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Outros Tempos Volume 6, número 7, julho de 2009 - Dossiê História e Memória

História Viva – Teoria da História III: formas e funções


do conhecimento histórico. Trad. Estevão de Rezende
Martins. Brasília: Ed. da UNB, 2007, 159p. RÜSEN, Jörn.

Ms. Rogério Chaves da Silva


Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Tocantins – Campus de Paraíso do Tocantins
E-mail: rcmc26@bol.com.br.

Parafraseando Chartier1, “Tempo de incerteza”, epistemological crisis,


tournant critique, este é o clima de insegurança que permeou o habitat dos historiadores,
desde a crítica narrativista ocorrida nos anos 1960 e 1970. Nesse quadrante histórico, antigas
certezas foram abaladas, a objetividade da ciência histórica, a validade geral do
conhecimento, baseada na relação com a experiência do passado e na racionalidade no trato
cognitivo dessa experiência, foi posta em cheque. Assumir que o conhecimento histórico, em
princípio, é constituído por uma narrativa, fez-nos pisar em terreno epistemológico
movediço.
Essa crise epistemológica teve como ponto nevrálgico a concepção moderna
de ciência, sustentada por grande parte da comunidade dos historiadores. Estribados no
conceito de ciência sedimentado durante o século XIX, esses especialistas acabaram
relegando a escrita da história a uma posição secundária, elegendo a pesquisa como operação
determinante para a constituição da história como ciência. Neste ínterim, a crítica narrativista
fez com que a relação entre pesquisa e escrita da história fosse visualizada sob outro prisma
teórico. A partir da repercussão dos trabalhos de Hayden White, maior representante do
chamado Linguist Turn, e mais recentemente, de autores como Frank Ankersmit, houve uma
espécie de inversão no modo tradicional de conceber o problema da relação entre pesquisa e
escrita da história: o relevo destinado à escrita em detrimento da pesquisa. Dentro dessa nova
concepção, o texto histórico passou a ser considerado um artefato lingüístico, elaborado
segundo princípios literários e ligado unicamente às estruturas da narrativa. Para esses
autores, denominados de narrativistas, não haveria como representar o passado em sentido
epistemológico, visto que a história seria sempre uma construção pessoal, uma manifestação
da perspectiva do historiador como narrador, portanto, epistemologicamente frágil. Haveria,
então, uma autonomia da narrativa face aos enunciados singulares nela contidos. A
formulação de tais enunciados obedeceria aos resultados da pesquisa empírica, mas a força
1
CHARTIER, Roger. A História Hoje: dúvidas, desafios, propostas. In: Revista Estudos Históricos. Trad.
Dora Rocha. Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113.

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relativa deles no interior da totalidade narrativa seria minimizada pelo fato de que se aceita
que, um mesmo conjunto de tais enunciados, pode ser mobilizado por perspectivas de
interpretação diferentes e até mesmo conflitantes. Sendo assim, a ênfase na autonomia da
narrativa resultaria numa secundarização da tarefa da pesquisa.
Nesse proscênio de crítica é que a teoria de Jörn Rüsen demonstrou sua
vitalidade, pois a partir de um complexo sistema conceitual, buscou respostas para o
problema da relação entre a pesquisa e a escrita da história. Em Rüsen, as proposições
narrativistas não são refutadas em sua totalidade, e sim, em certa medida, incorporadas a sua
elaboração teórica. Isso não significa, contudo, que a regulação metódica perca sua validade,
pelo contrário, a metodização é reforçada enquanto princípio diferenciador da ciência da
história de outras modalidades do pensamento histórico. A preocupação em refletir sobre as
especificidades narrativas do texto historiográfico não o conduziu à perspectiva de reduzir o
discurso histórico a aspectos literários, mas à possibilidade de reabilitar a idéia de
narratividade conectada aos procedimentos metódicos da pesquisa.
Na teoria da história de Rüsen, as operações metodológicas continuam sendo
elementos essenciais para a validação do caráter científico da história. Não obstante, discutir
método não significa somente problematizar as regras formais da pesquisa histórica. O
desafio situa-se, sobretudo, na compreensão da significação cultural do passado “atualizado”,
pois toda pesquisa histórica desenvolve-se a partir de um questionamento ao passado, legado
nas fontes e que corresponde, em parte, a um interesse de ação sociocultural humana do
presente, em busca de orientação temporal. O problema que se coloca, então, é o da
compatibilização entre método e sentido, entre “pretensão de validade científica” e “intenção
de produzir efeito”. Para compreender essa mediação, é necessário assumir a importância da
representação narrativa como parte constituinte do conhecimento histórico, pois a conexão
entre a experiência humana do passado, extraída a partir da pesquisa, e as demandas por
sentido requeridas pela vida humana do presente, somente se dá através da historiografia
(produto intelectual narrativo construído por historiadores).
Essa conexão entre método e sentido é perquirida, verticalmente, por Rüsen
em sua última obra da trilogia “Esboço de uma teoria história”2, isto é, em “História Viva”,
na qual examina a relação entre as formas de apresentação (especificidades da narrativa
histórica) e as funções de orientação (“didática da história”) do pensamento histórico. A

2
Esboço de uma teoria da história (Grundzüge einer Historik), composto pelas obras: Razão Histórica
(Historische Vernunft), 1983, completado depois com Reconstrução do Passado (Rekonstruktion der
Vergangenheit), 1986, e com História Viva (Lebendige Geschichte), 1989.

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análise desses dois princípios do conhecimento histórico justifica a estrutura capitular dúplice
do texto: “Tópica – formas da historiografia” (primeiro capítulo) e “Didática – funções do
saber histórico” (segundo capítulo). A pretensão nuclear é demonstrar que esses princípios,
embora pareçam esquivar-se da cientificidade própria do conhecimento histórico, não são
externos à racionalidade típica dessa ciência que intitulamos de história. A “historiografia” e
as “funções de orientação” são partes constituintes do pensamento histórico em sua
modalidade científica, pois o conhecimento histórico não apresenta somente pretensões de
racionalidade (viabilizada pela pesquisa), mas também de vivacidade, para que se tornem
válidas àqueles que se alimentam desse saber.
Em “Tópica – formas da historiografia”, Rüsen aproxima-se dos narrativistas,
pois acampa, em sua teoria, os recursos poéticos que cercam a escrita da história, mas, ao
mesmo tempo, se distancia, ao discordar que a historiografia seja puro artefato estético,
lingüístico, totalmente desvinculado da investigação metódica. A historiografia, apesar de
calçada metodicamente, não se resume em facticidade pura, mas abriga em si caracteres
poéticos e de cognição, comportando forma e sentido, que estão subsumidos nas definições
de planos estético e retórico da historiografia. Para Rüsen, a dimensão estética da formatação
historiográfica pode-se chamar de “coerência de beleza”, enquanto a dimensão retórica pode
ser denominada de “coerência de eficácia”. Jörn Rüsen salienta ainda que o caráter histórico
da narrativa historiográfica atribua-se à forma como o passado é interpretado, e como essa
interpretação passa a ter uma função no universo cultural contemporâneo. Isso porque, ao
“presentificar” o passado, a narrativa historiográfica liga sua constituição de sentido à
experiência do tempo, de maneira que o estudo desse passado, convertido em texto, tenha
significação para o quadro de orientação da vida prática, produzindo, assim, sentido
histórico. Essa imensidão de formas possíveis de tornar presente o passado pode ser
caracterizada através do conceito de “constituição histórica de sentido”. É neste construto
categorial que se manifesta outra grande contribuição teórica de Rüsen: a edificação de uma
tipologia da constituição histórica de sentido por narrativas históricas: as constituições
históricas de sentido tradicionais, exemplares, críticas e genéticas3.
Em “Didática – funções do saber histórico”, Rüsen se aproxima da tradição da
Historik de Droysen, recuperando a relação da práxis historiográfica com a racionalidade do

3
As constituições históricas de sentido segundo a tipologia de Rüsen: a tradicional (a totalidade temporal é
apresentada como continuidade dos modelos de vida e da cultura do passado); a exemplar (as experiências do
passado são casos que representam e personificam regras gerais da mudança temporal e da conduta humana); a
crítica (permite formular pontos de vista históricos, por negação de outras posições); e a genética (diferentes
pontos de vista podem ser aceitos porque se articulam em uma perspectiva mais ampla de mudança temporal, e a
vida social é vista em toda sua complexidade).

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público destinatário, ou seja, analisa a relevância das narrativas historiográfica à vida,


admitindo que a dimensão orientadora de toda narrativa histórica está marcada pela intenção
básica do narrador e de seu público de não se perderem nas mudanças de si mesmos e de seu
mundo, mas de se manterem seguros e firmes no fluxo do tempo. Na ciência da história, as
funções de orientação abrem possibilidades de construção e consolidação histórica de
identidade, uma vez que orientam intelectualmente o agir a partir da recepção das narrativas
históricas. Em suma, em Rüsen, o uso prático do saber histórico é efetivamente resgatado
enquanto reflexão da teoria da história.
Em face do exposto, “História Viva” apresenta-se como um texto agudo
quanto à elucidação da tenaz linha que une ciência especializada e vida prática. E assumir
essa ligação não significa atenuar os índices de cientificidade do pensamento histórico,
significa assumir que a subjetividade não precisa ser reprimida, e sim ordenada e admitida de
forma adequada e compatível com a cientificidade do conhecimento histórico.
Contrariamente ao que o objetivismo estreito legou à ciência da história, Rüsen demonstra
que a regulação metódica não inviabiliza o trabalho de produção de sentido a que também
está revestido o conhecimento histórico.

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