Tradução:
Juan Acura Liorens
Consultoria, supervisão e
revisão técnica desta edição:
Md45d Maturana, Humberto Luiz Ernesto Peilanda
De máquinas e seres vivos: autopoiese - Psicanalista. Membro Efetivo da SPPA e da IPA.
a organização do vivo / Humberto Maturana Romesín
Francisco J. Varela García; 3. ed.; trad. Juan Acufia
Liorens. -- Porto Alegre : Artes Médicas, 1997. 2º reimpressão
CDU 37.01/.048
SÃO PAULO
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SUMÁRIO
Vinte anos depois
Prefácio de Humberto Maturana Romesín à segunda edição ............ 9
Prefácio de Francisco J. Varela García à segunda edição ............... 35
INTRODUÇÃO... eeeaeee 65
Capítulo I
DE MÁQUINAS VIVENTES E DAS OUTRAS .....cesismeeeneerereasemerierreesestiraess 69
1. Máquinas .......... nr ereereneseaeereaenireee aeeeeiaa
raso eresereerenartesa 69
2. Máquinas viventes .............rseretanaereeeremeriereeeereseereeraaererans 70
a) Máquinas autopoiéticas ..........nemeeecererereniererirereeartreess 70
b) Sistemas viventes... reereearararenacaaseneserenecasaços 75
Capítulo II .
TELEONOMIA, UM CONCEITO PRESCINDÍVEL ......eettememesesereereereeeseeneaness 77
1. Ausência de finalidade.............riem renireerenno 77
2. Individualidade.......... iene rear 79
Capítulo II
MATERIALIZAÇÕES DA AUTOPOIESE ...enerereeneerereeraraereei raras 81
1. Noções descritivas e causais amena renremaneareesesias 81
2. Materialização molecular... isesteenenanas 84
3. Origem... riem eereereeare rear ear eee ceara easier ente 87
Capítulo IV
DIVERSIDADE DA AUTOPOIESE ....ccccreerememeesineramaa
ee rereerertirireae
seirereme sareiss 90
1. Subordinação à condição de unidade.............iiiessmemntasa 90
2. Plasticidade da ontogenia ...........eeeener rrenan
eeri 92
3. À reprodução, uma complicação da unidade ..........ttmess 94
4. A evolução, uma rede histórica ..........iieireesemeesaes 97
8 Maturana e Varela
Capítulo V
PRESENÇA DA AUTOPOIESE ..ceceeereeeeeiieeeee eerenreeere
rare aee eene sea aceneneaia 108
VINTE ANOS DEPOIS
1. Implicações biológicas... errar rreeeeeariees 108
2. Implicações epistemológicas ............ ceerereonarrananeneererereeasanacerenaersaras 111
3. Implicações gnoseológicas ..........eierereeea certeira 116
APÊNDICE: Antecedentes*
O SISTEMA NERVOSO... 122 Ainda que Francisco Varela e eu escrevemos conjuntamente este
livro, e não tenho dúvida de que nem ele nem eu o haveríamos escrito
A. O sistema nervoso como sistema... 122 com a forma e conteúdo que possui se o houvéssemos feito individual-
1. O neurônio ........... errei eeeairentestesaisa 123 mente, eu não posso falar por ele em qualquer circunstância no que se
2. Organização: o sistema nervoso como um sistema fechado 125 refere a este livro, nem com respeito a qualquer outro aspecto. É por
3. Mudança ............. ic ireerereesieneerereeseeraraeaeenacirarranra . 127 isso que ao escrever este novo prefácio falarei de mim e da origem das
4. Arquitetura ..............crie meeaeiererraaearerecerarirtreees 127 idéias que tenho expressado neste livro como aspectos da minha vida.
5. Estados referenciais .............eeeeenieseesemseias 129 Não acredito que possa fazer-se honestamente de outra maneira. Em
tais circunstâncias, desejo que fique claro que quando digo que Fran-
B. Consegiiências .............aeeeeearereiareerieeeenrereeeaeseiea 129 cisco foi meu aluno, não é minha intenção diminuir sua grandeza nem
1. Vinculação histórica ............ ee eeeceneeeerrrereeaatea 129 subordinar seu pensamento ao meu, somente apontarei a história. Eu
2. Aprendizagem como fenômeno .............iir 131 tenho dezoito anos a mais quê Francisco, uma diferença muito grande
3. O tempo como dimensão ............ sein 132 no começo da vida de um cientista na relação professor-aluno, e que se
faz muito pequena ou nula quando a vida científica do que fora o pro-
C. Implicações ...........
eee Ceereerereencerrrenaaraneserenersa 133 fessor encontra-se perto do fim.
organização do vivo”. Além disso, o que também desejo fazer neste pre- Nós nem sempre aceitamos as perguntas que nos são formula-
fácio, pouco mais de vinte anos depois que o livro foi escrito, é relatar das, ainda quando dizemos que as aceitamos. Aceitar uma pergunta
como foram em minha vida surgindo idéias, noções e conceitos que este significa mergulhar-se na procura de sua resposta. Ainda mais, a per-
livro contém, e comentar alguns aspectos deles. gunta específica “que” admite resposta. Sendo assim, o primeiro ato
Retornei ao Chile no ano de 1960, após ter obtido meu doutorado que tomei foi formular-me a pergunta de uma maneira completa: “O
em biologia (Phd) na Universidade de Harvard e ao término de uma que é o que começa quando começam os seres vivos sobre a terra, e que
permanência total de seis anos estudando e trabalhando no estrangei- se tem conservado desde então?” Ou colocado em outras palavras, “Que
ro. Voltei cumprindo um compromisso que tinha assumido, antes de classe de sistema é um ser vivo?”. No ano de 1960, esta era uma per-
sair do país, com a Universidade do Chile, porém intimamente com o gunta sem resposta. Os autores de livros de biologia ou não a assumi-
desejo de retribuir à minha pátria tudo que tinha recebido dela. Ao am ou não a tratavam, ou se desentendiam dela dizendo que eram
chegar, incorporaram-me imediatamente como ajudante seguindo na necessários muito mais conhecimentos, ou recorriam a enumerar as
cátedra de biologia do professor Gabriel Gasic, na Faculdade de Medi- propriedades ou características dos seres vivos numa lista que termi-
cina da Universidade do Chile. Após uma longa conversação com o pro- nava sendo interminável pela falta de caracterização independente do
fessor Gasic, consegui convencê-lo a que me deixasse ditar, em seu cur- vivo que permite-se dizer quando a lista estava completa. Os cientistas
so de biologia do primeiro ano de medicina, uma série de aulas a res- como Oparin e Haldane, que tinham se ocupado com a pergunta com
peito da origem e a organização dos seres vivos. Tratava-se de um con- respeito à origem da vida, não propunham em seu enfoque experimen-
junto de cinco ou seis aulas, quase no final do ano letivo, nas quais eu tal ou teórico nada que pudesse servir como categorização do vivo. Da
podia dar o conteúdo que desejasse. Eu pensava que tinha me prepara- mesma maneira, cientistas como Von Bertalanfy, que insistiam em con-
do durante toda minha vida para essas aulas. De fato, tinha estudado siderar os seres vivos como “totalidades” com um critério sistemático,
medicina, biologia, anatomia, genética, havia incursionado em antro- falavam de uma visão organiscista, e pareciam considerar que o prin-
pologia, arqueologia e paleontologia, e tinha feito pesquisas em dife- cipal ou central para compreender os seres vivos era abordá-los como
rentes âmbitos da biologia (como anatomia, neurologia, taxonomia) sistemas abertos, processadores de energia. Eu, no entanto, pensava
durante meus dez anos de estudante no Chile e no estrangeiro. Na que o principal para explicar e compreender os seres vivos era levar em
verdade, eu tinha-me interessado pelos seres vivos já muito antes de conta sua condição
de entes separados, autônomos, que existem como
ter sido acolhido carinhosamente pelo Dr. Gustavo Hoecker no seu la- unidades independentes. De fato eu pensava, e ainda o penso, que o
boratório, no primeiro ano de meus estudos de medicina no ano 1948. central ou principal da biologia como ciência é que o biólogo opera com
Ão final da última aula desse conjunto, um aluno me perguntou: “Se- entes individualizados e autônomos que geram em sua vida fenômenos
nhor, você diz que a vida se originou na terra faz mais ou menos três gerais, que são semelhantes, enquanto o central na física como ciência
mil e quinhentos milhões de anos. Que aconteceu quando se originou a é que o físico opera, pelo contrário, com leis gerais, sem dar atenção
vida? O que começou a iniciar a vida, de maneira que o senhor possa particular aos entes que provocam ou realizam tais fenômenos. Por
dizer agora que a vida começou nesse instante?”. Ao escutar essa per- isso pensava, e ainda penso assim, que a tarefa central de um biólogo é
gunta me dei conta que não tinha resposta; certamente tinha-me pre- explicar e compreender os seres vivos como sistemas nos quais, seja
parado para respondê-la, porém não podia, já que eu não a tinha for- em seu acontecer solitário de sua atuação como unidades autônomas
mulado para mim nesses termos. O que se origina, e que se mantém ou no que se refere aos fenômenos da convivência com outros, surgem
até agora, quando se originaram os seres vivos na terra?, foi a pergun- e neles se dá em/e, através de sua relação individual, como entes autô-
ta que escutei. Sem dúvida fiquei vermelho de vergonha, e não somen- nomos. Foi com essa visão que abordei em minhas aulas a dupla tarefa
te uma senão várias vezes, porém respondi: “Não o sei, no entanto, se de responder à pergunta a respeito da origem dos seres vivos na terra
você assistir a esta aula no próximo ano, lhe proporei uma resposta”. e de desvendar sua maneira de constituição como entes autônomos, no
Tinha um ano para encontrá-la. processo de descrever em que consistia seu operar como tais.
12 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos
13
Que eu soubesse, ninguém se tinha formulado estas perguntas resultado dessa própria atuação. Nessa época, isso não era uma tarefa
como eu o fazia, talvez, porque ninguém se fazia cargo em toda sua fácil, e meus colegas não compreendiam o que eu desejava fazer, tal-
magnitude a implicância de entender que todos os fenômenos biológi- vez, porque eu não sabia como dizer o que queria dizer, ou porque
não
cos acontecem através da realização individual dos seres vivos. Além possuía, ainda, as noções adequadas para fazê-lo.
disso, eu não encarava esta tarefa de uma maneira totalmente inocen- Durante os anos 1958 e 1959, após doutorar-me na Universidade
te. Dez anos antes, aos vinte e um anos, doente de tuberculose pulmo- de Harvard, trabalhei no Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT),
nar em uma clínica na Cordilheira dos Andes, onde devia estar em no Departamento de Engenharia Elétrica, no Laboratório de Neurofisio-
repouso absoluto, eu lia, em segredo, o grande livro de Julian Huxley, logia. Nesse departamento, também havia um Laboratório de Inteli-
“Evolução, uma síntese moderna”. Huxley, nesse livro, formulava que gência Artificial. Ao passar todos os dias perto desse laboratório, sem
a noção de progresso evolutivo é verdadeira se a pessoa pensa na evo- entrar nele, escutava as conversações dos mais eminentes pesquisado-
lução como sendo um processo de contínuo aumento da independência res em robótica da época, os quais diziam que o que eles faziam era
dos seres vivos em relação ao meio, em um processo histórico que cul- usar como modelo os fenômenos biológicos. Marvin Minsky era um de-
minava com o ser humano no momento presente. Eu não estava de les. A mim parecia, ao escutá-los, que o que eles faziam não era mode-
acordo com ele, e no silêncio de minhas horas de repouso me perguntei lar nem imitar os fenômenos biológicos, senão imitar ou modelar à apa-
pelo sentido da vida e de viver. Minha resposta foi então, e ainda o é, rência destes no âmbito de sua visão como observadores. Por isso,
ten-
que a vida não tem sentido fora de si mesma, que o sentido da vida de tava falar dos seres vivos em minhas aulas de biologia de maneira que
uma mosca é viver como mosca, “mosquear”, “ser mosca”, que o sentido minha descrição deles, e do que acontecia com eles, reproduzisse
sua
da vida de um cachorro é viver como cachorro, ou seja, “ser cachorro ao maneira de “ser” autônomos. Não queria cair no erro que pensava
co-
cachorrear”, e que o sentido da vida de um ser humano é o viver huma- meterem os cientistas que trabalhavam em inteligência artificial
no
namente ao “ser humano no humanizar”. E tudo isso no sentido de que MIT. Evitar esse erro não era fácil, já que o discurso biológico daquela
o ser humano é somente o resultado de uma dinâmica não-proposital. época era um discurso funcional, propositivo, e falava-se dos fenôme-
Tais reflexões me permitiram reconhecer e aceitar que o sentido nos biológicos como se eles ficassem de fato revelados ao falar da fun-
de minha vida era minha tarefa e minha única responsabilidade. Po- ção que se lhes atribuía, e como se a descrição da função especificasse
rém, também me levaram a ver que a forma de ser autônomo de um os processos relacionais que lhe davam origem. Eu pensava que não
ser vivo estava no fato de que todos os aspectos da atuação de seu viver era adequado falar assim, nem mesmo metaforicamente, porque acre-
tinham a ver somente com ele, e que tal atuação não surgia de qual- ditava que essa maneira de falar ocultava conceitualmente o operar
quer propósito ou relação na qual o resultado guiasse o curso dos pro- que dava origem ao fenômeno biológico que se desejava compreender.
cessos que lhe davam origem. Por isso, a partir de 1960, orientei mi- Para evitar esse ocultamento, comecei a diferenciar entre o que eu di-
nhas reflexões para procurar uma maneira ou forma de falar dos seres zia como observador, segundo como eu via em meu espaço de distinções
vivos que abrangesse a constituição de sua anatomia como sistemas o ser vivo, do que eu dizia que acontecia com ele em seu operar, ao
nos quais tudo o que acontece com eles em sua atuação como unidades estar já constituído como tal. Quer dizer, comecei a descrever, os
dois
separadas, seja em sua dinâmica relacional como em sua dinâmica domínios no qual se estabelece a existência de um ser vivo: a) o domí-
interna, se refere somente a eles mesmos, e acontece como uma contí- nio de seu operar como totalidade em seu espaço de interações como
tal
nua realização de si mesmos em uma dinâmica relacional na qual o totalidade, e b) o domínio do operar de seus componentes em sua
com-
resultado não é um fator nos processos que lhe dão origem. Isto é, mi- posição, sem fazer referência à totalidade que constituem, e que é onde
nhas reflexões me levaram a pensar que tudo o que acontece em e com se constitui, de fato, o ser vivo como sistema vivente. Isto é, eu queria
os seres vivos tem lugar neles como se operassem como entes auto- descrever o operar dos componentes do ser vivo em termos exclusiva-
referidos, e que minha tarefa era falar deles, descrevendo a atuação mente locais, não-funcionais, e não-propositivos. Desejava mostrar como
dos seres vivos de forma que surgissem como tais como um simples o ser vivo surgia da dinâmica relacional de seus componentes de uma
Sepp: a
Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 15
ra
14
ipa
maneira alheia a toda referência à totalidade a que estes davam ori- maneira tal que tudo o que acontecia com eles acontecia na realização
gem. E também queria mostrar como o ser vivo surge como totalidade e na conservação dessa dinâmica produtiva, que os definia e ao mesmo
em um domínio diferente do domínio do operar de seus componentes tempo os constituía em sua autonomia. Naquele momento, também
como simples consegiência espontânea do operar destes, quando se percebi que não é o fluxo de matéria ou fluxo de energia como fluxo de
vinculam em sua atuação de uma maneira particular. Enfim, eu dese- matéria ou energia, nem nenhum componente particular como compo-
java descrever a maneira particular de relação do operar dos compo- nente com propriedades especiais, o que de fato faz e define o ser vivo
nentes do ser vivo que o fazem ser vivo, e pensava que para demons- como tal. Um ser vivo ocorre e consiste na dinâmica de realização de
trar que o tinha feito, devia mostrar que todos os fenômenos biológicos uma rede de transformações e de produções moleculares, de maneira
resultam desta maneira de operar, se são dadas as condições históricas tal que todas as moléculas produzidas e transformadas no operar des-
adequadas. sa rede fazem parte da rede, de maneira que com suas interações: a)
Dessa maneira, pensando que a autonomia dos seres vivos em geram a rede de produções e de transformações que as produziu ou
termos que indiquei anteriormente era a expressão indireta da conca- transformou, b) dão origem aos limites e extensão da rede como parte
tenação de processos que os definia, comecei a falar deles como “siste- de seu operar como rede, de maneira que esta fica dinamicamente fe-
mas auto-referidos”, como sistemas nos quais seu operar somente faz chada sobre si mesma, conformando um ente molecular separado que
sentido em relação a si mesmos, e os diferenciei desta maneira dos surge independente do meio molecular que o contém por seu próprio
sistemas que elaboramos nós, os seres humanos, os que por seu dese- operar molecular; e c) configuram um fluxo de moléculas que ao incor-
nho fazem sentido somente em relação a um produto ou algo distinto porarem-se na dinâmica da rede são partes ou componentes dela, e ao
deles, e aos que por isso denominei “sistemas alo-referidos”. No entan- deixarem de participar na dinâmica da rede deixam de ser componen-
to, tal maneira de falar da constituição dos seres vivos não me era tes e passam a fazer parte do meio.
satisfatória porque a noção de auto-referência subordina a visão do Ou, ainda de outra maneira, percebi que o ser vivo não é um
operar dos componentes à totalidade que geram, coisa que era justa- conjunto de moléculas, mas uma dinâmica molecular, um processo que
mente o que queria evitar ao falar das relações locais dos componentes acontece como unidade separada e singular como resultado do operar,
de maneira que o ser vivo surgisse como totalidade, como um resultado e no operar, das diferentes classes de moléculas que a compõem, em
espontâneo. Além disso, ao falar assim, ocultava o fato de que ainda um interjogo de interações e relações de proximidade que o especificam
não tinha encontrado a dinâmica operacional que fazia do ser vivo um e realizam como uma rede fechada de câmbios e sínteses moleculares
ente auto-referido. que produzem as mesmas classes de moléculas que a constituem, con-
No início do ano de 1964, enquanto conversava com meu amigo figurando uma dinâmica que ao mesmo tempo especifica em cada ins-
Dr. Guillermo Contreras, microbiólogo, sobre se era possível ou não tante seus limites e extensão. É a esta rede de produções de componen-
que houvesse um fluxo de informação desde o citoplasma até o núcleo tes, que resulta fechada sobre si mesma, porque os componentes que
(nessa época não se conheciam os retrovírus), ao escrever no quadro- produz a constituem ao gerar as próprias dinâmicas de produções que
negro que os ADN participavam na éntese das proteínas, e que estas a produziu e ao determinar sua extensão como um ente circunscrito,
“participavam na síntese dos ADN, e fazê-lo em um desenho que capta- através do qual existe um contínuo fluxo de elementos que se fazem e
va a relação produtiva circular que existia entre eles, percebi de que deixam de ser componentes segundo participam ou deixam de partici-
era essa circularidade a dinâmica produtiva molecular constitutiva do par nessa rede, o que neste livro denominamos autopotese. E, final-
vivo. Isto é, nesse momento me dei conta de que o que definia e de fato mente, o que também dizemos neste livro é que um ser vivo é de fato
constituía os seres vivos como entes autônomos que resultavam auto- um sistema autopoiético molecular, e que a condição molecular é parte
referidos em seu simples operar era o fato de que se tratavam de uni- de sua definição, porque determina o domínio de vinculação em que
dades separadas que existiam como tais na contínua realização e con- existe como unidade composta. Sistemas autopoiéticos não-moleculares,
servação da circularidade produtiva de todos seus componentes, de isto é, que existem como unidades compostas em um âmbito ou domí-
16 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 17
nio não-molecular, porque possuem outro tipo de componentes, são sis- após obter seu doutorado (Phd) na Universidade de Harvard. Francis-
temas autopoiéticos de outra classe, que compartilham com os seres co formulava que, se o que eu propunha dava conta dos fenômenos
vivos o que têm a ver com a autopoiese, que, porém, que ao existirem biológicos, e era tudo o que se necessitava para caracterizar completa-
em outro domínio possuem outras características que os torna comple- mente os seres vivos como sistemas autônomos, deveríamos ser capa-
tamente diferentes. Assim, por exemplo, é possível que uma cultura zes de propor uma formalização matemática de sua organização circu-
seja um sistema autopoiético que existe em um espaço de conversações lar. Francisco é um distinguido pensador matemático, mas eu não, e
(ver Maturana e Verden-Zoller, 1993) (8), porém é uma cultura, não por isso insisti em que antes de tentar uma formalização era necessá-
um ser vivo. Tenho insistido nisto, não por um simples afã repetitivo, rio ter uma descrição completa dos fenômenos ou do sistema que se
mas porque acredito que o mais difícil de compreender e aceitar, no que queria formalizar. Esse último foi o que decidimos fazer, e assim surgiu
se refere aos seres vivos, é: a) que o ser vivo é, como ente, uma dinâmi- este livro.
ca molecular, não um conjunto de moléculas; b) que o viver é a realiza-
ção, sem interrupção, dessa dinâmica em uma configuração de rela-
ções que se conserva em um contínuo fluxo molecular; e c) que enquan- A palavra autopoiese
to o viver é e existe como uma dinâmica molecular, não é que o ser vivo
utilize essa dinâmica para ser, produzir-se ou regenerar-se a si mesmo, Francisco Varela chegou ao meu laboratório enviado pelo Dr. Juan
mas que é essa dinâmica o que de fato o constitui como ente vivo na de Dios Vial Correa em abril de 1966, no momento em que era aceito
autonomia de seu viver. como aluno para a licenciatura em biologia da Faculdade de Ciências
Em 1965, eu indiquei essa forma de ser autônomo do ser vivo da Universidade do Chile. Ao final do ano de 1967, Francisco foi aceito
falando de uma “organização circular” de transformações e de produ- pela Universidade de Harvard para fazer ali um doutorado em biolo-
ções moleculares, assinalando que o ser vivo é e existe como ente molecu- gia, e retornou ao Chile, em 1970, para trabalhar como pesquisador
lar somente enquanto permanece na conservação de tal organização. independente (agora seria professor titular) na Faculdade de Ciências.
Ao fazer isto, dei-me conta, também, de que minha caracterização do Como Francisco tinha sido meu aluno, eu conhecia profundamente seus
ser vivo como sistema de organização circular era adequada, porque de méritos. Por isso apoiei e impulsionei todas as iniciativas que foram
fato me permitia mostrar, em concordância com minha formulação ini- necessárias para que ele retornasse ao Chile e à Faculdade de Ciências
cial, como cada um e todos os fenômenos biológicos surgem no viver do da Universidade do Chile.
ser vivo como um sistema que se realiza e existe na contínua produção Eu penso, repito, que toda formalização é necessariamente se-
de si mesmo da maneira indicada. Isto o fiz inicialmente como uma cundária ao entendimento conceitual e operacional do que se quer for-
seção sobre o viver, em um artigo que chamei Neurophysiology of malizar, e que de outro modo o formalismo se afasta da experiência.
cognition, que apresentei em Chicago em março de 1969, num congres- Francisco, evidentemente, concordou comigo nessa formulação, e coloca-
so de antropologia, cujo tema era o “conhecer” como fenômeno humano mo-nos a trabalhar no que finalmente resultou ser este livro. Eu escre-
- (ver Maturana, 1969) (2). Um ano depois abordei o mesmo tema como via, logo discutíamos em um processo, que ainda que tenha sido sem-
- parte de um artigo mais extenso, ao qual entitulei Biology of cognition, pre interessante, nunca foi fácil, tendo sido, às vezes, doloroso. O que
e que foi publicado pela primeira vez como o Report nº 9.0, of the prematuramente me foi evidente neste processo foi que necessitava-se
Biological Computer Laboratory da Universidade de Illinois, em 1970. de uma palavra mais evocadora da organização do vivo que a expres-
O livro que o leitor tem em suas mãos, e que inicialmente foi publicado são “organização circular” que utilizava desde 1965. Assim, um dia em
com o nome de De máquinas e seres vivos, é uma expansão dessa seção que eu visitava um amigo, José Maria Bulnes, filósofo, enquanto ele
“sobre o viver do artigo Biology of cognition que acabei de mencionar, e me falava do dilema do cavalheiro Quejana (depois, Quixote da Man-
foi escrito a partir de uma conversação que Francisco Varela e eu tive- cha) na dúvida de seguir no caminho das armas, isto é o caminho da
mos em Santiago do Chile no ano de 1970, em seu retorno dos EUA, praxis, ou o caminho das letras, isto é, o caminho da poieses, ocorreu-
18 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 19
me que a palavra que necessitava era autopoiese se o que desejava era gela. Certamente, é possível distinguir, entre os seres vivos, sistemas
uma expressão que captasse plenamente a conotação que eu dava ao autopoiéticos de diferentes ordens, segundo o domínio no qual estes se
falar da organização circular do vivo. À palavra autopoiese não surgiu efetuam. Em tal distinção, as células são sistemas autopoiéticos de
de José Maria, ele não a propôs e nem poderia tê-la proposto, pois não primeira ordem enquanto elas existem diretamente como sistemas
era seu problema, inventei-a ou a propus eu. Ainda assim lhe agradeço autopoiéticos moleculares, e os organismos somos sistemas autopoiéticos
a conversação posterior que tivemos em companhia de sua esposa, de segunda ordem, pois somos sistemas estabelecidos como agregados
Verónica, quem sugeriu como alternativa a palavra autopraxis, que celulares. Sem dúvida, é possível falar de sistemas autopoiéticos de
rejeitei, por ter me parecido limitadora em outros aspectos. No dia se- terceira ordem ao considerar, por exemplo, o caso de uma colméia, ou
guinte, eu a propus a Francisco, que gostou dela, e começamos a falar de uma colônia, ou de uma família ou de um sistema social como sendo
de autopoiese para referirmos-nos à organização dos seres vivos. um agregado de organismos. Porém, ali o autopoiético resulta do agre-
Inicialmente pensei que poderia utilizar a palavra autopoiese de gado de organismos e não é o definitório ou próprio da colméia, ou da
maneira exclusiva para referir-me à organização dos seres vivos. Logo colônia, ou da família, ou do sistema social, como a classe particular de
percebi, como já falei anteriormente, de que não era possível fazê-lo sistema que cada um desses sistemas é. Ao destacar e colocar ênfase
assim, já que tal organização, ao menos em princípio, pode ser realiza- no caráter autopoiético de terceira ordem de tais sistemas, quando tal
da em muitos domínios diferentes, com diferentes tipos de componen- autopoiese é de fato algo circunstancial em relação à constituição de
tes, e dar origem, assim, a muitas classes diferentes de sistemas nos seus componentes, e não o que os define como colméia, colônia, família,
quais a autopotesis é incidental e não definitória como o é no caso dos ou sistema social, o próprio de cada um deles como sistema fica oculto.
seres vivos, os que existem somente enquanto sistemas autopoiéticos Assim, por exemplo, ainda que é indubitável que os sistemas sociais
moleculares. Por isso, parece-me que devia ser específico, em cada caso, sejam sistemas autopoiéticos de terceira ordem pelo simples fato de
com respeito à indicação da natureza dos componentes do sistema serem sistemas constituídos por organismos, o que os define como o
autopoiético do qual falava, atendendo a que é de fato esta que deter- que são, enquanto sistemas sociais, não é a autopoiese de seus compo-
mina em cada classe de sistema seu domínio de existência como unida- nentes, mas a forma de relação entre os organismos que os compõem, e
de composta. É por isso que em minhas publicações posteriores, como que notamos na vida cotidiana no preciso instante em que os diferenci-
El árbol dei conocimiento (3), que também escrevi com Francisco Varela, amos em sua singularidade como tais ao usar a noção de “sistema soci-
ressalto que nós, os seres vivos, somos sistemas autopoiéticos molecula- al”. O que não se pode esquecer nem deixar de lado, é que estes siste-
res, indicando que o que nos define como a classe particular de siste- mas autopoiéticos de ordem superior se realizam através da realização
mas autopoiéticos que somos, isto é, o que nos define como seres vivos, da autopoiese de seus componentes.
é que somos sistemas autopoiéticos moleculares, e que entre tantos Além disso, temos que reconhecer que também podem realizar-se
sistemas moleculares diferentes, somos sistemas autopoiéticos. Em resu- sistemas autopoiéticos de ordem superior que sejam ao mesmo tempo
mo, 0 que neste livro pretendemos fazer, e sustento que o fazemos,é sistemas autopoiéticos de primeira ordem em seu próprio direito. É
“mostrar que os sistemas que diferenciamos como seres vivos no âmbito possível que isso aconteça com muitos organismos, se os processos
do biológico, são sistemas autopoiéticos moleculares, e que o fazemos moleculares transcelulares e intracelulares, que os realizam, resultam
mostrando que todos os fenômenos biológicos resultam do operar dos em seu conjunto estabelecendo uma rede autopoiética molecular de
sistemas autopoiéticos moleculares, ou das contingências históricas de primeira ordem que se intercepta com a realização das “autopoiesis”
seu operar como tais e que, portanto, ser vivo e sistema autopoiético moleculares particulares próprias das diferentes células que os com-
molecular são o mesmo. põem. Se este fosse o caso, os organismos existiriam como totalidades
Desde a primeira publicação deste livro, tem-se formulado a pos- autopoiéticas em dois domínios de fenômenos diferentes, e estariam
sível existência de sistemas autopoiéticos em outros âmbitos fora do sujeitos, em sua realização como tais, à conservação simultânea de
domínio molecular. Esta pergunta não se deve responder de forma sin- duas dinâmicas autopoiéticas de primeira ordem diferentes, uma a ce-
20 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 21
lular de seus componentes, e a outra a orgânica sistêmica de sua condi- tes por meio da mesma estrutura ou dos mesmos componentes estru-
ção de totalidade. O mesmo aconteceria com os sistemas que chamamos turais, na intersecção estrutural das diferentes organizações dos siste-
sociais, se eles fossem também, como totalidades, entes autopoiéticos de mas que se intersectam, não se intersectam e permanecem separados,
primeira ordem, coisa que em minha opinião certamente não o são. dando origem a sistemas que existem como totalidades diferentes em
Tampouco os sistemas sociais são sistemas autopoiéticos em outro do- espaços distintos. Não existe intersecção de organizações, e nem pode-
mínio que não seja o molecular. Sem dúvida, não o são no domínio ria, porque a distinção implica a organização, e ao distinguir somente
orgânico, já que nesse domínio o que define o social são relações de aparece a organização evolvida pela operação da distinção. Isto é
conduta entre organismos. Também não o são, ou poderiam sê-lo, em diferentes organizações às quais fazemos referência com as diferentes
um espaço de comunicações, como propõe o distinguido sociólogo ale- palavras que utilizamos permanecem independentes e distinguíveis
mão Niklas Luhmann, porque em tal espaço os componentes de qual- entre si, apesar da intercessão de suas diferentes realizações estrutu-
quer sistema seriam comunicações, não seres vivos, e os fenômenos rais. Aidentidade do sistema fica especificada somente em sua organi-
relacionais que implicam o viver dos seres vivos, que de fato destaca- zação, não em sua estrutura.
mos na vida cotidiana ao falar do social, ficariam excluídos. Eu diria ain- Como a organização não é diretamente distinguível, mas fica im-
da mais que um sistema autopoiético, num espaço de comunicações, é plícita no ato de distinção que traz à tona uma estrutura e devido ao
semelhante ao que distinguimos ao falar de uma cultura. fato de que os sistemas interatuam por meio de sua estrutura, os siste-
No entanto, é a organização o que define a identidade de classe mas são reconhecidos somente por aspectos particulares de sua reali-
de um sistema, e é a estrutura o que a realiza como um caso particular zação estrutural. Sem dúvida, sabemos tudo isto a partir da vida coti-
da classe que sua organização define (ver Maturana, 1975 (4); e diana, porque é nela onde nos damos conta de que podemos realizar
Maturana e Varela, 1985 (3)), os sistemas existem somente na dinâmi- em nosso viver várias identidades simultâneas ou sucessivas em uma
ca de realização de sua organização em uma estrutura. Por isso, a ope- mesma corporalidade. Porém, se não percebemos, além disto, que as
ração de diferenciação a um sistema, ou que somente o destaca com palavras que utilizamos de fato implicam a organização do que distin-
um nome ao indicar a estrutura, que o realiza, define sua identidade guimos, não percebemos que não podemos pretender que seja possível
de classe e implica a realização de sua organização nessa estrutura. As atribuir qualquer organização que ocorra ao sistema distinguido, já
diferentes palavras que utilizamos na vida cotidiana correspondem a que esse sistema surge na distinção com uma organização implícita
diferentes operações que realizamos no viver, e nunca são, na verdade, que fica especificada em sua distinção. O não-detectar isso tem levado
arbitrárias, e sempre revelam coerências do viver no âmbito de nossa ao uso indiscriminado da palavra autopoiese. Por último, é conveniente
atuação como seres humanos. Por isso, o fato de que no viver cotidiano, alertar que a organização implicada em uma operação de discrimina-
em nosso idioma, utilizamos diferentes palavras para falar dos seres ção não é arbitrária devido ao determinismo estrutural do operar de
vivos e dos sistemas sociais indica que não identificamos ou nos referi- observador, o qual em cada instante somente pode distinguir o que
mos ao mesmo sistema quando usamos uma ou outra dessas palavras, permitem a configuração relacional de sua estrutura e a estrutura da
e indica também que de fato ao falar de seres vivos e sistemas sociais circunstância.
falamos de sistemas diferentes, porque estão definidos por organiza-
ções diferentes. Isto é, se o que faz o ser vivo, ser vivo, é o fato de ser
um sistema autopoiético molecular, o que faz o sistema social, sistema Um caso artificial
social, não pode, de maneira alguma, ser o mesmo, já que o sistema
social surge como sistema diferente do sistema vivo ao surgir na dis- Quando estávamos finalizando o livro, surgiu a idéia de fazer um
tinção como sistema social, e quando sua realização envolva o viver modelo computacional. O que eu desejava era utilizar o computador
dos seres vivos que lhe dão origem. O que nos confunde é a intersecção para gerar processos equivalentes a processos moleculares, de manei-
estrutural dos sistemas, a realização de dois ou mais sistemas diferen- ra tal que, se os deixou operar sem qualquer referência a uma totalida-
992 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 23
Porém, talvez o mais esclarecedor da teoria do vivente, é a teoria ou de organismos, dão origem a alguma configuração de relações prefe-
da autopoiese, reside em que ela mostra que o ser vivo é um ente renciais que os separa como conjunto de um meio que os contém. Final-
sistêmico, mesmo que sua realização seja de caráter molecular. Esta mente, ao entender que o fenômeno do viver é a dinâmica autopoiética
teoria mostra que nenhuma molécula, ou classe de moléculas, determi- molecular, se pode entender: a) que o acontecer histórico dos seres vi-
na, por si mesma, qualquer aspecto ou característica do operar do ser vos é um processo espontâneo de conservação de linhagens e de forma-
vivo como tal, já que todas as características do ser vivo se dão na ção de novas linhagens na conservação reprodutiva de diferentes for-
dinâmica de sua autopoiese. De fato, um fenômeno é sistêmico se acon- mas de vida (ou fenótipos ontogênicos), em uma derivação ontogênica e
tece como resultado da atuação dos componentes de um sistema en- filogênica, b) que as variações nos modos de vida que dão origem a
quanto realizam as relações que definem o sistema como tal, e, no en- novas linhagens ao conservar-se na reprodução, surgem como varia-
tanto, nenhum deles o determina por si só, ainda quando sua presença ções epigênicas que se conservam na reprodução em circunstâncias na
seja estritamente necessária. Dessa maneira, a ordenação dos aminoá- qual a herança ocorre como um fenômeno sistêmico da relação organis-
cidos na síntese de uma proteína, de acordo com uma sequência parti- mo-meio, e não como um fenômeno de determinação molecular, e c) que
cular fixada pela seqtência de nucleotídeos presente num ADN especí- o destacado com a noção de seleção natural é o resultado da conserva-
fico, é um fenômeno sistêmico, já que depende da dinâmica de sínteses ção diferencial da variação na diversificação de linhagens, não o meca-
de proteínas que acontece na autopoiese celular para que se estabeleça nismo gerador dela (ver Maturana e Mpodozis, 1992) (7).
tal reação, e não basta apenas o ADN, Não pretendo que, ao afirmar o
caráter sistêmico de tudo o que acontece com os seres vivos, eu esteja
dizendo alguma coisa que não tinha sido dita anteriormente. O que Determinismo estrutural
afirmo é que, ao não fazermos plenamente claro o caráter sistâmico
dos fenômenos celulares, não falamos adequadamente dos seres vivos, Os seres vivos somos sistemas determinados na estrutura, e, como
e geramos um discurso reducionista enganador, como acontece com a tais, tudo o que nos acontece surge em nós como uma mudança estru-
noção de determinismo genético, e que oculta o caráter sistêmico da tural determinada também a cada instante, segundo nossa estrutura
geração dos aspectos fenotípicos. do momento. À ciência opera somente com sistemas determinados na
À compreensão do caráter sistêmico dos fenômenos que abran- estrutura, e tanto nela quanto na vida cotidiana tratamos a qualquer
gem o vivo que a teoria da autopoiese faz possível permite explicar a situação que nos pareceu violar o determinismo estrutural como ex-
origem dos seres vivos na terra, ou em qualquer lugar do cosmos, como pressão de um erro em nosso olhar, como uma fraude, ou como um
o surgimento espontâneo de um ser vivo como entidade distinta, tão milagre. A noção de determinismo estrutural, no entanto, não surge
logo quanto se estabeleça a dinâmica autopoiética molecular como um como um suposto ontológico ou um princípio explicativo, mas em um
fenômeno sistêmico. Da mesma maneira, a teoria da autopoiese permi- ato de síntese poética como uma abstração das regularidades da expe-
te entender o fenômeno da herança como um fenômeno sistêmico em riência do observador, e, portanto, apresenta validade em cada caso
relação ao ser vivo médio, que surge com a reprodução, enquanto esta somente no âmbito as regularidades em que surge. Por isso, os diferen-
é um caso de fratura com conservação de organização (ver Maturana, tes domínios de coerências experimentais que o observador vive consti-
1980 (5); e Maturana e Mpodozis, 1992 (7)), ao permitir ver que a orga- tuem diferentes domínios de determinismo estrutural, cada um deles
nização do ser vivo não depende de qualquer classe particular de molé- definido pelas coerências da experiência que lhe são próprias e o definem.
culas, por mais central ou principal que algum tipo delas pareça ser na Existem duas noções adicionais que não devemos confundir com
realização estrutural do ser vivo. A teoria da autopoiese permite, além determinismo estrutural ao falar de um sistema determinado em sua
disso, entender os fenômenos de simbiose celular e de formação de sis- estrutura, que são pré-determinismo e predicibilidade. O fato de que
temas multicelulares como fenômenos espontâneos de conservação um sistema seja determinado estruturalmente não implica que um ob-
sistêmica de uma nova organização, quando agrupamentos de células, servador possa predizer as mudanças estruturais que terá em seu de-
26 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 27
correr. Como uma predição é uma tentativa de tratar uma situação e em particular da conservação das espécies (ver Maturana e Mpodozis,
qualquer como um sistema determinado em sua estrutura, para logo 1992) é, também, um fenômeno sistêmico, não um fenômeno determi-
computar suas mudanças estruturais, o observador deve conhecer a nado a partir de um processo molecular. A crença na possibilidade de
estrutura do sistema do qual fala para predizer ou computar suas mu- uma dinâmica pré-determinista nos sistemas obscurece a compreen-
danças estruturais. Ao dizer que um sistema é ou não é previsível, são do fenômeno epigênico.
então, o que um observador faz é assumir seu conhecimento ou sua
ignorância a respeito da estrutura do sistema que caracteriza dessa
maneira. Todo o entendimento científico se baseia em reconhecer, im- Espontaneidade versus finalidade
plícita ou explicitamente, que em nosso explicar somente tratamos com
sistemas determinados em sua estrutura, qualquer que seja o âmbito Nada mais difícil de entender e aceitar do que a espontaneidade
de explicação que consideremos, de maneira que se não se cumpre o dos fenômenos biológicos, em uma cultura como a nossa, orientada ao
determinismo estrutural, pensamos em erro ou em conhecimento explicar propositivo ou finalista de todo o relacionado com o vivo. Às-
insuficiente. Também acontece que nem sempre podemos conhecer a sim, costumeiramente, não enxergamos que os processos moleculares
estrutura de um sistema no momento em que queremos computar suas são espontâneos, qualquer que seja o lugar ou as circunstâncias em
mudanças estruturais, seja porque não temos acesso a ela, ou porque que ocorrem, inclusive aqueles do metabolismo celular que acontecem
na tentativa de conhecer dita estrutura a destruímos, ou porque a di- com a participação das assim denominadas moléculas de “alta ener-
nâmica estrutural do sistema é tal que muda recursivamente com suas gia”, como o ATP (trifosfato de adenosina). Os processos moleculares
mudanças de estado, e cada vez que procuramos regularidades em suas acontecem, a cada instante, como resultado das propriedades estrutu-
respostas ao interagir com ele nos defrontamos com o fato de que sua rais das moléculas, e não porque alguma coisa externa os guie. Tam-
estrutura mudou e responde de maneira diferente. Os seres vivos são bém é muitas vezes difícil aceitar que um sistema, qualquer que seja,
sistemas desta última classe. A noção de pré-determinismo, no entan- surge no momento em que em um conjunto de elementos começa a
to, faz referência à possibilidade de que o estado inicial de um sistema estabelecer uma dinâmica de interações e de relações que dão origem a
determinado em sua estrutura especifique seus estados futuros. Isto uma clivagem (separação) operacional que separa um subconjunto des-
jamais acontece com os sistemas determinados em sua estrutura, já tes que passa a ser o sistema de outros elementos que ficam excluídos
que seu acontecer no âmbito de interações em que existem é uma deste, e que passam a constituir seu meio. À dinâmica de interações e
epigênese e somente isso pode ser ao surgir precisamente dessas relações que como configuração relacional entre elementos, ao conser-
interações. É por isso que penso que, em um sentido estrito, não existe var-se, separa a um conjunto de elementos de outros, dando origem a
determinismo genético, e que não se pode dizer, de maneira que tenha um sistema, passa a ser a organização do sistema, já que o conjunto de
sentido no operar dos organismos, que o fenótipo é expressão do genótipo. elementos e relações que realizam tal organização na unidade operacio-
O fenótipo surge numa epigênese. Pela mesma razão, a herança como nal que surge desta maneira, separada de um meio, como um ente
fenômeno de conservação reprodutiva de um modo de vida ou fenótipo particular, passa a ser sua estrutura. Isto é, o observador vê que ao
ontogênico é um fenômeno sistêmico e não-molecular, como já tinha surgir um sistema surge também o meio como aquele domínio de
mencionado anteriormente. O caráter epigênico do operar sistêmico complementaridade operacional no qual o sistema se realiza como um
em geral, e em particular do acontecer de qualquer ser vivo, exclui ente separado enquanto sua organização se conserva. À dinâmica de
toda pré-determinação. Pela mesma razão, a constituição de uma li- formação espontânea do sistema e seu meio constitui, para o observa-
nhagem na conservação reprodutiva de um fenótipo ontogênico (ou modo dor que não pode prever o surgimento de um sistema, porque não pode
de vida, ou configuração epigênica particular) é, também, um fenôme- enxergar as coerências estruturais a partir das quais surge, o apareci-
no sistêmico. E, por último, o estabelecimento de uma linhagem, e, mento da ordem a partir do caos. Nesse sentido, tudo surge do caos, já
portanto, a conservação reprodutiva de qualquer identidade biológica que surge como algo que se forma no começo do estabelecimento de
28 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 29
uma organização que não pré-existe, e que não se pode deduzir a partir mais. À organização espontânea de um sistema, ao surgir na conserva-
das coerências operacionais de onde o novo passa a apresentar sentido ção de uma configuração relacional entre um conjunto de elementos
relacional para o observador. O fenômeno histórico é um contínuo surgir que estabelece uma separação em relação a um meio que surge nesse
do caos, enquanto o presente é somente compreensível a posteriori em sua momento, tem, entre outras, duas conseqiiências fundamentais. Uma
relação com o passado, e a relação generativa que lhe dá origem surge é a aparição de um novo domínio relacional ou de fenômenos que antes
como uma relação explicativa que o observador propõe para relacionar não existiam, no qual a entidade ou sistema, que surge como unidade
dois domínios diferentes, conservando o determinismo estrutural. definida como tal pela organização que começa a estabelecer-se daí em
Em outras palavras, ordem e caos são dois aspectos dos comentá- diante, possui propriedades próprias como sistema ou totalidade, que
rios explicativos que um observador pode fazer sobre o que acontece na não são propriedades de seus componentes. Tal domínio relacional ou
dinâmica sistêmica espontânea de constituição de um sistema em um de fenômenos não se pode deduzir das propriedades dos componentes
domínio de determinismo estrutural desconhecido para ele ou ela, e do sistema porque surge com a composição. A outra consegiiência é que
não duas condições intrínsecas do que um observador pode chamar o gera-se uma assimetria no acontecer, porque cada situação surge como
mundo natural. Ão refletir a respeito do que acontece na dinâmica es- uma composição espontânea da anterior, na qual aparecem novos do-
pontânea de constituição dos sistemas, o que um observador nota é mínios relacionais ou de fenômenos, que o observador distingue ao fa-
que na distinção de um sistema surgem para ele ou ela três domínios lar de história e tempo. O tempo surge no explicar do observador a
de ordem: 1) o domínio das coerências estruturais do sistema diferenci- partir da distinção da assimetria do acontecer de sua experiência, ain-
ado, 2) o domínio das coerências estruturais do que surge como meio e da na situação na qual ele ou ela distingue um fenômeno que denomi-
em sua distinção do sistema, e 3) o domínio da dinâmica das relações na reversível, já que para fazer tal coisa o observador deve distinguir
entre o sistema e o meio. Além disso, para o observador que olha para sua própria assimetria experencial. Ambos, tempo e história, são pro-
o âmbito de onde surge um sistema a partir das coerências do operar posições explicativas da assimetria no acontecer da experiência do ob-
deste como totalidade, sem que ele ou ela o possa descrever, esse âmbi- servador, nas quais se destaca justamente sua irreversibilidade intrín-
to é, sensus stricto, caótico: em outras palavras, desde a perspectiva da seca. Quer dizer, o observador propõe a noção de tempo ao distinguir a
operação de um sistema, que surge sem que um observador seja capaz história de sua experiência, e é a partir dessa história que ele ou ela
de predizer seu surgimento, o âmbito a partir do qual surge antes de gera um referencial pelo qual pode falar como se houvesse reversibili-
sua aparição é o caos, e após, se o observador é hábil e consegue propor dade temporal nos fenômenos cíclicos, ainda quando o acontecer
um mecanismo generativo, o caos deixa de existir. O que surpreende e experencial do observador, pelo fato de surgir em uma dinâmica epigê-
faz pensar na necessidade de processos intencionais ou propositivos nica, seja intrinsecamente irreversível e unidirecional. Os processos
em relação ao ser vivo é a coerência operacional deste com sua circuns- descritos como cíclicos somente o são como projeções descritivas com as
tância numa dinâmica condutual que vai adaptando-se a um âmbito quais o observador os abstrai do fluir direcional a que pertencem.
que se apresenta mutável de maneira independente. Vejamos agora o tema da finalidade. A espontaneidade no surgi-
Penso que devo insistir aqui que a noção de caos surge da inabi- mento dos sistemas nega qualquer dimensão de intencionalidade ou
lidade ou incapacidade do observador para prever ó surgimento de um finalidade em sua constituição ou em seu operar, e faz com que finali-
determinado sistema a partir de um âmbito de determinismo estrutu- dade e espontaneidade pertençam somente ao âmbito reflexivo do ob-
ral que não pode descrever, e não indica que a organização do sistema servador como comentários que ele ou ela faz ao comparar e explicar
que surge dependa da arbitrariedade do observador. Sem dúvida, está suas distinções e experiências em diferentes momentos de seu obser-
em jogo o que o observador distingue, e o que ele ou ela de fato distin- var. Quem não aceita a espontaneidade dos processos moleculares não
gue está associado à operação de distinção que faz, porém o observador pode aceitar a espontaneidade das coerências operacionais entre o ser
distingue o que lhe compete distinguir no espaço de carências estrutu- vivo e o meio, próprias do viver. Dado o determinismo estrutural, uma
rais que surge nas coerências de sua experiência. Porém, existe algo vez que um sistema surge, seu acontecer consiste necessariamente
30 Maturana e Varela De Máguinas e Seres Vivos 31
numa história de interações recorrentes com os elementos de um meio pação em um processo histórico comum, da mesma maneira que as
que surgem com ele e o contém. Além disso, tal história de interações coerências dinâmicas dos pontos opostos de uma fonte de onda são o
recorrentes entre o sistema e o meio transcorre necessariamente como resultado de um processo histórico que se inicia na origem da onda.
uma derivação estrutural. Isto é, tanto a estrutura do sistema como a Assim, não é necessário imaginar vinculações de caráter causal para
estrutura do meio mudam necessariamente e de maneira espontânea explicar como os conteúdos citoplasmáticos de uma célula de alface
de um modo congruente e complementar enquanto o sistema conserva resultam nutritivos para nós, como tampouco é necessário fazê-lo para
sua organização e coerência operacional com o meio que lhe permite explicar que possamos estabelecer relações de afeto com um golfinho.
conservar sua organização. Isso acontece numa dinâmica de complemen- Insisti nesse ponto nesse prefácio, porque considero que é necessário
tariedade operacional na qual um observador vê o sistema deslocar-se tomar consciência de que os seres vivos são entes históricos partícipes
no meio seguindo o único curso que pode seguir na conservação de sua de um presente histórico em contínua transformação para compreen-
organização, num processo no qual as estruturas do sistema e do meio der o que mostramos neste livro ao indicar que os seres vivos somos
mudam conjuntamente de maneira congruente até que o sistema se sistemas autopoiéticos moleculares, e o que dizemos ao afirmar que o
desintegra. Na história dos seres vivos na terra, essa dinâmica tem viver se dá na realização da autopoiese molecular. Finalmente, é neces-
tido lugar desde que apareceu a reprodução segiencial, dando origem sário entender que os seres vivos existimos no presente de uma contí-
à geração, conservação e diversificação de linhagem, como a dinâmica nua dinâmica de surgimento histórico, para não tentar usar o presente
que tem dado origem a todas as formas de vida que hoje distinguimos (resultado da história) como argumento causal para explicar sua origem.
na terra. E tem tido lugar em um intercâmbio e mistura contínuos de
transformações estruturais nas quais as diferentes classes de seres vivos
vão surgindo, alguns como parte do meio dos outros. Os seres vivos: Comentário final
atuais constituímos o presente da dinâmica histórica espontânea de
constituição e conservação na reprodução de sistema autopoiéticos na Para mim, este livro não perdeu validade, talvez ao contrário. O
terra, que, ao acontecer, iniciou uma derivação de coerências operacio- livro é difícil, e muitas partes dele são inesperadas, porém diz o que
nais entre os diferentes seres vivos que não surgem somente de fenô- pretende dizer. Não existe segunda intenção no livro. Ão escrevê-lo não
menos casuais locais, mas surgem primariamente como coerências his- tentei dizer nem fazer diferente do que diz e faz: 1) que os seres vivos e
tóricas. De fato, os seres vivos terrestres exibem agora, e necessaria- o viver têm lugar na realização de sistemas autopoiéticos moleculares
mente o exibiram em todos os momentos de sua convivência histórica distintos; 2) que a dinâmica molecular da autopoiese ocorre, quando
como biosfera, coerências operacionais entre si e com o meio de caráter tem lugar, como um fenômeno espontâneo, no qual todos os processos
histórico que não podem senão aparecer incompreensíveis a um obser- moleculares acontecem numa determinação estrutural local sem ne-
vador que procura conexões causais locais sem recorrer a argumentos nhuma referência a totalidade que constituem; e 3) que os fenômenos
finalistas. biológicos, como fenômenos que surgem na realização do vivo, têm e
A análise que fiz da dinâmica de constituição dos sistemas e o tiveram lugar nas contingências do acontecer histórico da realização
que tenho dito da derivação dos seres vivos, em o que é seu acontecer da autopoiese molecular, nas unidades distintas que os seres vivos são.
histórico como parte da biosfera, mostram que não faz falta qualquer Ainda assim, talvez o que resulta mais inesperado é que na esponta-
outro argumento para explicar as coerências do viver que vemos entre neidade do viver surjam, espontaneamente, o observador, o explicar, e
os seres vivos terrestres, ainda que suas histórias evolutivas pareçam mesmo este livro como simples contingências do acontecer do viver dos
ser de todo independentes. As coerências operacionais que surgem no seres vivos. Não é o momento de falar disto neste prefácio, já que tenho
encontro de seres vivos ou são simples coincidências entre sistemas feito muitas publicações a respeito do tema do conhecer e dei origem ao
que possuam histórias, tanto evolutivas como ontogenéticas, indepen- que se tem denominado a “teoria biológica do conhecimento”, publicada
dentes no âmbito de seu encontro, ou são o resultado de sua co-partici- pela primeira vez em dois artigos, um entitulado Neurophysiology of
32 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 39
cognition (ver Maturana, 1969) (2) e outro entitulado Biology of cognition duta responsável. É a responsabilidade e a liberdade que o conheci-
(ver Maturana e Varela, 1970) (6). Por último, talvez, cabe assinalar mento e a reflexão fazem possível o que eu quero, e o que, por meu
que ainda que Francisco e eu tenhamos escrito juntos este livro e tam- ponto de vista, dá sentido a este livro, além de sua validade como pro-
bém outro, entitulado, Ei árbol del conocimiento, nossos caminhos têm posta explicativa do vivo e do viver. Este foi meu primeiro motivo ínti-
ido por rotas diferentes. O vivido, vivido está. Muitas vezes passamos mo para escrever este livro.
momentos gratos juntos, outras não, porém eu desejo agradecer-lhe Os seres vivos existimos em dois domínios, no âmbito da fisiolo-
aqui, neste prefácio, tudo o que minha vida pode ter-se enriquecido gia onde ocorre nossa dinâmica corporal, e no domínio da relação com o
nesta dinâmica de encanto e desencanto que vivemos juntos, ao escre-
meio onde tem lugar nosso viver como a classe de seres que somos.
ver este livro e ao fazer tudo o que fizemos, primeiro quando era meu Esses dois domínios, ainda que diferentes, se modulam mutuamente
aluno, e, depois, quando trabalhamos como colegas na Faculdade de de uma maneira generativa, de modo que o que acontece em um muda,
Ciências da Universidade do Chile. de acordo com o que acontece no outro. É no domínio da relação com o
outro na linguagem que sucede o viver humano, e é, portanto, no âmbi-
to ou domínio da relação com o outro que tem lugar a responsabilidade
Por último
e a liberdade como formas de conviver. Porém, é ali, também, que ocor-
rem as emoções como modos de conduta relacional com o outro ou ao
Por que ou para que explicar o viver e os seres vivos? Os seres outro, e é ali, no que é o fundo da alma humana, que está a frustração
humanos modernos vivemos em conflito, perdemos a confiança nas no- e a revolta dos seres humanos jovens. Temos desejado substituir o amor
ções transcendentes que antes davam sentido à vida humana sob a pelo conhecimento como guia em nosso “que fazer” e em nossas rela-
forma de inspirações religiosas, e o que nos fica em troca, a ciência e à
ções com outros seres humanos e com a natureza toda, e temos nos
tecnologia, não nos dá o sentido espiritual que necessitamos para vi- equivocado. Amor e conhecimento não são alternativas; o amor é um
ver. Existe frustração e enjôo nos jovens que procuram saber o que fundamento, enquanto o conhecimento é um instrumento. Além disso,
fazer diante de um mundo que os adultos temos levado ao caminho da o amor é o fundamento do viver humano, não como uma virtude, mas
destruição. Que fazer? Penso que o conhecimento, acompanhado da como a emoção que no geral funda o social, e em particular fez e faz
reflexão que nos faz conscientes de nossos conhecimentos e de nossos possível o humano como tal na linhagem de primatas bípedes a que
ciiçe
desejos, faz-nos responsáveis, porque nos faz conscientes das consegiiên- pertencemos (Maturana e Verden-Zoller, 1993) (8), e ao negá-lo na ten-
cias de nossos atos, e atuamos, segundo desejamos, ou não, essas conse- tativa de dar um fundamento racional a todas nossas relações e ações
quências, e nos torna livres, porque nos faz conscientes de nossa res- nos desumanizamos, tornando-nos cegos a nós mesmos e aos outros.
ponsabilidade, e podemos atuar, segundo o iríamos ou não, viver as Nessa cegueira perdemos na vida cotidiana o olhar que permite ver a
consegiências de atuar com responsabilidade. Ainda que os seres vi- harmonia do mundo natural ao qual pertencemos, e já quase não so-
vos somos sistemas determinados na estrutura, os seres humanos como mos capazes da concepção poética que trata desse mundo natural, da
seres vivos, que vivemos na linguagem, existimos no fluir recursivo do biosfera em sua harmonia histórica fundamental, como é o reino de
conviver coordenações de coordenações condutuais consensuais, e con- Deus, e vivemos em luta contra ele. Haver percebido: isso tem sido meu
figuramos o mundo que vivemos como um conviver que surge na convi- segundo motivo íntimo para buscar a compreensão do vivo e o viver no
vência em cada instante segundo como somos nesse instante. Por isso, desejo de reencontrar, através da consciência de responsabilidade e de
não dá no mesmo saber ou não saber como somos como seres vivos, e liberdade, a unidade de corpo e alma no viver humano que o entendi-
não no mesmo saber ou não saber como vivemos os livres. Também não mento de nosso ser biológico faz possível.
dá no mesmo saber ou não saber que somos livres ao refletir, e saber ou
não saber que a reflexão nos permite sair de qualquer cilada e, de fato,
transcender o determinismo estrutural da nossa corporalidade na con-
34 Maturana e Varela
mem não como um agente que “descobre” o mundo, mas que o consti- Para poder iluminar os temas de fundo necessito começar pelo
tui. É o que podemos chamar o giro ontológico da modernidade, que no que foram as raízes desta história a partir de minha perspectiva pes-
final do século XX se perfila como um novo espaço de vida social e de soal. Paradoxalmente, somente através do resgatar como é que os te-
pensamento que está certamente mudando progressivamente a face mas de fundo apareceram na especificidade de minha perspectiva é
da ciência. que posso comunicar ao leitor a maneira como esta invenção encontra
Ao longo destas páginas tentarei um maior desenvolvimento do lugar num horizonte mais amplo.
que acabei de expressar. São idéias que devemos ter como farol diante
de nós, para fazer possível uma leitura das origens, a gestação e ama-
durecimento da idéia deautopoiese. Dito de outra maneira, aautopoiese Os anos de incubação
ocupa um lugar numa trama bastante mais ampla que a da biologia, na
qual aparece hoje em uma posição privilegiada. Essa sintonia com uma Pertenço a uma geração de cientistas chilenos que tiveram o pri-
tendência histórica, intuída mais que sabida, constitui o fundamento cen- vilégio de serem jovens num dos momentos mais criativos da comuni-
tral deste livro, e é sua trajetória a que me proponho a delinear. dade científica chilena, na década dos anos sessenta. Como adolescen-
Deixar uma assinatura num texto é mais que uma possessão pes- te, tive uma vocação prematura pelo trabalho intelectual, e as ciências
soal, um sinal num caminho. As idéias aparecem como movimentos de biológicas sem dúvida apareciam como meu norte. Ão egressar do se-
redes históricas nas quais os indivíduos são formados, mas, mais que eles, gundo grau em 1963 optei pela universidade católica, que anunciava
às idéias. Assim, Darwin já tinha Wallace que o esperava, e a Inglaterra um programa inovador de “Licenciatura em Ciências Biológicas” após
victoriana como base; Einstein sozinho em seu escritório de patentes suí- o terceiro ano de medicina. Como aluno de medicina, conheci assim os
ças, dialogava com Lorentz, e era sustentado pelo mundo da física primeiros pesquisadores, que me pareceram fascinantes, personagens
germânica de fim de século; Crick já conhecia as idéias de Rose e Pauling como Luiz Izquierdo, Juan Vial, Héctor Croxato e, sobretudo, Joaquín
ao encontrar Watson, e seu estado de ânimo era próprio de Cambridge dos Luco, que me contagiou de maneira definitiva com a paixão pela
anos 50. Considerando as diferenças e mantendo as distâncias que ca- neurobiologia. No início de meu primeiro ano, pedi a Vial que me admi-
bem, a história da autopoiese também tem seus antecedentes de resulta- tisse como aprendiz em seu laboratório de biologia celular. Ele me ofe-
dos de onde surge e uma base peculiar que a nutre, em particular nas receu a chave da pequena porta de seu laboratório à rua Marcoleta,
idéias de Maturana nos anos 60. Porém, além disto, foi o Chile inteiro que onde ia nas horas vagas fazer cortes de nervos com coloração especial
teve um papel fundamental nesta história. Os novos cientistas do Chile e para evidenciar a mielina.
da América Latina encontram aqui material para refletir. Juan Vial também me deu bons conselhos, incluindo o de mudar
Escrever este prefácio é, insisto, um capítulo da história no qual de curso e continuar minha formação em 1965 na recentemente criada
os homens e as idéias vivem, porque somos mais pontos de acumulação Faculdade de Ciências da Universidade do Chile. Foi um passo funda-
das redes sociais, nas quais habitamos, que vontades ou gênios indivi- mental, porque saí do universo das carreiras tradicionais para entrar
duais. Não se pode pretender agrupar a densidade de ações e conversa- de cheio no universo da formação científica exclusiva, até então desco-
ções que nos constituem em um relato pessoal necessariamente unidi- nhecida no Chile. Em uma das salas emprestadas no último andar da
mensional. Não pretendo que o que digo aqui seja uma narrativa obje- escola de engenharia da rua Beaucheff encontrei meu meio de cultura:
tiva. O que ofereço é, pela primeira vez, minha leitura, tentativa e um pequeno grupo de jovens entusiasmados pela pesquisa em ciência
aberta, como surgiu a noção de autopoiese, e qual tem sido sua impor- pura, e professores-pesquisadores que ensinavam aos futuros cientis-
tância e trajetória. Cada uma das coisas que digo foi amadurecida lon- tas com paixão.
ga e, acredito, honestamente até onde posso julgar minha consciência
como responsável de ser um dos atores diretos desta criação, conscien-
te, porém, de que não posso me considerar dono da verdade.
38 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 39
Nos anos de liceu (segundo grau), minhas leituras eram tão apai- A Faculdade de Ciências, naquela época pioneira, fazia poucas
xonadas como aleatórias, misturando Aristóteles (nessas belas edições concessões no nível de formação matemática. Em meu primeiro dia de
da Revista de Ocidente), Ortega e Gasset, Sartre e Papini. Na Escola aula, sem dizer uma palavra, o professor começou a escrever: “Seja E
de Medicina, um encontro frutífero com Arturo Gaete me guiou numa um espaço vetorial; os axiomas de E são:...”. Após o choque inicial para
40 Maturana e Varela De Máguinas e Seres Vivos 41
colocar-me ao nível, descobri na matemática uma linguagem e uma dições de referência. Tratava-se de fazer uma reformulação que levas-
maneira de pensar que me maravilharam. Ao mesmo tempo descobri, se a uma “epistemologia experimental”, um feliz termo introduzido por
graças a Heinz von Foerster, o mundo da cibernética, os modelos e a McCulloch. Gabriela e Humberto tinham começado um estudo de de-
reflexão sistemática. Heinz é um dos fundadores de todo esse universo terminados efeitos cromáticos semelhantes aos descritos por E. Land
de discurso e, ainda que o tenha conhecido pessoalmente apenas em em 1964, e que se transformaram no tópico ao redor do qual se realiza-
1968, se transformou em um personagem de grande importância para va uma primeira tentativa de reformular a percepção visual como não-
mim. Em seus trabalhos, que circulavam pelo laboratório da rua Inde- representacional.
pendência, apareciam títulos que me maravilhavam, tais como Histó- O tempo de minha formação no Chile terminava. O Departamen-
ria natural das redes neurais ou outros mais intraduzíveis como A to de Biologia da Faculdade de Ciências me deu apoio para obter uma
circuity of clues for platonic ideation (4). Encontrei nestas idéias um bolsa na Universidade de Harvard para fazer um doutorado (ainda
instrumento para expressar as propriedades dos fenômenos biológicos, que somente tivesse completado 4 anos de universidade, dois em medi-
além de suas características materiais. cina e dois na Faculdade de Ciências). Comecei a encerrar minha vida
Era uma forma de pensar que tinha aparecido somente nos anos de estudante no Chile, consciente de partir com um centro de interesse
cinquenta, mais claramente com a publicação do livro Cybernetics de claro na epistemologia experimental, e com seus três pilares vivos na
Norbert Wiener (1962), e sob a influência de outro grande personagem minha imaginação.
do MIT, Warren McCulloch (5), a quem Humberto tinha conhecido em
1959-1960 quando trabalhava no MIT, Wiener, McCulloch e Von Foers-
ter foram pioneiros da conjugação da reflexão epistemológica, a pes- Harvard e a crise de 68
quisa experimental e a modelação matemática. Entre outras coisas,
aparecia aqui expressa de maneira contagiosa que a metáfora do Parti para Harvard no dia 2 de janeiro de 1968 em um avião da
computador não era a única que se tinha à mão para pensar na opera- Braniff e lendo um texto de Koyré sobre Platão. Cheguei a Cambridge
ção do sistema nervoso. com uma grande tempestade de neve, sem casa, longe de falar inglês
de maneira fluente, e com a espada de Damocles sobre minha cabeça:
se não obtivesse aprovação em tudo com conceito “A” a bolsa seria
Iniciação na epistemologia experimental suspensa. Os primeiros meses foram duros, porém, uma vez instalado,
sabendo já movimentar-me nesse novo reino, comecei a frequentar os
A aprendizagem da profissão de neurobiólogo não era a única cursos e seminários de todo tipo: em antropologia (os estudos sobre a
que acontecia no subterrâneo da rua Independência. Humberto tinha etologia natural de primatas começavam), em evolução (S. Gould re-
entrado de cheio em um período de questionamentos de determinadas cém tinha chegado a Harvard e contrastava com E. Mayr, o clássico),
1ucias dominantes em neurobiologia, e a discussão, a leitura e o debate em matemática (a teoria de sistema dinâmicos não-lineares era desco-
eram cotidianos, estimulados pela presença de Gabriela Uribe, médica berta nessa época), e em filosofia e linguística (Chomsky era a figura
de clara inclinação epistemológica que trabalhava com Maturana na- dominante junto a Putnam e Quine). Encontrei em Cambridge biblio-
quela época. Eram tempos de busca e discussão para colocar em foco o tecas apesar de sonhadas, bem providas e abertas a toda hora. Tinha a
que aparecia como uma insatisfação e uma anomalia. A insatisfação impressão de ter pulado de galáxia, e não lembro um só dia em que não
principal apontava ao fato de que a noção de informação, supostamen- tivesse desejo de absorver como “maníaco” tudo o que tinha à mão.
te chave para entender o cérebro e o conhecimento, não aparecia com Cedo percebi, com grande surpresa, que, em relação a meus cole-
um papel explícito no processo biológico. Humberto percebia que os gas de geração nos estudos de doutorado, minha visão da ciência e
seres vivos são, como dizia naquela época, “auto-referidos”, e que de meus interesses eram francamente mais heterodoxos e maduros que a
alguma maneira o sistema nervoso é capaz de gerar suas próprias con- maioria. Ainda mais, aprendi que falar com meus professores sobre
42 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 43
problemas epistemológicos (como estava acostumado em Santiago do uma ciência diferente, na qual as anomalias que já tinha notado no
Chile) era mal visto. À mesma coisa aconteceu quando tentei cultivar Chile e que se acentuavam nos EUA pudessem ser transformadas em
meus interesses em biologia teórica. O que havia sido a escola do MIT prática científica. Fazer ciência original e própria parecia o mesmo que
em 1968 já havia desaparecido, com McCulloch aposentado e sem nin- o compromisso com minha história e minhas origens.
guém que tomasse seu lugar. Meu único ponto de referência continua- Doutorei-me em biologia em junho de 1970. Contra o protesto de
ria sendo von Foerster, a quem visitei em muitas oportunidades no meus professores, rejeitei um cargo como pesquisador de Harvard e outro
Biological Computer Laboratory na Universidade de Illinois em Urba- como professor assistente em outra universidade americana. Decidi acei-
na, um ativo e produtivo centro que ele dirigia naquela época. Foi fácil tar o cargo que me oferecia a Faculdade de Ciências, justamente desejosa
concluir que minha busca intelectual teria que ser em dois tempos: o de recuperar o esforço que tinha empenhado em minha formação. Voltei
oficial e o privado. ao Chile em 2 de setembro de 1970, e a eleição de Salvador Allende dois
Oficialmente me fiz aluno de Keith Porter, em cujo laboratório dias depois me pareceu minha segunda e verdadeira graduação. Por fim,
aprendi a trabalhar em biologia celular, e de Torsten Wiesel, que de- o trabalho poderia começar plenamente, com problemas-chaves bem deli-
pois receberia o prêmio Nobel por seus trabalhos sobre o “processamento mitados, com a certeza de estar preparado e competente para o que mais
de informação” no córtex visual. Orientei meu interesse a aspectos com- houvesse na cena científica mundial, e com o contexto de trabalhar numa
parativos da visão e comecei a trabalhar na estrutura funcional dos inserção na que havia um futuro por construir. Esta convergência de cir-
olhos dos insetos, que seria o tema de minha tese. Ao início de 1970, já cunstâncias foi absolutamente decisiva. É com todos esses ingredientes da
tinha publicado quatro artigos a respeito do tema, e aprovei minha situação em setembro de 1970 que posso agora voltar à especificação da
tese em abril de 1970. noção de autopoiese e sua gestação.
Fora do laboratório e extra-oficialmente, pela primeira vez me
movimentava em um mundo muito mais vasto que o de Santiago, com
jovens de outra cultura, no qual se misturavam as nacionalidades e as A GESTAÇÃO DA IDÉIA
raças. O destino quis que aqueles anos incluíssem os míticos eventos
que marcaram toda minha geração. O que começara em Paris na noite Especificando o problema
de 10 de maio de 1968 seguiu-se com o movimento norte-americano,
centrado na oposiçãoà guerra do Vietnã. Aos mortos em Kent State O antecedente direto da gestação da autopoiese é o texto de
seguiram-se as primeiras greves estudantis, as quais aderi, com mo- Maturana escrito em meados de 1969 originalmente entitulado Neuro-
mentos dramáticos como a noite em que a polícia nos tirou a cacetadas physiology of cognition. Humberto havia continuado seu próprio cami-
de Harvard Yard. Os anos em Cambridge foram para mim a descober- nho de interrogação sobre a inedequação das idéias de informação e
ta de minha inserção social cidadã e da possibilidade de fazer-me res- representação para entender o sistema biológico. Passou a visitar-me
ponsável por mudanças em meu meio social. Foi um reencontro, à dis- em várias oportunidades em Cambridge, e, da mesma forma que em
tância, com minhas raízes latino-americanas, através de meus amigos Santiago, tivemos longas conversações. No semestre de primavera de
do movimento que exaltavam a revolução cubana. Não era somente a 1969, Heins Von Foerster convidou-o por alguns meses ao Biological
ciência o que me ocupava, era também o sonho de pensar em uma Computer Laboratory, ocasião que coincidiu com uma reunião interna-
América Latina nova, própria de nossa geração. cional da Wenner Green Foundation sob o tema Cognition: A multiple
O haver-me descoberto como animal social e político acentuou a view, um título visionário à luz do enorme desenvolvimento das hoje
necessidade de guardar silêncio em público a respeito de meus verda- denominadas ciências cognitivas, porém a!até então não formuladas como
deiros interesses nos círculos sociais. Fiel à idéia de ciência como ativi- âmbito de pesquisa científica.
dade que se faz e se cria por saltos e por inovações ousadas, cultivei, Humberto preparou para essa reunião o texto mencionado, dan-
como meus camaradas de geração, a intenção de voltar ao Chile e fazer do pela primeira vez expressão clara a suas idéias radicado até
44 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 45
então, para evidenciar o que até então mencionava como o caráter auto- página na versão definitiva de Biology of cognition, seria o ponto focal
referido dos seres vivos, e para identificar definitivamente a noção de a partir do qual se iniciaria o desenvolvimento da noção de autopoiese.
representação como o pivô epistemológico que precisava mudar. Em Aqueles eram os meses finais de 1970. Estava eu de volta ao
seu lugar era necessário colocar no centro da atenção a concatenação Chile, já que o Departamento de Biologia tinha me pedido que assu-
interna dos processos neuronais, e descrever o sistema nervoso como misse o curso introdutório de Biologia Celular para nossos novos alu-
um sistema “fechado”, como diz o texto. Tal artigo marca um salto im- nos. Com Maturana, éramos agora colegas no Departamento de Biolo-
portante, e ainda hoje acredito que inicia de maneira indiscutível um gia, vizinhos de gabinete nas dependências “transitórias” (porém ain-
giro para uma nova direção. Lembro de ter ido visitar Humberto em da utilizadas) do novo campus da Faculdade de Ciências na rua Las
Illinois e ter discutido várias partes difíceis do texto enquanto o “parto” Palmeras, em Macul. Estava tudo em seu lugar para propiciar o questio-
se concluía. O texto apareceu pouco depois (6), e o artigo se inicia com namento sobre a natureza da organização mínima do ser vivo, e não
um parágrafo de agradecimento às muitas conversações com Heinz e perdemos tempo. Em minhas notas os primeiros esboços mais madu-
comigo. Pouco depois Humberto retrabalhou este texto, e uma versão ros aparecem já ao final de 1970, e ao final de abril de 1971 aparecem
definitiva passou a chamar-se Biology of cognition. mais detalhes, juntamente com um modelo mínimo que seria mais tar-
Neste texto é observada brevemente uma idéia que me vinha de objeto de simulação no computador. Em maio de 1971, o termo
intrigando desde muito antes, e que, como ajudante do curso de biolo- autopoiese figura nas minhas notas como resultado da inspiração de
gia celular que ministravam George Wald e James Watson em Harvard, nosso amigo José M. Bulnes, que acabava de publicar uma tese a res-
parecia-me não muito clara, como uma anomalia: falava-se da consti- peito de Dom Quixote, no qual se utilizava a distinção entre praxis e
tuição molecular de uma célula, e eram usados termos tais como auto- poieses. Uma nova palavra nos convinha porque queríamos designar
manutenção, porém ninguém, nem os dois prêmios nobéis reunidos, algo novo. Porém, a palavra somente adquiriu poder associada ao con-
sabia o que se queria dizer com isso. O que é pior ainda, quando inicia- teúdo que nosso texto lhe atribui; sua ressonância vai além do simples
va a conversa na hora do almoço, a reação costumeira era um típico encanto de um neologismo.
“Francisco. Sempre metendo-se em filosofia”. Meus apontamentos da- Foram meses de discussão e trabalho quase permanente. Algu-
quela época incluíam várias tentativas de especificar a autonomia bá- mas idéias eram testadas com meus estudantes do curso de Biologia
sica do processo celular como base da autonomia do ser vivente. Ao Celular, outras com colegas no Chile. Era claro que embarcávamos em
final de 1969 apareceu na vitrine de Shoenhoff's Foreign Books, o opus uma tarefa que era conscientemente revolucionária e anti-ortodoxa, e
magnum de Jean Piaget entitulado Biologie et connaissance (7), no que essa coragem tinha tudo a ver com o estado de ânimo do Chile, no
qual se indica claramente a necessidade de revisar a biologia na dire- qual as possibilidades se abriam a uma criatividade coletiva. Os meses
ção de Vautonomie du vivant; porém, a linguagem de Piaget e suas que levaram à configuração da autopoiese não são separáveis do Chile
indiossincrasias me deixavam insatisfeito. de então.
Em seu artigo, Humberto salientava o vínculo entre o caráter No inverno de 1971, sabíamos que tínhamos em mãos um concei-
circular dos processos neuronais e o fato de que o organismo é também to importante e decidimos escrevê-lo. Um amigo nos emprestou sua
um processo circular de intercâmbios metabólicos, como era ilustrado casa na praia de Cachagua. Fomos em duas ocasiões entre junho e
em um recente artigo de Commoner, publicado em Science, que discu- dezembro. Os dias na praia se dividiam em longas caminhadas, e so-
tia os novos avanços da bioquímica do metabolismo e sua evolução. A bretudo num ritmo monástico de escrita que normalmente era iniciada
pergunta que surgia então era esta: se deixamos de lado por momentos por Humberto e retomado por mim. Ao mesmo tempo, eu iniciava uma
a organização do sistema nervoso e centramos a pergunta sobre a au- primeira versão (que Humberto revisava) de um artigo mais breve que
tonomia do ser vivo em sua forma celular, que podemos dizer? Essa iria expor as idéias principais com a ajuda de um modelo mínimo (que
reflexão a respeito da natureza circular do metabolismo nos seres vi- denominamos protobio, como detalho mais adiante). Por volta de 15 de
vos e sua relação com o operar cognitivo, ainda que ocupe uma curta dezembro (outra vez segundo minhas notas de 1971), tínhamos uma
46 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 47
versão completa de um texto em inglês chamado: Autopoiese: the ram, que o esclarece e o faz mais acessível do que quando foi escrito
organization of living systems. Sua versão datilografada somava 76 pági- pela primeira vez. Segundo, porque é com a base em minha compreen-
nas, das quais se fizeram algumas dúzias de cópias pelo antigo método de são atual que falo aqui sobre sua história e sua trajetória.
mimeógrafo em tinta azul. Ainda que com algumas modificações posterio- O que delimita o trabalho feito neste texto é que pela primeira
res, esse texto é o que o leitor tem em suas mãos, traduzido. vez se articulam explicitamente as seguintes idéias:
Como tem acontecido frequentemente na história da ciência, a
dinâmica criativa entre Maturana e eu foi uma ressonância em espiral O. O problema da autonomia do ser vivo é central e é necessário
ascendente, na qual participava um interlocutor já maduro que trazia especificar ou examinar em sua forma mínima, na caracteriza-
uma bagagem de experiência e pensamento prévio e um jovem cientis- ção da unidade vivente.
ta que contribuía com idéias e perspectivas frescas. Como é evidente, 1. A caracterização da unidade viva mínima não pode se fazer so-
dadas as circunstâncias, as idéias não surgiram em uma conversação mente sobre a base de componentes materiais. A descrição da
nem em duas, nem era uma simples questão de tornar explícito o que organização do vivo como configuração ou patterné igualmente
já estava dito anteriormente. O que estava na base devia ser configu- essencial.
rado em um salto qualitativo. Tais transições jamais são simples, nem 2. À organização do vivo é, fundamentalmente, um mecanismo de
é possível retratar como ocorreram de maneira exata, porque são sem- constituição de sua KrseRdtri como entidade material.
pre uma mistura de passado e presente, de talentos e debilidades, de 8. O processo de constituição de identidade é circular: uma rede de
imaginação e inspiração. A noção madura de autopoiese tinha, como produções metabólicas que, entre outras coisas, produzem uma
vimos, claros antecedentes, porém entre os antecedentes e uma idéia membrana que torna possível a existência mesma da rede. Esta
madura existe um salto que é fundamental. E assim como Franklin circularidade fundamental é portanto uma autoprodução única
não é a dupla espiral de Watson & Crick, nem Lorentz é a relatividade da unidade vivente em nível celular. O termo autopoiese designa
especial, os antecedentes chaves da autopoiese não são reduzíveisà esta organização mínima do vivo.
expressão desenvolvida ou madura da idéia, como é fácil ver compa- 4. Toda interação da identidade autopoiética acontece não somente
rando os textos publicados. É um exemplo claro do que já tinha apren- em termos de sua estrutura físico-química, mas também quanto
dido com meus mestres franceses: que a ciência possui descontinuidades, unidade organizada, isto é, em referência a sua identidade
que não funciona por acumulação empírica progressiva, e que é inse- autoproduzida. Aparece de maneira explícita um ponto de refe-
parável de seu contexto histórico social. rência nas interações e, portanto, surge um novo nível de fenô-
Deixemos pelo momento a filigrana histórica e identifiquemos menos: a constituição de significados. Os sistemas autopoiéticos
qual é, mais precisamente, a especificação do conceito e como se consti- inauguram na natureza o fenômeno interpretativo.
tui em um salto qualitativo. 5. À identidade autopoiética torna possível a evolução através de
séries reprodutivas com variação estrutural com conservação de
identidade. A constituição de identidade de um indivíduo antece-
A especificidade da autopoiese de, empírica e logicamente, o processo de evolução.
O que havíamos conseguido naqueles meses de intensa produ- Estes cinco(*) pontos entrelaçados expressam a especificação da
ção? Por que o conceito haveria de ter um destaque além dos muros da autopoiese como noção, sua ruptura com concepções anteriores e, em
Faculdade de Ciências? Para poder responder, necessito da paciência minha opinião, o fundamento de porque encontrou Resson nestas duas
do leitor para poder dizer o que é a autopoiese e diferenciá-la do que últimas décadas. De fato, a idéia condensa de uma maneira compacta
não é. Isto por duas razões. À primeira porque o que está dito no texto
desse livro teve um amadurecimento nas duas décadas que o segui- N. do R. T.: Lapso do autor em enumerar itens, mas numera a partir de zero
48 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 49
e quase holográfica três conceitos que estão no centro das preocupa- Uma idéia e dois textos
ções de várias disciplinas científicas atuais: a neurobiologia e a biolo-
gia evolutiva, as ciências cognitivas e a inteligência artificial, as ciên- O que acabo de relatar não era evidente, insisto, em 1971. Como
cias sociais e da comunicação: é inevitável, a compreensão se desenvolve ao longo do tempo e na medida
de seus efeitos. Não surpreende então que o texto que concluímos ao
. Há na natureza propriedades radicalmente emergentes, que sur- final de 1971 não tivesse tido uma aceitação imediata. De fato, foi en-
gem de seus componentes de base, mas que não se reduzem a viado ao menos a cinco editores e revistas, e todos sem exceção o consi-
eles. A vida celular é um caso exemplar de tal propriedade emer- deraram impublicável. Lembro que em janeiro de 1972 meu ex-profes-
gente, e sobre esta base pode definir-se “o vivo” de uma maneira sor Porter me convidou para visitar o novo Departamento de Biologia
precisa e ainda formalizável. da Universidade de Boulder, onde ministrei entusiasticamente uma
. Toda série evolutiva é secundária à individualização dos mem- palestra entitulada: Celis as autopoietic machines. A recepção foi fria e
bros da série. O processo de individuazação contém capacidades distante, o que também aconteceu ao visitar os colegas de Berkeley
emergentes ou internas que fazem que a série evolutiva não se pela mesma época.
explique somente sobre a base de uma seleção externa, mas tam- Às dificuldades de publicação, acrescentadas ao momento políti-
bém das propriedades intrínsecas da autonomia dos indivíduos co pelo qual passava o Chile ao final de 1972, faziam-me sentir aliena-
que a constituem. do ao mundo científico internacional. Por isto, a ocasional recepção en-
e O fenômeno interpretativo é uma chave central de todos os fenô- tusiasta de certas pessoas às quais eu respeitava foi de enorme valor,
menos cognitivos naturais, incluindo a vida social. O significado O primeiro a ter uma percepção clara das possibilidades da idéia foi,
surge em referência a uma identidade bem definida, e não se ex- naturalmente, nosso amigo Heinz nos EUA, com quem mantinha co-
plica por uma captação de informação a partir do exterior. municação constante e que veio ao Chile durante esses anos. Outro
cibernético e sistemista já célebre que teve uma reação positiva foi
O que esta idéia não evoca é a derivação histórica de sistemas Stafford Beer, que vinha regularmente ao Chile. De fato, Fernando
celulares terrestres tal como os conhecemos hoje em sua expressão mi- Flores o havia contratado em nome do governo para colocar em anda-
nima bacteriana. Em particular, a autopoiese estabelece as condições mento um sistema revolucionário de comunicação e regulação da eco-
necessárias para uma série evolutiva porque determina um tipo de nomia chilena inspirado no sistema nervoso, que passou a chamar-se
indivíduos, porém não se pronuncia sobre a maneira como esses indiví- projeto cinco. Beer respondeu com tal entusiasmo ao que o texto expu-
duos adquirem mudanças estruturais que lhes permitem uma deriva- nha que decidimos pedir-lhe um prefácio, que aceitou escrever imedia-
ção evolutiva rica e diversa. É aqui que desempenham papel-chave os tamente. Em janeiro de 1972, com uma cópia ainda fresca do manus-
ácidos nucléicos (ADN, ARN) e as proteínas (as denominadas molécu- crito, eu fui convidado a ir para o México por Ivan Illich, em seu centro
las com informação) enquanto suporte da herança celular, o que prova- CIDOC em Cuernavaca. No dia da chegada dei-lhe o manuscrito e, à
velmente começou com o mundo do ARN. A discussão sobre a origem manhã seguinte, me ficou gravada sua reação: “É um texto clássico.
da vida comumente é centrada nesta série de mudanças estruturais Vocês conseguiram colocar a autonomia no centro da ciência”. Através
(8). Em contraste, a autopoiese somente pretende estabelecer a classe de Nllich, o texto chegou às mãos do famoso sociólogo Erich Fromm, o
de indivíduos com a qual essa série evolutiva começa e se origina: tra- qual me convidou à sua casa-retiro para discutir o novo conceito, que
ta-se do critério de delimitação entre os primeiros seres vivos e o “caldo ele incorporou de imediato ao livro que escrevia então (9). No Chile
primordial” que os antecede, nem mais nem menos. Manter estas dis- mesmo, Fernando Flores e outros colegas do Projeto Cinco também
tinções à vista permite evitar muitas discussões estéreis. foram um público atento à nossa maneira de pensar. Travamos com
Flores o que haveria de ser uma frutífera amizade, e muitos anos após
a autopoiese faria parte dos conceitos importantes que ele utilizaria
50 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 51
para desenvolver suas próprias idéias. É difícil imaginar tudo o que alguns comentários duros dos revisores, porém pouco depois foi aceito,
significou para mim nessa época encontrar receptividade em pessoas e apareceu finalmente em meados de 1974 (11). É importante mencio-
desta qualidade. nar este artigo aqui porque foi a primeira publicação da idéia de
No entanto, o texto continuava sendo rejeitado por uma lista cres- autopoiese em inglês no mundo internacional, o que levou à comunida-
cente de editores estrangeiros. Era natural, então, nos dirigirmos à de internacional a tomar contato com a idéia, e porque antecipou em
editora de nossa universidade, e ao final de 1972 assinamos um con- 20 anos o que haveria de acontecer no explosivo campo hoje denomina-
trato que incluía a tradução do texto pela Sra. Carmen Cienfuegos. De do de vida artificial e os autômatos celulares, como explico mais adiante.
maquinas y seres vivos: una teoria sobre la organização biológica foi A visita de Heinz, em julho de 1973, aconteceu no meio da tor-
impresso em abril de 1973. O texto original em inglês não apareceria menta que se aproximava e que envolvia a todos em uma atmosfera de
senão em 1980, quando a idéia já tinha adquirido uma certa populari- crise permanente, com desesperadas tentativas de estabilizar um país
dade, na prestigiosa série Boston studies on the phylosophy of science, que se dividia em dois. Como militante comprometido com o governo
com uma introdução assinada por Maturana, o texto Biology of cog- do presidente Salvador Allende, a partir de 11 de setembro vi-me ame-
nition, o prefácio de Beer, e o texto em questão Autopoteses: the organi- açado. Inteligência militar veio à faculdade com listas de ex-partidári-
zation of living systems (10). Segundo me informa o editor, este livro os, e em duas ocasiões patrulhas noturnas vieram buscar-me na mi-
tem sido o mais vendido da coleção. nha residência, na qual já não ia dormir. Fui exonerado de meu cargo
O destino do breve artigo escrito de forma paralela a este texto universitário por ordens “superiores”. Com minha família, decidimos
sofreu uma história semelhante. Como indiquei anteriormente, além vender tudo e partir. A grande maioria de meus colegas da Faculdade
de uma apresentação sucinta da noção de autopoiese, a intenção do de Ciências também se dispersava pelo mundo. Com a diáspora dos
artigo era de possibilitar a clareza expositiva através de um caso míni- cientistas da faculdade, acabava-se uma época da ciência no Chile, uma
mo de autopoiese. Já ao final de 1970, tínhamos chegado à conclusão etapa importante de minha vida pessoal, e com ela o contexto que deu
de que um caso simples de autoprodução necessitaria de duas reações: origem à idéia de autopoiese. Porém, naturalmente, a idéia haveria de
uma de polimerização de elementos de membrana, e outra de geração ter novas repercussões, sobretudo fora do Chile.
“metabólica” de monômeros. Esta última devia ser uma reação catalisa-
da por um terceiro elemento preexistente no meio de cultura. Conce-
bido este esquema de reação, parecia evidente a necessidade de tentar EXPANSÃO E CONTINUIDADE DE UMA IDÉIA
uma simulação deste caso mínimo (que logo passou a denominar-se
protobio em nossa conversação) utilizando autômatos celulares (ou de O acontecer da autopoiese no sentido estrito
teselación, como se dizia então), um utilitário de modelação introduzi-
do nos anos 50 especialmente por John Von Neuman. Com a colabora- Qual foi o devir da idéia de autopoiese no interior das ciências?
ção de Ricardo Uribe da Escola de Engenharia, as simulações deram "Pouco após a aparição do artigo na Biosystems em 1974, a idéia come-
rapidamente os resultados que a intuição nos fazia esperar: a aparição çou a fazer seu caminho com certa inércia nos meios científicos. Não
espontânea neste mundo bidimensional artificial de unidades que se vem ao caso fazer aqui uma história detalhada, quero apenas fornecer
autodiferenciavam através da formação de uma membrana, e que apre- de maneira indicativa alguns fatos.
sentavam uma capacidade de auto-reparação. O trabalho foi enviado a Aqueles que se ocupavam da teoria de sistemas foram os primeiros
várias revistas, incluindo Science y Nature, com resultados semelhan- a reagir, e já em 1976 na reunião anual da “sistêmica” em Nova Torque
tes ao texto do livro: rejeição total. Heinz veio em visita ao Chile no havia uma palestra especial denominada Autopoiese (na qual fui
inverno de 1973, e nos ajudou a rescrever o texto de maneira significa- palestrante convidado). O primeiro livro dedicado exclusivamente à idéia
tiva. Levou-o aos EUA debaixo do braço e o enviou ao editor da revista apareceu pouco depois (12). Haveriam de vir muitos outros livros e artigos
Biosystems da qual era membro do comitê editor. O trabalho sofreu nos anos posteriores. Mais importante para mim foi que a idéia começou a
52 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 53
suscitar interesse entre os biólogos, muito especialmente através de Lynn cias humanas, onde tem suscitado um interesse inusitado. Penso que
Margulis, destacada pesquisadora da origem da vida e da evolução celu- nestes casos a autopoiese aparece cumprindo um papel metafórico, ou
lar. A partir do começo dos anos 80, Margulis adotou a autopoiese como mais especificamente, metonímico. Esta tendência já era formulada no
critério para definir a origem dos seres vivos e difundiu a idéia a muitos prefácio que Stafford Beer escrevera em 1972, no qual afirma que é
outros cientistas ativos na área. Por sugestão de Margulis, Goil Fleischaker “evidente” que a idéia pode estender-se para caracterizar um sistema
escolheu o tema para sua tese de doutorado e publicaria mais tarde uma social. Já nessa época, tinha eu uma posição cética a respeito, como o
série de artigos originais a respeito do tema. indicava o mesmo Beer.
Ainda que a partir de então, em nível teórico e biológico, a idéia Nos anos que seguiram, esta utilização metonímica tomou força
de autopoiese se encarnava no discurso científico, por muitos anos eu em âmbitos tão diversos como a sociologia, nos escritos do famoso soció-
tinha a esperança de que pudesse servir para a síntese de sistemas logo alemão Niklas Luhman (16), a teoria jurídica (17), a teoria literá-
pré-celulares. Tais desenvolvimentos teriam que esperar os anos 90, ria (18), assim como uma longa literatura no âmbito da terapia famili-
quando Lugi Luisi e seu grupo em Zurich decidiram lançar-se ao desa- ar sistêmica (19). Toda esta profusão de interesse foi para mim fonte de
fio da construção de sistemas autopoiéticos sintéticos sobre a base de surpresa. Depois de anos escutando argumentos e usos da idéia em
micelas lipídicas, fazendo uso de know-how experimental considerável vários destes campos, cheguei a algumas conclusões gerais das quais
(13). Os resultados mostram claramente que a circularidade autopoié- desejo deixar breve registro.
tica pode implantar-se em um sistema químico real, submetido a res- Quero distinguir nesta literatura secundária dois modos de trans-
trições similares às dos primeiros sistemas celulares. Como indicava o posição da idéia original: (1) uma utilização literal ou estrita da idéia,
editorial de Nature, comentando um artigo de Luisi que aparecia no (2) uma utilização por continuidade. Com o primeiro modo faço refe-
mesmo número, a síntese de sistemas autopoiéticos artificiais repre- rência ao fato que tem havido repetidas tentativas de caracterizar, por
“senta “o haver completado mais uma etapa para resolver o mistério da exemplo, uma família como um sistema autopoiético, de maneira que a
origem da vida” (14). noção seja aplicada estritamente neste caso. Tais tentativas se fun-
Estes últimos anos têm sido também testemunhas de uma nova dem, em minha opinião, em um abuso de linguagem. Na idéia de
tendência de pesquisa interdisciplinar denominada vida artificial, con- autopoiese as noções de rede de produções e de fronteira possuem um
tinuação natural da cibernética dos anos 50, sendo um de seus objeti- sentido mais ou menos preciso. Quando a idéia de uma rede de proces-
vos a simulação e realização de sistemas vivos em vários níveis, desde sos se transforma em “interações entre pessoas”, e a membrana celu-
o celular até o robótico (15). Um dos preceitos mais repetidos desta lar se transforma na “fronteira” de um agrupamento humano, incorre-
tendência, hoje em dia muito publicada nos meios jornalísticos, é que o se em usos abusivos, como o indiquei em um comentário crítico que
que permite definir a vida é uma organização e não os componentes, publiquei a respeito (20).
por muito sofisticados que sejam as propriedades enzimáticas ou replica- A utilização da autopoiese por continuidade é outra: trata-se de
tivas. Essa é, certamente, uma intuição que guiava nossa procura em tomar a sério o fato de que a autopoiese procura pôr a autonomia do ser
1971. Mais ainda, os autômatos celulares que utilizávamos no Protobio, vivo no centro da caracterização da biologia, e abre ao mesmo tempo a
se transformaram nas mãos devida artificial, na ferramenta predileta possibilidade de considerar os seres vivos como dotados de capacidade
de simulação de toda classe de propriedades biológicas. interpretativa desde sua origem própria. Quer dizer que permite ver
que o fenômeno interpretativo é contínuo desde a origem até sua mani-
festação humana. No geral, estou de acordo com esta utilização e esta
A autopoiese como metonímia possível extensão. No panorama de idéias atuais, é talvez uma das
facetas mais originais deste trabalho. No entanto, penso que dar uma
"Não posso omitir aqui um comentário sobre outra dimensão da argumentação e uma expressão rigorosa a esta articulação requer tra-
expansão da idéia de autopoiese além da biologia no âmbito das ciên- balho sério. Entre os exemplos que considero convincentes destaco o
54 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 55
que faz J. P Dupuy em sua análise dos sistemas sociais (21), Winnograd livro destinado ao grande público. E! árbol del conocimiento (26), que
& Flores em sua análise sobre a comunicação (22), e o texto mais redigimos entre 1982-1983 e que tem tido um êxito significativo nos
evocativo de W. I. Thompson (23). Infelizmente, frequentemente a idéia doze idiomas para que foi traduzido. Pelo contrário, ocorpus de pesqui-
de autopoiese é citada neste tipo de literatura de maneira muito mais sa que indicou a continuação representa trabalho científico original, e
superficial. cuja responsabilidade me compete.
Em resumo, acredito que ficará claro ao leitor que, no geral, te-
nho um grande ceticismo a respeito da extensão do conceito além da
área para o qual foi pensado, isto é, para a caracterização da organiza- Auto-referência e clausura
ção dos sistemas vivo em sua expressão mínima. Ainda que não existe
uma razão a priori, após todos estes anos, minha conclusão é que uma À autopoiese está baseada em uma concepção circular e auto-
extensão em níveis “superiores” não é frutífera e que deve ser deixada referencial dos processos. No entanto, por muitos anos a auto-referên-
de lado, ainda que para caracterizar um organismo multicelular (24). cia recebeu uma atenção marginal e bem negativa. Uma das coisas
Pelo contrário, o vincular a autopoiese com uma opção epistemológica, que me tem ocupado.gor períodos desde 1974 (e sobretudo trabalhando
além da vida celular ao operar do sistema nervoso e os fundamentos da com meu amigo e colega matemático Jorge Soto-Andrade) é a de escla-
comunicação humana é claramente frutífero (25). recer a noção de auto-referência como conceito formal e lógico bem fun-
damentado (27).
Juntamente com a procura de um fundamento mais claro para a
ALÉM DA AUTOPOIESE circularidade se fez claro que a noção de autopoiese é um caso particu-
lar de uma classe ou família de organizações com características pró-
Quero concluir com um breve comentário em relação ao que tem prias. O que possuem em comum é que todas elas dão ao sistema em
sido meu caminho intelectual após 1978, independentemente dos acon- questão uma dimensão autônoma. A base para tal conclusão foi sobre-
tecimentos precoces ou tardios, da autopoiese. Faço-o, sobretudo por- tudo o repensar, a partir deste novo ângulo, as duas redes biológicas
que quero aproveitar este prefácio para deixar claro que, a meus olhos, cognitivas mais evidentes: o sistema nervoso (expressado em meu tra-
a autopotese foi uma etapa importante e útil, porém tão somente uma balho experimental de várias maneiras) e o sistema imunológico (de
peça do quebra-cabeças maior para entender a biologia do conhecer de que comecei a ocupar-me desde 1976). A idéia é simples: somente uma
uma maneira nova. Certamente minha maneira de pensar hoje. não circularidade do tipo da autopoiese pode ser a base de uma organização
fica caracterizada como “a teoria autopoiética”, contrariamente ao que autônoma. À caracterização da classe de organização pertinente é o
as vezes é dito; é outro uso metonímico que seria melhor evitar. que comecei a denominar o princípio de clausura operacional. A pala-
Outra motivação para esboçar aqui estes acontecimentos de meu vra clausura é utilizada aqui em um sentido de operação ao interior de
próprio desenvolvimento científico é que depois dos anos de trabalho um espaço de transformações, como é comum em matemática, e não,
com Maturana, entre 1970-1973, e um breve interlúdio de novas cola- certamente, como sinônimo de fechamento ou ausência de interação, o
borações na minha segunda tentativa de retorno ao Chile em 1980- que seria absurdo. O que interessa é caracterizar uma nova forma de
1983, nossos caminhos intelectuais divergiram de múltiplas maneiras, interseção mediada pela autonomia do sistema. Todas estas observa-
tanto em conteúdo, como em enfoque e em estilo. Isto não deve causar ções e conclusões eu resumi in extenso em um livro entitulado Princípios
surpresa; somos dois indivíduos diferentes, e vivendo quase todoo tempo de autonomia biológica, que apareceu em 1979 (28). Esse livro conti-
em lugares diferentes. É importante, assim, explicar que nossa colabo- nua sendo a síntese mais completa do desenvolvimento dos fundamen-
ração na criação de autopoiese não implica que compartilhamos hoje tos, das aplicações e das tentativas de formalização da noção de auto-
uma visão comum numa suposta “teoria autopoiética” unificada. Cer- nomia (29).
tamente, existe um terreno compartilhado e que expressamos em um
56 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 57
Identidade somática e sistema imunológico seleção como fonte instrutiva de modificações históricas. A nova visão
que emerge em concordância com todo um movimento renovador em
Em um nível menos programático e mais aplicado, uma direção de biologia evolutiva leva em conta serem capacidades auto-organizativas
trabalho que tem sido de enorme fertilidade é uma extensa reformulação intrínsecas ao organismo em nível genotípico (o genoma é uma rede
do sistema imunológico sob os princípios de organização autônoma. Este complexa) e durante o desenvolvimento embriológico (o desenvolvimento
tema abriu-se para mim ao conhecer, em 1976, Nelson Vaz nos EUA (30). é uma transformação integrada, e não a expressão de caráteres). Além
No entanto, não foi até minha instalação em Paris em 1986 e minha cola- disso, a integração estrutural com o meio se realiza não somente em nível
boração intensa com Antonio Coutinho do instituto Pasteur que tais con- do indivíduo, mas também em vários outros níveis, tanto celular como
cepções deram seus frutos. Em poucas palavras, a idéia central é a seguin- populacional, e sobre a base de ciclos completos de vida. A ênfase na cons-
te. A imunologia tradicional tem como metáfora central a defesa contra os tituição interna e os múltiplos níveis de complexidade do ciclo de vida
antígenos externos invasores. Esta é uma transposição isomórfica das idéias de todo organismo levam a mudar a visão da seleção natural clássica a
dominantes representacionais no sistema nervoso: os antígenos têm um uma que pode ser denominada como derivação natural. Na evolução
papel de inputs contendo informação, a resposta imunológica joga um pa- como derivação natural, a seleção aparece como condições de frontei-
pel de output. Nossa proposta é, em vez disto: o sistema imunológico é ras que devem ser satisfeitas, porém no interior das quais o caminho
principalmente uma clausura operacional própria aos linfócitos e às re- genotípico e fenotípico de um organismo se fundamenta em sua clausura
giões V-variáveis das imunoglobulinas, que permitem uma identidade operacional. As consequências de tudo isto são certamente muito im-
somática ao organismo multicelular. Apenas secundariamente esta rede portantes, porém não é esta a ocasião para entrar em detalhes (33).
desenvolve, no curso da evolução, capacidades defensivas do tipo resposta
imunológica a infecções maciças. Porém, o coração do funcionamento do
sistema éconstitutivo da identidade somática mediante à provisão de uma Enacção e cognição
rede de intercomunicações no interior da paisagem celular e molecular do
organismo, e não uma série de respostas de anticorpos dirigida ao exte- Uma das críticas que deve ser feita a esta obra (assim como a
rior. Trata-se, por dizê-lo brevemente, de um verdadeiro sistema cognitivo meu livro de 1979) é que a crítica da representação como guia do fenô-
do corpo. meno cognitivo é substituída por uma alternativa fraca: o externo como
Temos expressado tais idéias em inúmeros trabalhos, e têm tido um simples perturbação da atividade gerada pela clausura operacional,
impacto no mundo da imunologia tradicional (31). Mais interessante tal- que o organismo interpreta em nível celular, imunológico ou neuronal.
vez é que a passagem entre a revisão do fenômeno imunológico e sua Substituir a noção de input-output pela de acoplamento estrutural foi
expressão em resultados experimentais novos e inesperados tem sido muito um passo importante na boa direção por evitar a armadilha da lingua-
rápida. Assim, por exemplo, nosso enfoque levou a colocar em evidência gem clássica de fazer do organismo um sistema de processamento de
pela primeira vez que o sistema como um todo tem uma rica dinâmica informação. Contudo, é uma formulação fraca por não propor uma al-
temporal na composição de imunoglobulinas, que expressa, entre outras ternativa construtiva ao deixar a interação na bruma de uma simples
coisas, a diferença entre normalidade e doenças auto-imunes (32). perturbação. Frequentemente se tem feito a crítica de que aautopoiese,
tal como está exposta neste livro, leva a uma posição solipsista. Pelo
que acabo de expor, penso que esta é uma crítica que possui certo mé-
Evolução e derivação natural rito. A tentação de uma leitura solipsista destas idéias deriva de que a
noção de perturbação no acoplamento estrutural não leva adequada-
Um terceiro paralelo crítico a que cheguei naturalmente nestes mente em conta as regularidades emergentes de uma Aistória deintera-
anos é que, para dar sentido a um sistema autônomo, o pensamento ção na qual o domínio cognitivo não se constitui nem internamente (de
evolutivo deve deixar atrás uma visão neo-darvinista que entende a um modo que leva efetivamente ao solipsismo), nem externamente
58 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 59
(como o quer o pensamento representacionista tradicional). Nestes úl- cente, talvez o texto que mais me exigiu um esforço de síntese para
timos anos, tenho desenvolvido uma alternativa explícita que evita conseguir colocar a enacção ao lado da experiência entendida como uma
estes dois empecilhos, fazendo da reciprocidade histórica a chave de disciplina rigorosa (36). Meu interesse atual está centrado principal-
uma co-definição entre um sistema autônomo e seu meio. É o que pro- mente nesta reciprocidade: externalidade da operação cognitiva e feno-
ponho denominar o ponto de vista da enacção na biologia e ciências menologia da experiência vivida. No laboratório, as novas técnicas de
cognitivas (34). Enacção é um neologismo, inspirado do inglês corrente imagens cerebrais permitem explorar tudo isto de maneira empírica e
em vez do grego, como o é a autopoiese. Frequentemente enacção se precisa. É o começo de uma ciência biofenomenológica em que está
utiliza no sentido de trazer à mão ou fazer emergir, que é o que me quase tudo por fazer.
interessa destacar. A prova de fogo deste ponto de vista é haver permi-
tido uma reconstrução detalhada e minuciosa de um fenômeno que
pode ser visto como caso exemplar: a visão das cores (35). CODA
que eu indicava com o nome de mudança ontológica. Isto é, uma pro- Referências bibliográficas
gressiva mutação do pensamento que termina com a longa denomina-
ção do espaço social do cartesianismo e que se abre à consciência aguda 1. Em particular ver o “clássico”: Maturana, H.; Lettvin, J.; McCulloch, W.; Pitts,
de que o homem e a vida são as condições de possibilidade de significa- W., Anatomy and physiology of viston in the frog. In J. General Physiology,
do e dos mundos em que vivemos. Que conhecer, fazer e viver não são 1960, 43: 129-175.
coisas separáveis, e que a realidade e nossa identidade transitória são 2. Varela, F Maturana, H., Time course ofexcitation and inhibition in the vertebrate
retina, In Exp. Neurol, 1970, 26: 53-59.
parceiros de uma dança construtiva. Tal tendência, que denomino como 3. Kuhn, T, The structure of scientific revolutions, Harvard University Press,
um giro ontológico, não é uma moda de filósofos, mas algo que se refle- 1970. .
te na vida de todos nós. Entramos numa nova época de fluidez e flexi- 4. Para uma seleção destes e outros artigos ver: Von Foerster, H., Observing
bilidade que traz implícita a necessidade de uma reflexão a respeito da systems: selected papers, Interscience, California, 1979.
maneira de como os homens fazem os mundos onde vivem, já que não 5. Uma seleção de seus trabalhos mais importantes apareceu somente em 1975:
os encontram prontos como uma referência permanente. McCulloch, W. S., Embodiments of mind, MIT Press.
6. Garvin, P (ed.), Cognition: a multiple view, Spartan Books, Washington, 1970.
Às conseglências éticas deste dar-se conta são importantes, e em
7. Piaget, J., Biologie et connaissance, Gallimard, París, 1969; tradução espa-
todo caso suficientemente atuais para que mereçam uma discussão nhola da Ed. S. XXI, Buenos Atres, em 1972.
mais extensa que o que posso fazer aqui (37). Contudo, insisto sobre 8. Sobre estes trabalhos veja-se Deamer, D.; Fleschaker, G. (Eds.), The origins of
este ponto porque a ocasião de escrever este prefácio que comemora 20 life: the central concepts, Jonathan Cape, Boston, 1994.
anos seria tristemente dilapidada, se não chegasse a comunicar ao lei- 9. Trata-se de seu livro The anatomy of agression.
tor a importância de expandir o horizonte para considerar o caráter 10. Maturana, H.; Varela, EJ., Autopoijesis and cognition: the realization of the
living, bsps, vol. 42, D. Reidel, Boston, 1980.
profundamente social e estético no qual esta idéia se insere, além da
11. Varela, F; Maturana, H.; Uribe, R., Autopoiesis: the organization of living
ciência e da biologia, e além das pessoas que figuram como autores. systems, its characterization and a model, In Biosystems, 1974, 5: 187-
Neste sentido, este pequeno livro não perdeu a vigência e ainda pode 196.
ser lido com proveito. Finalmente, uma invenção científica em qual- 12. Zeleny, M. (ed.), Autopoiesis: a theory of tbe living organization, N. Holland,
quer âmbito precisa de atores que sejam sensíveis às anomalias que New York. Ver também Benseler, F.; Heil, P; Kock, W., Autopoietic systems,
sempre nos rodeiam. Essas anomalias devem ser mantidas em um es- Campus Verlag, Frankfurt, 1980, e os números especiais dedicados à
tado de suspensão e cultivo enquanto se procura encontrar uma ex- autopoiese de: Irish J. Psychology, 1988, Cybernetics 1985, Int. J. Gen
systems, 1992,
pressão alternativa que reformula a anomalia como um problema cen-
13. Luisi, L.; Varela, F, “Self-replicating micelles as a chemical version ofa minimal
tral, tal como a autopoiese põe a autonomia no centro do problema da autopoietic system”, In Origins of life, 1989, 19: 6393-643; Bachman et al.,
vida e do conhecer. Talvez o caso da autopoiese, no qual tive a fortuna Autocatalytic self-replicating micelles and models for prebiotic structures,
de ser partícipe, possa servir para ilustrar esta dinâmica da inovação e In Nature, 1992, 357:57.
contribuir assim para que o futuro da ciência no Chile seja responsável 14. Nature 354:351, 1991.
por cultivar suas sensibilidades próprias, e não um eco de tendências 15. Ver Langton, C. (ed.), Artificial life I, Addinson Wesley, New Jersey; Varela, F.;
Bourgine, P (eds.), The practice of autonomous systems: the first european
de outras latitudes.
conference on artificial life, MIT press! Bradford Books, Cambridge, 1992;
para uma introdução em espanhol ver Fernández, J.; Moreno, A., La vida
Paris, janeiro de 1994. artificial, Editorial Eudema, Madrid, 1992.
16. Kuhman, N., Soziale systeme, Suhrkamp, Frankfurt, 1984.
17. Teubner, G., Law as an autopoietic system, Blackwell, Oxford, 1998.
18. Paulson, W., The noise as culture, Cornell Univ. Press, Ithaca, 1988.
19. Ver como um exemplo Elkaim, M., Si tu ne m' aimaes pas, Seuil, Parts, 1992.
20. Varela, F., On the circulation of concepts from a biology of cognition and systemic
family therapy, em Fam. Process, 28:15-24, 1989.
62 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 63
21. Dupuy, J.P, Ordres et desordres, Seuil, 1989. Varela, F, Andersen, A.; Dietrich, G.; Sundblad, A.; Hoimberg, D.; Kazat-
22. Winnograd, T; Flores, F., Understanding computers and cognition, Addision chkine, M.; Coutinho, A., The population dynamics of natural antibodies in
Wesley, New Jersey, 1987. normal and autoimmune individuals, In Proc. Natl. Acad. Sci, EE.UU.,
23. Thompson, W.I., Imaginary landscapes, St. Martin Press, New York, 1989. 1991, 88:5917-5921; Dietrich, G., Varela, F; Razatchkine, M., Manipulating
24. Ver a respeito Varela, F; Frenk, S., The organ of form: towards a biological the human immune network with igG, In Europa J. Immunol, 1998, 23:2945-
theory of shape, em J. Soc. Biol. Struct., 1987, 10:73-83. 2950.
25. Varela, E, Organism:A meshwork of selfless selves, In Tauber, F. (ed.), Organism 33. A expressão deriva natural aparece pela primeira vez em El árbol del
and the origin of self, Klumwer Assoc., Dordrecht, 1991, pp. 79-107. conocimiento, op. cit., capítulo 7. Para um texto mais extenso ver Varela, F.;
26. Maturana, H.; Varela, F., El árbol del conocimiento: las bases biológicas del Thompson, E.; Rosch, E., 1992, The embodied mind, MIT Press, Cambridge,
entedimiento humano, Editorial Universitaria, Santiago, 1984. 1991, chap. 9. .
27. Varela, F, A calculus for self-reference, em Int. J. gen. systems, 1975, 2:5-24; 34. Varela, F, Conocer: las ciencias cognitivas, Gedisa, Barcelona, 1990. Varela,
Varela, E; Coguen, J., The aritmetic of closure, en J. Cybernetics, 1978, F, Organism: A meshuwork of selfless selves, In Tauber, E (ed.), Organism
8:291-324; Varela, F., The extended calculus of indications interpreted as a and the Origin of Self, Kluwer Assoc., Dordrecht, 1991, pp. 79-107.
three-value logic, In Notre Dame J. Formal Logic, 1979, 20:141-146; 35. Thompson, E.; Palacios, A.; Varela, E, Ways of coloring: comparative color
Kaufman, L.' Varela, F, Form dynamics, em J. Soc. Biol. Struct., 1980, vision as a case study in cognitive science, In Beh, Brain Scien, 1991, 15:1-
3:171-206; Soto Andrade, J.; Varela, F, Self-reference and fixed points, In 75.
Acta Applic. Matem., 1984, 2:1-19. 36. Varela, F; Thompson, E.; Rosch, E.; The embodied mind: cognitive science
28. Varela, F., Principles of biological autonomy, North-Holland, New York, 1979. and human experience, MIT Press, Cambridge, 1992. Existe tradução em
29. Algumas das formalizações algébricas que proponho ali não me parecem, hoje espanhol da Editorial Gedisa, Barcelona.
em dia, tão úteis como antes. Porém, foram um passo na direção adequa- 37. Varela, E, Un know-how per ? etica, The Italian Lectures 3, Editrice La Terza,
da, como mostram hoje os recentes trabalhos de Walter Fontana, no Santa Roma, 1992.
Fé Instituto, que retomam a noção de clausura e ponto fixo no contexto de
cálculo de Church.
30. Vaz, N.; Varela, F, Self and non-sense: an organism centered approach to
inmunology, In Medical Hypothesis, 1978, 4:231-267.
31. Ver em particular Varela, F; Coutinho, A.; Dupire, B.; Vaz, N., Cognitive
networks: immune, neural, and otherwise, In Pereison, A. (ed.), Theoretical
Immunology, Part TI (sf Series on the Science of Complexity), Addison-
Wesley, New Jersey, 1988, pp. 359-375; Stewart, J.; Varela, F, Exploring
the connectivity of the immune network, In Immunol, Reviews n 110, 1989,
pp. 37-61; Varela, E; Coutinho, A., Second generation immune networks,
In Immunol Today, 1991, 12:159-167; Stewart, J.; Varela, F., Morphogenesis
in shape space: elementary meta-dynamics of immune networks, In J.
Theoret. Biol., 1991, 153:477-498; Bersini, H.; Varela, F, Learning amd
the immune network; Reinforcement, recruitment and their applications,
In Patton, G. (ed.), 1993, Biologically Inspired Computation, Chapman
and Hill, London (in press).
32. Huetz, F; Jacquemart. F; Pefia-Rossi, C.; Varela, F; Coutinho, A., Autoim-
munity: the moving boundaries between physiology and pathology, In J,
Autoimmunity, 1988, 1:507-518, J., Varela, F; Coutinho, A., The relationshio
between conectivity and tolerance as revealed by computer simulation of
the immune network: some lessons for an understanding of autoimmunity,
em J. Autoimm., 1989, 2 (Supplement): 15-23; Lundgvist, I.; Coutinho, A,;
Varela, F; Holmberg, D., Evidence for the functional dynamics in an
antibody network, In Proc. Natl. Acad. Sci. EE.UU., 1989, 86:5074-5078;
INTRODUÇÃO
que os únicos fatores operantes na organização dos sistemas vivos são Nossa tentativa é indicar a natureza da organização dos siste-
os fatores físicos, negando a necessidade de alguma força imaterial mas vivos. Em nosso enfoque tomamos como ponto de partida o cará-
organizadora do vivo. De fato, agora parece evidente que, uma vez que ter unitário de um sistema vivente, e sustentamos que, colocando a
se haja definido adequadamente, qualquer fenômeno biológico pode ênfase na diversidade, a reprodução e a espécie para explicar a dinã-
descrever-se como surgido da interação de processos fiísico-químicos cujas mica da troca, o evolucionismo faz menos evidente a necessidade de
relações são especificadas pelo contexto de sua definição. considerar a autonomia das unidades vivas para compreender a fenome-
À diversidade deixou de ser uma fonte de perplexidade na com- nologia biológica. Pensamos que a conservação da identidade e a inva-
preensão da fenomenologia dos sistemas viventes por obra do pensa- riância das relações definitórias das unidades viventes estão na base
mento darviniano e da genética, que conseguiram explicar a diversida- de toda possível transformação ontogenética e evolutiva dos sistemas
de e sua origem sem recorrer a qualquer força diretriz peculiar. No biológicos, e nos propomos explorar isto em detalhe. Desse modo, nosso
entanto, a influência destas noções na elucidação do câmbio evolutivo propósito é: compreender a organização dos sistemas vivos em relação
foi além da simples explicação da diversidade e deslocou completamen- com seu caráter de unidade.
te a ênfase na avaliação da fenomenologia biológica do indivíduo à es- Nosso enfoque será mecanicista: não serão utilizadas argumen-
pécie, da unidade a origem de suas partes, de sua organização presen- tações nem se recorrerá a forças que não se encontrem no universo
te a sua determinação ancestral. físico. No entanto, nosso problema é a organização do vivo, e, por con-
Hoje, as duas correntes de pensamento representadas pela expli- sequência, o que nos interessa não são as propriedades de seus compo-
cação físico-química e pela explicação evolutiva estão entrelaçadas. A nentes, mas os processos, e relações entre processos, realizados por
análise molecular parece permitir entender a reprodução e a mudança; meio dos componentes. Isto deve ser entendido claramente. Uma expli-
a análise evolutiva parece explicar como podem ter se iniciado estes cação é sempre a reformulação de um fenômeno de tal maneira que
processos. Ao que parece, estamos em um ponto da história da biologia seus elementos apareçam casualmente relacionados em sua gênese.
em que foram eliminadas as dificuldades fundamentais. No entanto, Mais ainda, nós damos uma explicação sempre na nossa qualidade de
os biólogos se sentem desalentados quando procuram olhar a fenomeno- observadores, e é fundamental distinguir nela o que é próprio do siste-
logia dos sistemas vivos como um todo. Muitos manifestam este desa- ma, como constitutivo de sua fenomenologia, do que pertence a nosso
lento recusando responder à pergunta, o que é um sistema vivente? domínio descritivo e, em consequência, a nossas interações com ele,
Outros tentam encerrar as idéias atuais em teorias amplas regidas por com seus componentes e com o contexto pelo qual é observado. Como
noções organizadoras como os princípios cibernéticos, que implicita- nosso domínio descritivo resulta de que observamos ao mesmo tempo a
mente exigem dos biólogos a compreensão fenomenológica que se quer unidade e suas interações no âmbito da observação, as noções que sur-
obter com elas. À pergunta sempre presente é: o que possuem em co- gem no domínio da descrição não fazem parte da organização
mum todos os sistemas vivos que nos permitem qualificá-los como tais?; constitutiva da unidade (o fenômeno) por explicar. Por outro lado, uma
se não é uma força vital, se não é alguma classe de princípio organiza- explicação pode assumir diferentes formas, segundo a natureza do fe-
tivo, o que é então? Para tomar somente um notável exemplo recente, nômeno explicado. Assim, para explicar o movimento de um corpo que
mencionamos o livro Le hasard et la nécessité, de J. Monod. Ele tenta cai, a pessoa recorre a propriedades da matéria e a leis que descrevem
responder a esta pergunta, porém - cedendo à influência do evolucio- o comportamento dos corpos de acordo com essas propriedades (leis
nismo - formula uma organização teleonômica de natureza molecular, cinéticas e gravitacionais), enquanto que para explicar a organização
isto é, a subordinação da organização individual a um plano definido de uma equipe de controle a pessoa recorre a relações e a leis que des-
pela espécie, na qual é determinante a invariância da reprodução. Po- crevem o comportamento das relações. No primeiro caso, os elementos
rém, as noções teleonômicas deixam intocada no essencial a questão do paradigma causal são os corpos e suas propriedades; no segundo
da organização da unidade viva. caso, são as relações independentes da natureza dos corpos que a satis-
fazem. Como neste último caso, em nossas explicações da organização
68 Maturana e Varela
necessário levar em consideração as propriedades dos componentes reais própria organização da máquina específica. Tais máquinas são homeos-
que, em suas interações, permitem-nos intuir as relações definitórias táticas, e toda retroalimentação é interior a elas. Se a pessoa diz que exis-
da organização da máquina. te uma máquina M com retroalimentação através do meio que a rodeia,
O uso que o homem dá à máquina não é um aspecto da organiza- tal que os efeitos de sua saída afetam sua entrada, na realidade está fa-
ção dela, mas o domínio ou em que ele opera, e entra em nossa descri- lando de uma máquina maior M', que em sua organização definitória in-
ção da máquina dentro de um contexto mais amplo que a máquina em clui o meio circundante e o circuito de retroalimentação.
si. Este é um conceito importante. Todas as máquinas que o homem As máquinas autopoiéticas são máquinas homeostáticas. Porém,
fabrica, tem algum objetivo, prático ou não - ainda que seja somente o sua peculiaridade não reside nisto, e sim na variável fundamental que
de entreter - que ele especifica. Esse objetivo se manifesta em geral, mantém constante. Uma máquina autopoiética é uma máquina orga-
porém não necessariamente, no que a máquina produz. No entanto, ao nizada como um sistema de processos de produção de componentes
nos referirmos a máquinas empregamos a noção de objetivo porque ela concatenados de tal maneira que produzem componentes que: 1) geram
põe em jogo a imaginação do leitor e facilita a tarefa explicativa para os processos (relações) de produção que os produzem através de suas
dar-lhe a conhecer a organização de uma máquina determinada. Nós o contínuas interações e transformações, e IT) constituem à máquina como
induzimos a inventar a máquina da qual estamos falando. Isto não uma unidade no espaço físico. Por conseguinte, uma máquina autopoié-
deve, no entanto, fazer-nos acreditar que objetivo, finalidade ou função tica continuamente especifica e produz sua própria organização atra-
são propriedades da máquina. Não porque pertença ao domínio do ob- vés da produção de seus componentes, sob condições de contínua per-
servador; pode o objetivo ser usado para caracterizar um tipo determi- turbação e compensação dessas perturbações (produção de componen-
nado de organização mecânica. No entanto, o produto das operações de tes). Podemos dizer, então, que uma máquina autopoiética é um siste-
uma máquina pode utilizar-se com tal finalidade, de uma maneira não ma auto-homeostático que tem a sua própria organização como a vari-
trivial, no domínio descritivo do observador. ável que mantém constante. Isto deve ser entendido claramente. Toda
unidade tem uma organização especificável em termos de relações es-
táticas ou dinâmicas, relações entre elementos ou relações entre pro-
2. MÁQUINAS VIVENTES cessos, ou ambos. Entre estes casos possíveis, as máquinas autopoiéticas
são unidades, cuja organização fica definida por uma concatenação par-
O fato de que os sistemas vivos são máquinas não pode demons- ticular de processos (relações) de produção de componentes, a concatena-
trar-se apelando-se a seus componentes. Deve-se mostrar sua organi- ção autopoiética, e não pelos componentes mesmos ou suas relações
zação mecanicista de maneira tal que seja óbvio o modo como todas estáticas. Já que as relações de produção de componentes existem so-
suas propriedades surgem dela. Para fazer isto, descreveremos primei- mente como processos, caso se detenham, as relações de produção de-
ro a classe de máquinas que são os sistemas viventes, e em seguida saparecem; em consegiência, para que uma máquina seja autopoié-
indicaremos como as propriedades peculiares que as caracterizam po- tica é necessário que as relações de produção que a definem sejam con-
dem surgir como consequência da organização desta classe de máquinas. tinuamente regeradas pelos componentes que produzem. Mais ainda,
para que estes processos constituam uma máquina, devem concatenar-
se para constituir uma unidade, e isto é possível somente na medida
a) Máquinas autopoiéticas que os componentes que elas produzem se concatenam e especificam
uma unidade no espaço físico. À concatenação autopoiética de proces-
Entre as máquinas, existem aquelas que mantêm algumas de suas sos numa unidade física, então, diferencia as máquinas autopoiéticas
variáveis constantes ou dentro de um intervalo limitado de valores. Na de todo outro tipo de unidade. Em efeito: 1) em uma máquina feita pelo
organização dessas máquinas, isto deve expressar-se de tal modo que o homem, como um automóvel, há uma organização determinada em
processo se defina como verificado integralmente dentro dos limites que a termos de processos. No entanto, estes não são processos de produção
72 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 73
de componentes que especifiquem o automóvel como uma unidade, já i As máquinas autopoiéticas são autônomas; quer dizer, subordi-
que aqueles são produzidos por outros processos que não participam nam todas as suas mudanças à conservação de sua própria orga-
na definição da organização do automóvel. Máquinas deste tipo são nização, independentemente de quão profundas sejam as outras
sistemas dinâmicos não autopoiéticos. I) Numa unidade natural como transformações que possam sofrer durante o processo. Outras má-
um cristal, as relações espaciais entre os componentes especificam uma quinas, denominadas aqui em diante alopoiéticas, produzem com
organização reticular que o define como membro de uma classe (um seu funcionamento algo diferente delas mesmas - como no caso
cristal de uma espécie particular), já que os tipos de componentes que do automóvel. Estas máquinas não são autônomas, já que as
o constituem o especificam como um caso particular nessa classe. Logo, mudanças que experimentam estão necessariamente subordina-
num cristal a organização fica especificada pelas relações espaciais que das à produção de um produto diferente delas.
definem as posições relativas dos componentes, enquanto que os mes-
mos componentes especificam o caráter unitário do cristal. Não acon- ii) Às máquinas autopoiéticas possuem individualidade; isto é, por
tece assim com as máquinas autopoiéticas. De fato, ainda que encon- meio da manutenção invariável de sua organização conservam
tramos relações espaciais entre seus componentes cada vez que as fi- ativamente uma identidade que não depende de suas interações
xamos, real ou conceitualmente, para sua observação, as relações es- com um observador. As máquinas alopoiéticas possuem uma iden-
paciais observadas não a definem nem poderiam defini-la como autopoié- tidade que depende do observador e que não é determinada em
tica. Isto se deve ao fato das relações espaciais entre os componentes seu operar porque o produto deste é diferente de sua organiza-
de uma máquina autopoiética ficarem especificados pela rede de rela- ção.
ções de produção que constituem sua organização e estão, por conse-
guinte, numa troca contínua. À organização de um cristal, portanto, ii) As máquinas autopoiéticas são definidas como unidade por, e ape-
encontra-se num domínio diferente ao da organização autopoiética: um nas por, sua organização autopoiética: suas operações estabele-
domínio de relações entre componentes, e não de relações de produção cem seus próprios limites no processo de autopoiese. Não ocorre
de componentes, um domínio de processos, não de concatenação de pro- assim com as máquinas alopoiéticas, cujos limites são fixados
cessos. Em geral, reconhecemos isto ao dizer que os cristais são estáticos. pelo observador, que, especificando as superfícies de entrada e de
É importante compreender que ao definir uma máquina autopoié- saída, determina o que é pertinente a seu funcionamento.
tica não estamos utilizando a noção de organização num sentido místico
ou transcendental, pretendendo que possua um valor explicativo por Iv) As máquinas autopoiléticas não possuem entradas nem saídas.
si. Estamos-na utilizando para referir-nos às relações específicas que Podem ser perturbadas por fatos externos, e experimentar mu-
definem um sistema autopoiético. A organização autopoiética significa danças internas que compensam essas perturbações. Se estas se
simplesmente processos concatenados de uma maneira específica tal repetem, a máquina pode passar por séries reiteradas de trocas
que os processos concatenados produzem os componentes que constitu- internas, que podem ser ou não as mesmas. No entanto, qual-
em o sistema e especificam como uma unidade. É por esta razão que quer série de trocas internas que se produzam está sempre su-
podemos dizer que, cada vez que tal organização se concretiza num bordinada à conservação da organização da máquina, sendo esta
sistema real, o domínio de deformações que este sistema pode compen- condição definitória das máquinas autopoiéticas. Assim, toda re-
sar sem perder sua identidade ocorre em um domínio de trocas no qual lação entre tais trocas e a série de perturbações que possamos
o sistema, enquanto existe, mantém constante sua organização. É ade- assinalar pertence ao domínio em que é observada a máquina, e
quado condensar esta descrição dizendo que os sistemas autopoiéticos não à sua organização. Portanto, ainda que uma máquina auto-
são sistemas homeostáticos que possuem sua própria organização como poiética possa ser tratada como máquina alopoiética, isto não
a variável que é mantida constante. revela sua organização como máquina autopoiética.
As conseqiiências desta organização são importantíssimas:
74 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 75
Uma organização pode permanecer constante sendo estática, ou nir um contexto diferente para nossa observação. Estas submá-
mantendo constantes seus componentes, ou também mantendo cons- quinas, portanto, não são necessariamente componentes da má-
tante as relações entre componentes que por outra parte estão em con- quina autopoiética que integram, porque estes componentes fi-
tínuo fluxo ou mudança. As máquinas autopoiéticas são organizações cam definidos por relações que eles satisfazem ao determinar a
desta última classe. Elas mantêm constantes as relações que as defi- organização da máquina autopoiética.
nem como tal. À forma real em que uma organização pode assim esta-
belecer-se efetivamente varia segundo a natureza (as propriedades) O fato de podermos dividir as máquinas autopoiéticas em partes
dos elementos físicos que a materializam. Portanto, podem existir não identifica a natureza do campo de interações determinadas por elas
muitas classes diferentes de máquinas autopoiéticas; no entanto, to- em sua qualidade de entidades concretas operantes no universo físico.
das elas serão tais que qualquer interferência física com seu funciona-
mento fora de seu campo de compensações dará por resultado sua de-
sintegração: a perda de sua autopoiese. b) Sistemas viventes
Além disso, a forma real na qual se materializa a organização
autopoiética destas máquinas determina o tipo de alterações que po- É trivialmente óbvio que, se são máquinas, os sistemas vivos são
dem sofrer sem desintegrar-se e, por consegiência, o domínio de inte- máquinas autopoiéticas: transformam a matéria neles mesmos, de
rações em que é possível observá-las. Estes aspectos da materialização maneira tal que seu produto é sua própria organização. Consideramos
das máquinas autopoiéticas tornadas concretas em sistemas físicos nos também verdadeira a afirmação inversa: se um sistema é autopoiético,
permitem referir-nos a casos particulares delas, situando-as em nosso é vivente. Em outras palavras, sustentamos que a noção de autopoiese
campo de manipulação e descrição, e, por conseguinte, observá-las no é necessária e suficiente para caracterizar a organização dos sistemas
contexto de um domínio de interações exterior a sua organização. Isto vivos. Esta equivalência pode não parecer óbvia por razões que não
traz duas classes de consegiiências fundamentais: pertencem ao domínio da organização das máquinas autopoiéticas, mas
que são do domínio da descrição e avaliação por parte do observador e
1) Podemos descrever as máquinas autopoiéticas, e também manejá- expressam uma rejeição a priori. Aqui estão algumas dessas razões:
las, como partes de um sistema mais amplo que determina os
fatos exteriores que podem perturbá-las. Assim, segundo já dis- 1) Em geral, as máquinas são consideradas artefatos feitos pelo ho-
semos, podemos considerar esses fatos perturbadores como en- mem, com propriedades determinísticas que as fazem perfeita-
tradas, e considerar como saídas as trocas da máquina destina- mente predizíveis, ao menos conceitualmente. Os sistemas vivos
das a neutralizar tais perturbações. Isto equivale a tratar como são considerados autônomos, em última instância impredizíveis,
alopoiética uma máquina autopoiética. Em efeito, se os fatos ex- de comportamento intencional semelhante ao nosso. Se os siste-
teriores que a perturbam são de uma determinada regularidade, mas viventes fossem máquinas, poderia fabricá-los o homem, e
uma máquina autopoiética pode incorporar-se a um sistema mais parece incrível que o homem possa fazer um sistema vivo. Opi-
amplo em qualidade de componente alopoiético, sem que sua or- nião fácil de desqualificar porque implica ou que os sistemas vi-
ganização autopoiética varie de modo algum. ventes não podem entender-se por serem demasiado complexos
para nosso pobre intelecto, ou que derivam de princípios ainda
ii) Podemos analisar uma máquina autopoiética em suas partes ma- desconhecidos, ou, ainda, que os princípios que os geram são de-
teriais e tratar como máquinas alopoiéticas qualquer de seus me- finitivamente incognoscíveis - juízos todos a priori, sem a devida
canismos parciais homeostáticos e reguladores, definindo suas demonstração. Parece temer-se que a maravilha do vivo e o ani-
superfícies de entrada e de saída; isto é possível com independên- mado desapareceria se o homem pudesse não somente reprodu-
cia da organização autopoiética do sistema porque podemos defi- zir, mas também desenhar um sistema vivo.
76 Maturana e Varela
autopoiética). Tais noções ficam no âmbito do comentário de nossas Portanto, se os sistemas viventes são máquinas autopoiéticas, a
ações, quer dizer, pertencem ao domínio das descrições e, quando são teleonomia passa a ser somente um artifício para descrevê-los, que não
aplicadas a uma máquina ou qualquer sistema exterior a nós, expres- revela aspecto algum de sua organização, exceto que o seu funciona-
sam que estamos considerando-as dentro de um contexto mais amplo. mento é consistente no âmbito no qual são observados. Como máqui-
Em geral, o observador dá algum uso à máquina, mental ou concreto, nas autopoléticas, os sistemas vivos carecem, então, de finalidade.
determinando assim o conjunto de circunstâncias na qual ela opera,
assim como o domínio de seus estados que ele considera suas saídas. O
nexo entre tais saídas, e correspondentes entradas e relação entre umas e 2. INDIVIDUALIDADE
outras com o contexto no qual as inclui o observador, constitui o que deno-
minamos objetivo ou finalidade da máquina, que está situada, necessari- A eliminação da noção de teleonomia como aspecto definitório
amente, no domínio do observador, que decide o contexto e estabelece os dos sistemas viventes muda por completo o caráter do problema e nos
nexos. Analogamente, a noção de função surge quando o observador des- obriga a considerar a organização da unidade como questão central
creve os componentes de uma máquina ou de um sistema referindo-os a para compreender a organização dos sistemas vivos.
uma unidade mais ampla - que pode ser a máquina em sua totalidade ou De fato, um sistema vivente pode ser caracterizado como uma
parte dela - cujos estados constituem o objetivo que levará às mudanças unidade de interações, e como indivíduo, em virtude de sua organiza-
nos componentes. Novamente aqui não importa quão direto seja 0 nexo ção autopoiética, que determina que toda troca nele aconteça subordi-
causal entre a troca de estado dos componentes e a totalidade do estado do nada a sua conservação, fixando assim os limites que determinam o
sistema a que dão origem com suas transformações; a conotação do dese- que lhe pertence e o que não lhe pertence em sua materialização espe-
nho a que alude a noção de função é estabelecida pelo observador e não cífica. Se em um sistema vivo não se cumprisse (direta ou indiretamen-
pertence ao domínio da máquina mesma. te) a subordinação de toda troca à conservação de sua organização
A organização de uma máquina, auto ou alopoiética somente enun- autopoiética, dito sistema perderia este aspecto de sua organização,
cia relações entre componentes e leis que regem suas interações e trans- que o define como unidade e, portanto, se desintegraria. Logicamente,
formações. Quer dizer, somente especifica as condições em que surgem seja como for que se defina, para toda unidade é certo que a perda de
os diferentes estados da máquina, os quais aparecem como resultado seu aspecto definitório implica sua desintegração; o peculiar dos siste-
necessário cada vez que se apresentam tais condições. Portanto, as mas viventes não é sua possibilidade de desintegrar-se, mas o fato de
noções de finalidade e função “não têm qualquer valor explicativo” no que se desintegram sempre que perdem sua organização autopoiética.
âmbito fenomenológico que pretendem esclarecer, porque não inter- Consequência disto é que, em cada sistema vivo, toda troca deve pro-
vêm como fatores causais na reformulação de fenômeno algum. Isto duzir-se sem interferir com seu funcionamento como unidade, numa
não impede que sejam adequados para orientar o leitor para um deter- história de trocas através da qual sua organização autopoiética per-
minado domínio do pensamento. Igualmente, a predição de um estado manece invariante. Portanto, a ontogenia é expressão tanto de indivi-
futuro numa máquina somente consiste na rápida captação de seus dualidade dos sistemas vivos como da maneira em que essa individua-
estados sucessivos por parte do observador, e qualquer referência a um lidade se concretiza. Enquanto processo a ontogenia não representa,
estado prévio para replicar outro posterior em termos funcionais ou então, a passagem de um estágio incompleto (embrionário) a outro mais
finalistas é um subterfúgio descritivo, baseado na observação mental completo ou definitivo (adulto), mas apenas a manifestação do aconte-
simultânea de ambos, que induz na mente do leitor uma captação cer de um sistema que é em cada instante a unidade em sua totalidade.
sinóptica da máquina. Desse modo que qualquer máquina, parte da À noção de desenvolvimento, como também a de finalidade, sur-
máquina ou processo de desenvolvimento predizível, podem ser descri- ge no contexto da observação, de maneira que pertence a um domínio
tos por observador como possuindo um plano, finalidade ou função, se que não é o da organização autopoiética do sistema vivo. Analogamente,
ele os trata na forma devida em relação a um contexto mais amplo. o comportamento que um observador pode presenciar numa máquina
80 Maturana e Varela
ii) Relações de especificação, que determinam que os componentes a noção de ordem. Às relações de ordem referem-se ao estabeleci-
produzidos sejam justamente aqueles componentes definidos por mento de processos que asseguram a presença dos componentes
sua participação na autopoiese. na concatenação, cujo resultado é a autopoiese. Não se destaca
qualquer outra referência, por mais concebível que seja para ou-
iii) Relações de ordem, que determinam que a concatenação dos com- tros aspectos da descrição.
ponentes em suas relações de especificidade, constitutivas e de
ordem sejam as especificadas pela autopoiese. ii) Uma organização autopoiética adquire unidade topológica medi-
ante sua materialização num sistema autopoiético concreto que
A maneira pela qual tais relações de produção se concretizem conserva sua identidade enquanto continua sendo autopoiético.
num sistema material depende logicamente de como se materializa a Além disso, o espaço determinado por dito sistema é completo em
autopoiese. No entanto, há determinadas noções gerais, aplicáveis a si e não se pode descrever usando dimensões que definam outro
qualquer sistema autopoiético específico, que logicamente devemos aspecto. No entanto, quando nos referimos a nossas interações
mencionar: com um sistema autopoiético concreto, projetamos esse sistema
sobre o espaço no qual efetuamos nossas manipulações, e fazemos
i Ainda que a análise da constituição material dos componentes e uma descrição desta projeção. Podemos fazer isto porque intera-
a descrição de suas propriedades, num âmbito tal de interações tuamos com os componentes do sistema autopoiético através daque-
que preenchem os requisitos para sua participação num sistema las propriedades de seus elementos constitutivos que não ficam no
autopoiético, incluiriam necessariamente conceitos de energética espaço autopoiético, e modificamos o sistema autopoiético modifi-
e termodinâmica, tais conceitos não entram na caracterização do cando seus componentes. Entretanto, nossa descrição segue a con-
sistema autopoiético. Se os componentes podem materializar-se, seguinte troca da projeção do sistema autopoiético no espaço que
então, a organização pode materializar-se; fica implícito o cum- descrevemos, não no espaço autopoiético.
primento de todas as relações termodinâmicas e energéticas. Às-
sim, por exemplo, no caso específico da célula - que analisaremos iv) Às noções tais como codificação e transmissão de informações não
na seção seguinte -, as relações energéticas que possibilitam de- entram na determinação de um sistema autopoiético concreto por-
terminadas reações com participação doATP não são constitutivas que não constituem elementos causais dele. Assim, a noção de
da organização autopoiética. No entanto, é constitutivo da orga- especificidade não implica codificação, informação nem instru-
nização autopoiética o fato de que determinadas moléculas têm ções; somente descreve certas relações determinadas dependen-
entre suas propriedades a possibilidade de determinada interação, tes da organização autopoiética, que dão por resultado a produ-
porque no contexto dessa interação mantêm as devidas relações ção dos componentes específicos. À dimensão correta é a das rela-
energéticas. ções de especificidade. Dizer que o sistema, ou parte dele, codifica
a especificidade, não é somente uma designação ruim, mas tam-
ii) As noções tais como especificidade e ordem são referenciais; quer bém induz ao erro, e isto porque tal expressão representa a apli-
dizer, carecem de significado fora do contexto em que são defini- cação de um processo que ocorre no espaço da autopoiese a um
das. Assim, quando falamos de relações de especificidade, nos re- processo que ocorre no espaço do desenho humano heteropoiesis,
ferimos à especificação dos componentes no contexto daquilo que e não uma reformulação do fenômeno. A noção de codificação é
define o sistema como autopoiético. Damos por subentendido qual-. uma noção cognoscitiva que representa as interações do observa-
quer outro possível fator de especificidade, por mais necessário dor, e não um fenômeno operativo no domínio físico. O mesmo
para tornar os componentes possíveis, porém que não esteja defi- vale para a noção de regulação. Tal noção é válida no campo de
nido pela organização autopolética. Algo semelhante acontece com descrição da heteropoieses, e reflete a observação e descrição si-
84 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 85
multâneas, pelo desenhista (ou seu equivalente), de transições que possam manter tais relações é outra das dimensões definitó-
interdependentes do sistema que acontecem numa ordem preesta- rias de um sistema autopolético. Na célula, as relações de especifi-
belecida e a velocidades especificadas. A dimensão corresponden- cidade se produzem principalmente por meio da produção de áci-
te num sistema autopoiético é a de produção de ordem; porém, dos nucléicos e proteínas que determinam a identidade das rela-
novamente, aqui no contexto da autopoiese, e não de qualquer ções de produção em geral. É notório que na célula isto se obtém,
estado particular do sistema que apareça projetado em nosso cam- por um lado, mediante relações de especificidade entre o ADN, o
po de descrições. A noção de regulação pode, pois, entrar na des- ARN e as proteínas e por outro, mediante relações de especificidade
crição, porém não constitui um elemento causal da organização entre as enzimas e os substratos. Tal produção de relações de
autopoilética. especificação vale somente dentro do substrato topológico deter-
minado pela produção de relações constitutivas. Na célula, en-
quanto sistema autopoiético, não existe produção de relações de
2. MATERIALIZAÇÃO MOLECULAR especificidade que não sejam definitórias.
Que uma célula é um sistema autopoiético é trivialmente visível 3) Produção de relações de ordem (ver figura à página 6).
em seu ciclo vital. O que não é trivial é como a célula é uma materia- As relações de ordem são aquelas que determinam a dinâmica da
lização molecular da autopoiese. Isto é, aparente ao analisá-la em ter- organização autopoiética determinando a concatenação das rela-
mos das dimensões de seu espaço autopoiético: ções constitutivas, de especificidade e de ordem e, portanto, sua
realização efetiva. O estabelecimento de relações de ordem me-
1) Produção das relações constitutivas (ver figura à página 6). diante a produção de componentes que controlam a produção de
As relações constitutivas são relações que determinam a topologia relações (constitutivas, de especificidade e de ordem) representa
da organização autopoiética e, portanto, seus limites físicos. A a terceira dimensão do espaço autopoiético. Na célula, tais rela-
produção de relações constitutivas mediante a produção dos com- ções se produzem principalmente por meio -da produção de com-
ponentes que mantêm tais relações é uma das dimensões defini- ponentes (metabólitos, ácidos nucléicos e proteínas) que contro-
tórias de um sistema autopoiético. Na célula, tais relações cons- lam a velocidade de produção (síntese e transformação) de todos
titutivas se produzem por meio de produção de moléculas (prote- os componentes requeridos pela produção de relações constituti-
ínas, lipídios, carboidratos e ácidos nucléicos) que determinam a vas, da especificidade e de ordem. As relações de ordem formam
topologia das relações de produção em geral; importante acres- uma rede de relações paralelas - constitutivas, de especificidade
centar, de moléculas que determinam as condições de proximida- e de ordem - que constituem a célula enquanto sistema no qual se
de física necessária para que os componentes mantenham as re- mantém constante a relação de produção que determina esta rede,
lações que os definem. A célula determina seus limites físicos enquanto unidade material topológica e dinâmica. Não há, por
mediante sua dimensão de produção das relações constitutivas parte da organização autopoiética da célula, qualquer ordenação
que especificam sua topologia. Na célula não existe qualquer de processos que não Ihe pertencem.
especificação do que ela não é.
Ao examinar a figura pode-se ver que:
2) Produção de relações de especificidade (ver figura à página 6).
As relações de especificidade são relações que determinam a iden- O ADN entra na especificação dos polipeptídeos e, portanto, das
tidade (as propriedades) dos componentes de organização auto- proteínas - enzimáticas e estruturais - que participam especificamente
poiética e, portanto, sua factibilidade material. A produção de na produção de protídeos, ácidos nucléicos, lipídios, glicídios e metabó-
relações de especificidade mediante a produção de componentes litos. Os metabólitos (que incluem todas as moléculas pequenas, mono-
86 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 87
méricas ou não, produzidas na célula) participam na determinação das da autopoiese. Pode variar tudo o mais: podem variar as relações de
velocidades dos diversos processos e reações, em paralelo e segiiências, topologia, de especificidade e de ordem, sempre que constituam uma
que constituem a célula, estabelecendo, por delimitação ou por partici- rede num espaço autopoiético.
pação constitutiva, uma rede de velocidades interdependentes tal que
toda reação é uma função do estado total da rede que eles integram.
Todos os processos ocorrem ligados a uma topologia determinada pela 3. ORIGEM
participação dos mesmos nas relações constitutivas.
Como observadores, nós podemos projetar todos os processos ce- À produção de relações de constituição, de especificidade e de or-
lulares sobre um sistema de três coordenadas ortogonais e dizer legiti- dem não é privativa dos sistemas autopoiéticos: é inerente às interações
mamente, com validade para a projeção, que a especificação é primor- entre unidades em geral, e às interações moleculares em particular, e
dialmente produzida pelos ácidos nucléicos, a constituição pelas prote- depende das propriedades das unidades (moléculas ou não) expressas
ínas e a ordem (regulação) pelos metabólitos. No entanto, o espaço nas relações geométricas e energéticas que elas adotem. Assim, as pro-
autopolético é curvo e fechado no sentido de que é determinado inteira- priedades geométricas das moléculas determinam um domínio de pro-
mente por ele mesmo, e tal projeção representa nossa relação cognos- ximidades físicas ou de relações espaciais em que podem entrar, ou
eitiva com ele, porém não sua constituição. Nele, a especificação tem seja, as relações de constituição. As propriedades químico-energéticas
lugar em todos os pontos nos quais sua organização determina um pro- das moléculas determinam as interações em que podem participar e,
cesso específico (síntese de proteínas, ação enzimática, permeabilidade portanto, suas relações de especificidade como dimensão ortogonal com
seletiva); a ordenação tem lugar em todos os pontos nos quais dois ou respeito às relações constitutivas. Juntas, umas e outras determinam
mais processos se entrecruzam (trocas de velocidade ou de sucessão, a sucessão e concatenação das interações moleculares, ou seja, as rela-
efeitos aloestéricos, inibição competitiva e não competitiva, ativação, ções de ordem. Portanto, em um sistema molecular pode surgir a
desativação, etc.), determinados pela organização; a constituição se autopoiese se as relações de produção estão concatenadas de tal manei-
efetua em todas as partes em que a organização determina relações de ra que produzam componentes que fazem do sistema uma unidade que
proximidade física (membranas, partículas, sítio ativo das enzimas). O gera continuamente seu caráter unitário. Isto equivale a dizer que a
que faz deste sistema uma unidade com identidade e individualidade é autopoiese surge quando a relação que vincula ditas relações se produz
que em todas as relações a produção está organizada em um todo e se mantém constante através da produção dos componentes mole-
descritível como sistema homeostático, que possui sua própria unicidade culares que formam o sistema mediante tal concatenação. De maneira
pela variável que mantém constante através da produção de seus com- que, em geral, a questão da origem de um sistema autopoiético é uma
ponentes. Num sistema assim, qualquer deformação em qualquer lu- questão a respeito das condições que devem cumprir-se para o estabe-
gar não se compensa retroagindo o sistema a um estado idêntico em lecimento de um espaço autopoiético. Não é, portanto, um problema
seus componentes, como o que se descreveria projetando-o sobre um químico, em termos de quais moléculas fizeram ou podem fazer parte
espaço cartesiano tridimensional. Compensa-se retroagindo à mesma no processo, mas o problema geral de quais relações devem satisfazer
organização definida como a relação entre as relações de produção de as moléculas, ou qualquer das unidades constitutivas, para gerar uma
relações constitutivas, de especificidade e de ordem que é a autopoiese. unidade em dito espaço.
Em outras palavras, é condição constitutiva de tal sistema que toda
compensação o mantenha no espaço autopoiético.
Assinalamos como todos os aspectos biológicos da célula enquan- Comentário:
to unidade são determinados por sua autopoiese. De fato, o único az-
pecto que define a célula como unidade (como indivíduo) é sua autopoiese i) Um sistema autopoiético é definido como uma unidade por e atra-
e a única restrição imposta à existência de uma célula é à conservação vés de sua organização autopoiética, e possui existência topológica
88 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 89
no espaço em que seus componentes têm existência como entida- constitui a operação de distinção que o define, e sua origem coin-
des que podem interatuar. Para os seres vivos, tal espaço é o es- cide com o estabelecimento de dita operação.
paço físico. Sem unidade topológica num espaço determinado, um
sistema não existe nesse espaço e, portanto, somente pode ser iv) O problema da origem dos sistemas autopoiéticos tem dois aspec-
um sistema no domínio de nossa descrição, no qual unidade se tos: um se refere a sua factibilidade, e o outro a sua possibilidade
especifica conceitualmente carecendo, porém, da dinâmica das de aparição espontânea. Cabe formular o primeiro aspecto da
relações de produção que o constituiriam como sistema operante. seguinte maneira: o surgimento de qualquer sistema depende da
presença dos componentes que o integram e.das classes de
ii) O estabelecimento de um sistema autopoiético não pode ser um interações em que ele pode entrar; portanto, dados os componen-
processo gradativo: o sistema autopoiético ou existe, ou não exis- tes apropriados e a devida concatenação de suas interações, o
te. De fato, seu estabelecimento não pode ser um processo sistema se faz real. À questão concreta relativa à factibilidade de
gradativo porque um sistema autopoiético é definido como siste- um sistema autopoiético molecular é, portanto, a questão das
ma - vale dizer, como unidade topológica - pela sua organização. condições em que podem concatenar-se diversos processos quími-
Portanto, uma unidade topológica ou está conformada por sua cos para formar unidades topológicas que constituem redes no
organização autopoiética e o sistema autopoiético existe e per- espaço autopoilético. O segundo aspecto pode ser expresso da se-
manece, ou não há unidade topológica, ou existe conformada de guinte maneira: dadas a factibilidade dos sistemas autopoiéticos
maneira diferente, e não existe um sistema autopoiético, senão e a existência de sistemas autopoiéticos terrestres; existem con-
alguma outra coisa. Em consequência, não há nem pode haver dições naturais nas quais estes possam gerar-se espontaneamen-
sistemas intermediários. Podemos descrever um sistema e falar te? Especificando, a questão seria: quais foram ou são as condi-
dele como se pudesse, com pouca transformação, converter-se em ções naturais em que surgiram ou surgem espontaneamente na
sistema autopoiético, porque podemos imaginar sistemas diferen- terra componentes, cujas propriedades fazem possíveis alguns sis-
tes com os quais os comparamos; porém, um sistema assim seria temas autopoiéticos? Esta pergunta não pode ser respondida in-
intermediário somnente em nossa descrição, e em nenhum sentido dependentemente da maneira como for respondida a questão da
uma organização intermediária. factibilidade, especialmente no que se refere à factibilidade de
uma ou várias classes diferentes de sistemas autopoiéticos
iii) Os processos autocatalíticos não são sistemas autopoiéticos; en- moleculares. A atual presença na terra de uma modalidade de
tre outras coisas, eles não determinam sua própria topologia. Sua organização autopoiética (o sistema ácido nucléico-proteína) não
topologia é determinada por um contexto que é parte da pode ser interpretada como se a questão da factibilidade admitis-
especificação do sistema, porém alheio à operação de autocatálises. se apenas uma resposta.
No espaço físico abundam os processos deste tipo ou semelhan-
tes. Também é fregiiente o acoplamento de processos indepen- As noções que comentamos são válidas para a origem (a forma-
dentes para formar sistemas mais extensos; estes podem ou não ção) dos sistemas autopoiéticos em qualquer nível de materialização,
ser unidades definidas pelas circunstâncias de sua formação num molecular ou supramolecular. Não nos deteremos nas circunstâncias
espaço determinado, físico ou de outra classe. Entretanto, eles particulares de nenhuma dessas materializações. Deixaremos este as-
não constituirão e nem participarão na constituição de um siste- sunto por aqui, e tomaremos a existência dos sistemas vivos como pro-
ma autopoijéticu, a menos que o sistema que formem chegue a va existencial da factibilidade da organização autopoiética. O que abor-
definir-se como unidade topológica em um espaço determinado damos a seguir é a importância da unidade topológica para a diversi-
por sua organização autopoiética. Uma unidade se define mediante dade dos sistemas autopoiéticos.
uma operação de distinção: num sistema autopoiético, aautopoiese
De Máquinas e Seres Vivos — 9
CAPÍTULO IV noção operante relativa ao processo por meio do qual uma unidade
chega a constituir-se ou definir-se: as condições que determinam uma
unidade definem sua fenomenologia. Nos sistemas viventes, tais con-
DIVERSIDADE DA 407OPOJESE dições são determinadas por sua organização autopoiética. De fato,
autopoiese implica subordinação de toda troca no sistema autopoiético
à manutenção de sua organização autopoiética e, como esta organiza-
ção o define como unidade, subordinação de toda fenomenologia do sis-
tema à conservação de sua unidade. Tal subordinação tem as seguin-
tes consequências:
Os sistemas vivos são sistemas autopoiéticos. A diversidade dos
sistemas viventes é óbvia. Também é óbvio que tal diversidade depen- ) O surgimento de uma unidade determina o domínio de sua
de da reprodução e da evolução. No entanto, a reprodução e a evolução fenomenologia, mas a maneira como a unidade está constituída
não entram na caracterização da organização viva, e os sistemas vi- determina a classe de fenomenologia que ela gera nesse domínio,
ventes são definidos como unidades por sua autopoiese. Isto é significa- do que resulta que a maneira particular adotada pela fenomeno-
tivo porque faz com que a fenomenologia dos sistemas vivos dependa logia de cada unidade (biológica) autopoiética depende da manei-
somente de sua condição de unidades autopoiéticas. De fato, a repro- ra particular em que se concretiza sua autopoiese individual, e
dução necessita da existência de uma unidade a que reproduzir, e está que o domínio de trocas ontogênicas (incluída a conduta) de cada
necessariamente subordinada ao surgimento de tal unidade. Deduz-se indivíduo é o domínio das trajetórias homeostáticas por meio das
que a avaliação correta da fenomenologia dos sistemas viventes, incluí- quais ele pode conservar sua autopoiese.
das a reprodução e a evolução, requer sua compreensão como unidades
autopoiéticas. ii) Toda a fenomenologia biológica é necessariamente determinada
e realizada por indivíduos (quer dizer, por unidades autopoiéticas
no espaço físico), e consiste em todas as séries de transformações
1. SUBORDINAÇÃO À CONDIÇÃO DE UNIDADE que eles podem experimentar como sistemas homeostáticos, iso-
ladamente ou em grupos, no processo de manter constantes suas
Aunidade (possibilidade de diferenciar-se de um fundo e, portan- relações definitórias individuais. O fato das unidades autopoiéticas
to, de outras unidades) é a única condição necessária para ter existên- constituírem ou não unidades adicionais, no processo de suas
cia em qualquer domínio determinado. De fato, a natureza de uma interações, carece de importância para a subordinação da fenome-
unidade e o domínio em que ela existe são especificados somente pela nologia biológica à conservação da identidade dos indivíduos. De
operação de distinção que indica, seja esta conceitual - quando um ob- fato, se uma nova unidade que não é autopoiética é produzida,
servador define uma unidade diferenciando-a em seu âmbito de ex- sua fenomenologia - que necessariamente dependerá de sua or-
pressão ou descrição -, seja esta material - quando se estabelece uma ganização - será biológica ou não segundo sua dependência em
unidade colocando efetivamente em ação suas propriedades definitórias relação à autopoiese de seus componentes, e, de acordo com isso
mediante seu funcionamento real no espaço físico. Por conseqiiência, dependerá ou não da manutenção desses componentes em quali-
classes distintas de unidades necessariamente diferem no domínio em dade de unidades autopoiéticas. Se a nova unidade é autopoiética,
que se estabelecem e, tendo domínios de existência diferentes, podem sua fenomenologia é diretamente biológica e obviamente depen-
interatuar ou não, dependendo de, se tais domínios se interceptam ou de da preservação de sua autopoiese, a qual, por sua vez, pode ou
não. À distinção de uma unidade não é uma noção abstrata, com vali- não depender da autopoiese de seus componentes.
dade somente conceitual para fins descritivos ou analíticos, mas uma
92 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 93
iii) A identidade de uma unidade autopoiética se mantém enquanto com a única restrição de que isto deve se realizar sem perda de
ela continua sendo autopoiética, quer dizer, enquanto ela como identidade, quer dizer, através de uma autopotese ininterrupta.
unidade no espaço autopoiético segue sendo uma unidade no es-
paço autopoiético, sem que importe quanto se transforme em ou- Iv) Ainda que as trocas que um sistema autopoiético pode experi-
tros aspectos no processo de manter sua autopoiese. mentar sem perder sua identidade, enquanto compensa as per-
turbações ou as deformações causadas por suas interações, se-
iv) Somente depois que uma unidade tenha se constituído em unida- jam determinadas pela sua organização, a ordem sucessiva de
de autopoiética a reprodução (individual) pode ter lugar como fe- tais trocas é determinada pela ordem sucessiva dessas deforma-
nômeno biológico. ções. Duas são as fontes de deformações de um sistema autopoié-
tico percebidas por um observador: uma é constituída pelo ambi-
ente, com seus acontecimentos independentes no sentido de não
2. PLASTICIDADE DA ONTOGENIA serem determinados pela organização do sistema; a outra o pró-
prio sistema a constitui com seus estados resultantes da compen-
A ontogenia é a história da transformação de uma unidade. Por sação de deformações, estados que podem ser, por sua parte, de-
conseguinte, a ontogenia de um sistema vivo é a história da conserva- formações que dão origem a novas trocas compensatórias. Na
ção de sua identidade através de sua autopoiese continuada no espaço fenomenologia da organização autopoiética, estas duas fontes de
físico. O simples fato de que um sistema autopoiético é um sistema perturbação são inseparáveis, e em todo sistema autopoiético se
dinâmico, tornado real mediante relações de produção que implicam entrelaçam para configurar somente uma ontogenia. Portanto,
interações e transformações físicas concretas, implica que a ontogenia ainda que em um sistema autopoiético todas as trocas são deter-
de um sistema vivo deva efetuar-se no espaço físico. Tal concepção da minadas internamente, para um observador sua ontogenia refle-
ontogenia dá lugar a várias considerações: te em parte a história de suas interações com um ambiente inde-
pendente. Em consegiiência, dois sistemas autopoiéticos equiva-
1) Como a maneira de manter sua identidade de sistema autopoiético lentes em outros aspectos podem ter ontogenias diferentes.
depende de sua modalidade particular de autopoiese, diferentes
tipos de sistemas autopoiéticos possuem diferentes classes de v) Um observador que contempla um sistema autopoiético como uni-
ontogenia. dade, num contexto que também observa e descreve como meio
circundante do sistema, pode distinguir nele perturbações de ori-
ii) Como um sistema autopoiético não possui entradas nem saídas, gem interna e externa, mesmo quando elas são intrinsecamente
todas as trocas que ele experimente sem perder sua identidade, inseparáveis para o próprio sistema autopoiético. O observador
e, portanto, mantendo suas relações definitórias, são necessaria- pode utilizar tal distinção para fazer afirmações a respeito da
mente determinadas por sua organização homeostática. Assim, a história do sistema autopoiético que ele observa e utilizar essa
fenomenologia de um sistema autopoiético está necessariamente história para descrever um ambiente que ele infere ser o domínio
sempre em correspondência com as perturbações ou deformações em que existe o sistema. No entanto, da correspondência obser-
que ele sofre sem perder sua identidade, e com ambiente deformador vada entre a ontogenia do sistema e o ambiente que tal ontogenia
em que está situado; não fosse assim, desintegrar-se-ia. descreve, ou o meio circundante em que o observa, não pode infe-
rir uma representação constitutiva deste na organização do sis-
im) Como consequência da natureza homeostática da organização tema autopoiético. À contínua correspondência entre a conduta e
autopolética, a maneira em que a autopoiese se realiza em qual- o ambiente, revelada durante a ontogenia, é o resultado da natu-
quer unidade determinada pode variar durante sua ontogenia, reza homeostática da organização autopoiética, e não da existên-
94 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 95
cia nela de qualquer representação do ambiente; nem é minima- do e suas relações com o mecanismo reprodutor. Portanto, para enten-
mente necessário que o sistema autopoilético deva obter ou de- der a reprodução e suas consequências nos sistemas autopoiéticos, de-
senvolver tal representação para subsistir em um ambiente mutá- vemos analisar o operar deste processo em relação com as autopoieses.
vel. Falar de uma representação do ambiente, ou do meio circun-
dante, na organização de um sistema vivo, pode ser útil como i) Existem três fenômenos que devem ser diferenciados em relação
metáfora, porém é inadequado para revelar a organização de um com o conceito de reprodução: a replicação, a cópia e a auto-repro-
sistema autopojético. dução.
vi) As trocas compensatórias que experimenta um sistema autopoié-. Replicação. Um sistema que gera sucessivamente unidades dis-
tico, mantendo sua identidade, podem ser de duas classes, segundo tintas a si, porém, em princípio idênticas umas a outras e com uma
: a maneira em que se realiza sua autopoiese: trocas conservadoras, organização que o sistema determina enquanto as produz é um siste-
as quais somente implicam compensações que não precisam trocas ma replicador. À replicação não é, portanto, outra coisa que reprodu-
nas variáveis mantidas constantes através de seus processos homeos- ção repetitiva. Qualquer distinção entre tais processos surge na descri-
táticos que o compõem; e trocas inovadoras, que implicam trocas na ção segundo a ênfase que o observador põe sobre a origem da organiza-
qualidade dessas variáveis. No primeiro caso, as interações (inter- ção igual das unidades produzidas sucessivamente e segundo a impor-
nas ou externas) causadoras das deformações não levam a qualquer tância que ele associa a essa igualdade em um domínio diferente da-
variação na maneira de realizar-se a autopoiese, e o sistema perma- quele em que se efetua a produção. Assim, ainda que todas as molécu-
nece no mesmo ponto do espaço autopoiético; no entanto, no segun- las são produzidas por processos moleculares e atômicos específicos que
do caso, as interações levam a uma variação na maneira de realizar- podem repetir-se, somente se fala de replicação quando se produzem
se aautopoiese e, portanto, a um deslocamento do sistema no espaço determinados tipos específicos de moléculas (proteínas e ácidos
autopoiético. Assim, enquanto o primeiro caso implica uma ontogenia nucléicos) em relação com as atividades celulares. À rigor, tal denomi-
conservadora, o segundo implica uma ontogenia que é, além disso, nação refere-se exclusivamente a um contexto de observação em que
ademais um processo de especificação de uma autopoiese particular, se estima necessária a identidade das moléculas produzidas sucessiva-
cuja determinação necessariamente depende tanto das limitações mente, e não a uma especificidade exclusiva dessa síntese molecular
organizacionais do sistema como de sua história de interações. particular.
Cópia. A cópia acontece, quando um objeto ou fenômeno determi-
nado se mapeia, por algum procedimento sobre outro sistema, produ-
8. A REPRODUÇÃO, UMA COMPLICAÇÃO DA UNIDADE zindo-se neste um objeto ou fenômeno isomórfico. Na noção de cópia, a
ênfase é colocada no processo de mapeamento, qualquer que seja este,
A reprodução requer uma unidade que se reproduza; por isso, a ainda que esta operação seja efetuada pela própria unidade modelo.
reprodução é uma operação posterior ao estabelecimento da unidade e Auto-reprodução. A auto-reprodução acontece quando uma uni-
não pode entrar como aspecto definitório na organização dos sistemas dade produz outra com organização semelhante à dela mesma, medi-
viventes. Além disso, como os sistemas vivos se caracterizam pela sua ante um processo acoplado ao processo de sua própria produção. É evi-
organização autopoiética, a reprodução deve necessariamente ter sur- dente que somente os sistemas autopoiéticos podem auto-reproduzir-
gido como uma complicação da autopoiese e durante ela; e sua origem se porque são os únicos que se formam por um processo de auto-repro-
deve ser considerada como secundária e independente da origem da dução (autopoiese).
organização viva. A dependência da reprodução em relação à existên-
“cia da unidade a ser reproduzida, não é um problema trivial de prece- 1) Para um observador, há reprodução nestes três processos, por-
dência, mas um problema operacional na origem do sistema reproduzi- que existe uma unidade, um modelo de organização que, por meio
96 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 97
de três mecanismos diferentes bem definidos, toma corpo em sis- iv) A classe de reprodução depende da natureza da unidade. O mes-
temas gerados sucessivamente. No entanto, os três processos são mo se aplica em relação a sua origem. Areplicação acontece inde-
intrinsecamente diferentes, porque sua dinâmica dá origem a pendentemente da autopoiese. A cópia tem lugar somente na
fenomenologias diferentes. Isto é visível com especial nitidez se “heteropoiesis”, e pode-se dizer que acontece em outras situações
se considera a rede de sistemas gerados em condições de reprodu- unicamente como descrição. A auto-relação associa-se exclusiva-
ção do modelo de organização encarnado sucessivamente. Na mente com a autopoiese, e sua origem é historicamente secundá-
replicação e na cópia, o mecanismo de reprodução é necessaria- ria à origem desta. À razão deste vínculo será abordada na seção
mente exterior ao modelo reproduzido, enquanto que na auto- seguinte.
reprodução é necessariamente idêntico a ele. Além disso, somen-
te na autocópia e na auto-reprodução as trocas produzidas nas v) Noções tais como codificação, mensagens ou informação não são
unidades, que materializam o modelo reproduzido, podem afetar aplicáveis ao fenômeno da auto-reprodução; seu emprego na des-
o mecanismo reprodutor. As consequências disto serão tratadas crição deste fenômeno constitui uma tentativa de representá-lo
na seção seguinte, porém agora deve ficar claro que as intercone- na linguagem do desenho heteropoiético. De fato, as noções de
xões históricas estabelecidas pela reprodução entre unidades in- codificação, mensagem e transmissão de informação são aplicá-
dependentes variam segundo o mecanismo através do qua! se veis somente a situações de diminuição de incertezas em interações
realiza a reprodução. comunicativas entre unidades independentes, em condições em
que o mensageiro não participa como componente. Os ácidos
iii) Nos sistemas vivos terrestres atualmente conhecidos, aautopoiese nucléicos são componentes constitutivos no processo daautopoiese
e a reprodução estão diretamente acopladas, e, portanto, estes e não vínculos arbitrários em interações entre entidades interde-
sistemas são auto-reprodutores. De fato, neles a reprodução é um pendentes. Na auto-reprodução não existe transformação de in-
momento na autopoiese, e o mesmo mecanismo que constitui uma formação entre entidades independentes; as unidades reprodu-
constitui a outra. Às consequências de tal acoplamento são im- toras e as reproduzidas são entidades topologicamente indepen-
portantíssimas: a) A auto-reprodução deve ter lugar durante a dentes, produzidas por meio de um processo unicamente de
autopoiese; portanto, a rede de indivíduos assim produzida é ne- autopoiese no qual todos os componentes participam constitutiva-
cessariamente completa em si, no sentido de que para estabele- mente.
cer-se não precisa de outro mecanismo, além da autopoiese
determinante das unidades auto-reprodutoras. Não seria assim
se a reprodução se obtivesse por cópia ou aplicação externa. b) A 4. A EVOLUÇÃO, UMA REDE HISTÓRICA
auto-reprodução é uma forma de autopoiese; logo, a variação e a
constância em cada estágio reprodutivo não são independentes, Um fenômeno histórico é um processo de trocas no qual cada um
e, ambas devem apresentar-se como expressões da autopoiese. c) dos estados sucessivos de um sistema variante surge como modificação
A variação somente pode surgir durante a autopoiese como modi- de um estado prévio numa transformação causal, e não de novo como
ficação de uma organização autopoiética preexistente e operante, fato independente. Portanto, a noção de história pode ser usada para
logo, a variação pode surgir somente de perturbações que preci- referir-se aos antecedentes de um fenômeno determinado como a su-
sam novas complicações homeostáticas para manter constante a cessão de fatos que lhe dão origem, ou para caracterizá-lo como um
autopoiese. A história dos sistemas autopoiéticos vinculados auto- processo. Disto decorre que, por ser uma explicação sempre no presen-
reprodutivamente pode somente ser uma história de contínua te, como reformulação do fenômeno a ser explicado no domínio das
complicação da autopoiese. interações de seus elementos componentes (ou de elementos isomórficos),
a história de um fenômeno como descrição de seus antecedentes não
98 Maturana e Varela | De Máquinas e Seres Vivos 99
pode contribuir para explicá-lo, porque os antecedentes não são compo- duz. Como consequência, qualquer troca no modelo de organiza-
nentes do fenômeno a que precedem ou geram. ÂÃo contrário, já que a ção reproduzido - e materializado nas unidades produzidas su-
história enquanto fenômeno necessita explicar-se no presente como rede cessivamente mediante replicação ou cópia de apenas um modelo
causal de fatos concatenados sequencialmente, na qual cada fato é um - somente pode refletir as ontogenias dos sistemas reprodutores
estado da rede que surge por transformação do estado anterior, infere- ou as diferentes ontogenias das próprias unidades. O resultado é
se que a história, ainda que não contribua para explicar qualquer fenô- que, nestes casos de reprodução não-sequencial, uma troca na
meno, pode permitir a um observador explicar a origem de um fenôme- organização de uma unidade em nenhuma circunstância afeta a
no como estado dentro de uma rede (histórica) causal, porque ele tem organização das outras ainda por produzir. Portanto, indepen-
acesso de observação (ou descritivo) independente aos diferentes esta- dentemente de serem autopoiéticas ou não, tais unidades não
dos do processo histórico. É neste contexto que se deve considerar a constituem uma rede histórica e não se produz qualquer evolu-
fenomenologia dos sistemas autopoiéticos quando são examinados em ção; a coleção de unidades assim produzidas forma uma coleção
relação à evolução. A evolução biológica é um fenômeno histórico e, de ontogenias independentes. O contrário vigora na reprodução
como tal, deve ser explicada no presente, reformulando-a como rede segiencial, tanto na que acontece em sistemas auto-reprodutores
histórica que se constitui através das interações causais de fatos bioló- que alcançam a reprodução através da autopoiese, como naque-
gicos acoplados ou independentes. Além disto, os fatos biológicos de- les sistemas copiadores nos quais cada nova unidade produzida é
pendem da autopoiese dos sistemas viventes; em consequência, nosso o modelo para a seguinte. Nestes casos, há aspectos da organiza-
objetivo aqui é compreender como a evolução fica definida como pro- ção definitória de cada unidade que determinam a organização
cesso histórico pela autopoiese das unidades biológicas. da seguinte mediante seu acoplamento direto com o processo
reprodutivo, que desta maneira fica subordinado a ele. Portanto,
i) Se com o termo evolução nos referimos ao que aconteceu na histó- as trocas nestes aspectos da organização das unidades geradas
ria das transformações dos sistemas vivos terrestres, a evolução sequencialmente, que acontecem durante sua própria ontogenia
enquanto processo é a história da troca de um modelo de organi- ou no processo de sua geração, levam necessariamente à produ-
zação materializado em unidades independentes, geradas segien- ção de uma rede histórica em que as unidades produzidas inevi-
cialmente através de etapas auto-reprodutivas, nas quais a orga- tavelmente encarnam de maneira sucessiva um modelo variável
nização definitória particular de cada unidade aparece como mo- de organização, no qual cada estado surge como modificação do
dificação da anterior, constituindo assim seus antecedentes anterior. Em geral, a reprodução sequencial necessariamente leva
sequenciais e históricos. Portanto, a evolução requer reprodução à evolução, e, em particular nos sistemas autopoiéticos, a evolu-
sequencial e troca em cada estágio reprodutivo. Sem reprodução ção é uma consegiiência de auto-reprodução.
sequencial - processo reprodutivo em que a organização definitória
de cada unidade da série constitui o antecedente para a organi- iii) A ontogenia e a evolução são fenômenos totalmente diferentes,
zação definitória da seguinte -, não há história; sem troca em tanto em seu operar como em suas consegiiências. Na ontogenia,
cada etapa reprodutiva da série, não há evolução. Em contraste, como história da transformação de uma unidade, a identidade da
as transformações sucessivas de uma unidade sem troca de iden- unidade - qualquer que seja o espaço em que exista - jamais se
tidade constituem sua ontogenia, ou seja, sua história individu- interrompe. Na evolução, como processo de troca histórico, existe
al, se é uma unidade autopoiética. uma sucessão de identidades geradas por reprodução sequencial
que formam uma rede histórica, e o que varia (evolui) - o modelo
1) Areprodução, por replicação ou por cópia, de somente um modelo organizativo das unidades geradas sucessivamente - existe em
invariante representa um desacoplamento intrínseco entre a or- um domínio diferente do das unidades que o encarnam. Uma co-
ganização das unidades produzidas e o mecanismo que as pro- leção de ontogenias sucessivas, em cujas organizações um observa-
100 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 101
dor pode ver relações de troca constantes, porém não geradas por zar-se, sem que tenha importância quanto varie em outros as-
reprodução sequencial, não constitui um sistema evolutivo, mesmo pectos, em cada etapa reprodutiva, a maneira de se tornár con-
que representem a transformação contínua (ontogenia) do sistema creta sua autopoiese.
que as gerou. É impróprio falar de evolução na história de trocas de
apenas uma unidade, em qualquer espaço em que exista; as unida- v) Para que a evolução tenha lugar como verdadeira história de tro-
des só possuem ontogenia. Portanto, é impróprio falar de evolução cas de um modelo organizativo mediante sua materialização em
do universo ou de evolução química da terra; se deveria falar de unidades geradas sucessivamente, a reprodução deve permitir
ontogenia do universo, ou de história química da terra. Ainda assim, que a organização reproduzida sequencialmente mude. Nos sis-
existe evolução biológica somente quando há reprodução sequencial temas vivos atuais, a reprodução se efetua como modificação da
dos sistemas vivos; se antes disso houve sistemas autopoléticos não- autopoiese, e está ligada a ela. Isto era de se esperar. É provável
reprodutores, estes não evoluíram, e somente houve a história de que inicialmente se formaram muitas classes de unidades auto-
suas diferentes ontogenias. poiéticas que competiam entre si pelos percursores. Se uma clas-
se delas tinha alguma possibilidade de auto-reproduzir-se, é evi-
1V) A seleção enquanto processo numa população de unidades é um dente que de imediato deslocava, por seleção, as outras classes
processo de realização delas em um contexto que determina as não-reprodutoras. Este processo não precisa ser complexo; por
organizações unitárias que podem realizar-se. Numa população exemplo, em um sistema com autopoiese distribuída (como na du-
de unidades autopoiléticas, a seleção é um processo de realização plicação do ADN bacteriano), a fragmentação mecânica é uma
diferencial da autopoiese e, portanto, se as unidades autopoiéticas forma de auto-reprodução. A evolução mediante seleção poderia
são auto-reprodutoras, a seleção é um processo de auto-reprodu- ter aparecido pela seleção preferencial daqueles aspectos das
ção diferencial. Portanto, se em cada etapa reprodutiva existem unidades autopoiéticas que facilitavam sua fragmentação (e por-
reprodução sequencial e possibilidade de troca, a seleção pode tanto a regularidade e a fregiiência da auto-reprodução) até o
fazer da transformação do modelo organizativo reprodutível en- ponto de fazê-la independente de forças acidentais externas. Uma
carnado em cada unidade sucessiva uma função recursiva do do- vez que em um sistema autopoiético ocorre, o processo auto-
mínio de interações especificado por essa mesma unidade auto- reprodutor mais simples, a evolução está em marcha, e a auto-
poiética. Se todo sistema autopoiético que existe concretamente é reprodução pode iniciar uma história de trocas, com o conseguin-
necessariamente adaptado ao domínio em que ocorre e se a adap- te deslocamento total (por seleção natural) de qualquer das uni-
tação é o requisito para que qualquer sistema autopoiético possa Daí a vincula-
dades autopoiéticas não-reprodutoras coexistentes.
realizar-se, a evolução tem lugar somente como processo de con- ção entre autopoiese e reprodução nos sistemas viventes terres-
tínua adaptação das unidades que encarnam o modelo organiza- tres. Logicamente, não é possível dizer agora o que aconteceu
tivo em evolução. Desta maneira, sistemas evolutivos distintos realmente no começo da evolução biológica, porém isto não pare-
diferirão não quanto a serem mais ou menos adaptados, senão ce apresentar uma dificuldade conceitual insuperável. O fato é
somente quanto ao domínio no qual o modelo organizativo em que, nos sistemas viventes de hoje, a reprodução está decidida-
evolução se faz realidade e, portanto, no qual se efetua a seleção. mente vinculada aos ácidos nucléicos e seu papel na especificação
Assim, nos sistemas viventes auto-reprodutores que conservam de proteínas. Isto não poderia ser assim se a associação de ácidos
sua identidade no espaço físico (enquanto sua organização nucléicos-proteínas e variação não fosse uma condição constitutiva
autopoiética homeostática é compatível com as limitações do inicial dos sistemas autopoiéticos. De fato, somente trocas inova-
ambiente em que eles existem), a evolução é necessariamente doras, quer dizer, trocas não-compensadas que modificam o modo
um processo de adaptação contínua, porque somente se reprodu- de realização da autopotese sem interrompê-la (como trocas es-
zem, dentro destes sistemas, aqueles cuja autopoiese pode reali- truturais doADN de organismos atuais), permitem a geração por
102 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 103
auto-reprodução de unidades reprodutivamente conectadas em tente de indivíduos representa continuamente o estado de uma
um processo evolutivo. Não sabemos se houve na história dos determinada rede histórica em seu processo de ser, e, ao descrevê-
sistemas vivos terrestres outras maneiras de organização auto- la como o estado de uma rede histórica, uma espécie aparece ne-
polética e outras fontes de variação diferentes do sistema ácidos cessariamente em processo de transformação. No entanto, a es-
nucléicos-proteínas. Em qualquer caso, uma vez que a auto-re- pécie semente existe como unidade no domínio histórico, enquan-
produção aparece na autopoiese, toda perturbação inovadora re- to que os indivíduos que constituem os nós da rede histórica exis-
sulta, necessariamente, na geração de linhagens de organismos tem no espaço físico. À rigor, portanto, na medida em que uma
com novas propriedades suscetíveis de seleção; portanto, toda rede reprodutiva fica definida como rede histórica por todos e cada
perturbação inovadora constitui uma fonte de variação genética um dos indivíduos que constituem seus nós em seu acontecer his-
na dinâmica evolutiva. Como consequência, a fenomenologia da tórico, a espécie como conjunto observável de nós contemporâne-
evolução biológica depende de dois processos: reprodução e varia- os na rede reprodutiva não evolui, somente tem história de mu-
ção. Um se refere às maneiras possíveis de complicação da auto- danças. O que evolui é um modelo de organização autopoiética,
poiese; o outro se refere aos mecanismos de inserção de perturba- materializado em muitas variáveis particulares, em um conjunto
ções inovadoras na autopoiese. Ambos sofrem transformações his- de indivíduos transitórios que juntos definem uma rede histórica
tóricas que, ainda que acopladas, não são equivalentes. reprodutiva. Os indivíduos são, então, indispensáveis, porque re-
presentam a única existência física da rede que eles definem. A
vi) Dos dois mecanismos capazes de dar origem à reprodução espécie tem um caráter puramente descritivo e, ainda que repre-
sequencial, o único acessível aos sistemas autopoiéticos, na au- sente um fenômeno histórico, não constitui um componente cau-
sência de um mecanismo copiador independente é a auto-repro- sal na fenomenologia evolutiva.
dução, devido à coincidência entre o mecanismo reprodutor e o de
constituição da unidade. Atualmente, o processo de cópia somen-
te se efetua associado com o funcionamento dos sistemas vivos, 5. SISTEMAS AUTOPOIÉTICOS DE MAIOR ORDEM
em particular na aprendizagem cultural; a evolução cultural tem
lugar mediante cópia sequencial de um modelo mutável, no pro- Cada vez que o comportamento de uma ou mais unidades é tal
cesso de doutrinação social, geração após geração: que há um domínio em que a conduta de cada uma é função das de-
mais, se diz que estas estão acopladas nesse domínio. O acoplamento
vii) Uma espécie é uma população, ou conjunto de populações, de in- surge como resultado das modificações mútuas que as unidades
divíduos intervinculados reprodutivamente que, desta maneira, interatuantes sofrem, sem perder sua identidade, no decurso de suas
são entrelaçados numa rede histórica. Geneticamente, tais indi- interações. Se durante a interação perdem-se as identidades das uni-
víduos compartilham um patrimônio comum de genes, quer di- dades interatuantes, a consequência disso pode ser a geração de uma
zer, um modelo essencialmente equivalente de organização auto- nova unidade, porém não se verifica acoplamento. Em geral, no entan-
polética em transformação histórica. Historicamente, uma espé- to, o acoplamento também pode conduzir à geração de uma nova uni-
cie surge, quando uma rede reprodutiva deste tipo de origem a dade, em um domínio que pode ser diferente daquele em que as unida-
outra rede reprodutiva como ramo que, justamente por consti- des componentes (acopladas) mantêm sua identidade.A maneira como
tuir-se em rede histórica independente (reprodutivamente sepa- isto ocorre, bem como o domínio em que se constitui a nova unidade,
rada), possui outra história. É dito que o que evolui é a espécie, e depende das propriedades das unidades componentes. Nos sistemas
que os indivíduos estão, em sua existência histórica, subordina- vivos, o acoplamento é um acontecimento frequente; os comentários
dos a essa evolução. Num sentido descritivo superficial, isto é que se seguem estão destinados a demonstrar que a natureza de seu
aceitável, porque uma espécie determinada como conjunto exis- acoplamento é determinada por sua organização autopoilética.
104 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos - 105
i) Os sistemas autopoiéticos podem interatuar entre si, sem perder rio, um sistema gerado pelo acoplamento de unidades autopoié-
sua identidade, enquanto suas respectivas modalidades de auto- ticas e constituído como unidade em um espaço estabelecido por
poiese constituem fontes de perturbações mútuas compensáveis. componentes produzidos em tal espaço por processos de produção
Mais ainda, devido a sua organização homeostática, os sistemas que eles mesmos geram é um sistema autopoiético em tal espaço,
autopoiéticos podem acoplar-se de maneira que suas respectivas independentemente de tais componentes coincidirem ou não com
“autopoieses” se especifiquem durante o acoplamento dentro de as unidades autopoiéticas que os geram em seu acoplamento. Um
margens de tolerância e variação determinadas durante o acopla- sistema autopoiético cuja autopoiese implica a autopoiese das
mento. O resultado é uma unidade na qual a maneira de acopla- unidades autopoiéticas que o geram é um sistema autopoiético
mento de seus componentes muda durante sua história. Tais con- de ordem superior. Se tal sistema é autopoilético no espaço físico,
siderações também valem para o acoplamento de unidades auto- é um sistema vivo. Em geral, o reconhecimento efetivo de um
poiéticas e não-autopoiéticas, com as correções óbvias em relação sistema autopoiético oferece dificuldades cognoscitivas que têm a
mim
à conservação de sua identidade pelas segundas. Em geral, por- ver com a capacidade do observador para reconhecer as relações
tanto, o acoplamento de sistemas autopoléticos com outras uni- que definem o sistema como unidade, e com sua capacidade para
dades, autopoiéticas ou não, se realiza mediante sua autopoiese. - distinguir as fronteiras que o limitam no espaço em que ocorre,
O fato de que o acoplamento pode facilitar a autopoiese não ne- qualquer que seja este. Mais ainda, para discriminar um sistema
cessita ser mais discutido; e que esta facilitação pode ter lugar autopoiético é condição necessária que o observador realize uma
mediante a forma particular em que se realiza a autopoiese das operação de diferenciação que defina os limites do sistema no
emceras
unidades acopladas já foi dito. Infere-se que é possível a seleção mesmo espaço (domínio fenomenológico) em que este fica consti-
para o acoplamento, e que por meio da evolução sob pressão sele- tuído como unidade. Se o observador não pode executar tal ope-
tiva para acoplar-se, pode desenvolver-se (evoluir) um sistema ração de diferenciação, não pode observar o sistema autopojético,
composto no qual aautopoiese individual de cada um de seus com- ainda que possa concebê-lo. Assim, por exemplo, atualmente o
ponentes autopoiéticos está subordinada a um ambiente deter- reconhecimento de uma célula como unidade autopolética no es-
minado pela autopoiese de todos os integrantes autopoiéticos da paço físico não oferece qualquer dificuldade, porque não apenas
unidade composta. Tal sistema composto será necessariamente podemos identificar sua organização autopoiética em nível
definido como unidade pelas relações de acoplamento dos siste- bioquímico, como também podemos interatuar com ela visual,
mas autopoiéticos que o integram, em um espaço delimitado pela mecânica e quimicamente na interfase que define com sua auto-
natureza de acoplamento, e continuará sendo uma unidade en- poiese em tal espaço. Com outros sistemas não acontece o mes-
quanto os sistemas que o compõem conservem a autopoiese que mo. Assim, por exemplo, ainda não sabemos se existe um espaço
lhes permite entrar nessas relações de acoplamento. social em que uma sociedade constitua uma unidade autopoiética,
Um sistema gerado pelo acoplamento de várias unidades autopoié- nem quais seriam seus componentes em dito espaço, ainda que
ticas pode, à primeira vista, parecer autopoiético na medida em saibamos que toda sociedade possui mecanismos de automati-
que mantém constante sua organização através da atividade zação. Em síntese, as dificuldades de um observador para distin-
autopoiética de seus componentes. No entanto, se tal sistema não guir um sistema autopolético podem ser de dois tipos: a) Por um
fica constituído como unidade no espaço que lhe é assinalado pe- lado, o observador pode tratar o sistema como unidade fazendo
los seus componentes que geram os mesmos processos de produ- uma operação de distinção em um espaço ou domínio feno-
ção que os produzem, mas por outros processos ou relações vincu- menológico diferente daquele no qual o sistema é autopolético, se
ladas de outra maneira, o sistema não é autopoiético em dito es- não reconhece adequadamente seus componentes nem as rela-
paço, e o observador erra porque a aparente autopoiese do siste- ções de produção que eles geram; neste caso, o observador não
ma é incidental à autopoiese de seus componentes. Pelo contrá- reconhece as relações topológicas que definem o sistema como
106 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 107
unidade, b) Por outro lado, o observador, devido a sua própria de componente de um sistema mais amplo, a descrição refere-se so-
estrutura cognoscitiva (modo particular de autopoiese) pode ser mente a sua participação na produção de relações que adotam a
incapaz de interatuar no espaço no qual o sistema é autopoiético forma própria de um sistema alopoiético, porém isto não nos esclare-
e, portanto, de observá-lo por não poder gerar as dimensões ce quanto à função, e que somente corresponde no domínio
perceptuais adequadas. No primeiro caso, o observador faz uma hetereopoiético do desenho humano.
operação de diferenciação que não distingue um sistema auto-
poiético, mas que assinala uma unidade diferente com a qual ii) Se a autopoiese das unidades integrantes de um sistema autopoié-
opera; no segundo caso nenhuma operação de distinção é possí- tico composto configuram papéis alopoléticos que definem um espa-
vel, e o observador, ao não poder indicar qualquer sistema, não ço autopoiético mediante a produção de relações constitutivas de
tem sistema com o qual operar. Em ambos os casos a fenome- especificidade e de ordem, o novo sistema passa a ser uma unidade
nologia do sistema autopoiético é inobservável. Pelo contrário, se autopoiética de segunda ordem. Isto aconteceu efetivamente na ter-
o sistema é identificado conceitualmente, ainda que sua unidade ra, com a evolução das células para transformar-se em metazoários.
não seja observável, é possível induzir sua fenomenologia ao re- Nestes casos, os sistemas autopoiéticos componentes passam neces-
conhecer sua organização. sariamente a ser subordinados, em relação ao modo de realizar sua
própriaautopoiese, à conservação daautopoiese da unidade autopoié-
AD) Um sistema autopoiético pode chegar a ser componente de outro tica de ordem superior que eles, mediante seu acoplamento, defi-
sistema se algum aspecto de sua trajetória de trocas autopoiéticas nem topologicamente no espaço físico. Se o sistema autopoilético de
pode participar na realização desse outro sistema. Como foi dito, ordem superior experimenta auto-reprodução (por meio de auto-re-
isto pode ocorrer no presente, por meio de um acoplamento que uti- produção de uma de suas unidades autopoiéticas integrantes, ou
lize os recursos homeostáticos dos sistemas interatuantes; ou atra- por outro meio), inicia-se um processo evolutivo no qual a evolução
vés da evolução, mediante o efeito recorrente de uma pressão seleti- do modelo organizativo dos sistemas autopoiéticos componentes está
va constante sobre o processo de transformação de uma rede históri- necessariamente subordinado à evolução do modelo organizacional
ca reprodutiva, o que dá por resultado uma subordinação das da unidade composta. Mais ainda, é previsível que, dadas as cir-
autopoieses individuais componentes (por meio de troca histórica na cunstâncias apropriadas, as unidades autopoiéticas de ordem supe-
modalidade destas) ao ambiente de perturbações mútuas especifica- rior se formarão por seleção. Efetivamente, se o acoplamento surge
do por elas. Seja como for, um observador pode descrever um inte- como uma maneira de satisfazer a autopoiese, uma unidade de se-
grante autopoiético de um sistema composto como representando gunda ordem formada a partir de sistemas autopoiéticos anteriores
um papel alopoiético na realização do sistema maior que esse com- será tanto mais estável quanto mais estável for o acoplamento. No
ponente contribui para realizar com sua autopoiese. Em outras pa- entanto, a condição mais estável de todas para o acoplamento se
lavras, no contexto do sistema composto a unidade autopoiética ope- apresenta, se a organização da unidade acopla-se precisamente para
ra de uma maneira que o observador descreveria como alopoiético. manter essa organização, quer dizer, se a unidade se torna autopoié-
Esta função alopoiética é, no entanto, exclusivamente um aspecto tica. Existe, portanto, uma pressão seletiva sempre presente para a
da descrição, e pertence a um marco de referência estabelecido pelo constituição de sistemas autopoiéticos de ordem superior com base
observador. Como foi descrito no capítulo I, existem máquinas no acoplamento de unidades autopoiéticas de ordem inferior, que na
alopoiéticas, cuja organização é intrinsecamente diferente da orga- terra é visível na origem dos organismos multicelulares e, talvez, na
nização das máquinas autopoiéticas, que, sem fazer referência a sua origem da célula mesma. Parece que a única limitação ao processo
função, podem ser descritas indicando que o produto de seu operar é de formação de unidades autopoiéticas de ordem superior é a impos-
diferente delas mesmas. Consequentemente, quando se descreve um ta pelas condições em que uma unidade pode definir-se em um espa-
sistema autopoiético como um papel alopoiético em sua qualidade ço determinado.
De Máquinas e Seres Vivos 109
go físico, que, necessariamente, não conseguiria reformulá-lo. Já zação dos sistemas vivos é adequada, fica claro que eles poderi-
que um fenômeno biológico tem lugar mediante o funcionamento am fabricar-se à vontade. O que resta saber é se o homem já
dos componentes, sempre é possível abstrair dele processos consti- fabricou, ou não, um desses sistemas - ainda que sem sabê-lo -,e
tutivos que podem ser descritos adequadamente, seja em termos com que consegiiências.
estáticos, seja em termos mecânicos não autopoiéticos, porque,
em sua qualidade de processos parciais, correspondem de fato a 1V) A caracterização dos sistemas viventes como sistemas autopoié-
fenômenos estáticos ou mecânicos. Nesta situação, todo nexo en- ticos deve ser entendida como dotada de validade universal; quer
tre os processos estáticos ou mecânicos não-autopoiéticos e o fe- dizer, a autopoiese deve ser considerada como definitória dos siste-
nômeno biológico integrado por eles, é proporcionado pelo obser- mas vivos em qualquer parte do universo físico, por mais diferentes
vador que os olha a ambos simultaneamente; o fenômeno biológico, que sejam dos sistemas viventes em qualquer parte do universo físi-
no entanto, não fica representado nestas explicações, que, neces- co, por mais diferentes que sejam dos sistemas terrestres em outros
sariamente, continuam sendo tentativa de reformulação num aspectos. Isto não deve ser entendido como uma limitação de nossa
domínio fenomenológico não-autopoiético. Uma explicação bioló- imaginação, nem como uma negação de que possam existir siste-
gica deve ser uma reformulação em termos de processos subordi- mas complexos ainda não imaginados. É uma afirmação a respeito
nados à autopoiese dos organismos participantes, ou seja, uma da natureza de fenomenologia biológica: a fenomenologia biológica
reformulação no domínio fenomenológico biológico. não é nem mais nem menos que a fenomenologia biológica dos siste-
mas autopoiéticos no espaço físico.
ii) Uma teoria correta dos fenômenos biológicos permite a análise
da dinâmica dos componentes materiais de um sistema para de-
terminar se eles podem ou não participar nos processos que inte- 2. IMPLICAÇÕES EPISTEMOLÓGICAS
gram um fenômeno biológico. Efetivamente, por mais que acredi-
temos entender agora os problemas biológicos, é evidente que sem ») À questão epistemológica fundamental no âmbito dos problemas bio-
uma teoria adequada da autopoiese não será possível responder lógicos é a que se refere à validade das afirmações feitas a respeito
perguntas tais como: dado um sistema dinâmico, que relações dos sistemas biológicos. É óbvio hoje em dia que as afirmações cien-
devo observar entre seus componentes materiais para determi- tíficas a respeito do universo adquirem sua validade através de sua
nar se eles participam ou não nos processos que fazem dele um efetividade de aplicação no âmbito em que pretendem ser válidas.
sistema vivente?, ou: dado um conjunto de componentes com pro- No entanto, qualquer observação, mesmo a que permite reconhecer
priedades bem definidas, em que processos de produção podem a validade efetiva de uma afirmação científica, implica uma episte-
eles participar de maneira tal que possam concatenar-se para mologia, um corpo de noções conceituais explícitas ou implícitas que
formar um sistema autopoiético? A resposta a tais perguntas é determina a perspectiva da observação e, portanto, que se pode e
essencial se a pessoa quer resolver o problema da origem dos sis- que não se pode observar, que é e que não é avaliado pela experiên-
temas viventes sobre a terra. Às mesmas perguntas devem ser cia, que é e que não é explicável mediante um conjunto determinado
feitas se alguém quer conceber um sistema vivo. Em particular, de conceitos teóricos. Que este tem sido um problema básico para o
deveria ser possível determinar, a partir de considerações teóri- tratamento conceitual e experimental dos fenômenos biológicos é
cas biológicas, que relações devem satisfazer qualquer conjunto claro na história da biologia, que mostra uma procura contínua de
de componentes para que eles participem em processos que cons- uma definição da fenomenologia biológica que permita sua explica-
tituem uma unidade autopoiética. Logicamente, o fato de que uma ção total por meio de noções bem estabelecidas e, conseguentemen-
pessoa deseja ou não fazer um sistema autopoiético é uma ques- te, sua plena validação no âmbito da observação. Neste sentido, as
tão que pertence ao âmbito ético. No entanto, se nossa caracteri- noções evolutivas e genéticas têm sido até agora as de maior êxito.
112 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 113
Porém, ainda que estas noções ofereçam um mecanismo para a ii) Um domínio fenomenológico é definido pelas propriedades da uni-
mudança histórica, por si mesmas são insuficientes porque não defi- dade ou as unidades que o constituem, singular ou coletivamen-
nem adequadamente o âmbito da fenomenologia biológica. De fato, te, por meio de suas transformações ou interações. Assim, cada
as idéias evolutivas e genéticas, ao darem ênfase na troca, tratam a vez que se define uma unidade ou que se estabelecem uma ou
espécie como fonte de toda a ordem biológica, assinalando que a mais classes de unidades capazes de experimentar transforma-
espécie evolui, enquanto os indivíduos são componentes transitórios, ções ou interações, define-se um domínio fenomenológico. Dois
cuja organização está subordinada a sua fenomenologia histórica. domínios ou âmbitos fenomenológicos se interceptam somente na
No entanto, por ser a espécie em todo momento, concretamente, uma medida em que possuem unidades geradoras em comum, quer
coleção de indivíduos em princípio capazes de interação reprodutiva, dizer, somente na medida em que interatuam as unidades que os
disto resulta que o que definiria a organização dos indivíduos é des- determinam; do contrário, são completamente independentes e,
de o início ou uma abstração, ou algo que requer a existência de evidentemente, não podem gerar-se um a outro sem transgredir
indivíduos bem definidos. De onde provém a organização do indiví- os domínios de relações de suas especificações respectivas. Em
duo, qual é o mecanismo que a determina? Tal dificuldade não pode troca, um domínio fenomenológico pode gerar unidades que de-
se resolver na base de argumentos simplesmente evolutivos e gené- terminam um domínio fenomenológico diferente; porém esse do-
ticos; é evidente (inclusive para os evolucionistas e geneticistas) que mínio é especificado pelas propriedades das novas unidades dife-
uma tentativa de superá-la, recorrendo a outras noções explicativas rentes, e não pela fenomenologia que as gera. Se não fosse assim,
está destinada ao fracasso, se não proporcionar um mecanismo para as novas unidades não seriam em realidade unidades, mas per-
explicar a fenomenologia do indivíduo. Tal é o caso quando se intro- tenceriam à mesma classe das unidades que originam o domínio
duz alguma forma de pré-formismo, aplicando noções de informação fenomenológico prévio e gerariam um domínio fenomenológico
em nível molecular (ácidos nucléicos ou proteínas), ou quando se idêntico a ele. Os sistemas autopoiéticos geram domínios feno-
utilizam noções organísmicas, que dão ênfase ao caráter organizado menológicos diferentes ao dar origem a unidades, cujas proprie-
dos sistemas viventes mas não fornecem um mecanismo para a de- dades são diferentes das propriedades progenitoras. Estes novos
finição do indivíduo, pressupondo, assim, a validade da noção que domínios fenomenológicos estão subordinados à fenomenologia
desejam explicar. : das unidades autopoiéticas, porque dependem delas para sua re-
Do que ficou exposto é claro que a chave para compreender a alização efetiva, porém não são determinados por elas; são deter-
fenomenologia biológica é entender a organização do indivíduo. minados pelas propriedades das unidades que efetivamente lhes
Nós temos demonstrado que esta organização é a organização dão origem. Um domínio fenomenológico não pode explicar-se me-
autopoiética. Além disto, temos demonstrado que esta organiza- diante relações válidas para outro domínio; isto é, uma regra ge-
ção e sua origem são plenamente explicáveis na base de noções ral que também se aplica aos domínios fenomenológicos diferen-
simplesmente mecanicistas, válidas para qualquer fenômeno no tes gerados através do funcionamento dos sistemas autopoiéticos.
espaço físico, e que, uma vez estabelecida, a organização autopoié- Consequentemente, assim como um sistema autopoiético não pode
tica determina, no âmbito de fenomenologia mecanicista, um sub- ser explicado por meio de relações estáticas nem de relações me-
domínio fencmenológico independente: o domínio dos fenômenos cânicas não-autopoiéticas no espaço físico, e deve, portanto, ex-
biológicos. Como resultado, o domínio fica totalmente definido plicar-se por meio de relações mecânicas autopoiéticas no âmbito
como um domínio autocontido; não sendo necessárias outras no- mecânico, os fenômenos gerados pelas interações de unidades
ções adicionais, qualquer explicação biológica adequada tem a autopoiéticas devem explicar-se em seu domínio de interações e
mesma validade epistemológica que qualquer explicação mecani- por meio das relações que determinam este domínio.
cista de qualquer outro fenômeno no espaço físico.
1lI4 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 115
ii) O desenvolvimento da idéia darwiniana de evolução, com sua ên- duo é autopoiética, e nisto se funda toda sua importância: sua maneira
fase na espécie, a seleção natural e aptidão, teve um impacto de ser é definida pela sua organização, e sua organização é autopoiética.
cultural que vai além da explicação da diversidade dos sistemas Assim, a biologia já não pode ser empregada para justificar a qualida-
vivos e da origem dessa diversidade. Teve transcedência socioló- de de prescindíveis dos indivíduos em benefício da espécie, da socieda-
gica porque parecia dar uma explicação da fenomenologia social de ou da humanidade sob pretexto de que seu papel é perpetuá-las,
em uma sociedade competitiva, e uma justificação científica da biologicamente, os indivíduos não são prescindíveis.
subordinação do destino dos indivíduos aos valores transcedentais À dependência da fenomenologia biológica em relação à organi-
que se supõem enraizados em noções tais como humanidade, es- zação do indivíduo pode ter outras implicações sociológicas. Há siste-
tado ou sociedade. De fato, a história social do homem mostra mas autopoiéticos de segunda e terceira ordem; a que acontece com a
uma busca contínua de valores que expliquem ou justifiquem a sociedade humana? Tal pergunta não pode ser respondida adequada-
existência humana, e uma utilização constante de noções trans- mente no momento presente, porém há duas considerações gerais que
cedentais para justificar a discriminação social, a escravidão, a podem ser feitas: 1) Se a sociedade humana tivesse de passar a ser um
subordinação econômica e a subordinação política dos indivídu- sistema autopoiético constituído de seres humanos, a unidade que se
os, isolada ou coletivamente, ao desígnio ou ao capricho de quem manteria constante através de seu próprio funcionamento interno se-
pretende representar os valores contidos nessas noções. Que im- ria a sociedade e a ela seria aplicável tudo quanto temos dito a respeito
portância tem o que aconteça a um indivíduo, ou a vários indiví- dos sistemas viventes enquanto unidades. A fenomenologia individual
duos, se seu sacrifício é um bem da humanidade? Sobreviverá a dos homens enquanto componentes estaria subordinada à autopoiese
espécie humana ao impacto de uma guerra atômica? Nesta histó- da sociedade, e sua própria autopoiese estaria restrita à que satisfaz o
ria de uma sociedade baseada na discriminação econômica e em papel alopoiético dos indivíduos dentro dela. “Qualquer coisa, pelo bem
idéias competitivas de poder, a evolução, a seleção natural e as da humanidade”, seria a justificação “ética” da ação humana. 2) Ainda
aptidões (com sua ênfase sobre a espécie como entidade histórica que isto seja possível, e, uma vez estabelecida, pode ser muito difícil
perdurável, mantida por indivíduos transitórios e dispensáveis) para os homens interferirem com a dinâmica autopoiética da socieda-
chegaram como uma justificação biológica para sua estrutura de que constituem, uma sociedade autopoiética é somente uma das
sócio-econômica. É verdade que o que evolui é a humanidade en- maneiras pelas quais podem concatenar-se os processos gerados pelos
quanto espécie humana. É verdade que a competência conduz, seres humanos. Efetivamente, sabemos que uma sociedade formada
inclusive no homem, ao caminho evolutivo. É verdade que sob as segundo um desenho arbitrário será biologicamente válida enquanto
leis da seleção natural sobrevive o mais apto para aquilo que se satisfaça a autopoiese de seus membros. Assim, poderíamos imaginar
seleciona, e que os que não sobrevivem não contribuem ao desti- uma sociedade internacionalmente constituída pelos seus componen-
no histórico da espécie. Parecia que, se o papel do indivíduo era tes como um sistema alopoiético que ativamente nega toda hierarqui-
contribuir para perpetuar a espécie, tudo o que ele tinha que fa- zação sistemática entre eles, e cuja função seria satisfazer suas neces-
zer era deixar que os fenômenos naturais seguissem seu curso. A sidades materiais, intelectuais e estéticas fornecendo-lhes um meio
ciência, a biologia, pareciam justificar a noção de “qualquer coi- interessante para sua existência como sistemas dinâmicos e mutáveis.
sa, pelo bem da humanidade”, fosse qual fosse a intenção ou pro- É claro que este problema da relação entre a fenomenologia biológica e
- pósito de quem fosse que a enunciara. É a social não pode ser respondido adequadamente neste livro, e fica como
problema aberto a seguinte pergunta: até que ponto a fenomenologia
Nós temos demonstrado que tais argumentos não são válidos para social pode ser considerada fenomenologia biológica?
justificar a subordinação do indivíduo à espécie, porque a fenomenologia
biológica é determinada pela fenomenologia individual, e sem indiví-
“duo não há fenomenologia biológica alguma. A organização do indiví-
116 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 117
SR
3. IMPLICAÇÕES GNOSEOLÓGICAS to absoluto, e a validação eventual de todo conhecimento nos se-
res vivos (o homem inclusive) se dá, necessariamente, em sua
SER
O domínio de interações de uma unidade autopoiética é o domí. autopoiese continuada.
nio de todas as deformações que ela pode experimentar sem perder sua
im
autopoiese. Para cada unidade, esse domínio fica determinado pela ii) Os sistemas autopoiéticos podem atuar entre si em condições que
maneira particular de realizar-se sua autopoiese e, consequentemente, dão por resultado o acoplamento condutual. Neste acoplamento,
é necessariamente delimitado; quer dizer, há interações (deformações) a conduta autopoiética de um organismo À passa a ser fonte de
que ela não pode sofrer sem perder sua identidade. Mais ainda, a ma- deformação para um organismo B; e a conduta compensatória do
neira como um sistema autopoiético compensa suas deformações pode organismo vivo B atua, por sua vez, como fonte de deformação
ser considerada por um observador como a descrição do agente defor- para À, cuja conduta compensatória atua, por sua vez, como de-
mante que vê atuar sobre o sistema; e a deformação acontecida por ele formação para B, e assim sucessivamente, de maneira recorren-
pode ser considerada por ele como representação do agente deformante, te, até que seja interrompido o acoplamento. Desta maneira, se
Como o domínio de interações de um sistema autopoiético é limitado, desenvolve uma corrente tal de interações concatenadas que, ain-
existem agentes deformantes que um observador pode ver, mas que o ' da que a conduta de cada organismo em cada interação é deter-
sistema autopoiético deformado não pode descrever por não poder minada internamente pela sua organização autopoiética, tal con-
compensá-los. Tal domínio, o domínio de todas as interações no qual duta é para o outro fonte de deformações compensáveis e, portan-
um sistema autopoiético pode participar sem perder sua identidade, to, pode qualificar-se de significativa no contexto da conduta
quer dizer, o domínio de todas as trocas que pode sofrer ao compensar acoplada. Estas são interações comunicativas. Se os organismos
perturbações, é seu domínio cognoscitivo. Disto deriva que o domínio acoplados são capazes de uma conduta plástica e permanente,
cognoscitivo de um sistema autopoiético é equivalente a seu domínio resultam modificados nas interações, suas trocas - que surgiram
condutual e, na medida em que toda conduta pode ser observada, equi- no contexto de suas deformações acopladas - constituirão duas
valente a seu domínio de descrições. Dito de outro modo, que toda con- ontogenias historicamente concatenadas que geram um âmbito
duta é expressão de conhecimento (compensação de perturbações), e consensual de conduta acoplada que se especifica (faz-se consen-
que todo conhecimento é conduta descritiva. A seguir, quatro observa- sual) durante o processo de sua geração. Um âmbito consensual
ções que assinalam a subordinação do domínio cognoscitivo à autopoiese assim, no qual os organismos acoplados orientam-se reciproca-
individual. mente em sua conduta internamente determinada por meio de
interações que se têm especificado durante suas ontogenias
D) | Seo domínio cognoscitivo de um sistema autopoiético está deter- acopladas, é um domínio lingiúístico. Em tal âmbito consensual
minado por sua maneira particular de autopoiese, e se todo co- de interações, a conduta de cada organismo pode ser tratada como
nhecimento é conduta descritiva, por consegiência todo conheci- uma descrição significativa da conduta do outro; ou, no domínio
mento é, necessariamente, relativo ao domínio cognoscitivo da- do observador, como uma conotação consensual. As interações lin-
quele, conhece, e, portanto, está determinado pela sua organiza- guísticas (de conotação) são intrinsecamente não-informativas; o
ção. Além disso, se a maneira como é realizada a autopoiese de organismoÀ não determina e nem pode determinar a conduta de
um organismo muda ao longo de sua ontogenia, seu domínio B devido à própria natureza mesma da organização autopoiética,
cognoscitvo também muda, e seu repertório condutual (conheci- a qual faz que toda mudança experimentada por um organismo
mentos) segue uma história de trocas determinada por ela.A onto- seja necessária e inevitavelmente determinada por sua própria
genia é, portanto, tanto um processo de especificação contínua da organização, e não pela transmissão de informação. O domínio
modalidade de autopoiese de um organismo como de seu domínio lingúístico - como domínio consensual que resulta do acoplamento
cognoscitivo. Intrinsecamente, pois, não é possível o conhecimen- de ontogenias de sistemas autopoiéticos - é, portanto, intrinseca-
118 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 119
mente não informativo, mesmo quando um observador o descre- ção e de sua auto-observação, de uma maneira interminá-
ve como se o fosse, desatendendo à determinação interna que o vel. À este denominamos domínio de auto-observação, e a
gera nos sistemas autopoiéticos. Fenomenologicamente, o domí- conduta autoconsciente é conduta no domínio de auto-ob-
nio lingúístico e o da autopoiese são domínios diferentes e que, servação.
ainda que um gere os elementos do outro, não se interceptam.
Iv) Toda interação num sistema autopoiético tem lugar por meio de
iii) Um sistema autopoiético capaz de interatuar com seus próprios interações físicas; porém, como tal sistema está definido em ter-
estados (como pode fazê-lo um organismo dotado de sistema ner- mos de relações, todas suas interações necessariamente dão por
voso) e desenvolver com outros sistemas um domínio consensual resultado mudanças nestas relações. Assim, qualquer que sejam
linguístico (no âmbito em que pode interatuar com seus próprios as circunstâncias de uma interação, ela é sempre representada
estados) pode abordar seus próprios estados lingiiísticos como fon- na mesma categoria fenomenológica: mudanças nas relações de
tes de deformações e, assim, interatuar lingiúisticamente em um produção que definem e especificam o sistema autopoiético e que,
domínio lingúístico fechado. Tal sistema possui duas proprieda- se são compensáveis, permitem a autopoiese contínua. Como re-
des notáveis: sultado disto, quer dizer, em virtude da própria natureza da or-
ganização autopoiética, domínios condutuais que são diferentes,
1) Através de interações recorrentes com seus próprios esta- devido ao fato de serem determinados fenomenologicamente por
dos linguísticos, um sistema pode assim permanecer sem- unidades diferentes, podem ser representados na mesma catego-
pre em situação de interatuar com as representações (se- ria fenomenológica de trocas nas relações internas de um siste-
gundo foram definidas anteriormente) de suas interações. ma autopoiético. Isto tem duas implicações de importância no
Tal sistema é um observador. O âmbito de tais interações domínio cognoscitivo:
recorrentes é, em princípio, infinito, porque não existe qual-
quer momento no qual o sistema não esteja em situação de 1) Um observador mapeia todas suas interações como obser-
interatuar recorrentemente com seus próprios estados, a vador no mesmo domínio de relações, ainda que tais
menos que se perca aautopoiese. O que um sistema autopoié- interações pertençam a diferentes fenomenologias, porque
tico, com tal capacidade, efetivamente gera durante sua participa nelas como um tipo diferente de unidade (com pro-
ontogenia com uma série interminável de estados diferentes, priedades diferentes). Mediante este mapeamento, um ob-
depende, obviamente, do que constitui uma identidade. No servador pode estabelecer relações descritivas entre suas
domínio lingiiístico, no qual a história de interações do orga- descrições de fenomenologias independentes. No entanto,
nismo determina o contexto no qual cada nova interação lin- tais relações somente existem no âmbito lingistico, e cons-
gúística tem lugar e no qual a relevância circunstancial que tituem vinculações somente descritivas, não operativas,
cada estado lingiiístico tem em relação àautopoiese determina entre fenomenologias independentes: sua apresentação de-
seu valor semântico, podem, em princípio, ser gerados infi- pende da presença do observador.
mam
ria determinada pela organização autopoiética do observa- texto quando, em verdade, a está fazendo em outro. Em particular, são
dor, e não pelo agente deformante; portanto, a realidade possíveis as predições no espaço físico, porque uma descrição, como
cognoscitiva, assim gerada, dependerá inevitavelmente do conduta real, existe em um contexto de interações que, por constitui-
conhecedor, e será relativa a ele. ção, possui um modelo lógico necessariamente isomórfico com a natu-
reza em que tem lugar, não porque tenhamos um conhecimento abso-
Em toda explicação, a reformulação do fenômeno a ser explicado luto do universo. Tais relações cognoscitivas são válidas para a possí-
recorre às mesmas noções lógicas (identidade, exclusão, sucessão, etc.), vel fenomenologia cognoscitiva gerada através de qualquer sistema
independentemente do domínio fenomenológico em que ela tem lugar, fechado. Os sistemas vivos são uma prova existencial disso, já que exis-
seja este uma verdadeira reprodução material, uma representação for- tem somente na medida em que podem existir. Nossa imaginação não
mal ou uma descrição simplesmente racional. Existe, portanto, uma pode negar isto. Os sistemas vivos são concatenações de processos em
lógica universal, válida para todos os domínios fenomenológicos, que um âmbito mecanicístico; as fantasias são concatenações dé descrições
se refere às relações possíveis entre as unidades que os originam, e não em um domínio lingiúístico. Em um caso, as unidades concatenadas
às propriedades das unidades geradoras que determinam a maneira são processos; no outro, são modalidades de conduta lingiiística.
como são realizadas tais relações em cada caso e especificam cada do- À autopoiese resolve o problema da fenomenologia biológica em
mínio fenomenológico particular. Temos aplicado esta lógica (não pode- geral, definindo-a. Surgem novos problemas, e os problemas anterio-
ria ser de outra maneira) neste livro, e sua validade depende da vali- res aparecem em uma perspectiva diferente. Especialmente os que se
dade de nossos argumentos, assim como também a validade de qual- referem à origem dos sistemas viventes sobre a terra (eobiogênese e
quer argumento racional ou descoberta fenomenológica específica. Além neobiogênese) e os referentes à estrutura particular mediante a qual
disso, em princípio temos demonstrado, mediante sua aplicação, que a são efetuadas nos animais as interações descritivas recorrentes (siste-
fenomenologia dos sistemas autopoiéticos gera observadores, e que estes, ma nervoso). Os seres vivos enquanto unidades autopoiéticas no espa-
através de sua autopoiese, geram uma fenomenologia descritiva em que ço físico definem seu mundo fenomenológico em relação com sua
esta lógica é também necessariamente válida. Por razões epistemológicas, autopoiese em tal espaço, e alguns operam nesse mundo recorrente,
tudo o que temos dito implica um espaço (físico) onde tem lugar a através de suas descrições, sendo-lhes impossível sair deste âmbito des-
fenomenologia autopoiética. Podemos concluir que tal espaço é, ontologica- critivo relacionado mediante descrições. Além disso, neste domínio de
mente, um espaço no qual é intrinsecamente válida a lógica que temos descrições, tais sistemas autopoiéticos assinalam que o espaço físico é
aplicado em nossa descrição. Se não fosse assim, não poderíamos fazer o singular por ser o espaço no qual eles se dão e no qual eles, mediante
que temos feito em relação a caracterizar os sistemas viventes e mostrar sua conduta, podem descrevê-lo como o espaço em que eles têm lugar.
como eles podem dar origem a sistemas capazes de autodescrever-se. Isto exige um enfoque cognoscitivo inteiramente novo: um deles é a
Não podemos caracterizar este espaço em termos absolutos. Nas fenomenologia autopoiética; a autopoiese gera um domínio fenome-
interações lingúísticas, tudo o que podemos fazer é descrever por meio nológico; este é o domínio cognoscitivo.
da conduta lingiiística e, baseados nestas descrições, construir outras
descrições que, porém, permanecem sempre no mesmo domínio de ope-
rações definido em relação com o sistema operante.
- Uma predição é a afirmação de um caso dentro de um contexto; é
uma afirmação cognoscitiva e, como tal, tem lugar em um domínio des-
critivo. Assim, a menos que se incorra em equívocos, se são levadas em
“conta todas as relações que definem o contexto particular em que se
faz a predição, esta é válida. Os erros de interpretação somente podem
surgir por aplicação errônea, pensando fazer uma predição em um con-
De Máquinas e Seres Vivos 123
as superfícies coletoras e efetoras completamente entrelaçadas sem ele- ii. Nenhuma célula isolada, ou classe de células, pode determinar
mento condutor entre elas (células amacrinas). As interações entre su- por si mesma as propriedades da rede neuronal que integra.
perfícies coletoras e efetoras podem ser excitatórias ou inibidoras, de
acordo com os tipos de neurônios participantes. Efeitos excitatórios cau- Em geral, portanto, a organização de um neurônio e seu papel na
sam uma mudança no estado de atividade da superfície coletora do rede neuronal que integra não permanece invariantes, mas muda ao
neurônio receptor que pode levar a uma mudança no estado de ativida- longo de sua ontogenia de uma maneira subordinada à ontogenia do
de de sua superfície efetora; o efeito inibidor atenua a eficácia da exci- organismo, já que são produto e causa das mudanças que a rede
tação da superfície receptora, de maneira que a excitação pode não neuronal e o organismo sofrem.
chegar à superficie efetora, ou chegar com uma efetividade reduzida.
Operacionaimente, o estado de atividade de um neurônio, carac-
terizado pelo estado de atividade de sua superfície efetora, está deter- 2. Organização: o sistema nervoso como um sistema fechado
minado tanto pela sua organização interna (propriedades da membra-
na, espessura relativa dos ramos, e em geral todas as relações estrutu- Pelo o ponto de vista descritivo é possível dizer que as proprieda-
rais que determinam seus possíveis estados) como pelas influências des dos neurônios, sua organização interna, conformação e posições
aferentes que chegam à superfície receptora. Paralelamente, a efetivi- relativas determinam a conectividade do sistema nervoso e o constitu-
dade de um neurônio em mudar o estado de atividade de outros neurô- em como uma rede dinâmica de interações neuronais. Esta conec-
nios depende tanto da organização internas destes, como da efetividade tividade, quer dizer, as relações anatômicas e operacionais entre os
relativa de sua ação nas superfícies receptoras com respeito a outras neurônios que constituem o sistema nervoso como uma rede lateral,
influências aferentes que tais neurônios recebem. Isto se deve a que as paralela, sequencial e recursiva de interações excitatórias e inibitórias,
influências excitatórias e inibitórias não se somam linearmente na determina o domínio de possíveis estados dinâmicos do sistema nervo-
determinação do estado de atividade do neurônio, mas seus efeitos de- so. Já que as propriedades dos neurônios mudam ao longo da onto-
pendem da posição relativa de seus pontos de ação. Além disso, a orga- genia do organismo, pela sua determinação interna, e como resultado
nização de um neurônio muda ao longo de sua história como resultado de suas interações como componentes do sistema nervoso, a vinculação
de sua determinação genética e das circunstâncias de seu operar du- do sistema nervoso muda ao longo da ontogenia do organismo de ma-
rante a ontogenese do organismo. Os neurônios não são entes estáticos neira recursiva e subordinada a esta ontogenia. Mais ainda, já que a
cujas propriedades permanecem inalteráveis. Pelo contrário, elas mu- ontogenia de um organismo é a história de sua autopoiese, a conecti-
Pe pers oeereaçe
dam continuamente. Disto podemos destacar três conclusões gerais. vidade do sistema nervoso, através dos neurônios que o constituem, se
encontra dinamicamente subordinada à autoposição do organismo que
i. Existem muitas configurações de influências aferentes (entradas) reter
integra.
sobre a superfície receptora de um neurônio que podem produzir Operacionalmente, o sistema nervoso é uma rede fechada de neu-
tanto
a mesma configuração de atividade eferente (saída) em sua su- rônios que interatuam, de maneira que uma mudança na atividade de
perfície efetora. um neurônio sempre leva a uma mudança na atividade de outros
neurônios, diretamente através de um efeito sináptico, ou indiretamente
ii. Mudanças na organização interna de um neurônio (independen- através da participação de algum agente físico ou químico intermediá-
temente de surgirem determinados pelas transformações autô- rio. Portanto, a organização do sistema nervoso como uma rede neuronal
nomas da célula, ou por sua história de transformações em uma finita fica definida por relações de circularidade nas interações neuronais
rede neuronal) implicam mudanças nas relações de entradas e gerais na rede. Os neurônios sensoriais e efetores, assim qualificados
saídas (função de transferência) do neurônio ao mudar o domínio por um observador do organismo em seu meio, não fazem exceções a
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de estados de atividade que ele pode adotar. tal circularidade, já que toda atividade na superfície sensorial de um
emo me
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q
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126 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 127
TER
cada. À organização do sistema nervoso é essencialmente inva- 5. Estados reference tais
e remos
riante sob mutilações, ao passo que o domínio de estados possí-
veis, que dependem da arquitetura, não o é. No entanto, pela sua Há estados do sistema nervoso que, como estad
organização fechada, o que fica de um sistema nervoso, após uma os referenciais,
definem os subdomínios dos possíveis estados que
extirpação parcial, necessariamente, opera como um todo com
o sistema nervoso (e
o organismo) pode adotar sob perturbações, como
propriedades diferentes do original, porém não como um sistema
matrizes de relações
internas possíveis. Como resultado, quando o sistema nervoso está em
no qual algumas de suas propriedades tenham sido subtraídas. estados referenciais diferentes, compensa as mesm
as perturbações (ca-
racterizadas como configurações do ambiente) seguindo
ii) Não existe intrinsecamente qualquer possibilidade de uma loca- maneiras de
mudança diferentes. As emoções, o sono, a vigíli
a, são estados referen-
lização operacional no sistema nervoso, no sentido de que nenhu- ciais. Na dinâmica do sistema nervoso, os estad
os referenciais se defi-
ma parte dele pode considerar-se responsável por seu operar como nem, como qualquer outro estado do sistema
nervoso, por relações de
uma rede fechada. No entanto, já que todo sistema nervoso pos- atividade neuronal e como tais são gerados por
mudanças da atividade
sui uma arquitetura definida, toda lesão localizada nele necessa- neuronal, e provocam mudança de atividade
neuronal. O que lhes é
riamente produz uma desconexão específica entre suas partes e, peculiar é que constituem dados sobre os quais
outros estados podem
portanto, uma mudança específica em seu domínio de estados ser inseridos com subestados no processo de geraç
ão da autopoiese do
possíveis. organismo. Portanto, sua distinção somente
pertence ao domínio de
observação; para o sistema nervoso, são parte
de sua dinâmica estado-
sultado das interações do organismo (por sua vez, ele é um siste- s..
li) O acoplamento histórico do sistema nervoso à trans
ma homeostático) não podem se localizar em qualquer ponto re- formação de seu
ambiente, no entanto, é aparente apenas no domínio
gular do sistema nervoso, mas que devem estar distribuídas nele de do observador,
não no domínio de operação do sistema nervoso,
alguma maneira estruturada, porque toda mudança localizada é, que permanece como
um sistema homeostático fechado no qual todos os
por sua vez, uma fonte de deformações adicionais que devem ser estados são equi-
valentes na medida em que levam à geração de
compensadas com outras mudanças. Este processo é potencialmen- relações que defi-
nem sua participação naautopoiese do organismo. O
te infinito. Como resultado, a operação do sistema nervoso, como observador pode
assinalar que uma mudança determinada na
componente do organismo, é uma geração contínua de relações organização do siste-
ma nervoso surge como resultado de uma dada
neuronais significativas, e todas as transformações que sofre como interação do orga-
nismo, e pode considerar tal mudança como uma
uma rede neuronal fechada estão subordinadas a isto. Se, como re- representação das
circunstâncias de interação. Tal representação,
sultado de uma perturbação, o sistema nervoso falha na geração de no entanto, existe
como fenômeno somente no domínio de observação
uma relação neuronal significativa em sua participação naautopoiese , e tem validade
somente no domínio gerado pelo observador
do organismo, o organismo se desintegra. quando ele mapeia o
meio na conduta do organismo ao abordá-lo
como uma máquina
alopoiética. A mudança citada na organização do
ii) Ainda que o organismo e o sistema nervoso sejam sistemas fe- sistema nervoso
constitui uma mudança no domínio de seus
chados e estado-determinados, o fato de que a organização do possíveis estados sob
condições nas quais a representação das circunstâncias
sistema nervoso esteja determinada através de sua participação causais não
entra como componente.
na ontogenia do organismo faz desta organização uma função
das circunstâncias que determinam tal ontogenia, ou seja, da his-
tória de interações do organismo e de sua constituição genética. 2. Aprendizagem como fenômeno
Portanto, o domínio dos estados possíveis que o sistema nervoso
pode adotar como um sistema estado-determinado é, em todo Se a conectividade do sistema nervoso muda como
momento, função da história de interações, e a representa. O re- resultado de
algumas interações do organismo, o domínio
sultado é o acoplamento de duas fenomenologias constitutiva- de estados possíveis que
ele (e o organismo) pode adotar a seguir muda;
mente diferentes, a do sistema nervoso (e do organismo), e a do consequentemente, quan-
do a mesma condição de interação se repete
ambiente (que inclui o organismo e o sistema nervoso), na forma ou quando aparece uma
condição isomórfica, os estados dinâmicos gerados
de um sistema aberto não homeostático, de maneira que os esta- no sistema nervoso,
e, portanto, a maneira como o organismo mant
dos possíveis do sistema nervoso continuamente são comensurá- ém sua autopotese, são
diferentes do que teriam sido em outras circu
veis com o domínio de estados possíveis do ambiente. Além disso, nstâncias. No entanto, o
fato de que a conduta do organismo sob condi
já que todos os estados do sistema nervoso são estados internos, ções de interação recor-
rente (ou novas) deve ser autopoiética e,
e o sistema nervoso não pode fazer uma distinção em seus proces- portanto; aparecer como
adaptativa para um observador é o resultado
sos de transformação entre os estados gerados internamente e os necessário do contínuo
operar homeostático do sistema nervoso e do organ
externos, o sistema nervoso, necessariamente acopla sua histó- ismo. Já que este
operar homeostático continuamente subordina o siste
ria de transformações tanto à história de suas mudanças de esta- ma nervoso e o
organismo à autopoiese deste último, de uma
do internamente determinadas quanto à história das mudanças maneira internamente
determinada, nenhuma mudança na conectividade
externamente determinadas. Assim, as transformações que o sis- do sistema nervoso
pode participar na geração de conduta como repre
tema nervoso sofre durante seu operar são uma parte constitutiva sentação de interações
passadas do organismo: as representações pertencem
de seu ambiente. ao domínio das
descrições. A mudança que o sistema nervoso pode
adotar, no domínio
de estados possíveis, tem lugar ao longo
da ontogenia do organismo
132 Maturana e Varela De Máquinas e Seres Vivos 133
DIVERSIDADE: ...variação na maneira como é conservada a diversidade (p. 63). MÁQUINA: ...as máquinas são unidades... estão constituídas por componentes
ESPAÇO AUTOPOIÉTICO: ...uma organização autopoiética constitui um domínio caracterizados por determinadas propriedades capazes de satisfazer deter-
fechado de relações especificadas somente em relação à organização autopoiética minadas relações que determinam na unidade as interações e transforma-
que ela compõe, determinando, assim, um espaço no qual pode materializar- ções desses mesmos componentes... a natureza efetiva dos componentes não
se tal organização como sistema concreto, espaços cujas dimensões são as rela- tem importância, Gá que) as propriedades particulares que eles possuem,
ções de produção dos componentes que o constituem (p. 79). além das que participam ativamente nas transformações e interações den-
ESPAÇO FÍSICO: Por razões epistemológicas, tudo o que temos dito implica um tro do sistema, podem ser qualquer uma (p. 67).
espaço (físico) no qual tem lugar a fenomenologia autopoiética (p. 119). MÁQUINA ALOPOIÉTICA: ... máquinas (que) produzem com seu funcio-
ESPÉCIE: Uma espécie é uma população, ou coleção de populações, de indivídu- namento algo diferente delas mesmas, como no caso do automóvel (p. 71).
os vinculados reprodutivamente que, desta maneira, estão entrelaçados em MÁQUINA AUTOPOIÉTICA: É uma máquina organizada como um sistema de
um rede histórica (p. 101). processos de produção de componentes concatenados de maneira tal que: 1)
EVOLUÇÃO: ...a evolução enquanto processo, é a história de mudança de um mode- geram os processos (relações) de produção que os produzem através de suas
lo de organização materializado em unidades independentes, geradas contínuas interações e transformações, e ii) constituem a máquina como
segiiencialmente através de etapas auto-reprodutivas, nas quais a organiza- unidade no espaço físico (p. 69).
ção definitória particular de cada unidade aparece como modificação da ante- MÁQUINA HOMEOSTÁTICA: .. máquinas (que) mantêm algumas de suas vari-
rior, que constitui assim seu antecedente segiiencial e histórico (p. 96). áveis constantes ou dentro de um intervalo limitado de valores (p. 68).
EXPLICAÇÃO: ...é sempre a reformulação de um fenômeno de maneira tal que MECANICISMO (EM BIOLOGIA): ...os únicos fatores operantes na organização
seus elementos apareçam casualmente relacionados em sua gênese (p. 65). dos sistemas vivos são fatores físicos..., (nega-se) a necessidade de alguma
EXPLICAÇÃO BIOLÓGICA: Uma explicação biológica deve ser uma reformulação força imaterial organizadora do vivo; ..uma vez que se lhe tem definido
em termos de processos subordinados à autopoiese dos organismos partici- adequadamente, qualquer fenômeno biológico pode ser descrito como sur-
pantes, ou seja, uma reformulação no domínio fenomenológico biológico (p. gido da interação de processos físico-químicos, cujas relações são especi-
109). ficadas pelo contexto de sua definição (p.p. 63 e 64).
FENÔMENO BIOLÓGICO: ...a fenomenologia biológica é a fenomenologia dos OBSERVADOR: Através de interações recorrentes com seus próprios estados
sistemas autopoiéticos, e um fenômeno é um fenômeno biológico, somente lingiiísticos, um sistema pode assim permanecer sempre em situação de
na medida em que depende, de uma maneira ou de outra, da autopoiese de interatuar com as representações (segundo foram definidas previamente)
uma ou mais unidades autopoiéticas (p. 107). de suas interações (p. 117).
FENÔMENO HISTÓRICO: Um fenômeno histórico é um processo de mudanças ONTOGENIA: A ontogenia é a história de transformação de uma unidade. Em
no qual cada um dos estados sucessivos de um sistema mutável surge como consegiiência, a ontogenia de um sistema vivo é a história da conservação
modificação de um estado prévio em uma transformação causal, e não de de sua identidade através de sua autopoiese continuada no espaço físico
novo como fato independente (p. 96). (p. 117).
FENOMENOLOGIA ESTÁTICA: A fenomenologia estática é uma fenomenologia ORGANIZAÇÃO: As relações que determinam, no espaço em que estão definidas,
de relações entre propriedades de componentes (p. 108). a dinâmica de interações e transformações dos componentes e, com isso, os
FENOMENOLOGIA MECANICISTA: A fenomenologia mecanicista é uma feno- possíveis estados do sistema constituem a organização da máquina (p. 67).
menologia de relações entre processos gerados pelas propriedades dos com- PROPÓSITO: Comumente se assinala como o aspecto mais notório dos sistemas
ponentes (p. 108). viventes o de possuir uma organização orientada a uma finalidade ou, O
FUNÇÃO: ...a noção de função surge quando o observador descreve os componen- que é equivalente, dotada de um planejamento interno refletido e realizado
tes de uma máguina ou de um sistema, referindo-se a uma unidade mais por sua estrutura (p. 75).
ampla - que pode ser a máquina em sua totalidade ou parte dela - cujos PROPÓSITO EM UMA MÁQUINA: O uso que o homem faz da máquina... Todas
estados constituem o objetivo ao qual devem conduzi” as mudanças dos as máquinas que o homem fabrica, as faz com um objetivo, prático ou não
o eo eme ney mt
componentes (p. 76). - ainda que somente seja o de entreter -, que ele especifica (p. 68).
HETEROPOIESE: ...processo que ocorre no espaço à concepção humana (p. 36). REGULAÇÃO: ...noção válida no âmbito de descrição das heteropoiese (que) re-
INDIVIDUALIDADE: As máquinas autopoiéticas possuem individualidade; isto flete a observação e descrição simultâneas, pelo projetista (ou seu equiva-
é, por meio da manutenção invariável de sua organização conservam ati- lente), de transições interdependentes do sistema em uma ordem preestabe-
vamente uma identidade que não depende de suas interações com um ob- lecida e a velocidades especificadas (pp. 81 e 82).
e ia