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Outros Tempos Volume 6, número 7, julho de 2009 - Dossiê História e Memória
relativa deles no interior da totalidade narrativa seria minimizada pelo fato de que se aceita
que, um mesmo conjunto de tais enunciados, pode ser mobilizado por perspectivas de
interpretação diferentes e até mesmo conflitantes. Sendo assim, a ênfase na autonomia da
narrativa resultaria numa secundarização da tarefa da pesquisa.
Nesse proscênio de crítica é que a teoria de Jörn Rüsen demonstrou sua
vitalidade, pois a partir de um complexo sistema conceitual, buscou respostas para o
problema da relação entre a pesquisa e a escrita da história. Em Rüsen, as proposições
narrativistas não são refutadas em sua totalidade, e sim, em certa medida, incorporadas a sua
elaboração teórica. Isso não significa, contudo, que a regulação metódica perca sua validade,
pelo contrário, a metodização é reforçada enquanto princípio diferenciador da ciência da
história de outras modalidades do pensamento histórico. A preocupação em refletir sobre as
especificidades narrativas do texto historiográfico não o conduziu à perspectiva de reduzir o
discurso histórico a aspectos literários, mas à possibilidade de reabilitar a idéia de
narratividade conectada aos procedimentos metódicos da pesquisa.
Na teoria da história de Rüsen, as operações metodológicas continuam sendo
elementos essenciais para a validação do caráter científico da história. Não obstante, discutir
método não significa somente problematizar as regras formais da pesquisa histórica. O
desafio situa-se, sobretudo, na compreensão da significação cultural do passado “atualizado”,
pois toda pesquisa histórica desenvolve-se a partir de um questionamento ao passado, legado
nas fontes e que corresponde, em parte, a um interesse de ação sociocultural humana do
presente, em busca de orientação temporal. O problema que se coloca, então, é o da
compatibilização entre método e sentido, entre “pretensão de validade científica” e “intenção
de produzir efeito”. Para compreender essa mediação, é necessário assumir a importância da
representação narrativa como parte constituinte do conhecimento histórico, pois a conexão
entre a experiência humana do passado, extraída a partir da pesquisa, e as demandas por
sentido requeridas pela vida humana do presente, somente se dá através da historiografia
(produto intelectual narrativo construído por historiadores).
Essa conexão entre método e sentido é perquirida, verticalmente, por Rüsen
em sua última obra da trilogia “Esboço de uma teoria história”2, isto é, em “História Viva”,
na qual examina a relação entre as formas de apresentação (especificidades da narrativa
histórica) e as funções de orientação (“didática da história”) do pensamento histórico. A
2
Esboço de uma teoria da história (Grundzüge einer Historik), composto pelas obras: Razão Histórica
(Historische Vernunft), 1983, completado depois com Reconstrução do Passado (Rekonstruktion der
Vergangenheit), 1986, e com História Viva (Lebendige Geschichte), 1989.
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análise desses dois princípios do conhecimento histórico justifica a estrutura capitular dúplice
do texto: “Tópica – formas da historiografia” (primeiro capítulo) e “Didática – funções do
saber histórico” (segundo capítulo). A pretensão nuclear é demonstrar que esses princípios,
embora pareçam esquivar-se da cientificidade própria do conhecimento histórico, não são
externos à racionalidade típica dessa ciência que intitulamos de história. A “historiografia” e
as “funções de orientação” são partes constituintes do pensamento histórico em sua
modalidade científica, pois o conhecimento histórico não apresenta somente pretensões de
racionalidade (viabilizada pela pesquisa), mas também de vivacidade, para que se tornem
válidas àqueles que se alimentam desse saber.
Em “Tópica – formas da historiografia”, Rüsen aproxima-se dos narrativistas,
pois acampa, em sua teoria, os recursos poéticos que cercam a escrita da história, mas, ao
mesmo tempo, se distancia, ao discordar que a historiografia seja puro artefato estético,
lingüístico, totalmente desvinculado da investigação metódica. A historiografia, apesar de
calçada metodicamente, não se resume em facticidade pura, mas abriga em si caracteres
poéticos e de cognição, comportando forma e sentido, que estão subsumidos nas definições
de planos estético e retórico da historiografia. Para Rüsen, a dimensão estética da formatação
historiográfica pode-se chamar de “coerência de beleza”, enquanto a dimensão retórica pode
ser denominada de “coerência de eficácia”. Jörn Rüsen salienta ainda que o caráter histórico
da narrativa historiográfica atribua-se à forma como o passado é interpretado, e como essa
interpretação passa a ter uma função no universo cultural contemporâneo. Isso porque, ao
“presentificar” o passado, a narrativa historiográfica liga sua constituição de sentido à
experiência do tempo, de maneira que o estudo desse passado, convertido em texto, tenha
significação para o quadro de orientação da vida prática, produzindo, assim, sentido
histórico. Essa imensidão de formas possíveis de tornar presente o passado pode ser
caracterizada através do conceito de “constituição histórica de sentido”. É neste construto
categorial que se manifesta outra grande contribuição teórica de Rüsen: a edificação de uma
tipologia da constituição histórica de sentido por narrativas históricas: as constituições
históricas de sentido tradicionais, exemplares, críticas e genéticas3.
Em “Didática – funções do saber histórico”, Rüsen se aproxima da tradição da
Historik de Droysen, recuperando a relação da práxis historiográfica com a racionalidade do
3
As constituições históricas de sentido segundo a tipologia de Rüsen: a tradicional (a totalidade temporal é
apresentada como continuidade dos modelos de vida e da cultura do passado); a exemplar (as experiências do
passado são casos que representam e personificam regras gerais da mudança temporal e da conduta humana); a
crítica (permite formular pontos de vista históricos, por negação de outras posições); e a genética (diferentes
pontos de vista podem ser aceitos porque se articulam em uma perspectiva mais ampla de mudança temporal, e a
vida social é vista em toda sua complexidade).
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