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Artigo | Sem transfake, pessoas trans são cada vez mais premiadas por seus talentos no audiovisual - Ponte

Jornalismo 17/01/22, 03:33

Artigo | Sem transfake, pessoas


trans são cada vez mais premiadas
por seus talentos no audiovisual
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Ao ganhar o prêmio de Melhor Atriz de Drama no Globo de Ouro, MJ


Rodriguez, de Pose, reforça a importância de pessoas trans
interpretando personagens trans nas telinhas e nas telonas

MJ Rodriguez, a primeira atriz trans a ganhar o Globo de Ouro | Foto: Reprodução / Instagram

Na primeira premiação do audiovisual em 2022, no Globo de Ouro,


prêmio que reconhece os melhores profissionais do cinema e da
televisão dentro e fora dos Estados Unidos, uma reparação histórica foi
feita depois de 78 anos: a premiação criada em 1944 só agora, em 2022,
premiou uma pessoa trans. Michaela Jaé Rodriguez, a MJ Rodriguez, da
aclamada série Pose, se tornou a primeira atriz trans da história a levar a

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estatueta de Melhor Atriz em Série de Drama.

MJ já havia feito história em 2021, ao ser a primeira atriz trans indicada


ao Emmy Award na categoria de Melhor Atriz em Série de Drama, mas o
prêmio ficou com a atriz cis Olivia Colman, que deu vida à Rainha
Elizabeth II, em The Crown, da Netflix.

Não é só MJ que ganha ao ser a primeira pessoa trans a ser premiada em


2022, mas a sociedade também. Na real, a sociedade ganha antes
mesmo das premiações: quando séries como Pose são feitas. Criada em
2018 por Ryan Murphy, responsável pelo musical Glee, que já trazia em
2009 pessoas LGBTs para o elenco principal, Pose foi produzida pelo
canal FX e transmitida pela Netflix.

Ambientada em Nova Iorque, nas décadas de 1980 e 1990, durante a luta


contra o HIV/Aids, a série ficcional faz uma homenagem aos ballrooms,
movimento político que celebra a diversidade de gênero, sexualidade e
raça. Os produtores da série acertaram ainda mais ao não escalar apenas
MJ Rodriguez como atriz trans no set.

No elenco principal de Pose, MJ contracenava com Dominique Jackson


(Elektra Evangelista), Indya Moore (Angel Vasquez-Evangelista), Angelica
Ross (Candy Johnson-Ferocity) e Hailie Sahar (Lulu Evangelista).

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Da esquerda para direita: Hailie Sahar (Lulu Evangelista), Indya Moore (Angel Vasquez-Evangelista), Dominique
Jackson (Elektra Evangelista), Angelica Ross (Candy Johnson-Ferocity) e MJ Rodriguez | Foto: Reprodução

Outro ponto importante de Pose é que a série era composta por imensa
maioria de pessoas negras e latinas nos papéis principais, incluindo os
atores cis Billy Porter (Pray Tell), Ryan Jamaal Swain (Damon Richards–
Evangelista), Dyllón Burnside (Ricky Evangelista) e Angel Bismark Curiel
(Esteban “Lil Papi” Martinez-Evangelista).

Assim como Pose, La Veneno, produção espanhola da Atresplayer


Premium, transmitida pela HBO Max, também mostra como é possível
fazer uma série sobre pessoas trans com um elenco composto por
pessoas trans. A série conta a história de vida e morte de Cristina Ortiz
Rodríguez, mais conhecida pelo apelido de “La Veneno”, cantora e
personalidade da televisão espanhola.

A biografia de Cristina, feita pela jornalista trans Valeria Vegas, foi usada
como base para o roteiro da obra. Três atrizes dão vida à protagonista da
série: Jedet Sánchez, Daniela Santiago e Isabel Torres. A jornalista

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Valeria Vegas é interpretada por Lola Rodríguez. Sem nenhum transfake.

Da esquerda para direita: Valeria Vegas e Cristina Ortiz, La Veneno | Foto: Reprodução

A primeira grande premiação para uma atriz trans aconteceu, quando o


filme Uma mulher fantástica já havia feito história no Oscar, após 90 anos
da maior premiação do cinema mundial: a produção chilena, que tinha a
atriz trans Daniela Vega como protagonista, ganhou a estatueta de
“Melhor filme estrangeiro” e se tornou o primeiro filme com uma atriz
trans no papel principal a levar um Oscar para casa. Vega também fez
história sendo a primeira atriz trans a participar da apresentação da
cerimônia.

Antes que se perguntem se o problema não está na falta de talento de


atores e atrizes trans, por isso a demora de quase 80 anos, eu já te
respondo: o problema está no transfake. Para quem não está
familiarizado com esse nome, o transfake é quando uma pessoa
cisgênera (que se identifica com o gênero de nascimento) interpreta uma
pessoa trans (que não se identifica com o gênero de nascimento) em
algum filme, peça ou novela. Com isso, atrizes e atores trans perdem

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seus empregos e a chance de mostrar seus talentos.

As produções sem transfake estão mostrando o óbvio: quanto mais


pessoas trans puderem dar vida aos personagens trans, em filmes,
séries e novelas, mais prêmios essas pessoas terão, porque não é uma
questão de falta de talento e sim de ausência de pluralidade de corpos,
vivências, gêneros e sexualidades dentro do audiovisual.

Apesar disso, infelizmente, o transfake ainda é um assunto não superado.


Ainda vemos produções com atores cis interpretando personagens trans,
como nas duas últimas temporada de La Casa De Papel, sucesso mundial
da Netflix, que trouxe a atriz cis Belen Cuesta dando vida à personagem
Manila.

É um como se déssemos um passo para frente e dois para trás, porque


essa mesma Netflix, que trouxe esse transfake em 2021, foi pioneira
trazendo Laverne Cox para interpretar Sophia em Orange Is The New
Black e Jamie Clayton para vivenciar Nomi em Sense8, duas das
primeiras produções originais do catálogo com pessoas trans no elenco.
A própria Laverne Cox encabeçou o documentário Disclosure: Ser Trans
em Hollywood, que expõe a transfobia estrutural dentro de Hollywood (e
também é uma produção da Netflix).

Realidade brasileira para pessoas trans no audiovisual

Não diferente da realidade do resto do mundo, no Brasil o transfake


também é uma prática comum. Já vimos Rodrigo Santoro interpretar a
travesti Lady Di em Carandiru (2003) e, pouco antes do manifesto dos
artistas trans, Carolina Ferraz viveu uma travesti em A Glória e a Graça
(2016) e Carol Duarte interpretou Ivan, homem trans da novela A Força
do Querer (2016).

Em 2017, um grupo de artistas trans se reuniu para exigir o fim do


transfake nas artes com o manifesto ‘Representatividade trans já. Diga

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não ao Transfake’, se posicionando criticamente contra a estreia da peça


Gisberta, de Luis Lobianco, em Belo Horizonte, em que um ator
cisgênero interpreta a transexual brasileira Gisberta, brutalmente
assassinada em 2006 em Portugal.

De lá para cá, dentro do audiovisual brasileiro, em filmes e séries, atores


e atrizes trans têm conseguido conquistar papéis importantes nas
produções e, consequentemente, serem premiados.

Um dos exemplos é o longa-metragem Alice Júnior, que conta a história


da adolescente trans Alice, com os dilemas e momentos importantes na
trajetória de adolescentes trans na vida escolar, como uso do banheiro,
respeito ao nome social e o primeiro beijo.

Protagonizado pela atriz trans Anne Mota, o filme tem pelo menos 16
prêmios e seleções especiais. Anne, aliás, foi a primeira atriz trans,
depois de 52 anos de história, a ganhar o prêmio de Melhor Atriz no
maior festival do país, o Festival de Brasília, em 2019.

Curta-metragens dirigidos, escritos e interpretados por pessoas trans


também têm sido premiados no país, como é o caso dos curtas
Perifericú, curta ficcional que mostra, a partir da coletividade e
afetividade, como ressignificar e naturalizar as periferias enquanto locais
possíveis para uma travesti negra – que tem mais de 30 prêmios no
circuito nacional e internacional, incluindo Festival Mix Brasil e Mostra
Tiradentes.

A atriz Leona Jhovs também foi premiada com o curta Modelo Morto,
Modelo Vivo, em que interpreta a protagonista Manuela, além de dirigir e
também assinar junto o roteiro, e conta a história ficcional uma mulher
trans, artista, que ao frequentar uma oficina de modelo vivo, desperta
para sua própria beleza e potência, mesmo tendo que enfrentar
dificuldades cotidianas. Entre os prêmios do curta, estão: Prêmio de
Melhor Atriz na mostra Suzy Capó do VI Festival Internacional de Cinema

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da Diversidade Sexual e de Gênero de Goiás e Melhor filme LGBT do


Sweden Film Awards.

As premiações não param em atores e atrizes. A roteirista e diretora


Gautier Lee, de Desvirtude, foi a primeira pessoa negra e pessoa trans a
ganhar prêmio de Melhor Filme por Júri Popular na Mostra Nacional do
Festival de Cinema de Gramado, em 2021. O curta conta a história de
Kenia, vítima de injúria racial, que precisa lidar com a repercussão do
acontecimento na universidade.

Em 2020, o ator Daniel Veiga, que também é roteirista, dramaturgo e


diretor teatral, ganhou o Kikito no Festival de Cinema de Gramado e em
2021 o Araibu no IV Festival de Cinema do Vale do Jaguaribe como
Melhor Ator no curta Você Tem Olhos Tristes de Diogo Leite.

No país que mais mata a população transvestigênere em todo o mundo,


essa é a representatividade que nos importa: nos vermos nas telinhas e
telonas e sermos premiados pela nossa criatividade e talento no
audiovisual. Para esse mês da Visibilidade Trans, o pedido é também um
grito: que as notícias de “primeira pessoa trans” a fazer algo acabem e
que nossas vitórias possam ser mais frequentes.

* Caê Vasconcelos é homem trans, bissexual, jornalista e cria da


periferia zona norte da cidade de São Paulo. É autor do livro-
reportagem Transresistência: Pessoas trans no mercado de trabalho
(Dita Livros) e repórter especializado na editora LGBT+. Foi repórter
da Ponte Jornalismo de 2017 a 2021.

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