer, imputável ao atribuinte, e que algo corre mal no caso contrário. O direito res-
ponde pelas suas regras e princípios a esse valor ou desvalor jurídico numa relação entre duas
pessoas. O que se passa nos contratos, qualquer que seja o conteúdo atributivo, é que as partes,
fazendo uso da autonomia privada, atribuem valor a dado acontecimento contingente e atribuem
desvalor à sua falta. Sendo a atribuição uma norma de direito, o sistema reage ao valor ou desvalor
jurídico surgido, conforme as suas regras e princípios disponham.
Como temos dito, a analogia básica que sustenta o conceito de satisfação respeita ao cum-
primento das obrigações. O cumprimento das obrigações é o protótipo da satisfação das atribui-
ções. Vale a pena notar que esse conceito de cumprimento assenta, por sua vez, numa analogia
com o cumprimento de deveres (jurídicos ou morais). Aliás, a obrigação é uma situação jurídica
complexa estruturada por um dever de cumprir, o dever de prestar, como se ilustra na relação
entre as palavras «dever» e «devedor».
Veremos na alínea ζ, contudo, que pode haver cumprimento da obrigação sem que o
devedor cumpra dever algum, maxime nos casos de cumprimento (da obrigação) por terceiro
sem concurso da vontade do devedor. Por outro lado, pode o devedor cumprir todos os seus
deveres, analiticamente considerados, sem que ocorra o cumprimento da obrigação, como é
notório nas obrigações de resultado. Esta é uma das razões por que há casos de não cumpri-
mento não culposo.93 Podem ainda extinguir-se os deveres do devedor relativos à sua obrigação
sem que se extinga a obrigação, o que também é mais visível nas obrigações de resultado e nos
casos em que, devido a uma perturbação, o devedor pode optar entre cumprir ou não.94 É
grande, pois, a distância entre o cumprimento das obrigações e o cumprimento de deveres pelo
devedor. Contudo, os conceitos de dever e de cumprimento do dever, básicos em direito e na
moral, nem por isso deixam de ser fundamentais para a compreensão das obrigações e seu cum-
primento. Passar do cumprimento das obrigações para a satisfação das atribuições é mais um
passo de construção conceptual, julgamos que igualmente imprescindível.
Na relação entre as obrigações e as atribuições que se satisfazem «por mero efeito do con-
trato», cabe notar uma curiosa «oscilação» entre umas e outras. Quando as atribuições são satis-
feitas pela produção de efeitos jurídicos, elas mantêm-se por vezes — i.e., continuam a «existir»
— apesar da falta de condições adequadas para a produção do efeito jurídico no momento do
facto atributivo. Por exemplo, determinando-se a transmissão de um crédito quando ela não
pode ocorrer, a atribuição não deixa de existir e de qualificar como satisfação a aquisição pouco
posterior pelo transmissário através de terceiro, de modo imputável ao transmitente. A satisfa-
ção era a aquisição do direito pelo titular de modo imputável ao atribuinte, e veio a ocorrer.
Contudo, não se produziu nenhum efeito pelo próprio acto atributivo, além do surgimento da

93 A introdução do conceito de «violação de um dever» na Modernisierung do BGB (cf. §§ 280 ss.), destinada apenas
aos problemas de responsabilidade civil, facilita a distinção entre a obrigação e os deveres do devedor.
94 Considerem-se, p. ex., os casos de direito de resolver uma relação sinalagmática.

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atribuição. Ora, faltando as «condições adequadas» para uma transmissão imediata, para a aquisi-
ção imediata, pode surgir a obrigação de fazer adquirir.95 Em casos simétricos, pode um contrato
estipular uma obrigação, mas «converter-se»96 numa atribuição doutro tipo. Suponha-se, p. ex.,
que alguém se obriga a um serviço irrepetível que descobre em seguida já ter realizado, por erro,
antes do contrato. Na normalidade dos casos, esse serviço prévio valerá como «cumprimento»
de uma «obrigação» que nunca chegou a constituir-se, rectius, como satisfação de uma atribuição
(retroactiva) de outro tipo.97 Também a obrigação de fazer adquirir do exemplo anterior pode
«cumprir-se automaticamente» à maneira das outras atribuições.98 E uma obrigação de produzir
efeitos jurídicos pode levar a uma sentença declarativa com pressupostos equivalentes aos da
acção de cumprimento mas que não condene o devedor a cumprir, como se esperaria, antes produ-
zindo aqueles efeitos, configurando-se como «sentença constitutiva».99 O fenómeno da «oscila-
ção» manifesta mais uma vez a analogia entre o cumprimento das obrigações e as restantes
formas de satisfação das atribuições.

Fiquemos ainda com as obrigações para uma nota algo lateral sobre a relação entre «prestação» e
«cumprimento». Na linguagem jurídica corrente, diz-se que a prestação é «o objecto» da obrigação, «o
comportamento» devido pelo devedor, e que o cumprimento é «a realização da prestação». «Presta-
ção» e «cumprimento» não são sinónimos, «realização da prestação» não é uma tautologia. Devem
notar-se pelo menos três diferenças entre os termos «prestação» e «cumprimento»:
Em primeiro lugar, «prestação» é normalmente usado fazendo referência a uma abstracção, uma
entidade que «existe», na medida em que as abstracções existam, durante toda a vigência da obrigação.
Por isso, a prestação pode realizar-se, ou seja, literalmente, tornar-se real. Como corolário, a prestação
não é um comportamento: os comportamentos são entidades concretas. Quando dizemos que «a pres-
tação é um comportamento», cometemos o pecadilho inócuo e comum nos juristas100 de passar inad-
vertidamente dos abstracta aos concreta. A prestação é uma abstracção que idealiza o comportamento a
que a obrigação obriga. Dada uma obrigação, a prestação é o tipo cujo único espécime é o cumpri-
mento.101 Com «cumprimento», ao invés, referimo-nos em regra a um acontecimento (real, passe o

95 Há aqui um problema quanto a usarmos ou não o termo «validade» (porventura distinto do de «eficácia») apenas
para os actos jurídicos cujas «condições de sucesso» se verifiquem na totalidade. Este problema — e uma solução
que temos por menos boa — pode estar na base do próprio art. 892.º e do art. 280.º (quanto à impossibilidade, a
que nos referimos supra, n. 6). Trata-se de uma dificuldade de linguagem («teórica», neste sentido) com uma reper-
cussão substantiva. Cf. tb. infra, na n. 138, a referência ao art. 897.º e o texto correspondente à nota.
96 Não nos referimos (necessariamente) à conversão do art. 293.º.
97 Este não é ou não tem de ser um caso de compensação da nova obrigação com a obrigação de restituir o valor do

serviço. Não só por causa dos requisitos do art. 847.º/1, pr. e al. b), mas também porque o serviço prévio vai ser
tratado como «cumprimento» para efeito de eventuais perturbações suas ou numa contraprestação. Exemplo de ser-
viço irrepetível é a demolição de uma construção determinada. Na hipótese figurada, ao tempo do contrato a pres-
tação é impossível.
98 Cf. inclusive o art. 895.º. Na alínea ζ, engrossamos os exemplos de modos peculiares de satisfação.
99 Pensamos, é claro, no caso do art. 830.º, relativo ao contrato-promessa e certamente aplicável «por analogia»

noutras hipóteses. Julgamos até que o contrato-promessa pode ser definido com proveito como contrato que obriga
à produção de efeitos jurídicos tipicamente contratuais. P. ex., se for celebrado contrato em que as partes se obrigam a
celebrar outro contrato, mas cujos efeitos possam afinal produzir-se por negócio unilateral, há cumprimento se uma
das partes outorgar esse negócio unilateral (essa parte cumpre; a outra não cumpre, em sentido estrito, mas há satis-
fação ainda assim).
100 Cf. tb. a n. 49 supra.
101 Não se afasta que quer «prestação» quer «cumprimento» possam ser usados como termos gerais, referindo tipos

ou atributivamente. Este artigo, por exemplo, não faz outra coisa. Perante uma dada obrigação é que «a prestação» é o
tipo, e «o cumprimento» o espécime. Se nem assim se podem contar cumprimentos, é porque o cumprimento é um
espécime único. Seguimos a recomendação de http://criticanarede.com/glossario.html, traduzindo type e token por

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pleonasmo). O cumprimento ocorre num dado momento. O cumprimento é que é um comportamento
humano — mas só em regra, como veremos na alínea ζ — e não uma abstracção que idealiza um
comportamento. Outro exemplo: dada uma obrigação já cumprida, dir-se-á, de preferência, que a
prestação era isto ou aquilo, e que o cumprimento foi desta ou daquela maneira. Sobretudo, «a presta-
ção» explicita sempre o conteúdo da obrigação: p. ex., a prestação pode ser «trazer o que ainda haja no
armazém», enquanto o cumprimento será mais bem descrito como «trazer dois caixotes e um cesto».
Seria perfeitamente correcto, embora inútil, substituir a linguagem da «prestação» por uma linguagem
algo nominalista em que se falasse apenas de uma «descrição» que viria a ser ou não verdadeira de um
acontecimento: a descrição que serve de critério para que um acontecimento seja qualificado como
«cumprimento» da obrigação em causa. Esta primeira diferença entre «prestação» e «cumprimento» é
visível em muitos lugares da lei portuguesa, p. ex., comparando os n.ºs 1 e 2 do art. 762.º.
Em segundo lugar — e em usos na verdade distintos dos tidos em vista no parágrafo anterior — a
aplicabilidade do termo «prestação» depende menos de uma obrigação do que o termo «cumpri-
mento». Por exemplo, pode dizer-se que «o devedor realizou uma prestação absolutamente diferente
da devida», mas não que «o devedor cumpriu de modo absolutamente diferente do devido». Se o que
fez foi absolutamente diferente do devido, não houve cumprimento. O cumprimento pode ser diferente
do devido, caso em que será «defeituoso» ou «parcial», mas não absolutamente diferente. Esta relativa
independência entre o conceito de prestação e o de obrigação permite inclusive que se fale de «presta-
ção», mas não de «cumprimento», sem haver obrigação alguma, de modo que o primeiro termo é de
uso genérico num capítulo do enriquecimento sem causa (o do «enriquecimento por prestação»),
enquanto o segundo cabe apenas em casos contados. Compare-se, v.g., o art. 476.º com os arts. 477.º e
478.º. As referências ao «cumprimento» não só pressupõem uma obrigação, normalmente também
deixam implícita a extinção da obrigação. Por outro lado, o «cumprimento» pode respeitar a deveres,
não só a obrigações, aspecto que sublinhamos já de seguida. Talvez ainda valha a pena notar, saindo
(?) do direito, que se pode «cumprir um desejo», uma vontade (ou até uma profecia), enquanto uma
«prestação» que preste para alguma coisa há-de produzir uma utilidade...
A propósito, permita-se um parêntese sobre a muitas vezes afirmada relação essencial entre o
cumprimento e a extinção da obrigação.102 A afirmação surge quer para diminuir a saliência dos casos
de cumprimento sem extinção ou para dizer que o cumprimento produziria «sempre em relação ao
credor a extinção do seu crédito» (referindo-se depois a sub-rogação do art. 589.º como caso em que
se mantém o débito),103 quer para recusar uma «sobrevalorização do cumprimento» relativamente às
restantes formas de extinção das obrigações.104 É curioso que um jurista filósofo como Reinach
afirme a verdade «geral e necessária», «por essência», a priori mas sintética (no sentido kantiano), da
extinção da «vinculação» com o cumprimento.105 Tudo isto, porém, é um enorme exagero. P. ex., as
obrigações de meios não se extinguem pelo cumprimento. O seu modo normal de extinção é a impos-
sibilidade, quer por cessar o tempo definidor da prestação, se for o caso, quer por se produzir o resul-
tado definidor irrepetível, quer por se impossibilitar este resultado.106 Nestes dois últimos casos — o
primeiro dos quais, aliás, se reconduz ao segundo — a extinção depende do conhecimento pelo deve-
dor. As obrigações negativas também não se extinguem, em regra, pelo cumprimento, mas sim pelo
decurso do tempo ou devido a algum outro acontecimento, conforme a definição da prestação. E

«tipo» e «espécime». Para uma introdução aos conceitos de type e token, imputados a C. S. Peirce, cf. o artigo de L.
WETZEL, de 2006, outra vez na Stanford Encyclopedia of Philosophy (http://plato.stanford.edu/entries/types-tokens/).
102 Cf., aliás, a epígrafe do capítulo (VII) com início no art. 837.º, o termo latino solvere, o § 362 BGB, etc. Sobre a

relação essencial entre a solutio e a liberatio (exoneração), cf. S. CRUZ, Da «Solutio», cit., 3-14 e 329-354, acentuando
que a solutio começou por significar apenas uma datio certae pecuniae, o que nos parece condizer com a tese do «exage-
ro» que defendemos no texto. O autor sintetiza que «a solutio clássica é o fim intencional da obligatio» e, por isso,
«não extingue uma obrigação; realiza-a» e «morre com ela».
103 Cf., v.g., MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. II, Almedina, 2002, 171.
104 Cf. MENEZES CORDEIRO, Direito das obrigações, vol. II, AAFDL, 1980, 183-5.
105 REINACH, Grundlagen, cit., 10 e 39.
106 Cf. o nosso Obrigações de meios, cit. O facto de o detective já ter procurado o desaparecido é irrelevante para a

obrigação de fazê-lo. Sem mais alguma delimitação da prestação, como quando um médico é chamado para tratar o
doente em casa naquele momento, só se esgotam os (devidos) actos adequados ao resultado quando este se torna impos-
sível. Um esgotamento sem impossibilidade manteria a obrigação «latente», à espera de nova oportunidade de agir.

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podem extinguir-se pelo incumprimento: pense-se na obrigação de não tornar público certo facto.107 No
caso de prestações continuadas de duração indefinida — as mais comuns são de fornecimento de
electricidade, água, etc. —, também é difícil configurar o cumprimento como modo de extinção, e o
mesmo talvez valha, em rigor, para obrigações de cumprimento reiterável.108 Além disso, a autonomia
privada permite as variações que quisermos, pelo que não deve afastar-se a possibilidade de outros
casos. Não há, pois, nenhuma relação essencial entre cumprimento e extinção da obrigação, salvo,
talvez, nas obrigações de prestação instantânea positiva de resultado, que, reconheçamos, constituem
uma espécie de paradigma das obrigações, mas não mais do que isso.
A terceira diferença entre os conceitos de «cumprimento» e de «prestação» é a mais importante
para o estudo da atribuição. Há uma característica necessária do cumprimento de uma obrigação que
não vem referida na descrição da prestação. Um dado acontecimento só é cumprimento se for «im-
putável» ao devedor, no sentido que explicamos abaixo, na alínea ζ.109 P. ex., a entrega de dez contos a
Caio só é cumprimento da dívida de dez contos que Tício tem para com ele se for feita por Tício ou
por alguém que, de alguma forma, «cumpra por» Tício. A prestação correspondente a esta obrigação,
todavia, é adequadamente descrita (ou definida) como «entrega de 10 contos a Caio», pois é isto «o
que o devedor deve fazer». Assim, dever ser o devedor a fazê-lo, ou alguém por ele, não entra, em regra,
na descrição da prestação. A necessidade da imputação a Tício decorre dos conceitos de obrigação e
de cumprimento, e vai pressuposta em disposições legais variadas sobre a «legitimidade para cumprir».
Nalguns casos, os das «prestações infungíveis» (cf. art. 767.º), a definição da prestação inclui a sua
«realização» pelo devedor, «realização» essa que implicará, salvo casos demasiado imaginativos, a impu-
tação. Ainda assim, o que vem incluído na descrição da prestação é sempre um modo de imputação
não necessário à generalidade dos cumprimentos, e não a própria imputação.

Tudo visto, também nas atribuições que não sejam obrigações cabe distinguir entre a «des-
crição do acontecimento satisfatório», ou mesmo «descrição atributiva», correspondente à pres-
tação, e a satisfação, que corresponde ao cumprimento e implica a imputação ao atribuinte.

ε) Satisfatório para o titular


A norma atributiva qualifica como satisfatório para uma pessoa o acontecimento que
preencha certa descrição, se imputável a outra pessoa. Quando dizemos «satisfatório para uma
pessoa», escolhemos palavras que se destinam apenas a identificar o titular da atribuição. Como
vimos na alínea anterior, a posição do titular é, muito vagamente, uma posição de poder, a
«posição vantajosa» na atribuição, que consiste sobretudo na liberdade de usar ou não os meios

107 Curiosamente, este não é um caso de impossibilidade, mas sim de necessidade do «cumprimento», i.e., de impossi-
bilidade do não cumprimento. A partir do momento em que certo facto é público, já não é possível torná-lo público,
de modo que a obrigação seria doravante «cumprida» por necessidade. Pelo menos, é doravante inviolável. Uma
obrigação de não demolir certa edificação conduz às mesmas soluções e fundamentos. Quanto às «obrigações
negativas», ligeiramente diferentes das «obrigações de facto negativo», cf., infra, o final do número 6.
108 Numa obrigação periódica, costuma pensar-se que ela se decompõe em várias obrigações de objecto idêntico

que se vão constituindo e extinguindo ao longo do tempo. Este modelo não merece objecções nos casos mais
comuns (p. ex., de pagamento de um aluguer), mas claudica quando não há relação constitutiva entre o dever de
cumprir e o decurso do tempo. Considere-se alguém contratado e pago ao mês num valor fixo para limpar destro-
ços de eventuais acidentes num troço de uma estrada. Os deveres concretos de limpeza depois de um acidente não
parecem ter autonomia bastante para se lhes aplicar o regime das obrigações, e o cumprimento parcial por não
serem removidos os destroços de um acidente não se distingue, nos efeitos, do cumprimento parcial por não ser
removida uma parte dos destroços de outro acidente. Logo, a obrigação não se decompõe em obrigações menores
que mereçam o nome de «obrigações» para aplicação do competente regime, maxime os arts. 512.º a 561.º e 577.º a
873.º. Trata-se aqui, pelo contrário, de deveres na execução de uma obrigação só.
109 Esta «imputação» não tem nada que ver com a matéria da «imputação do cumprimento» (cf. arts. 783.º ss.).

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jurídicos destinados a lidar com a não satisfação. Importa agora afastar outros modos pensáveis
de referir o titular na definição de atribuição.
Nas teorias correntes do enriquecimento sem causa e da onerosidade, para os seus con-
ceitos de «atribuição», os conceitos homólogos ao de «satisfação» são os de «vantagem patrimo-
nial» e «aumento patrimonial».110 Identifica-se assim o «enriquecido» ou o «beneficiário». Para
uma teoria da atribuição que pretenda generalizar o conceito de obrigação, não seria admissível
restrição semelhante, já que as próprias obrigações podem não ter carácter patrimonial,111 não
havendo, pois, que fazer alusão nenhuma ao património do titular.
Mais do que isso, e sobretudo em vista de leis que deixem grande amplitude à autonomia
privada, não deve confundir-se o titular com um beneficiário da atribuição, que não tem sequer
de existir e que, em qualquer caso, não se confunde com o titular.112 E não pode dizer-se que
todas as atribuições visem a «satisfação de um interesse» de alguém, o «beneficiário». A palavra
«interesse» sugere uma efectiva utilidade, e as atribuições podem visar o que uma pessoa quer ou
quis contra os seus interesses, quando se originam num contrato, sendo inclusive alheias aos
desejos do titular nas fontes não voluntárias. Uma atribuição contratual pode, p. ex., permitir
apenas que alguém fume um cigarro,113 o que nem sempre é do interesse do fumador. Temos
por conceptualmente inaceitáveis todas as tentativas de definir atribuição (ou obrigação) através
do conceito de interesse, sem prejuízo das dificuldades de regime — pelo menos, aparentes —
criadas por disposições como o art. 398.º/2. Pela mesma razão, não há motivo sequer para dizer
que a atribuição identifica certo acontecimento como um bem para o titular, embora este con-
ceito tenha um conteúdo menos intenso do que o de interesse.114
A qualificação de certo acontecimento como satisfatório para alguém (o titular) tem de
resultar do contrato, sendo aferida na respectiva interpretação. A atribuição, como todas as
normas, é o significado de uma frase. Quando a fonte da atribuição é constituída por enunciados
linguísticos, todos os elementos estruturais da atribuição devem encontrar-se nesses enunciados,
com o seu contexto. Caso contrário, teremos necessidade de «integrar» a fonte.115 Pensando nos
contratos e restantes negócios jurídicos, a identificação do titular é ainda um aspecto sujeito à
autonomia privada. Se, na grande maioria dos casos, tal identificação é evidente, há casos dúbios.
A falta de expressão explícita ou contextual, ainda que remissiva, da identificação do titular gerará

110 Cf. as indicações supra, nn. 16 e 17.


111 Cf., aliás, o art. 398.º/2. Além disso, a nossa intenção teórica não pretende definir um conceito restrito a um
sistema, designadamente ao sistema português, antes abrangendo leis mais generosas para a autonomia privada. Cf.
já a seguir, no texto, e, p. ex., o art. 2.101/1 dos PDEC, de 2000.
112 Sobre a distinção entre o credor e o beneficiário ou receptor da prestação, na filosofia jurídica, cf. REINACH,

Grundlagen, cit., 13 e 89-92, esp.te 90, aqui como argumento contra a cedibilidade do crédito, no plano de «essências»
intuídas alheio às «determinações» legais. Ou tb. HART, Legal Rights, cit., 180-8, e, seguindo HART, KAMM, Intricate
Ethics, loc. cit..
113 Sem adquirir a respectiva propriedade, o que criaria, pelo menos em regra, um aumento patrimonial.
114 E por isso mesmo surja na definição de direito subjectivo de MENEZES CORDEIRO, Tratado, I/1, cit., 123-7, que

pressupõe o afastamento do interesse para esse efeito (cf. loc. cit., 112-3). Cf. que é essa tb. a intenção de HART, em
crítica directa a BENTHAM e JHERING, e de KAMM, dado o «anticonsequencialismo» explícito de todo o livro (nos
loc. cit. supra, n. 112).
115 Cf. os arts. 239.º, sobre a «integração do negócio jurídico», e 236.º, sobre «interpretação».

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em princípio a invalidade da fonte, por «indeterminabilidade».116 Melhor seria dizer por ininteli-
gibilidade, já que uma atribuição radicalmente sem titular é uma figura que não se entende.
A identificação de titular e atribuinte é difícil nas transmissões de posições contratuais, em
que a atribuição tem geralmente por objecto, em simultâneo, direitos e débitos ou outras situa-
ções passivas.117 Parece que aos juristas convém considerar que uma transmissão da posição con-
tratual será uma atribuição do transmitente ao transmissário ou do transmissário ao transmitente
conforme a posição transmitida seja «vista» pelas partes como vantajosa ou desvantajosa. Suge-
rimos que, para interpretar um contrato de cessão da posição contratual, designadamente em
respeito do art. 236.º, deve atender-se a se as partes consideraram a posição, no seu conjunto,
como «positiva» ou «negativa», como um activo ou um passivo. P. ex., se se convenciona que o
cedente paga um preço ao cessionário, então é este o atribuinte, e o outro o titular.118 Se a posi-
ção é «vista» como neutra, aí tenderá a haver duas atribuições, uma de cada parte à outra parte, e
qualquer uma delas pode vir a ter razão de queixa, em termos análogos a uma situação de não
cumprimento, se algum dos elementos que se pretendeu transmitir for defeituoso ou não existir,
ou se existirem elementos a mais.119 Sublinhemos que isto são apenas auxiliares da interpretação.
O conteúdo que se procura aferir é ainda o de ter sido dado a uma das partes, como princípio, a
liberdade de decidir de eventuais reacções do ordenamento à não satisfação.

Extraem-se daqui dois corolários para a ontologia das atribuições: a atribuição não tem de coinci-
dir, não tem de ser numericamente idêntica ao efeito jurídico que a «consubstancia»; e a «direcção» da atri-
buição não se relaciona biunivocamente com a classificação corrente dos efeitos jurídicos (constituição,
transmissão, etc.). A contagem de atribuições, mesmo quando subordinada aos interesses de um «jurista
prático», também há-de suscitar dificuldades. P. ex., a transmissão de uma posição contratual já identi-
ficada como «vantajosa» contará como uma ou como várias atribuições conforme, se for o caso, a
compra e venda compute um único ou vários preços suficientemente autónomos.120

Não queremos dar a entender que estes problemas de identificação do titular e do atri-
buinte só digam respeito a efeitos jurídicos complicados como uma transmissão da posição con-
tratual. Casos conhecidos como os dos contratos com prestações «no interesse de ambas as
partes»121 suscitam-nos igualmente. Pense-se numa alienação de entulho. Pode haver aqui uma

116 Cf. art. 280.º/1. O art. 511.º supõe uma determinação posterior.
117 Encontra-se a mesma dificuldade na transmissão de posições societárias ou de estabelecimentos comerciais.
118 Isto tem implícita uma restrição ao art. 426.º/1. Se sou pago para adquirir a posição num contrato, essa posição é

tratada como um mal. Logo, não posso queixar-me se ela não existir, mesmo que venha depois a concluir-se que ela
representaria um ganho. A questão é interessante, mas a solução não é inequívoca, nem cabe aqui resolvê-la.
119 E a relação considera-se de «cooperação». Sobre este termo, cf. FERREIRA DE ALMEIDA, Texto, cit., 533-6. Na

verdade, a solução expressa no texto só valerá, supomos, para casos contados. Na generalidade das situações, a
«proximidade» do transmitente às situações jurídicas transmitidas levará a que seja ele o atribuinte, sem prejuízo do
que se sugeriu na n. anterior.
120 Sem prejuízo de a regra, para a generalidade dos efeitos, ser a unidade da cessão. Cf. C. MOTA PINTO, Cessão, cit.,

282-291.
121 O exemplo de escola é um caso de mandato (cf. art. 1170.º/2). Outros exemplos comuns respeitam a actores ou

desportistas contratados que lucram com o cumprimento (cf. M. LIMA REGO, No Right, cit., 38-9; claro que nem
todos estes contratos são «no interesse de ambas as partes»). O suposto «direito à ocupação efectiva do trabalha-
dor», com um magro apoio no art. 122.º/b) CT, não chega para configurar uma atribuição autónoma do emprega-
dor ao empregado. Os casos não se restringem a contratos, como se vê pela figura da «gestão de negócios conexa».

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atribuição do alienante ao adquirente, mas também o contrário, ou ambas as coisas. Para a
maioria das pessoas, ter entulho é um custo. Neste caso, o problema de identificar a atribuição e
seus sujeitos coincide com o problema de saber que obrigações é que se constituíram.

Acentue-se que «no interesse de ambas as partes» é expressão enviesada para designar os casos de
duas atribuições que descrevem o mesmo acontecimento com os mesmos sujeitos em posições inver-
tidas. Os «dois interesses» são apenas o elemento interpretativo predominante em tais conjunturas.
Não deve confundir-se o contexto expressivo com o que se exprime. De resto, interesses de ambas as
partes na realização de uma prestação são coisa vulgar nos mais diversos contratos.

ζ) Imputável ao atribuinte
O acontecimento descrito na atribuição será satisfatório se imputável ao atribuinte. Na
exposição tradicional do conceito de obrigação, este aspecto é obscurecido, pois a posição do
atribuinte, o devedor, é apropriadamente identificada pela titularidade de um dever, dispensan-
do-se acrescentos. Os problemas do cumprimento por terceiro são vistos como questão dogmá-
tica posterior. Não há aqui reparos a fazer, embora não tenha passado despercebido à doutrina
que o cumprimento por terceiro disputa conceitos básicos.122 Quando, porém, se consideram
outras atribuições, a situação do atribuinte deixa de poder ser definida como situação de dever,
salvo corrompendo este conceito. Na generalidade das atribuições, como vimos, não cabe senão
dizer vagamente que o atribuinte tem uma posição «passiva», potencialmente geradora de deve-
res, sujeições e perdas de direitos.
Identificar o atribuinte como a pessoa a quem tem de ser imputado o acontecimento atri-
butivo, sob pena do desvalor da não satisfação, resolve o problema definitório e, cremos, traz
clareza à própria noção de cumprimento das obrigações. Nas teorias do enriquecimento sem
causa e da gratuitidade, há ideias homólogas à de imputação. Assim, afirma-se que só contam
como «atribuições», illo sensu, actos «intencionais».123 Na cláusula geral das leis do enriquecimento
sem causa, a expressão que nos interessa é «à custa de outrem».124 Usá-la-íamos se não houvesse
termo preferível. «À custa de» sugere erroneamente que o atribuinte há-de suportar um custo.125

122 Cf. ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, Almedina, vol. II, 7.ª ed., 1997, 8, que pretendeu «reservar o termo

cumprimento, por uma questão de terminologia, para a realização voluntária da prestação pelo devedor», negando,
«em bom rigor, que o terceiro cumpra a obrigação, porque ele não estava adstrito» a realizá-la (apesar da expressão da
lei, v.g. no art. 768.º, que o autor sublinha). A intenção do autor é filosófica ou, pelo menos, analítica («em bom
rigor»), pois conseguiria simplificar a definição de cumprimento (da obrigação) através do dever da pessoa que
cumpre. Contudo, gerar-se-iam dificuldades insuportáveis, como a de ter de considerar, «em rigor», «não cumprida»
uma obrigação cumprida por terceiro.
123 Ou, pelo menos, um acto «consciente». Note-se que o conceito de «prestação», tal como usado no enriqueci-

mento sem causa, acrescenta à intenção, própria de todas as «atribuições», a (ulterior) «finalidade». Cf. as indicações
supra, nn. 16 e 17.
124 Cf. art. 473.º/1. Assim tb. o § 812 BGB («auf dessen Kosten») ou o art. 6.212 NBW («ten koste van een ander»). A

expressão do Digesto era mais forte, «cum alterius detrimento» (D. 50. 17. 206).
125 Esta sugestão, clara na fórmula latina transcrita na n. anterior, gerou problemas na própria dogmática do enri-

quecimento sem causa, mas que devem ter-se por superados. Cf. MENEZES LEITÃO, O enriquecimento, cit., 865-77, e
J. GOMES, O conceito de enriquecimento, Univ. Católica, Porto, 1998, 392-407.

29
Nas atribuições modelares, as obrigações, o acontecimento atributivo é a realização da
prestação ou o resultado definidor da prestação, conforme os casos.126 Sendo a prestação uma
acção,127 haveria motivo para recorrer à ideia de produção intencional da satisfação. Quando releva
o resultado da prestação, sugerir-se-ia usar a noção de causalidade entre um acto do devedor e
esse resultado. Ora, intenção e causalidade são as ideias fulcrais da imputação a que se referem
as teorias da responsabilidade civil e penal. Para a teoria da atribuição jurídica, exige-se um con-
ceito com idêntica amplitude.128 A imputação a que nos referimos, claro, surge com um sentido
inverso ao da imputação nas responsabilidades. Não se trata agora de imputar um mal, como um
dano ou um perigo, mas de imputar um «bem», o acontecimento atributivo. E, apesar da centra-
lidade comum das ideias de intenção e de causa, a imputação determinada por uma atribuição
não segue os mesmos critérios da imputação para efeitos de responsabilidade.
Convém dar alguns exemplos da imputação a que se referem as atribuições, além dos
casos modelares em que o devedor de uma obrigação, pessoal e intencionalmente, causa ou tenta
causar o resultado definidor da prestação, conforme devido. Na verdade, o cumprimento de
uma obrigação, em regra, não tem de ser feito pelo devedor.129 Muitas vezes, este pede a outrem
que cumpra. Nesses casos, a imputação ainda segue um critério de causalidade, embora «causali-
dade psicológica». Pelo contrário, a obrigação não é cumprida, em princípio, se alguém causar o
resultado definidor da prestação independentemente da vontade do devedor. Nesses casos, não
há imputação.130 Contudo, sem passar por essa vontade, o simples facto de o terceiro declarar
que cumpre aquela obrigação ou que cumpre «pelo devedor» é em geral suficiente para a imputa-
ção.131 Pode inclusive admitir-se que esta declaração ocorra depois do cumprimento. Temos,
portanto, imputação por via de um acto de linguagem. Caberia ainda considerar uma imputação
decorrente da intenção do terceiro, revelada de alguma forma que não num acto de linguagem, ou
resultante da existência de uma (outra) obrigação que o terceiro tenha, perante o devedor, de reali-
zar o cumprimento.132
O cumprimento de uma obrigação poderá também ser fortuito — p. ex., através de uma
«transferência» electrónica de dinheiro da «conta» do devedor para a do credor devida a mau
funcionamento do computador do banco. Nesse caso, a imputação decorrerá da «deslocação
patrimonial». Pode sustentar-se em direito civil que essa transferência só valha perfeitamente

126 Sobre este conceito, cf. o nosso cit. estudo sobre obrigações de meios e de resultado.
127 Usamos a conceptologia comum, sem prejuízo do que dissemos supra, no texto das nn. 100 e 109.
128 E supomos que não se perde nada com a sugestão de um paralelo com a imputação responsabilizadora. Tópicos

como os de «causa remota», «causa adequada» ou «fim da norma» podem ser úteis, ainda que alguns deles — p. ex.,
o primeiro destes três — não estejam longe da vacuidade. Estas são questões substantivas de que não cabe tratar
aqui. Apresentar a imputação como análogo à causalidade nas leis físicas, como faz KELSEN, Teoria pura, cit., 89-96,
também sugere a ampliação do texto.
129 Cf. art. 767.º. Também tem interesse o art. 791.º.
130 Os casos de produção do resultado definidor sem imputação ao devedor, muito tratados na doutrina sob outras

designações, são casos de impossibilidade. Para a crítica de entendimentos opostos, cf. LURDES PEREIRA, Conceito,
11-215.
131 Apesar de o terceiro declarar que cumpre «aquela obrigação», sem referir o devedor, ainda há imputação ao

devedor, que é elemento conceptualmente necessário da obrigação.


132 A solução destes problemas substantivos é interdependente da solução de questões de enriquecimento sem

causa. Cf. os arts. 477.º e 478.º.

30
como cumprimento se o devedor assim declarar — novo caso de imputação por acto de lingua-
gem — ou se nada fizer durante algum tempo depois de tomar conhecimento da transferência,
caso em que a imputação decorreria de princípios jurídicos mais complexos.133 Aos casos de
«realização coactiva da prestação» já não se chama normalmente «cumprimento», mas os efeitos
são idênticos. Nestes casos, a prestação é realizada por terceiro às ordens do tribunal e à custa
do património do devedor. Trata-se ainda de produção do acontecimento satisfatório para o
credor, de modo imputável ao devedor, como consta da atribuição. Uma última hipótese com
interesse é a de o credor, contra a vontade do devedor e ilicitamente, subtrair as coisas que
deviam ser-lhe entregues. Neste caso, a imputação ao devedor operará por acto ou omissão seus
em que se conforme com a subtracção pelo credor, o que significa igualmente que aquele tem o
direito potestativo de imputar a si próprio a passagem das coisas a novas mãos, fazendo-a valer
como cumprimento.134

Um parêntese para clarificar que esta variedade dos modos de imputação ao devedor, esta varie-
dade dos modos do cumprimento, não impugna que distingamos entre obrigações de resultado e de
meios por ser objecto das primeiras a causação do resultado definidor e, das segundas, a tentativa dessa
causação.135 É certo que pode haver cumprimento de uma obrigação de resultado sem que o devedor
o cause, designadamente quando a imputação se dá por mero acto de linguagem de terceiro, mas, nas
mesmas situações, também pode haver cumprimento de uma obrigação de meios sem que o devedor
tente causá-lo, se um terceiro o fizer por si. Do mesmo modo, o terceiro pode imputar ao devedor a
sua própria causação ou tentativa, mas não a tentativa ou causação alheia ou fortuita. Em segundo
lugar, o acontecimento referido na atribuição obrigacional de resultado é este resultado e na atribuição
obrigacional de meios é a actividade do devedor, mas isso não impede que o objecto de dever seja em
ambas um comportamento do devedor. O que se retira dos cumprimentos sem acção do devedor é
que a obrigação não se reduz a um dever,136 mas isto não impede que implique um dever. Além disso,
apesar de a imputação necessária a que haja cumprimento poder ter muitos modos, o comportamento
intencional de causação, nas obrigações de resultado, e, nas de meios, o comportamento de tentativa
(por definição, intencional) são ainda os modos prototípicos de cumprimento, e estes protótipos pare-
cem indispensáveis à compreensão das figuras.
Quanto à questão geral, julgamos, pois, não haver motivo para afastar a ideia de que o «objecto da»
obrigação é uma prestação e de que a prestação é uma idealização de um comportamento do devedor.

Quando se determina a transmissão de um direito (ou outra situação jurídica), a descrição


a preencher é, em geral, a aquisição do direito pelo titular da atribuição.137 A aquisição é imputável
ao transmitente pela própria natureza da transmissão: o direito passa a estar na esfera jurídica do
transmissário porque estava na do transmitente. Este o modo mais simples de imputação, a que
não chocaria chamar «causalidade jurídica». Pode, no entanto, ocorrer o facto transmissivo — p.

133 Caso parecido com este seria o de a entrega de uma coisa específica vendida ser feita por um animal (p. ex., um
macaco) sem concurso da vontade do devedor. Nalguns destes casos, os civilistas já não falam de «cumprimento»,
mas há uma satisfação da obrigação com efeitos absolutamente idênticos. Cf. os exemplos seguintes do texto.
134 Perdendo, por outro lado, o direito a exigir a restituição das coisas. Quanto a uma eventual compensação, cf. art.

853.º/1, a).
135 Cf. o nosso cit. estudo a este respeito, em que também se expõe o conceito de «resultado definidor da prestação»

e já se sustentara que o «bem económico» tido em vista pelas partes é, num caso, o próprio resultado definidor e, no
outro, a actividade do devedor.
136 Cf. supra, no parágrafo das nn. 93 e 94.
137 São difíceis de imaginar casos verosímeis em que a atribuição descreva a totalidade da transmissão do atribuinte ao

titular, o que daria uma figura análoga às prestações infungíveis. A análise seguinte não serve para esses casos.

31
ex., um contrato — antes de o direito estar na esfera do transmitente. Se, ainda assim, a trans-
missão se der, há satisfação, porque se imputa a aquisição ao atribuinte nos mesmos termos.138
Mas pode a imputação resultar de causalidade verdadeira — salvo quanto a ser jurídico o efeito,
e não físico. Assim sucede quando, depois do facto transmissivo, o atribuinte pratique outro
acto que provoque a aquisição pelo titular, p. ex., um contrato a favor de terceiro.139
Pelo contrário, não há imputação ao atribuinte se um terceiro, sponte sua, gerar a aquisição
pelo titular (p. ex., com uma doação ou uma venda), não ocorrendo pois a satisfação. Mas já há
imputação e satisfação se o terceiro declarar que vem satisfazer a atribuição inicial, em termos
análogos ao que se viu para o cumprimento de obrigações, resultando a imputação de um acto
de linguagem.140 A imputação ao atribuinte ainda ocorre quando o titular adquire de imediato,
apesar de o atribuinte não ser titular do direito, devido a um conjunto de factos em que o con-
trato transmissivo desempenhe um papel importante. Pensamos nas limitações ao nemo plus iuris,
p. ex., as resultantes da eficácia do registo (cf. arts. 5.º e 17.º CRegP), da falta de notificação ao
devedor de um crédito cedido (cf. art. 584.º) e, nos países em que vigora, do «posse vale título».
É idêntico o caso em que haja uma «autorização»141 pelo titular do direito no sentido de o atri-
buinte celebrar o contrato transmissivo. Algo semelhante, embora já sem aquisição imediata,
ocorre no caso de uma acessão na posse que dê direito à usucapião pelo adquirente (cf. art.
1256.º). A imputação resulta, nestes casos, de princípios civis variados.142
O que se disse para a transmissão valerá para outras «aquisições derivadas», nomeada-
mente para a constituição de direitos menores determinada num contrato. Quando a atribuição
tem em vista a constituição de uma obrigação ou a possibilidade de constituição de uma obriga-
ção, a imputação pode consistir apenas em o atribuinte ser o titular passivo da obrigação. O

138 Claro que pode haver uma perturbação relevante por passar algum tempo entre o facto transmissivo e a trans-
missão, mas também pode não haver. Em qualquer caso, a atribuição dir-se-ia perturbada por visar a transmissão
imediata, aspecto que estamos a desconsiderar. Na lei portuguesa, como noutras, a compreensão dos casos de trans-
missão do que se não tem é prejudicada pelos arts. 892.º ss. (cf. tb. 956.º), que começam por declarar «nulas» as
vendas de bens alheios, em certos casos. Positivo é que o art. 467.º/2.º CCom segue a solução contrária e que o
próprio Código Civil leva pouco a sério o art. 892.º, com a «convalidação do contrato» dos arts. 895.º s. e com a
«obrigação de convalidação» do art. 897.º. No texto, pretendemos apenas clarificar o conceito de imputação, e não
discutir as efectivas soluções à luz da lei portuguesa. O leitor apegado ao direito vigente deve considerar apenas
casos regulados pelo Código Comercial ou que, por outra razão, escapem a estas disposições civis.
139 Cf. art. 443.º/2. Escolhemos este exemplo por dispensar um acto do titular (cf. art. 444.º/1). Além disso, se o

atribuinte pedir a terceiro que transmita o direito ao titular, não é claro o modo de fazê-lo no direito português, por
não serem considerados actos transmissivos «abstractos». Uma transmissão por doação geraria outras perturbações,
porque os actos gratuitos são causae minores de aquisição (cf., p. ex., arts. 289.º/2 e 481.º), tornando de alguma sorte
defeituoso o direito adquirido. Ignoramos estas dificuldades nos exemplos seguintes do texto.
140 Será necessário que o transmissário consinta na imputação, dado que intervém como parte na doação ou venda.
141 A «autorização» é um dos modos de conferir a «legitimidade» exigida pelo art. 892.º CC. Ocorre, p. ex., quando

alguém manda um empregado vender (em nome próprio) coisas móveis numa feira, caso em que há aquisição ime-
diata da propriedade pelo comprador. A autorização é completamente diferente de uma procuração (cf. arts. 258.º e
262.º), além de que, por motivos variadíssimos, não pode dizer-se que o empregado se tenha tornado proprietário
das coisas pelo tempo da sua tarefa (p. ex., para uma boa aplicação do art. 601.º). Sobre a figura, cf. PESSOA JORGE,
O mandato sem representação, Almedina, 2001 (1961), 387-404, ou P. ALBUQUERQUE, A representação voluntária em direito
civil, Almedina, 2004, 582-6, em nota. No BGB, há disposição específica (cf. § 185).
142 A título de curiosidade dogmática, note-se que estas soluções, se válidas no direito português, aproximam o

regime dos arts. 892.º e ss. de uma «responsabilidade por evicção» como a do direito romano. Cf., p. ex., SANTOS
JUSTO, Direito privado romano, vol. II, Coimbra Ed., 2003, 55-7.

32
mesmo se dirá da constituição ou possibilidade de constituição de um par direito potestativo/
sujeição, ficando sujeito o atribuinte. Falhará, todavia, a imputação quando a obrigação ou o
direito potestativo existam independentemente do facto atributivo.143 Quando a atribuição seja o
próprio par direito potestativo/sujeição, a satisfação para o titular decorre do efeito jurídico a
produzir, que será imputado ao atribuinte, pelo menos, quando a declaração com que se exerce
o direito potestativo seja necessária ao efeito jurídico pretendido e deva ser exercida perante a
pessoa indicada no facto atributivo. No número seguinte, indicaremos o modo e o sentido da
imputação noutros exemplos de atribuições.
São, portanto, variadíssimos os modos da imputação.144 Tal como quanto à satisfação,145
não pode pensar-se em reduzir o conceito senão através de uma «dogmática completa» de direito
civil. Capta-se, todavia, o conceito de imputação através dos casos prototípicos de causação
pessoal e intencional pelo atribuinte e de transmissão de direitos do atribuinte ao titular. Para
além disso, os problemas são substantivos, resolvem-se à luz dos fundamentos aceitáveis em
cada sistema jurídico, no pressuposto de que não há satisfação sem imputação ao atribuinte.

6. Estruturas das atribuições

Uma norma de atribuição qualifica como satisfatório perante o titular o acontecimento


que preencha certa descrição sendo imputável ao atribuinte. Isto é uma definição de atribuição,
mas é também um modelo de representação das atribuições que dê informação suficiente para a
maioria dos problemas de satisfação e não satisfação. Contudo, o conceito de atribuição tem
maior generalidade do que conceitos como o de obrigação ou o de transmissão. Por isso, não
visa substituí-los. Quanto à obrigação, em especial, há dois motivos para a atribuição não visar
substituí-la. Por um lado, a obrigação é a figura paradigmática e com referências assentes na
história e nas fontes do direito. Compreender os problemas das atribuições passa por compreen-
der primeiro os problemas das obrigações e o conceito de obrigação, com a sua delimitação
exacta. Por outro lado, as atribuições são, efectivamente, diferentes umas das outras. A acção de

143 No direito português vigente, esses casos talvez devessem ser qualificados como de «impossibilidade originária
do objecto», dando aplicabilidade ao art. 280.º, já algo anacrónico na parte sobre impossibilidade (cf. supra, n. 6).
144 Num escrito famoso, On Brute Facts, na Analysis, 18/3, 1958, 69-72, G. E. M. ANSCOMBE dá como exemplo de

facto institucional o cumprimento de uma obrigação (de entregar batatas). Para demonstrar a impossibilidade de
reduzir um facto institucional a factos em bruto, a autora não apresenta variações quanto ao que chamamos
imputação, mas quanto ao próprio acontecimento descrito na atribuição, no caso, quanto à prestação. Sobre aquela
impossibilidade de redução, a autora diz ainda, no Modern Moral Philosophy, de 1958, (em CRISP/SLOTE (org.), Virtue
Ethics, Oxford Univ., 1997), p. 29, que «exceptional circumstances can always make a difference» e nenhuma
«ressalva teórica» pode ser feita para circunstâncias excepcionais, até porque pode um novo contexto excepcional
«reinterpretar o anterior». Já não cabe pronunciarmo-nos aqui sobre o problema da redução dos conceitos norma-
tivos (ou «institucionais»).
145 Cf. supra, no texto posterior à n. 82.

33
cumprimento e a excepção de não cumprimento, p. ex., só valem para as obrigações. Logo,
mesmo numa dogmática acabada e «perfeitamente racional», o conceito de obrigação manter-se-
-ia indispensável. Outro conceito que a atribuição não visa eliminar é o de dever. Na responsa-
bilidade civil subjectiva, sobretudo, os conceitos de dever e de culpa desempenham papéis que o
de atribuição não pode ocupar.
Por a atribuição ser um conceito mais geral, perde-se forçosamente informação quando se
representa uma atribuição apenas como tal, e não como a obrigação, transmissão, etc. em que no
caso consista. Temos, porém, um sinal de que isso não é grave na referida «oscilação» entre
obrigações e atribuições não obrigacionais.146 O direito civil, para alguns problemas, leva a supor
que é indiferente haver uma obrigação ou uma atribuição produzida «por mero efeito do
contrato». Na linguagem das situações jurídicas, o direito impõe inclusive, nalguns casos, que
oscilemos entre falar de uma obrigação ou de um «efeito automático» do contrato. Dizendo
melhor, a representação com o esquema proposto para as atribuições não nos informa sobre se no
caso temos uma norma que obrigue, centrada num dever, ou uma norma de outro tipo. Sabemos
que há uma obrigação sempre que a satisfação se faça com um acontecimento físico possível e
posterior à fonte, e que não há uma obrigação se o acontecimento for impossível ou anterior à
fonte. Quando, porém, se trate de um efeito jurídico, um não-efeito jurídico, uma possibilidade
de efeitos jurídicos ou um efeito normativo não jurídico possível e posterior ao contrato ou
outra fonte, o esquema da atribuição não nos diz se há aqui ou não uma obrigação. É assim
porque o conceito de «imputação» que usamos não especifica se esta exigirá um processo causal
que se espera iniciado, depois de produzida a fonte, num comportamento do devedor, o que é
próprio das obrigações, ou se, pelo contrário, se dará em termos «estritamente jurídicos», «por
efeito do contrato», o que sucede nos restantes casos.
Dada a referida «oscilação», isto não será muito importante. Assim se compreende, que a
CCVI tenha podido ignorar o problema do modo de transmissão da propriedade (cf. art. 4/b)).
Nalguns países, como Portugal, a propriedade transmite-se pelo contrato; na maioria dos orde-
namentos, pelo contrário, conserva-se o sistema romano da necessidade de um acto material ou
de um acto jurídico distinto do contrato para a transmissão. O nosso esquema de representação
das atribuições não permite distinguir entre um caso e o outro.147 Na verdade, o problema do
modo de transmitir a propriedade e de saber se ela se transmitiu ou não, por ocasião de um dado
contrato, não cabe ao direito do cumprimento e do não cumprimento, mas sim aos direitos
reais. Encontrada aqui uma resposta, aferem-se depois as consequências da satisfação ou não
satisfação, temporária ou definitiva. Para isto já é suficiente o esquema da atribuição, acrescido
de uma aferição de deveres em tema de culpa, quando ela releve.

146 Supra, no parágrafo das nn. 95 a 99.


147 O que pareceria grave para os casos de contrato-promessa «bilateral», mas, na verdade, tem o beneplácito do
«princípio da equiparação» (art. 410.º/1). Além disso, e como é óbvio, a obrigação de contratar uma compra e
venda, p. ex., é normalmente distinta da obrigação de transmitir a propriedade, própria de sistemas como o romano,
pelo simples facto de obrigar a produzir um conjunto maior de efeitos jurídicos (cf. supra, n. 99). Passa-se o mesmo
nos casos de contrato-promessa «unilateral» não remunerado. Na promessa «unilateral» remunerada, é distinta a
atribuição a considerar para os problemas do sinalagma. Cf. o nosso cit. estudo sobre o sinalagma, n. 31.

34
No esquema proposto da atribuição, torna-se igualmente irrelevante a diferença entre uma
obrigação proprio sensu e uma «obrigação de conformidade». Em ambos os casos, dá-se a satisfa-
ção quando se produz o acontecimento desejado para o credor, para o credor e adquirente ou
para o puro adquirente, de modo imputável ao atribuinte. No esquema da atribuição, não se tem
em conta se foi ou não um comportamento do atribuinte ou de terceiro que causou o aconteci-
mento ou se era sequer possível que um comportamento do atribuinte o impedisse. Pelo
reverso, não há satisfação se o acontecimento atributivo não se produziu de modo imputável à
outra parte, mesmo que não fosse possível produzi-lo desde o início.148
Podemos ainda representar sem dificuldade as atribuições do gozo temporário de coisas.
Nos casos de coisa específica, próprias da locação e do comodato, o acontecimento atributivo é
a disponibilidade da coisa, com certas qualidades, durante certo período. A imputação ao atri-
buinte pode passar pela sua condição de proprietário ou titular de direito afim, mas pode resultar
também apenas de ter sido ele quem entregou a coisa ao titular.149 No caso do mútuo, que versa
sobre coisas fungíveis, a atribuição principal descreve como acontecimento satisfatório a não
restituição do capital recebido durante um certo período.150 Em todos estes casos, as obrigações
de entrega inicial da coisa específica ou do capital, bem como a respectiva restituição, são instru-
mentais da outra atribuição, com vastos reflexos de regime.151 Para o esquema da atribuição,
identificamos como acontecimento satisfatório a disponibilidade ou a não restituição durante
certo período, conforme os casos. Na linguagem das situações jurídicas, e já com a flexibilização
antes sugerida,152 tínhamos de referir-nos apenas à delimitação temporal da obrigação de resti-
tuir, i.e., à sua não existência durante um certo período, junta ao direito de gozo no primeiro
caso. Aqui, a linguagem da atribuição parece permitir um aprofundamento.
O caso das atribuições satisfeitas por efeitos normativos não jurídicos também fica escla-
recido com o nosso esquema. «Satisfação» é um conceito jurídico. O acontecimento atributivo
pode ter qualquer natureza, seja ela jurídica, física ou institucional não jurídica. Não tem impor-
tância que ele ocorra causado por um comportamento do devedor ou por efeito do contrato,
ainda que devido a uma instituição distinta do direito. Este modo de ver serve ainda para as
atribuições «de» direito probatório, resultantes, nos exemplos iniciais, de uma confissão ou de
uma convenção sobre o ónus da prova. Na verdade, as atribuições são ainda e sempre do direito

148 Sem prejuízo de nalguns sistemas — como o português para a maior parte dos casos — a impossibilidade
originária invalidar o contrato atributivo, de modo que não haverá atribuição e o problema da não satisfação não
chega a pôr-se (cf. supra, n. 6).
149 A falta de legitimidade do atribuinte pode ser uma diminuição da satisfação do titular, atendida nos arts. 1034.º e

1134.º.
150 É a simples não restituição, em vez da disponibilidade, porque o mutuário tem apenas de restituir coisas do

mesmo género em igual quantidade (cf. art. 1042.º), nos termos gerais das obrigações genéricas (cf. art. 540.º),
sendo irrelevante o que suceda às que inicialmente recebeu e, portanto, que as tenha disponíveis ou não. Não assim
na locação (cf., v.g., art. 1051.º/e), sem prejuízo das dificuldades interpretativas do «por qualquer causa» no art.
1045.º; cf. M.ª LURDES PEREIRA, Conceito, cit., 99-109).
151 Cf. os nossos cit. estudos sobre o sinalagma, al. b), e sobre transferência do risco e obrigações de reddere, al. c).

São instrumentais, mas continuam a ser atribuições, mesmo quando os contratos forem reais quoad constitutionem.
Tratando-se, porém, de atribuições instrumentais, as consequências da respectiva não satisfação aferem-se em
princípio pelas repercussões nas atribuições principais.
152 Supra, no texto e na n. 41.

35
da satisfação e da não satisfação; os acontecimentos que levam à satisfação é que dizem respeito
ao direito probatório: a prova de certa proposição relevante num caso, a chamada «inversão» do
ónus da prova no outro. Quanto a eles, não compete dizer nada aqui.

O nosso esquema exprime as diferenças entre uma obrigação (de facto não jurídico), um
efeito jurídico, um não-efeito, a possibilidade de um efeito, um «efeito sobre um efeito», etc.
Considere-se a obrigação de entregar uma azeitona, entre o devedor António e o credor Bento.
A atribuição qualifica como satisfatório para Bento que, de modo imputável a António, aconteça
ser entregue ao primeiro uma azeitona, e como não satisfatório o contrário. A bem da concisão
e de algum sossego sintáctico e semântico, introduzamos abreviaturas e parênteses.

Antes de prosseguirmos, um aviso. As fórmulas usadas a seguir são simplesmente abreviaturas


destinadas a tornar concisa, menos ambígua e «mais visual» a expressão das diferentes atribuições.
Não pretendemos que este modo de representação se enquadre numa linguagem formal utilizável em
inferências que dispensem interpretação, ou seja, não pretendemos contribuir para uma lógica. Quere-
mos apenas um sistema de abreviaturas com a função normal das abreviaturas: abreviar, facilitando a
escrita e a leitura. A única relação entre as nossas fórmulas e a lógica será que a leitura daquelas deve
ser mais fácil e imediata para quem tenha conhecimentos mínimos dos modos de escrever comuns na
lógica ou na semântica.153

Abreviemos, então, o esquema da atribuição obrigacional entre António e Bento relativa à


entrega de uma azeitona. Os nomes das pessoas são substituídos por iniciais em minúsculas, «z»
abrevia a frase completa «É entregue uma azeitona.», «S» abrevia «É satisfatório para ... que ...»,
«I» abrevia «É imputável a .... que...»,154 «&» é um sinal de conjunção. Obtém-se a seguinte fór-
mula: S b (z & I a z). Ainda para maior concisão, suprimamos o primeiro «z» e a conjunção,
deixando-os «implícitos» na própria oração «I a z».155 Chegamos a uma fórmula curta:
S b (I a z)
Esta abreviatura do esquema da atribuição obrigacional poderia ser melhorada. Os civilis-
tas distinguem entre o crédito, do credor por definição, e o facto contingente de a prestação
dever ser realizada «ao» credor (cf. art. 770.º), havendo casos em que não se presta «a» nin-
guém.156 Demos atenção apenas à situação jurídica do credor, ignorando que a entrega deva ser

153 E não procuramos nenhum rigor senão a fidelidade ao esquema das atribuições que apresentámos por extenso.
Por exemplo, temos dito que «satisfatório» qualifica um acontecimento. O «S» que usamos a seguir, porém, não é, na
terminologia corrente, um predicado (que deva ser junto a um nome ou a uma variável nominal, «como qualifica-
tivo»), nem um operador (que transforme frases). «S» e «I» são termos que, como os predicados, se juntam a nomes
(no primeiro caso, «b» e «a»), mas simultaneamente a frases, como os operadores (no caso, «z» e «z & I a z»). Dada a
nossa limitada intenção, também não nos preocupam os paradoxos das lógicas deônticas, a que este «S» certamente
daria lugar, nem os paradoxos das «fisgas» («slingshots»), resultantes de falarmos de «factos» e de alguns termos se
juntarem a frases para fazer frases mais complexas.
154 Em bom português, ficaria «seja imputável a ... que....», por se seguir a «É satisfatório que...». Uma das vantagens

do esquema conciso é dispensar variações morfossintácticas como essa.


155 Ou seja, a sequência «I x p» passa a querer dizer «p & I x p». Todas estas liberdades são admissíveis, inclusive

porque não desejamos mais do que um sistema de abreviaturas.


156 P. ex., se A se obrigar perante B a matar ou a tentar matar certo crocodilo agressivo que anda à solta nas suas

terras. Ninguém recebe esta prestação, o crocodilo é que receberá um tiro satisfatório... Por isto mesmo, a matéria

36
feita a alguém. O «b», depois de «é satisfatório para», designa o titular. Também poderíamos
criar um lugar autónomo para indicar o tempo a partir do qual vigora a atribuição. Pelo contrá-
rio, o tempo da prestação teria de ser mostrado através da decomposição de «z». Tudo isso se
omite por simplicidade. Poderíamos, por fim, usar uma seta a apontar para cima antes do «S»,
evocando uma direcção de ajustamento do mundo à palavra, para exprimir que representamos
uma norma, e não uma asserção ou uma proposição. Neste artigo, todavia, desconsideramos
essa diferença.157
Cabe esclarecer que a fórmula «S b (I a z)» não abrevia propriamente apenas o esquema da
obrigação do exemplo. Se «a» e «b» não designarem apenas António e Bento, mas forem inter-
pretadas como variáveis que possam designar quaisquer duas pessoas, e se «z » não representar
apenas a entrega da azeitona, mas for em vez disso uma variável para toda e qualquer descrição
de um acontecimento satisfatório, «S b (I a z)» é evidentemente a abreviatura geral de todas as
atribuições. E a descrição do acontecimento atributivo — neste momento, «z » — pode incluir
outras atribuições ou quaisquer outras frases, de modo que o nosso esquema de abreviaturas
permite representar de forma sintética e inequívoca as atribuições mais complexas.
Voltando ao caso inicial, mas já com consciência da admissibilidade destas complicações,
representemos agora a atribuição que consista na transmissão do crédito de Bento ou na obriga-
ção de transmiti-lo,158 sendo Carlos o titular e Bento o atribuinte:
S c {I b [S c (I a z)]}
Por extenso: é satisfatório para Carlos que seja satisfatório para Carlos que seja entregue
uma azeitona e que a entrega da azeitona seja imputável a António, e que o facto de este aspecto
ser satisfatório para Carlos seja imputável a Bento. Por extenso, infelizmente, não há lugar a
parênteses. É mais clara a abreviatura do que a forma extensa.
A intenção de tudo isto é mostrar a unidade das várias atribuições. No caso da transmis-
são de um crédito,159 a nova atribuição inclui a norma inicial (válida) como acontecimento cuja
ocorrência tem de ser imputável ao transmitente para que haja satisfação. A norma inicial, é
claro, terá um novo titular — é essa a ideia de uma transmissão —, de modo que o «b» original
foi substituído pelo «c», que é também o titular da atribuição transmissiva. Supomos que, deste
modo, com o acrescento de alguns símbolos inequívocos, podem ser descritas as atribuições
mais refractárias à linguagem comum das situações jurídicas e dos efeitos jurídicos. Comecemos
com o exemplo da extinção da obrigação inicial (a da azeitona) como atribuição do credor a um

da «legitimidade passiva» para o cumprimento tem um âmbito mais restrito do que a do cumprimento (P. MÚRIAS,
Programa, cit., 880), ao contrário do que dão a entender o art. 769.º ou o § 362 BGB. Cf. tb. supra, n. 112.
157 Cf. supra, n. 74. As setas a apontar para cima, para baixo ou em ambas as direcções são usadas por SEARLE,

Expression, cit., 12-20, e por SEARLE/VANDERVEKEN, Foundations of illocutionary logic, Cambridge Univ., 1989 (1985),
92-8. Os autores, porém, tomam a direcção de ajustamento num sentido estrito que não caracteriza todas as
normas. O nosso «S» seria categorizado pelos autores como uma force (cf. ambos os lugares citados).
158 Recorde-se a oscilação ou indiferença entre obrigações e algumas atribuições não obrigacionais (supra, no texto

das nn. 146 e 147).


159 Ou de uma obrigação de transmitir um crédito.

37
terceiro,160 com o til a significar negação, i.e., a inexistência da atribuição. A inexistência da atri-
buição, ou seja, a não validade da norma de atribuição, que representamos com um «~» antes do
«S», não pode evidentemente confundir-se com a qualificação como não satisfatória da não
ocorrência imputável do acontecimento descrito, comum a todas as atribuições.161
S c {I b [~(S b (I a z))]}
Evidentemente, a atribuição negada mantém «b» como titular.
Outro exemplo: a transmissão de uma dívida ou, nas palavras da lei, uma assunção de
dívida, que é por regra uma atribuição do transmissário ao transmitente. Pressupondo a obriga-
ção inicial entre António e Bento, temos:
S a {I c [S b (I c z)]}
Esta fórmula é algo incompleta por não nos esclarecer sobre a necessidade ou não de
exoneração do devedor original.162 Resolver-se-ia a incompletude com o acrescento ou não, con-
forme o caso, de «& [~(S b (I a z))]» depois do primeiro fecho de parênteses rectos.
Terceiro exemplo: a atribuição «de uma possibilidade», representada por um losango («◊»).
No caso, a possibilidade de uma obrigação. Tentamos mostrar que, quando dizemos que se
«atribui uma possibilidade», apenas se afirma a vigência de uma norma que pode ser expressa
por uma frase composta em que a subordinada é uma oração modal.163 Intervêm apenas duas
pessoas:
S b {I a [◊ (S b (I a z))]}
Especificamente, a chamada «cobertura», no contrato de seguro, é atribuição de «uma
possibilidade». Aí, dá-se como possível o sinistro, e a obrigação da seguradora surge com a sua
verificação. Usando a expressão «sob-condição-de» e representando a afirmação do sinistro com
um «s» em itálico, poderia ficar qualquer coisa como isto:164
S b {◊ s & [I a [(S b (I a z)) sob-condição-de s]]}
Como se disse já, a imputação à seguradora da vigência da obrigação condicional parece
resultar directamente de a seguradora ser a devedora dessa obrigação, ou seja, de a satisfação da
atribuição condicional depender da imputação à seguradora do pagamento.

160 Cf. art. 443.º/2. Não é líquido se a atribuição é ao «promissário» e ao devedor original ou só ao devedor original,
não o resolvendo o art. 444.º (a questão é discutida desenvolvidamente na segunda parte do cit. estudo de M. LIMA
REGO sobre seguro e direitos de terceiros).
161 Cf. supra, no n.º 4/β, em que definimos atribuição. Para diminuir a hipótese de confusão, entre o til e o «S»

abrimos sempre um parêntese.


162 Cf. art. 595.º/1 e 2.
163 Ou seja, uma oração com o sentido de «ser possível», «ser necessário», etc. «Verbos modais» são «dever»,

«poder», etc.
164 É difícil escolher aqui a formulação certa. A possibilidade do sinistro («o risco») não é, evidentemente, imputável

à seguradora. Usámos a expressão «sob-condição-de» para manter a segurança das línguas naturais no que respeita a
termos condicionais.

38
No par direito potestativo/sujeição, parece que o acontecimento atributivo é ainda uma
possibilidade, a possibilidade de produzir certos efeitos com um acto de linguagem do titular. A
especialidade deste caso estará, pois, nas características do facto condicionante. Nada que não
caiba no nosso esquema da atribuição, mas o sistema de abreviaturas não beneficia a exposição.
Não devem confundir-se estas últimas hipóteses com normas que não são em si mesmas
atribuições. P. ex., talvez possa abreviar-se do seguinte modo a norma de obrigação condicional,
ou seja, não a própria obrigação, que depende da condição, mas a unidade de sentido da
obrigação sob condição:
[S b (I a z)] sob-condição-de c
A norma que exprime uma atribuição condicionada não é uma atribuição, porque a satisfa-
ção não depende de concretizar-se todo o seu conteúdo. O mesmo poderia dizer-se da norma
que atribui «capacidade de gozo» específica para certo tipo de obrigação ou «legitimidade» para
ser titular de certa obrigação.165 Aqui, a possibilidade não é um elemento da satisfação. A atribui-
ção é que é apenas possível:
◊ (S b (I a z))
Voltando às atribuições, vemos que o caso estrambótico da «transmissão da transmissão»
corresponde a uma norma que se exprime facilmente, embora com mais letras:
S d {I c {S d [I b (S d (I a z))]}}
E é muito distinto de uma simples retransmissão:166
S d {I c [S d (I a z)]}
O adiamento da entrada em vigor de uma atribuição só pode ser expresso abreviadamente
introduzindo no sistema uma indicação de tempo, como considerámos no início. A fórmula
seguinte deve ser interpretável sem mais explicações, pressupondo a fórmula inicial da obrigação
de entregar uma azeitona. A norma, afinal, é muito simples:
S a {I b [(S b (I a z)) não-antes-de-1-de-Fevereiro]}
Os casos de cessão da posição contratual também exigiriam novos símbolos, que quantifi-
cassem atribuições — i.e., para o caso, símbolos equivalentes ao termo português «todas» —
relacionando-as com o contrato em que se fundam. Na verdade, surgiriam aí grandes complica-
ções de escrita, sem proveito para a ideia geral que tentamos expor. O mesmo se diria, supomos,
dos casos de contrato de transacção, sendo certo que não se trata aqui de uma transmissão, mas
sim da «extinção» e «modificação» de créditos e outras situações jurídicas, existissem elas ou não,
por vezes ainda com a constituição explícita de situações novas. O problema maior para a abre-

A frase abreviada escrita de seguida é ambígua, daí as duas hipóteses.


165

Parte-se da fórmula dada acima para a transmissão: S c {I b [S c (I a z)]}. Supra, n. 43, argumentou-se dogmatica-
166

mente, embora com grande brevidade, em favor da diferença entre retransmissão e «transmissão da transmissão».

39
viação estaria, tal como na cessão da posição contratual, em arranjar maneira de identificar o
conjunto das possíveis situações jurídicas em vista, de modo a «encerrar o litígio».
Há evidentemente um número indefinido de atribuições que se distinguem apenas pelo
bem imputável ao atribuinte, ou seja, neste sistema de abreviaturas, por aquilo que «z » repre-
senta. Referimo-nos a esta variedade antes de introduzirmos as abreviaturas. Por exemplo, a
atribuição de locador a locatário exprime-se ainda como «S b (I a z)», representando «z » que b
tem ao seu dispor a coisa, com certas qualidades, durante certo período. Só há satisfação se
assim acontecer. Já se trataria de um contrato completamente diferente se «z » designasse a
própria aquisição de um direito temporário.167 Aqui, para a satisfação basta a efectiva aquisição.
Este direito pode, é claro, ser elemento de outra atribuição, caso em que «z » se analisa como
«S b (I w x)», sendo w outra pessoa e x outro acontecimento. Mas o direito adquirido pode não
ser elemento de uma atribuição. Assim acontecerá, p. ex., com a aquisição de direitos absolutos.
Olhemos também à esquecida atribuição de constituição de uma obrigação,168 entre os
próprios credor e devedor. A representação abreviada é fácil:
S b {I a [S b (I a z)]}
Contudo, a própria abreviatura sugere uma redundância. Se admitirmos que se fundam no
mesmo contrato atributivo, não só a obrigação (S b (I a z)), mas também a constituição da obri-
gação (S b {I a [S b (I a z)]}), então não deveríamos parar aí, admitindo a «constituição da cons-
tituição da obrigação» (S b {I a [S b {I a [S b (I a z)]}]}) e assim por diante. É duvidoso que haja
alguma utilidade a retirar daqui. A figura da constituição da obrigação é exigida por uma lingua-
gem de situações jurídicas e efeitos jurídicos, mas parece dispensável na linguagem da atribuição.
O seu comum esquecimento terá provavelmente justificação.

Deixámos para o fim algumas questões que as obrigações de non facere ou de facto negativo
suscitam.169 Impõe-se começar por um cuidado terminológico e, pelo sim e pelo não, abandonar
as expressões tradicionais. Uma coisa são as obrigações de resultado negativo ou obrigações de impedi-
mento, em que o devedor é obrigado a impedir certo resultado. Por outras palavras, é obrigado a
causar que certo resultado não se verifique ou, ainda, é obrigado a causar um resultado negativo.
Com a expressão «é obrigado a causar», pretendemos apenas aludir à estrutura geral das obriga-
ções de resultado, sem prejuízo das regras do cumprimento por terceiro, rectius, da questão geral
da imputação ao atribuinte. Assim, p. ex., temos uma obrigação de impedimento se alguém se

167 Sugerimos supra, na n. 26, que assim acontece num contrato constitutivo de um usufruto.
168 Cf. supra, nos parágrafos das nn. 45 e 65.
169 Os «factos negativos» suscitam dúvidas, desde logo, quanto à sua ontologia. Há factos negativos? Ou a negação é

apenas um juízo ou uma proposição? A discussão filosófica a este respeito é infindável. Em português, os seus
aspectos fundamentais são tratados num estudo inédito de J. SOUSA E BRITO, Estudos para a Dogmática do Crime
Omissivo, FDL, Lisboa, 1965, que conclui favoravelmente à existência dos factos negativos. Em direito, além das
matérias da responsabilidade civil e penal por omissão e do problema a que nos referimos no texto, o tema da
negação interessa esp.te, como se sabe, ao ónus da prova (cf. P. MÚRIAS, Distribuição, cit., v.g. 140-3). Tenha-se em
conta que os factos positivos também suscitam cepticismo na ontologia, sobretudo na sua contraposição aos aconteci-
mentos. No texto adoptamos uma ontologia generosa (ou despreocupada).

40
obrigar a fazer com que170 não haja pessoas ou animais num certo espaço. Diferentes são as obri-
gações negativas ou obrigações de abstenção.171 Aqui, o devedor obriga-se a não causar certo resul-
tado.172 Hipótese clara será uma obrigação de confidencialidade, mas os exemplos são infindos.173
No esquema de abreviaturas que temos usado, as obrigações de impedimento são aquelas em que
«z» representa um facto negativo. As obrigações negativas geram mais dúvidas. Dúvidas, aliás,
que poderiam estender-se a outras atribuições negativas, que vamos ignorar por simplicidade.
Convém frisar que a diferença entre obrigações de impedimento e obrigações negativas
não se refere a actos concretos de cumprimento, mas apenas ao conteúdo da obrigação em si
mesma considerada, à prestação, ou melhor, ao cumprimento no seu todo, à estrutura atributiva
que temos vindo a analisar neste número. Por exemplo, se estou obrigado a impedir que entrem
pessoas em certo espaço, não só devo agarrar quem de outro modo entraria, também devo não
abrir as portas a quem queira entrar. A obrigação é sempre a mesma, de impedimento, mas os
actos de cumprimento podem merecer descrições positivas ou negativas. Do mesmo modo, se
estou obrigado a não revelar certo segredo a terceiros, devo não só não enviar uma carta com esse
segredo, mas também impedir que chegue ao seu destino a carta que por lapso enviei. Em qual-
quer caso, a obrigação é negativa, pois a obrigação só é compreensível na totalidade do seu con-
teúdo atributivo, e não nos deveres concretos que possa gerar. Nas obrigações de impedimento,
uma pessoa obriga-se a causar não-x; nas obrigações negativas, o devedor tem de não causar x.174
Trata-se em ambos os casos de obrigações de resultado.
Para as obrigações de impedimento, suponha-se que António se obriga a não ter os seus
cães no jardim durante a tarde de certo dia. Aqui, há um resultado negativo que António se
obriga a causar, o resultado de não estarem os cães no jardim naquele período. Suscitam-se dúvi-
das, no entanto, quanto ao critério de imputação do acontecimento ao devedor, no sentido que
temos vindo a usar. Há cumprimento quando António tenta levar os seus cães para o jardim,
sabendo que ia violar a obrigação, não o conseguindo por eles fugirem? Parece que sim, che-
gando para a imputação o facto de lhe pertencerem o jardim e os cães. Mas haverá cumprimento
se António estiver obrigado a fazer com que não haja cães alguns em certo espaço de que não é
dono, não tentando nada para o efeito e chegando-se ao resultado pretendido por mero acaso?
E quid juris se António morrer antes do momento em que devia cumprir, ocorrendo apesar disso
o acontecimento atributivo?

170 Prefere-se a forma popular «fazer com que» à pureza (?) de «fazer que», a bem da legibilidade.
171 As obrigações de non facere são, na definição comum, estas obrigações negativas, mas devem gerar-se dúvidas
perante alguns preceitos legais (cf., infra, a n. 173) e em resultado da distinção entre a obrigação e os seus actos de
cumprimento, a que nos referimos já a seguir.
172 Claro que podem pensar-se obrigações negativas de resultado negativo, em que o devedor está obrigado a não

causar que não aconteça qualquer coisa, i.e., a não impedir certo resultado.
173 P. ex., a obrigação de não erigir certa obra, a que se refere o art. 829.º, ou a de não demolir uma outra (cf. supra,

n. 107). Mas estes exemplos geram dúvidas. Designadamente, o disposto no art. 829.º parece valer igualmente
quando o devedor se obrigou a impedir que certa obra fosse erigida. Note-se que, além da excepção do n.º 2, tam-
bém não há lugar à demolição, v.g., na simples circunstância de a obra pertencer a um terceiro...
174 Esta é a diferença entre «negação externa» e «negação interna», que serve para muitos predicados ou operadores,

não só para o verbo «causar». Na lógica aristotélica, a distinção fazia-se entre «negação forte» e «fraca» (cf. J. SOUSA
E BRITO, Estudos, cit., 116-126, embora referindo-se só às cópulas).

41
A questão, de importância mais evidente nas relações sinalagmáticas,175 é discutível e vari-
ará conforme os sistemas jurídicos. As semelhanças com os casos de obtenção do resultado defi-
nidor da prestação sem contributo do devedor176 sugerem que não há aqui cumprimento, mas a
intuição aponta em sentido contrário, pelo menos em parte dos casos. Não haveria dificuldades
com obrigações de meios. António podia ter-se obrigado — seria até um caso menos rebuscado
— a «tomar as medidas adequadas» para não haver cães naquele jardim naquela tarde. Nesse
caso, não o tentando António, não há cumprimento algum. Para os outros casos, com a obri-
gação de resultado, deve ter-se em conta que os problemas de causalidade relativamente a factos
negativos geram perplexidades em todas as áreas do direito.177 Porventura, a intuição de que há
aí cumprimento resulta de um critério de imputação específico dos factos negativos, mas sem
pôr em causa o nosso esquema.
As obrigações negativas geram outras dificuldades. Dissemos que, a respeito de duas
pessoas, uma atribuição é a norma válida que qualifica como satisfatório para uma delas o acon-
tecimento com certa descrição e imputável à outra. Abreviadamente, lendo as minúsculas como
variáveis, S b (I a z). O caso paradigmático de imputação, quanto a acontecimentos físicos, é a
causação pessoal intencional. Ora, daqui se sugere que, nas obrigações negativas, em que o
devedor está obrigado a não causar certo resultado, satisfatória é a não ocorrência de um aconteci-
mento que preencha a descrição atributiva e seja imputável ao devedor. A abreviatura correcta
das obrigações negativas parece ser «S b ~(I a z)», merecendo o til um sublinhado. As obriga-
ções negativas aparentam ser radicalmente diferentes das restantes atribuições.178
Na verdade, as obrigações negativas seguem o esquema geral. Passa-se é que elas são obri-
gações de prestação infungível, ou seja, nelas, a própria descrição do acontecimento atributivo
— que tem sempre de ser imputável ao atribuinte para que haja satisfação — inclui uma referên-
cia ao atribuinte, neste caso um devedor. Nos casos de prestação infungível, a imputação decor-
re por necessidade do simples acontecimento descrito na atribuição.179 Nas obrigações negativas,
o acontecimento atributivo é descrito como «o devedor não causar x». De acordo com as ideias
gerais que vimos sobre a imputação, é sempre imputável ao devedor que ele, devedor, não tenha
causado alguma coisa. Nas obrigações negativas como em todas as de prestação infungível, não
é necessário um juízo autónomo de imputação, mas o esquema geral da atribuição continua a

175 Uma possível objecção a estes exemplos é a de que seriam ambíguos, não esclarecendo se, de acordo com o con-
trato e à luz dos critérios da interpretação negocial, António «era pago para tomar medidas» destinadas a evitar que
os cães estivessem no jardim ou se, pelo contrário, «era pago apenas pelo resultado» de os cães não estarem no
jardim. Supomos que a objecção viria mal dirigida. Quando expusemos o exemplo dizendo que «António se obriga
a não ter os seus cães no jardim», pressupúnhamos resolvidos os problemas de interpretação do contrato. Depois, a
fórmula usada é a de uma obrigação de resultado, de modo que só há cumprimento se o resultado se produzir. Por
fim, ao aludirmos ao problema dos reflexos na contraprestação, pressupomos que se trata de um sinalagma em sen-
tido estrito, ou seja, estabelecido entre as duas prestações, e não, p. ex., de uma interdependência entre um paga-
mento e um resultado exterior ou entre o pagamento e um resultado subalterno. Sobre todas estas questões, cf. o
nosso cit. estudo sobre Obrigações de meios.
176 Cf. supra, n. 130.
177 Cf. os exemplos de «causas neutralizadoras» dados por HART/HONORÉ, Causation in the law, 2.ª ed., Clarendon,

1985, 239-245.
178 O problema é mais vasto, pois rapidamente se concebem atribuições negativas não obrigacionais.
179 Cf. supra, no parágrafo da n. 109.

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valer. A diferença entre as obrigações de impedimento e as negativas, em suma, reside em as
primeiras terem «z » a representar qualquer facto negativo, excepto a não causação de alguma coisa
pelo devedor. Neste caso, teremos uma obrigação negativa.

7. Conclusão

O que há de comum ao conteúdo de todos180 os contratos? Em primeiro lugar, o con-


teúdo apresenta-se como jurídico, para valer como direito. Caso contrário, temos um «acordo de
honra» ou uma «relação de obsequiosidade». Nesse enquadramento jurídico, o contrato avalia
certo acontecimento presente, futuro ou passado como bom, e a sua falta como um mal. Não o
avalia numa afirmação, numa «declaração de ciência», mas conferindo esse valor ou desvalor ao
acontecimento em causa, numa «declaração de vontade», válida pelo princípio da autonomia pri-
vada. O conteúdo do contrato é, pois, uma norma, ou várias normas interligadas, norma a que
chamámos «atribuição». A vantagem de ver a atribuição como norma é podermos tratá-la como
uma frase idealizada, o que simplifica a análise. Tal norma é encontrada no contrato por inter-
pretação, com os acrescentos, cortes e retoques que o ordenamento imponha na determinação
final do conteúdo juridicamente relevante.
Aqueles bem e mal jurídicos são específicos de uma parte do direito civil, e designámo-los
com os termos «satisfação» e «não satisfação». O direito reage à satisfação ou não satisfação de
uma atribuição conforme as suas regras e princípios, de modo análogo a como reage a outros
valores e desvalores jurídicos. A satisfação e a não satisfação são sobretudo análogas ao cumpri-
mento ou não cumprimento de uma obrigação. Estes, por sua vez, são análogos ao cumprimento
ou violação de deveres. Com os conceitos de satisfação e não satisfação, a categoria fundamental
explicativa não é o dever ou a violação de dever, mas o valor ou desvalor (jurídicos).
Numa atribuição, relacionam-se duas pessoas. Uma delas, o «titular», tem aquilo que
podemos vagamente descrever como uma posição de poder permitido. Quer isto exprimir que
as eventuais reacções do sistema jurídico à não satisfação dependem em princípio da liberdade
do titular, das suas decisões, além de todos os outros pressupostos que em cada caso se exijam
juntamente com a não satisfação. A outra pessoa referida na atribuição é o «atribuinte». A satis-
fação depende de o acontecimento descrito na atribuição ocorrer de modo imputável ao atri-
buinte. Isto mesmo explica a afirmação também vaga de que a posição do atribuinte, em caso de

180Ou quase todos. O principal candidato a contrato não atributivo é o casamento, a que FERREIRA DE ALMEIDA,
Texto, cit., 382, n. 114 (cf. tb. a p. 467), chama «negócio jurídico sem objecto». Atente-se, todavia, que o argumento,
p. ex. de A. VARELA, Ensaio, cit., 131-3, de que os negócios familiares não são atributivos por não terem natureza
patrimonial não vale no nosso conceito de atribuição, que abrange figuras não patrimoniais. Para ANTUNES
VARELA, loc. cit., também não são negócios atributivos a anulação, a resolução, a confirmação e a procuração, o que
igualmente resulta do nosso conceito.

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não satisfação, será uma posição «passiva», ou seja, uma posição de dever, de sujeição, de perda
de direitos, etc. Se o direito reage ao desvalor da falta de um acontecimento imputável a certa
pessoa, parece esperável que o faça «contra» essa pessoa. Só através dela se produz a satisfação.
Daí a posição «passiva» do atribuinte em caso de não satisfação.
A ideia da imputação ao atribuinte é útil inclusive para esclarecer o conceito de cumpri-
mento de uma obrigação, integrando figuras como o cumprimento por terceiro, com ou sem
vontade do devedor, ou certos pensáveis «cumprimentos fortuitos». A execução coerciva da
prestação é aproximada dos (restantes) casos de cumprimento. Também se iluminam, num para-
lelismo total, os modos da satisfação num contrato transmissivo. Há imputação quer quando a
aquisição se dá numa verdadeira transmissão por efeito do contrato, quer quando resulta dos
limites ao nemo plus iuris, quer quando o contrato é instrumental para uma acessão na posse, quer,
de novo, por acto adequado de terceiro. Em muitas atribuições, a imputação é decorrência neces-
sária da descrição do acontecimento atributivo, como nas obrigações infungíveis ou quando a
descrição se refere a nova atribuição com o mesmo atribuinte ou a efeitos que se produzem
apenas contra o atribuinte. Ainda assim, a imputação ao atribuinte mantém-se como requisito da
satisfação.
A análise anterior da atribuição oferece um esquema de representação de todas as atribui-
ções, permitindo enunciar com clareza os elementos relevantes de cada uma delas. Permite até
um esquema de notação abreviada das atribuições, que mostra como umas podem integrar
outras no seu conteúdo, à maneira de orações subordinadas, simplificando as figuras mais com-
plexas. Torna-se facilmente representável um contrato de cessão da posição contratual em que o
transmitente paga para livrar-se de um conjunto de efeitos jurídicos e situações jurídicas, em
parte vantajosos, em parte desvantajosos. Tudo visto, o direito da satisfação e da não satisfação,
referente a todas as atribuições, que generaliza o direito do cumprimento e do não cumpri-
mento, próprio das obrigações, faculta uma linguagem unitária e mais conveniente do que a lin-
guagem de que dispúnhamos no início do estudo, limitada às obrigações e aos «efeitos jurídicos».
E, afinal, sempre encontramos o conforto analítico de reconduzir todas as atribuições a uma
categoria só: as «normas». Essas normas, insistamos, não resultam apenas de contratos, mas das
mais diversas fontes, tal como têm as mais diversas fontes as obrigações, que continuam como
figuras paradigmáticas.

Lisboa, 17 de Maio de 2008

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