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Diversidade sexu

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Um manifesto queer caboc
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Diversidade sexual
vos e de gênero e novos
tos: Um manifesto
descentramentos:
queer caboclo
clo
E S T Ê VÃ O F E R N A N D E S
Universidade Federal de Rondônia

FABIANO GONTIJO
Universidade Federal do Pará
Fernandes, Estêvão | Gontijo, Fabiano

DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO E NOVOS DESCENTRA-


MENTOS: UM MANIFESTO QUEER CABOCLO
Resumo
Este artigo, escrito em retórica ensaística, propõe uma abordagem para
a compreensão da diversidade sexual e de gênero e dos descentramentos
desde um olhar queer em cuja base resida a crítica colonial e das estru-
turas políticas, históricas e culturas de normalização e consolidação da
práxis heteropatriarcal, branca, moderna e de classe média. Deste modo,
a proposta do texto vai no sentido de apontar uma sobreposição entre
categorias tais como raça, etnia, sexo, dentre outras, a ser compreendida
dentro de um olhar epistemopolítico radical.
Palavras-Chave: Queer; colonialismo, interseccionalidade, sexualidade,
Amazônia.

SEXUAL AND GENDER DIVERSITY AND NEW DEVIATIONS: A


QUEER CABOCLO MANIFESTO
Abstract
This article, written in essay rhetoric, proposes an approach to the un-
derstanding of sexual and gender diversity and deviations from a queer
perspective based on colonial criticism and political, historical and cultu-
ral structures of normalization and consolidation of the heteropatriar-
chal, white, modern and middle class praxis. Thus, the proposal of the
text is to show an overlap among categories such as race, ethnicity, gen-
der, and others, to be understood within a radical epistemopolitical view.
Keywords: Queer, colonialism, intersectionality, sexuality, Amazon.

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Diversidade sexual e de gênero e novos descentramentos: Um manifesto queer caboclo

DIVERSIDAD SEXUAL Y DE GÉNERO Y NUEVOS DESCENTRA-


MIENTOS: UN MANIFIESTO QUEER CABOCLO
Resumen
Este artículo, escrito en retórica de ensayo, propone un abordaje para la
comprensión de la diversidad sexual y de género y los descentramientos
desde una mirada queer en cuya base resida la crítica colonial y de las
estructuras políticas, históricas y culturales de normalización y consoli-
dación de la praxis heteropatriarcal, blanca, moderna y de clase media.
De esta manera, la propuesta del texto va en el sentido de apuntar a una
superposición entre categorías como raza, etnia, sexo, entre otras, para
ser comprendida en una mirada epistémico-política radical.
Palabras clave: Queer, colonialismo, interseccionalidad, sexualidad,
Amazonia

Endereço do autor para correspondência: Departamento de Ciências


Sociais, Universidade Federal de Rondônia. Campus José Ribeiro Filho.
BR – 364, Km 9,5 (Sentido Acre). CEP: 76801-059. Porto Velho – RO.

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Este não seria, certamente, o texto que e omissa. Neste contexto, chamar ao
originalmente nós submeteríamos a primeiro plano enunciatório tais vo-
esta edição da Amazônica. Infelizmente, zes, em especial desde seu cruzamento
temos adotado, em nossa retórica an- com questões de sexo, afeto e gênero,
tropológica, cada vez mais uma pers- traz à lume as contradições de um sis-
pectiva na medida do possível epistemológico tema de normalizações compulsórias
neutra, objetiva e externa aos fatos, que somente existe para justificar sua
buscando nos posicionar de tal modo própria existência. Desta forma – e
no exterior que trocamos o locus polí- chamávamos a atenção a isso naque-
tico inerente à guinada intersubjetiva la “Apresentação” –, a divisão entre a
pela discreta não-posição, escondidos epistemologia e uma visada politica-
por trás de uma ou duas dúzias de refe- mente engajada soa não apenas vazia,
rências bibliográficas, nos autorizando mas cínica e contraprodutiva. Ao con-
a não-dizer, reproduzindo – e corro- trário, a proposta de um queer caboclo,
borando – posições de poder – den- amazônida, ribeirinho, nos impõe a
tro da academia, inclusive – bastante premência de uma epistemopolítica contra-
arraigadas em nosso ethos institucional, -reprodutiva.
disciplinar/disciplinado e dessituado/ De fato, não se trata apenas de pro-
dessituacionado. Este texto se propõe, por um conceito de “transversalidade”
talvez de forma bastante visceral e in- bem-comportado fazendo uso das tra-
tuitiva, a recuperar o espírito do texto dicionais categorias de gênero, raça, et-
de “Apresentação” do primeiro dossiê nia, etc., o que equivaleria à busca por
que organizamos na ACENO: Revista aceitação e integração em um campo
de Antropologia do Centro-Oeste, junta- acadêmico muito bem delimitado, mas
mente com Moisés Lopes e Martinho sim, justamente o oposto: um não-
Tota (Fernandes, Gontijo, Tota & Lo- -integracionismo, um contraponto ra-
pes 2016). dical às dinâmicas desde as quais estes
Naquele texto, chamávamos a aten- outros lugares são esvaziados de seu
ção para a mudança nos rumos que a potencial de crítica aos processos de
política brasileira impunha/impõe no heteronormatização, enquadramentos
que diz respeito ao estudo da diversi- coloniais, domesticação do corpo e dos
dade sexual e de gênero em contextos afetos, etc. Não se trata apenas de cha-
como os que nos propomos a inves- mar a atenção aos processos de poder
tigar – sujeitos étnica e/ou racialmen- e dominação, mas de torná-los lugar de
te posicionados, coletivos rurais e/ou fala; trata-se de se tomar como lugar
interioranos, culturas não centradas privilegiado a fronteira, o não lugar, a
em uma retórica moral(izante) moder- “zona de não-ser” (Fanon), o in-between,
na de classe média urbana e branca, o pós-posicional, o relacional, o estar-
etc., que tendem a ser subalternizados -siendo de que nos fala Rodolfo Kusch
como parte da própria dinâmica social alhures. O queer, aliás, é notadamente
de uma sociedade como a nossa, co- um movimento anti/de/pós/contra-
lonizada, heteronormativa, “coxinha” -colonial, dado que processos de he-

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teronormatização, virinormatividade e Desta forma, um olhar como o pro-


normalização são partes intrínsecas de posto aqui provoca uma série de ques-
um processo mais amplo de incorpora- tões.
ção de sujeitos à máquina colonial. Como, por exemplo, sexualidade, ra-
Trata-se não apenas de uma propos- cialização, generificação, etc., se entre-
ta epistemológica – aliás, trata-se de laçam historicamente, formando um
qualquer coisa, menos de uma “propos- complexo a partir do qual relações de
ta epistemológica”, posto que nem é poder se assentam, direcionando afe-
proposta, tampouco epistemológica tos, relações e reações cotidianamente?
– e, sim, manifestadamente, de uma Exemplos disso não faltam: a racializa-
resposta epistemopolítica desde a qual ção da sífilis e a política de casamentos
busque-se desestruturar um olhar que interétnicos, estereótipos como o dxs
entenda gênero sem apontar, desde negrxs sexualizadxs e/ou dxs interio-
as margens, as limitações linguísticas, ranxs ingênuos (“caipiras”), dentre
culturais, mentais e políticas à compre- tantos outros, mostram como estas es-
ensão da questão sexual dentro de um truturas se sobrepõem formando mais
escopo geopolítico – incluindo aqui a do que uma mera confluência: são as-
produção do conhecimento. pectos de imposição de poder sobre-
O que podemos aprender, por exem- postos e inseparáveis. Sexo e raça, por
plo, desde textos queer africanos, do exemplo, não podem ser separados. A
pensamento feminista indiano, das separação destas esferas em caixinhas
críticas two-spirit? Em que medida a re- conceituais bem delimitadas, sem a ne-
produção de um conjunto de autorxs – cessária crítica radical das estruturas
quase sempre situados na França ou na que consolidaram sua existência, é hi-
Califórnia – nos permitem contrapor pocrisia – para dizer o mínimo.
de forma radical movimentos de direi-
O momento pelo qual passamos, com
ta que insistem em chamar a educação
a intensificação e radicalização de dis-
para a diversidade sexual de “ideologia
cursos de ódio e intolerância nos obri-
de gênero”? Até que ponto pode-se le-
ga a uma episteme igualmente radical,
var adiante uma empreitada deste tipo
oferecendo um contraponto teórico, fi-
sem levar em consideração o papel de
losófico e político à altura. Não se trata
igrejas neopentecostais no interior do
de se buscar a aceitação ou a inclusão,
Brasil? É possível, por exemplo, com-
como já foi dito aqui, mas de se trazer
preender os casos de agressão motiva-
para o lugar de fala as vozes subalterni-
dos por religião no País sem levar em
zadas fronteiriças. Um giro epistemo-
conta a forma como a homofobia tem
se naturalizado em comentários de político radical e radicalizador, fora do
portais de notícias e redes sociais? Há muro, fora do armário, fora da sala de
um aspecto prático nestas ações: no ní- aula. Em vez de inclusão, transgressão
vel do concreto, por que tipo de dialé- para subversão.
ticas este poder fazer passa, tornando-se Isso requer – a repetição neste pon-
viável? to é proposital – se apontar de forma

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peremptória as várias formas como sim, de subvertê-las a fim de torná-las


as lógicas da inclusão e do preconcei- evidentes. O que movimentos feminis-
to seguem caminhos estruturalmente tas ou LGBTIQA na Amazônia ou no
semelhantes, desde seus aparatos dis- campo, por exemplo, podem nos dizer
cursivos, na [re]produção do conheci- sobre garimpo, desenvolvimento, PAC,
mento, inclusive. Trata-se de se romper grandes obras, exploração sexual nas
com o fetichismo em torno de ideias fronteiras do capitalismo brasileiro – e
em cuja base resida a intensificação vice-versa? É possível recuperar a voz
e/ou a reificação dos lugares onde se desses atores sem filtrá-la em nossa
produz a diferença colonial. É inegável prática acadêmica, neutra, objetiva,
que o pensamento auto-identificado externa, e, no fim das contas, morna?
como “ocidental” representa uma con- Narrar simplesmente suas trajetórias
tribuição relevante para a compreensão para corroborar a hipótese pensada por
de fenômenos sociais, mas o alcance de algum autor pop, como se nosso con-
tal contribuição é quimérico, se levar- texto fosse o de um café às margens
mos em conta que junto com a ideia do Sena, e não de um pós-golpe insti-
de ocidente há, sub-repticiamente, tucional branco e hetero-pratriarcal é,
uma noção limitadora no tocante a ou- em última instância, o de cumplicidade
tras formas de ser/estar no mundo em com o status quo e com a estrutura de
cuja base de compreensão se dê fora/ poder que lhe é subjacente.
além das noções contempladas na vi- Novamente: subversão... Quando o
são de racionalidade moderna. Feminis- queer ou a marcha das vadias surgem,
mos quéchuas ou chicanos, ou autoras trata-se justamente disso, ou seja, de se
como Ella Shohat, ou mesmo autores incorporar um termo até então usado
como Césaire e Mbembe podem nos como estigmatizante a fim de subverter
fornecer um ferramental poderoso a ordem vigente e expor as estruturas
para compreendermos o feminicídio, a heteronormadas e virifocadas desde
exploração sexual, o suicídio LGBTI- as quais poder torna-se um substantivo
QA em contextos não-urbanos, etc. masculino, de fato. Contudo, quando
Novamente, trata-se de instabilizar surge a categoria pastoral “ideologia
categorias, descentrando perspectivas de gênero”, vê-se o conservadorismo
que partam de sujeitos centrados e fi- buscando – ênfase no “buscando” –
xos. As várias formas de invisibilida- proceder conforme a mesma estrutura,
de persistem e existem por conta de ou seja: toma-se um par de conceitos
um conjunto de normas, instituições, – ideologia e gênero – tradicionalmente
comportamentos, habitus, estruturas usados no âmbito das Ciências Sociais
discursivas, narrativas, imaginárias, e de movimentos sociais a fim de, pelo
práxis, condutas, posturas, afetos, de- seu uso em outras esferas (como cul-
sejos, etc., historicamente construídas tos, portais de direita, etc.), esvaziá-los
e socialmente tornadas naturalizadas, de seu potencial heurístico. Desta for-
mas o esforço não deve se dar somente ma, logo “gênero” e “ideologia” serão
no sentido de tentar desconstruí-las, e termos tão inextricavelmente ligados

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Diversidade sexual e de gênero e novos descentramentos: Um manifesto queer caboclo

ao sentido estigmatizado dado pelos retórica em cuja base se encontra a co-


“cidadãos de bem” (homens, heteros- lonialidade e a diferença colonial.
sexuais, etc.) que sua utilização ficará Um olhar fronteiriço e subversivo
comprometida. Exemplo disso são as parte, justamente, da problematização
situações anedóticas, mas reais, nas desse conjunto estável de categorias
quais mesmo termos como “gênero dentro do qual elas mesmas surgem,
narrativo” e “flexão de gênero”, em a fim de contribuir para a manutenção
português, vêm sendo suprimidas em da estabilidade desse mesmo sistema.
planos municipais de educação pelo Enfim, o objetivo desse manifesto é
País... o de alertar para os silenciamentos
Trata-se de recuperar o aspecto crítico sistemáticos e exortar para que mais
na prática de pesquisa sem que isso fi- e mais pesquisas sejam realizadas na
que relegado a alguns parágrafos na in- Amazônia, não somente nos contextos
trodução e alguns outros, na conclusão. urbanos, mas também nos contextos
Dessa forma, este manifesto propõe rurais e interioranos e em situações
uma radicalização não apenas no que etnicamente diferenciadas da região,
diz respeito aos lugares de enunciação levando-se em conta as peculiaridades
a serem visibilizados em nossas pesqui- dos modos de vida dos “caboclos”,
sas e ativismo diário, mas também no dos “ribeirinhos”, do “amazônida” e/
tocante a conceptos, perceptos, meto- ou do “homem amazônico” (Wagley
dologias e objetos de pesquisa. Propõe 1974; Miller 1977; Parker 1985; Motta-
também que esta radicalização se dê -Maués 1989; Lima-Ayres 1999; Harris
em nível teórico, na busca da amplia- 1998; Rodrigues 2006).
ção do instrumental analítico necessá-
rio para a compreensão do surgimento,
manutenção, ampliação e consolidação AGRADECIMENTOS
desse aparato heteropatriarcal de po- Agradecemos ao Conselho Nacional
der; mas também no nível prático, com de Desenvolvimento Científico e Tec-
a ampliação de fóruns de em/de-bate, nológico (CNPq) pela bolsa de Produ-
organização de textos em conjunto tividades em Pesquisa para o segundo
(como estes dossiês da Aceno e da Ama- autor.
zônica, por exemplo), surgimento de re-
des de pesquisadorxs, etc. Além disso,
tal agenda pressupõe a superação da di- REFERÊNCIAS
visão de trabalho acadêmico no Brasil,
Fernandes, E., Gontijo, F., Tota, M. &
desde a qual os centros (localizados no
Lopes, M. 2016. Diversidade Sexual e de
centro-sul) fornecem teoria – mesmo
Gênero em Áreas Rurais, Contextos Inte-
que reproduzindo autores dos Centros rioranos e/ou Situações Etnicamente Di-
(localizados no norte epistêmico), en- ferenciadas. Novos Descentramentos em
quanto ao “resto”, cabe fornecer “ex- Outras Axialidades – Apresentação. ACE-
periências”. O que se provoca aqui é, NO: Revista de Antropologia do Centro-Oeste,
justamente, uma contraposição a esta 3, 5, p. 10-13.

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Fernandes, Estêvão | Gontijo, Fabiano

Harris, M. What it Means to be a Caboclo:


some critical notes on the construction of
Amazonian caboclo society as an anthro-
pological object. Critique of Anthropology,
18, 1, 1998, p. 83-95.
Lima-Ayres, D. M. A Construção Histórica
da Categoria Caboclo. Sobre Estruturas e
Representações Sociais no Meio Rural. No-
vos Cadernos NAEA, 2, 2, 1999.
Miller, D. Itá em 1974: um epílogo. In:
Wagley, C. Uma Comunidade Amazônica. São
Paulo: Editora Nacional, 1977 [2a edição].
Motta-Maués, M. A. A Questão Étnica:
índios, brancos, negros e caboclos. In: Es-
tudos e Problemas Amazônicos. Belém: Idesp/
Sedup, 1989, p. 196-204.
Parker, E. (org.). The Amazon Caboclo – His-
torical and Contemporary Perspectives. Willia-
msburg: Studies in Third World Societies
Publications, 1985.
Rodrigues, C. I. Caboclo na Amazônia: a
identidade na diferença. Novos Cadernos
NAEA, 9, 1, 2006, p. 119-130.
Wagley, C. (org.). Man in the Amazon. Gai-
nesville: University of Florida Press, 1974.

Recebido entre 24 a 27/02/17


Aprovado em 21/03/17

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