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UECE – Universidade Estadual do Ceará

Licenciatura em Música
Música Brasileira – 2021.1
Professor: Pablo Garcia da Costa
Aluno: Ícaro Tavares

Resumo do artigo de Berg e Rosa: “Entre o erudito e o popular: Aproximações e distanciamentos


na música popular brasileira”

A temática central que envolve o texto, propõem as autoras seria o da categorização entre
música popular e música erudita, com a necessária e subsequente crítica e este termo. O que seria
esta “música culta?”. Diz respeito a um tipo específico de música de “formações orquestrais, corais
e de câmara”, com espaços específicos para a sua apresentação, e sobretudo uma música que faz uso
da partitura (que supostamente a definiria enquanto mais “culta” que as outras). As autoras marcam
o caráter elitista deste tipo de música, tanto em seus espaços de circulação, quanto de fomento.
Já a chamada música popular abrange quase todas as outras manifestações culturais que se
dão em torno da música, majoritariamente cantada, e de circulação nos meios de comunicação em
massa. O que afirmam as autoras é que esta distinção, entre erudito e popular, não é capaz de dar
conta da diversidade da música que é produzida, sendo mais um meio de diferenciação por classe
social e/ ou formação do que uma definição objetiva. Portanto, o artigo procura discorrer
precisamente sobre o surgimento desta distinção na música brasileira.
Para tanto, as autoras abordam o surgimento de um dos primeiros gêneros de música popular
no Brasil, e comumente popular em Portugal à época, a modinha. Diz-se que o maior expoente
deste gênero foi o poeta improvisador e cantor, Domingos Caldas Barbosa, mestiço de origem
africana e portuguesa, que criava letras originais para melodias suas, ou já existentes. Fez sucesso
tanto em Portugal quanto no Brasil, permeando até os dias de hoje a cultura popular até mesmo em
localidades distantes dos centros urbanos, tendo sua música sido incorporada na cultura popular
destas localidades – e lembrada até os dias atuais –, ainda que sua autoria não seja reconhecida, por
conta das diversas transformações e adaptações que sua obra sofreu na transmissão dos cantadores
por um lado (em alterações intrínsecas à atividade dos intérpretes), e pela incorporação ao
repertório erudito (em arranjos que em pouco remetem ao original). Algo similar aconteceu a outro
compositor de modinhas, Joaquim Manoel, que teve suas canções transcritas e adaptadas por um
músico austríaco, Sigismund Von Neukomm – que, evidentemente, o fez à maneira da música
erudita europeia, por vezes elidindo ou ignorando particularidades da música de matriz africana,
principalmente no que diz respeito à rítmica.
Neukomm foi relativamente bem-recebido com estas versões na Europa, mas o mesmo não
ocorreu com a música brasileira feita por brasileiros na corte portuguesa. Segundo as autoras, as
modinhas encontravam resistência por parte de setores mais aristocráticos, que consideravam a
música excessivamente romântica e um tanto lasciva, identificando essas características com as suas
origens pretensamente “selvagens”, afro-brasileiras. Tal crítica permeou também os círculos
aristocráticos brasileiros, que viam seus interesses coloniais contrariados, ao aceitar este gênero
musical vindo das classes populares, de origem negra.
Não obstante, o texto nos indica, a modinha fez grande sucesso, e foi de certo modo
apropriada pelos músicos eruditos, que, até a vinda da corte portuguesa ao Brasil, majoritariamente
compunham peças sacras, passando a compor tanto modinhas quanto lundus, outro gênero de
música de origem africana popular à época. O fato da vinda da família real para o Rio de Janeiro,
possibilitou não apenas o início do fomento e da construção de equipamentos onde se pudesse
realizar óperas e concertos, como o Teatro São João, mas também as danças europeias para a
aristocracia brasileira. Estas foram incorporadas posteriormente na música popular, como a valsa, a
quadrilha, o schottisch (que viria a se transformar em xote), bem como a polca, a mazurca, a
habanera e o tango. Àquela altura, no entanto, a música popular executada e ouvida pela maioria de
brasileiros não-brancos consistia de um repertório de músicas resultantes do cruzamento de matrizes
étnicas, como eram as modinhas, batuques, e lundus.
Este fenômeno de entrecruzamento não deve ser confundido, no entanto, com alguma
espécie de “democracia racial”, uma vez que índios, negros, e brancos, tinham um espaço
relativamente delimitado na sociedade. Isto, no entanto, não impediu a passagem de costumes entre
estes grupos: é o caso, citado pelas autoras, dos cantores barbeiros das cidades, em grande parte
negros alforriados, que incorporavam cantos de trabalho (e para entretenimento de seus captores) de
quando foram escravizados, e que faziam grande sucesso nas celebrações e solenidades. A este
fenômeno, as autoras remetem o conceito de contratransferência, isto é, a apropriação criativa
popular de repertórios eruditos, ao invés da imposição destes por meio da hegemonia.
Um caso desta contratransferência que influenciou de modo decisivo a formação musical
brasileira é o das bandas militares, onde se tocava à moda dos ritmos brasileiros as danças
europeias, com boa qualidade técnica. A partir das bandas militares surgiram alguns gêneros
brasileiros, como o maxixe citado no texto (que seria uma polca com elementos do lundu), o xote,
dentre outros. Um compositor de grande importância que se destacou à época, Anacleto de
Medeiros, era oriundo da banda do corpo de bombeiros do Rio de Janeiro. Produziu muitos
schottisches, polcas e valsas, e se tornou uma grande influência para a música nacional, tendo um
seu schottisch, o Iara, recebido várias versões por músicos durante um período que se estendeu até
o século XX. Originalmente composta com arranjo instrumental, com a incorporação por outros
músicos de letra, chegando a influenciar figuras como Radamés Gnatalli e Villa- Lobos, que se
apropriou de um fragmento do tema de Anacleto para compor seu Choros n°10.
Outro caso de apropriação popular do repertório erudito que foi de grande importância para
a música brasileira foi o da polca que, tocada à maneira sincopada do lundu, e popularizada na
cidade do Rio de Janeiro, deu origem ao choro. Diz o texto que, a partir de uma grande circulação
de pianos – instrumento que denotava status cultural e social, sendo um marcador de raça e classe –
na cidade, passou-se a tocar a polca fora dos salões aristocráticos e dos ambientes privados da elite,
e com isto foi engendrado um processo de abrasileiramento da polca que culminou no choro. As
autoras citam três expoentes do choro, Chiquinha Gonzaga, Joaquim Callado, e Ernesto Nazareth,
cuja obra perdura na memória popular até os dias atuais.
Chiquinha Gonzaga, pianista que atravessou diversas barreiras da sociedade imperial,
enquanto mulher divorciada que sobrevivia de música, tocando em teatro de revista. Compunha
polcas brasileiras, participando do grupo do flautista Joaquim Callado, e talvez por conta de sua
atuação fora dos círculos aristocráticos (ou o inverso), era republicana e abolicionista. Já Ernesto
Nazareth, apesar de sua origem humilde, era um pianista que almejava se tornar músico erudito;
procurou durante toda sua vida obter apoio para tanto, sem sucesso. Compunha peças instrumentais
de valsas e tangos brasileiros, em ritmos marcadamente sincopados, e enfrentou forte resistência da
elite da época por conta de sua música, que era vista pelos aristocratas como uma espécie de
barbarismo, de retorno a algo primitivo. Mesmo absorvendo as influências da música popular de sua
época, almejava ser um músico erudito a despeito da rejeição da aristocracia (e a consequente
resistência a qualquer tipo de fomento à sua arte). A impossibilidade de estudar música na europa e
de se desenvolver como pianista erudito, foi um elemento de forte sofrimento psíquico para
Nazareth, uma vez que ele tinha mais afinidades com a música instrumental do que com as canções
e as músicas dançantes, ao contrário de Chiquinha Gonzaga.
Para compreender esta contradição em Nazareth, Berg e Rosa analisam a questão tanto de
um ponto de vista histórico, quanto psíquico e social. As autoras explicam que, no início do século
XX, o entretenimento passou de espaços públicos e abertos para lugares fechados, como cafés,
cinemas e teatros. Com isto, valorizou-se mais uma experiência estética mais contemplativa, e
menos ligada à sociabilidade e à poesia (por meio do canto) e ao corpo (por meio da dança): o
resultado disso seria o que Fischerman (citado pelas autoras) chama de “efeito Beethoven”, quando
os meios de experienciar e avaliar esteticamente a música popular são invadidos por valores da
suposta erudição. O conflito por que passa Nazareth, compositor de origem pobre que não encontra
aceitação nos circuitos da elite, é precisamente o de se identificar com alguns valores estéticos
desta, não sendo ele mesmo um aristocrata. Nazareth possivelmente tenha incorporado, neste
processo, o caráter esnobe com que as elites econômicas supõem ser também (na sua mentalidade
de mercadores e saqueadores e escravocratas, da qual, de fato, descendiam enquanto elite colonial)
alguma espécie de elite cultural. Esta dificuldade tanto em se situar (em última instância,
politicamente), de escapar à dicotomia entre popular e erudito, fez com que Nazareth não pudesse
desfrutar plenamente do resultado de seu relevante trabalho.
Certamente, este sistema de seleção (e consequente exclusão) não é apenas subjetivo, mas se
desdobra nas instituições e nos espaços de circulação da música, tendo afetado todos estes
compositores que Berg e Rosa citaram em seu artigo, perdurando até os dias de hoje. De um sistema
excludente a outro, vemos que atualmente a indústria fonográfica e os meios de comunicação em
massa parecem ser mais propensos a financiar e divulgar a música popular, uma vez que esta é mais
rentável – e agora, são as orquestras que vão paulatinamente perdendo popularidade, e mesmo apoio
financeiro para se manterem. Reformular esta classificação envolveria não apenas repensar em que
ela se fundamenta, mas também operar mudanças concretas na sociedade em geral, dos meios de
formação às cadeias difusoras de comunicação.

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