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A história de Mushkel Gusha

Um comentário Junguiano

INTRODUÇAO de Llewellyn Vaughan-Lee em “Um Comentário


Jungiano”

A história de Mushkel Gusha também é uma antiga história Persa tão


conhecida na Persia como a Cinderela é na Europa, e tem muitas
versões diferentes. A história de Mushkil Gusha também pertence à
tradiçao Sufi. Tem uma associaçao particular com Baha ad-din
Naqshband (1318-1389), quem deu seu nome à Ordem Naqshbandi.
Isto envolve uma bem conhecida história a respeito do nascimento de
Baha ad-din:

Um mestre Sufi, Khwaja Baba Samasi, estava atravessando um


povoado, mais tarde conhecido como Arifan, quando disse para seus
colegas: “Esta terra tem cheiro de heroi.” Passando novamente
tempo depois ele disse: “O cheiro está mais forte, é certo que o heroi
nasceu”. De fato, três dias antes Baha ad-din tinha chegado ao
mundo.

Um tempo depois, o avô da criança, segundo os costumes da época,


pôs um presente sobre o coraçao de Baha ad-din, e pediu a Babâ
Samâsî que o abençoasse. O Khwâja disse: “Este é o heroi de cujo
cheiro fomos conscientes. Durante muito tempo o aroma espalhará
pelo mundo e se tornará o Mushkil Gusha da gente do amor.”

Mushkil Gusha significa em persa literalmente o tirador dos


empecilhos, e a história trata a respeito de permitir entrar em nossas
vidas na dimensao transpessoal, o espiritual, e assim se produz um
processo de transformação. Embora, esta história sugira que esta
riqueza que está dentro de nós, não é tão fácil de reconhecer, nem
nós precisamente sabemos como dar a ela um uso apropriado.
Mushkil Gusha também trata a respeito do perigo da “inflação do
ego”, um perigo que sempre está presente ao trabalhar com o
transpessoal, especialmente se o individuo não tem a humildade
suficiente. Assim, Mushkil Gusha é uma história que menciona alguns
dos problemas mais importantes relacionados com experimentar e
integrar o potencial que o mundo interno tem para nos oferecer. E
mais, “A História de Mushkil Gusha” não é só a respeito do que se
passa com um cortador-de-lenha e a sua filha, mas é a história de
qualquer um que receba ajuda desde o interior, seja através dos
sonhos, meditação ou qualquer outra maneira pela qual o
transpessoal possa entrar nas nossas vidas. Uma mulher, depois de
ouvir A História de Mushkil Gusha, ficou muito inquieta, pois sentiu
que ela tinha entendido a mensagem. Na manhã seguinte ela ouviu
uma voz que disse para ela ir para uma pequena capela perto dalí. No
começo não escutou a voz, mas depois foi para a capela, e a
encontrou cheia de uma luz vermelha. Pensou, “Esta luz não pode ser
para mim.” Nesse momento a luz desapareceu, e então entendeu A
História de Mushkil Gusha.

Em essência, Mushkil Gusha é a história da nossa própria e individual


relação com o mundo interno. E vendo que estamos vivendo num
momento onde há uma grande necessidade de compreender o poder
curativo que há dentro de nós, esta história não deve ser esquecida,
para que, nas palavras de Mushkil Gusha, “as pessoas que tenham
verdadeira necessidade possam encontrar seu caminho.”

A HISTÓRIA DE MUSHKIL GUSHA


Houve uma vez um Baba Kharkan, um cortador de lenhas que
morava com sua esposa e filha numa casa muito pequena fora do
povoado. Cada dia ele saia para cortar arbustos de lenha para levá-
los ao povoado e vender eles como lenha. Com os beneficios ele
comprava comida simples para a esposa e filha dele. Eles sempre
tinham o suficiente para comer, e eram agradecidos a Deus.

Mas chegou um dia no qual sua filha queixou-se de que ela sempre se
alimentava com comida simples. Sua filha perguntou “por quê nós
não podemos ser como alguns do povoado e ter comidas diferentes
para comer?” Tao insistentes eram sua esposa e filha que o homem
pobre decidiu tentar e agradar elas. Esse dia ele foi mais longe na
terra dos matagais para achar mais madeira que o normal. Ele cortou
um grande número de arbustos e os levou, mas quando voltou já era
bastante escuro, e não havia nenhuma luz na casa dele. Sua esposa e
filha pensaram que ele estava passando a noite no povoado, e tinham
ido se deitar. Elas tinham um sono pesado e não acordaram pelas
batidas na porta. Incapaz de entrar na sua própria casa, o cortador
de lenhas deitou no chão fora da sua casa, e, estava tão cansado que
logo dormiu.

Mas o chão era duro e frio, e com o primeiro orvalho da manhã o


cortador de lenhas acordou. Novamente ele bateu na porta da sua
casa, e tampouco houve nenhuma resposta. Nesse momento ele já
estava gelado e faminto, mas decidiu ir para o trabalho bem cedo.
Esta vez ele foi mais longe ainda, e encontrou mais madeira do que
antes, mas tendo ido tão longe na terra dos matagais, ficou
novamente tarde quando chegou. Mais uma vez as duas mulheres
dormiram rapidamente, e não responderam ao seu chamado na
porta. A esposa e filha dele tinham ficado angustiadas por ele, mas
pensaram que ele tivesse achado uns amigos no povoado e ficado
com eles. Isto tinha passado algumas vezes antes, então comeram
sua janta simples e deitaram.
Cansado e ainda mais faminto, o cortador de lenhas deitou no chão
frio. Justo quando estava prestes a dormir, ele acreditou ouvir uma
voz que disse: “Acorda, deixa teu molho de arbustos e vem para cá.
Se precisas suficientemente e desejas pouco, acharás uma comida
maravilhosa”.

Assim, pois, o cortador de lenhas levantou-se, e seguiu a direção da


voz na escuridão. Mas nao tinha nada alí, e tao escura estava a noite
que compreendeu que não poderia achar seu caminho de volta para
casa. Nao só estava cansado e faminto, mas também estava perdido.
Deitou no chao se sentindo infeliz e tentou dormir. Assim ele
relembrou tudo por que tinha passado desde que sua filha pediu para
ele algo mais do que sua humilde dieta. Como se ele contasse uma
história, relatou para si mesmo os acontecimentos dos últimos dois
dias.

COMENTÁRIO jungiano de Llewellyn Vaughan-Lee

1.- A FILHA DO CORTADOR DE LENHAS E AS NECESSIDADES DA


ALMA

A história de Mushkel Gusha é um conto a respeito dum Baba


Kharkan, um cortador de lenhas, e sua filha. Um cortador de lenhas é
um equivalente Persa ao lenhador europeu que é uma figura
frequente nos contos populares. Os dois representam a gente
honrada, humilde que mora e trabalha no mundo natural. Em
contraste com o ambiente civilizado da cidade, a paisagem cultivada
do granjeiro, o cortador de lenhas trabalha no campo de matagais
sem cultivar, um mundo que pertence unicamente as forças da
natureza. Assim, o cortador de lenhas, vivendo e trabalhando numa
proximidade tão intima ao mundo natural, é mais do que provável
que seja tocado pelas suas qualidades transformadoras.

O cortador de lenhas mora fora do povoado com sua esposa e filha.


Ele ganha a vida de maneira humilde vendendo sua madeira na
cidade, e eles sempre tem o suficiente para comer. Mas chegou um
momento que sua filha não estava mais satisfeita com a dieta simples
dela, e ela exigiu tipos diferentes de comida. A filha do cortador de
lenhas pode se interpretar como a anima ou figura da alma dele.
Assim, sua figura da alma exige ser nutrida duma maneira diferente;
a comida dada pelas experiências ordinárias da vida do individuo não
é, por mais tempo, suficiente.

A demanda do eu interior com respeito a uma nova forma de nutrição


pode se manifestar nas vidas das pessoas de muitas maneiras. Pode
aparecer como um descontentamento com o trabalho atual ou suas
relações, um desejo de ser mais criativo e inclusive a necessidade de
seguir um caminho espiritual. E as pessoas respondem a este
chamado de modos muito variados. Nesta história, a resposta do
cortador de lenhas é entrar mais dentro do campo de lenhas e achar
mais madeira, que ele poderá vender e assim poderá comprar para
sua filha o que ela quer. E ainda assim, quando ele tenta fazer isto,
acha a porta da sua casa fechada com chave. Sua esposa e filha
estão adormecidas e não respondem ao seu chamado.

Por quê acontece isto com o cortador de lenhas? O que está errado
no seu plano? Parece que sua resposta a demanda da sua filha é
muito racional, e possivelmente este seja o problema. Porque quando
o ser interno demanda mais nutrição, oferecer simplesmente mais da
mesma forma de nutrição não é a resposta. Isto é o que o cortador
de lenha faz, mas o ser interno pede uma realidade diferente e não
quantidade. Por exemplo, se você tem trabalhado duro e acumula
riqueza material e então você sente um descontentamento interno,
trabalhar mais duro e acumular mais, não vai ajudar; o que se requer
é uma qualidade diferente de vida, possivelmente tempo para ser
reflexivo ou artisticamente criativo. Assim, o cortador de lenhas fica
fechado fora com chave, sua resposta não era apropriada.

E muito significativo que ele bata na porta três vezes antes de que os
eventos comecem a mudar. Há uma tradição esotérica que se você
bate três vezes a porta deva se abrir; se você faz três vezes uma
pregunta, ela deve ser respondida. O exemplo melhor conhecido disto
está no Katha Upanishad quando o garoto Nachiketas se encontra
com o Espirito da Morte e três vezes pede que a verdade seja dita a
respeito da morte antes de obter a resposta. O cortador de lenhas
bate três vezes, e ainda o que se abre não é a porta da sua própria
casa mas o caminho para outro mundo. (3)

Primeiro, o cortador de lenhas ouve uma voz que diz: “Acorda,


acorda! Deixa teu molho de arbustos e vem para cá. Se precisares
bastante, e desejares pouco, acharás uma comida maravilhosa”. O
primeiro passo para o cortador de lenhas é deixar sua madeira que
representa seu próprio condicionamento para se sustentar e nutrir ele
mesmo e sua filha. Antes que qualquer um possa entrar no mundo
interno e possa lhe dar uma maneira diferente de nutriçao, tanto num
sentido psicológico como espiritual, a pessoa tem que deixar para
trás seu condicionamento, os valores do mundo físico. Mas a segunda
metade da declaração da voz, comparando a necessidade e o desejo,
também é muito profunda. Porque no processo de transformação
interna a discriminação entre “necessidade” e “desejo” é de grande
importancia. “Necessidade” é o que é necessário para o ser humano.
Pode se referir a necessidade física de comida, vestimenta, abrigo,
etc.; ou pode ser uma necessidade interna, de amor, segurança,
compreensao, etc. Também pode ser uma necessidade da alma, da
criatividade ou nutrição espiritual. No entanto, “desejo” sempre
refere-se aos desejos do ego que não precisam ser cumpridos. De
fato, os desejos do ego atordoam amiúde o individuo no chamado das
suas verdadeiras necessidades, sobretudo quando estas sao
necessidades da alma que podem levar além dos dominios do ego.

Mas a voz nao fala só da diferença entre “necessidade” e “desejo”,


também diz que a “necessidade” deve ser “suficiente”. A necessidade
interna do Ser. A necessidade da alma, só se responde se é
suficientemente grande, para entao o ser humano invocar de tal
maneira que o chamado deva ser respondido: sendo respondido
essencialmente pelo Eu Superior. Este é o valor do desespero, porque
quando a pessoa alcança um ponto de desespero total entao a pessoa
invoca a patir de uma grande necessidade, e um chamado tal sempre
é respondido. Mas aquí está a importancia da segunda condiçao da
voz, de “desejar bastante pouco”. Porque ainda quando a resposta
sempre está alí, uma vez mais as demandas do ego podem ser tao
fortes que a pessoa nao as ouça.

Esta diferenciaçao entre a necessidade e o desejo também tem uma


dimensao espiritual específica na qual pode se ver a necessidade da
alma como a xícara vazía esperando, almejando verdadeiramente ser
preenchida; e ainda apesar da necessidade ser grande o discípulo nao
deve “desejar” nada, porque a xícara sempre é preenchida através da
graça de Deus em quem o discípulo deve pôr sua confiança total.
“Desejar” algo é condicionar ou definir a resposta, e Cómo pode o
buscador definir a resposta de Deus? De fato, Cómo o ego pode saber
bem a necessidade da alma ou bem cómo Deus podería responder?
Querer alguma coisa é cobrir a taça para que nao haja nenhum lugar
para o vinho do Amado. Assim, a atitude correta, segundo o santo
Sufí na “Filha do Fogo” de Irina Tweedie, é esta do devoto:

“Se você perguntar para o devoto o que ele deseja, ele


responderá: nada!”

No começo. O cortador de lenhas “seguiu a direçao da voz na


escuridao. Mas nao tinha nada alí…” E agora, nao só estava cansado e
faminto, mas também estava “perdido”. Muito frequentemente, antes
de que a pessoa possa achar, ou que se mostre uma nova direçao, a
pessoa tem que estar totalmente perdida. Entao, deitado no chao,
impossibilitado de dormir, o cortador de lenhas contou-se a si mesmo
a história de “tudo o que tinha acontecido com ele desde que sua
filha pediu para ele algo mais do que sua dieta simples”, e contando
esta história é quando ele é finalmente respondido. O conjunto da
história de Mushkil Gusha trata a respeito da importância de contar
uma história, e que as ajudas vem quando a pessoa tem contado sua
própria história. Porque isto é assim? Provavelmente só no final do
conto de Mushkil Gusha chegue isto a se fazer claro, pois uma
resposta podería ser que ao se contar a própria história alguma coisa
se fará consciente, e ao faze-lo assim se cria um espaço entre a
história e a pessoa, e dentro desse espaço a ajuda pode chegar. Este
é o valor de compartilhar os problemas ou dificuldades da pessoa, a
pessoa os tira de si mesmo, e os faz mais fáceis de entender ou
aparece uma nova visao.(4)

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