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A ESCOLHA DA EDIÇÃO DO LIVRO SOB O VIÉS DA SUA

MATERIALIDADE: UMA LEITURA DAS EDIÇÕES DE O SOM E A FÚRIA DE


WILLIAM FAULKNER1

Yasmim Naif Amin Mahmud Kader2

INTRODUÇÃO

O que nos leva a escolher a edição de uma obra literária? Pode-se


destacar algumas possibilidades de escolha: a capa, a tradução, a editora, os
elementos pré e pós textuais, o prefácio de um crítico renomado, entre outros.
Afinal, o texto nunca é entregue ao leitor em estado nu, sem que haja todo um
trabalho por trás da edição apresentada. Quando entramos em uma livraria,
encontramos, por exemplo, inúmeras versões de Frankenstein da autora Mary
Shelley, olhamos a capa, folhamos suas páginas a fim de desbravar o trabalho
que, antes da história contada, foi criado. Se já conhecemos a obra,
provavelmente nos interessaremos por uma “versão de luxo” da mesma,
motivando a aquisição do volume mesmo que já tenhamos outra em casa,
simplória se comparada à que nos chamou a atenção.

Hoje, no mercado nacional, como também no internacional, existem


inúmeras versões de uma mesma obra renomada: quantas opções de
Shakespeare encontramos nas prateleiras? Quantas edições de capa dura de
Jane Austen nos deparamos em vitrines? A questão em si não é a quantidade,
mas, sim, o porquê escolhemos determinada edição. Logo, a pergunta que me
interessa é “que história determinada edição conta?” e como isso influencia na
aquisição por parte do leitor.

1 Trabalho avaliativo para a disciplina Debates Contemporâneos sobre Literatura e suas


Materialidades do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Maria.
2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Maria. Bolsista

CAPES.
Às vezes, adquirimos uma edição por vaidade; em outras, por
necessidade e, em algumas, por simples vontade. Sob esse viés, tenho a
intenção de analisar duas edições da obra “O Som e a Fúria”, de William
Faulkner, respectivamente as edições publicadas pela extinta editora Cosac &
Naify e pela editora Companhia das Letras. A análise se voltará para questões
que englobam a edição, como capa, elementos pré e pós textuais e os demais
detalhes que cada uma possui, contribuindo com o que o leitor pode considerar
na hora de escolhê-las. Para isso, usarei a abordagem de Genette (2009), que
denomina esses elementos dentro do livro como paratextos; e, a partir dessas
concepções, apresentei ambas as edições.

Ademais, no que concerne à afeição com o livro, às questões de


proximidade com o leitor e à relação com essa materialidade, usarei autores
como Manguel (2004) e Goulart e Ferreira (2015), além de autores da fortuna
crítica de William Faulkner. Todo o referencial será construído para,
posteriormente, eu comentar as edições e ressaltar a história que cada uma
conta.

REFERENCIAL TEÓRICO

Há algo de íntimo ao escolher o livro que passaremos a noite, se não a


madrugada, lendo — mais íntima é a sensação que o objeto livro pode nos
proporcionar ao ser escolhido. Afinal, o que nos influencia à suposta escolha?
Seu formato, sua capa ou título que traz? Porque, como sugere Goulart e
Ferreira (2015), “o [...] primeiro contato com o livro acontece na exterioridade; o
leitor utiliza-se das sensações como forma de interação com esse material”
(2015, p. 5). Logo, há uma necessidade de manuseio, de sentir e folhar o livro
sem pensar na história que ele oferece, mas na edição que se apresenta. Dessa
forma,

Os livros declaram-se por meio de seus títulos, seus autores,


seus lugares num catálogo ou numa estante, pelas ilustrações
em sua capa, declaram-se também pelo tamanho. Em diferentes
momentos e em diferentes lugares, acontece de eu esperar que
certos livros tenham determinada aparência, e, como ocorre com
todas as formas, estes traços cambiantes fixam uma qualidade
precisa para a definição do livro. (MANGUEL, 2004, p. 96)

Há uma verdade sobre esse apontamento de Manguel (2004) que, às


vezes, negamos fazer, mas fazemos: julgamos um livro por sua aparência, por
sua forma. Mas a verdade é que buscamos algo que nos atraía, que desperte
interesse, e, caso a edição falhe nisso, deixamos como segunda opção, ou
terceira. É claro que há leitores que, por já conhecerem a história, não se
atentam ao objeto. Buscam apenas o conteúdo, não o que vem com ele, mas
também existem os quais se preocupam com a questão da melhor edição,
melhor preparação. Torna-se, assim, importante um trabalho editorial, não
apenas um texto impecável. Há, de fato, várias interpretações para o objeto livro,
o que me atenho, porém, é a questão da afeição, a proximidade que criamos ao
eleger um livro como objeto de afeto. Existem inúmeros leitores que buscam por
inúmeras leituras, e são eles que conferem significado a um livro. O livro só
existe com o leitor, e vice-versa, e

[a]lgumas dessas leituras são coloridas pelo conhecimento de


que a coisa lida foi criada para aquele propósito específico por
outros seres humanos — a notação musical ou os sinais de
trânsito, por exemplo — ou pelos deuses, — o casco da
tartaruga, o céu à noite. Outras pertencem ao acaso. E, contudo,
em cada caso é o leitor que confere a um objeto, lugar ou
acontecimento uma certa legibilidade possível, ou que a
reconhece neles; é o leitor que deve atribuir significado a um
sistema de signos e depois decifrá-lo. Todos lemos a nós e ao
mundo à nossa volta para vislumbrar o que somos e onde
estamos. Lemos para compreender, ou para começar a
compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase como
respirar, é nossa função essencial. (MANGUEL, 2004, p. 10-11)

Mas quais são as formas do livro? Para responder essa pergunta e


embasar essa discussão, Genette (2009) se refere à obra literária como uma
“sequência mais ou menos longa de enunciados verbais” (2009, p. 9). O autor
defende que o texto nunca é apresentado de forma crua ao leitor, mas
carregando sempre algo que o apresentará ao mundo e o tornará, de fato,
presente. Todos esses elementos que constituem o objeto livro, além de sua
história, Genette (2009) chama de paratextos, ou seja, o que “por meio de um
texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores, e de maneira mais geral
ao público” (2009, p. 9). Esse elemento, por sua vez, é formado de uma soma
de epitextos e de peritextos. Antes de me ater ao significado deles, noções que
usarei para apresentar as edições de “O Som e a Fúria”, o autor comenta
algumas peculiaridades do paratexto que se fazem pertinentes para minha
discussão.

Os elementos paratextuais não possuem uma regularidade constante e


sistemática, uma vez que existe livros sem prefácio, sem notas introdutórias e
outros elementos que alguns leitores podem estar acostumados — o que é o
caso de uma das edições do objeto de análise a ser discutida posteriormente.
As formas que o paratexto se apresenta foram se modificando de acordo com o
tempo; e embora a existência de um prefácio seja facultativa, a obrigatoriedade
do leitor em lê-lo também é. Essa ideia sugere que, como os leitores que
apreciam a afetividade com o livro, há também os que ignoram todo esse
processo editorial para se preocupar apenas com a narrativa que o livro traz.

Dentro do paratexto, Genette (2009) propõem o epitexto e peritexto. O


primeiro se refere à apresentação exterior de um livro, o seu título e a “sequência
como se oferece a um leitor dócil, o que não é, evidentemente, o caso de todos”
(2009, p. 10). Epitexto, dessa forma, é o que vemos na prateleira de uma livraria,
exposto, convidando-nos a folheá-lo. É claro que, como o próprio autor defende,
muitos leitores tomam conhecimento do livro por resenhas, entrevistas ou pelas
redes sociais, mas o importante aqui é destacar que, embora essa perspectiva,
um livro que não conhecemos ou não ouvimos recomendarem pode chamar
nossa atenção pelo que nos apresenta exteriormente.

Genette (2009) sugere também o peritexto como uma das somas do


paratexto. Diferente da definição anterior, esta remete “em torno do texto, no
espaço do mesmo volume, como o título ou o prefácio, e, às vezes, inserido nos
interstícios do texto, como os títulos de capítulos ou certas notas” (2009, p. 12).
Dessa forma, o peritexto seria o que o livro apresenta em seu interior, o que
compõem a obra além do texto original — e que pode incluir até mesmo
ilustrações ou comentários de críticos.

Todas essas noções serão pertinentes para embasar a análise sobre as


edições da obra “O Som e a Fúria” de William Faulkner, proposta como objetivo
do artigo. A partir dessa perspectiva, compararei ambas com o foco em seus
paratextos, apoiando-me também no que concerne a afeição com o objeto;
assim, diferenciando as edições não só pelo exterior e pelo interior, mas pela
sensação íntima e de proximidade que elas fornecem ao leitor.

O SOM E A FÚRIA

William Faulkner publicou “O Som e a Fúria” em 1929, depois de quase


três anos de completa dedicação sem a exigência de editores e sem se
preocupar com o público que iria atingir com seu livro. Na verdade, como próprio
autor afirmava em entrevistas, a narrativa foi concluída em menos de um ano,
mas ele reescreveu seu romance cinco vezes e trabalhou nele com uma
intensidade e concentração que não tinha atingido anteriormente. Dividido em
quatro capítulos, o livro apresenta a narrativa de decadência de uma família
aristocrata do Antigo Sul dos Estados Unidos — corrompida por uma herança
amaldiçoada que desmantelou sua geração e, possivelmente, corromperá as
próximas, se existirem. William Faulkner declarou em uma entrevista que
“considerava esse livro superior a suas outras obras e declarou ser o mais
doloroso de ser escrito” (WILLIAMSON, 1993, p. 6)3.

Posteriormente, em 1945, quinze anos após a publicação do livro,


Faulkner escreveu um apêndice da família Compson que seria incluso nas
próximas edições da obra e, neste documento, consta a história da família no
período de 1699 a 1945, algo que contribuí para um aprofundamento da
narrativa. É impossível falar de Faulkner sem mencionar sua conexão com o
contexto histórico do Sul dos Estados Unidos e a forma como ele trouxe a
herança dos derrotados para suas narrativas no fictício condado de
Yoknapatawpha. Vale-se dizer que, com grande inspiração em James Joyce,
Faulkner teceu uma narrativa entrelaçada à técnica do fluxo de consciência,
presente no livro a ser analisado. A visão de Faulkner sobre o Sul não é
“meramente complexa, mas também difícil de decodificar” (CUNLIFFE, 1986, p.

3No original: “he prized that book above his other works and declared that it was the most painful
of all to write” (WILLIAMSON, 1993, p. 6).
382). Em “O Som e a Fúria”, o leitor se depara com quatro vozes narrativas
diferentes — a de um personagem com problemas cognitivos, a de um suicida,
a de um homem materialista e, por fim, a da empregada negra da família.

Não caberá a essa análise discutir a fundo essas questões, apenas


apresentar o livro que será analisado sob o viés de sua materialidade. Existem
inúmeras traduções e edições dessa obra do autor, mas me atentarei às
publicadas pelas editoras Cosac & Naify, em 2015, e Companhia das Letras, em
2017, ambas traduzidas pelo mesmo tradutor, Paulo Henriques Britto.

A capa da edição da Cosac & Na ify é um tanto simplória e apagada,


principalmente no que diz respeito ao título, em tipografia menor no centro da
imagem. A casa ao fundo e o que parece serem chamas pode remeter à
decadência da família, de seu meio, ainda que, como leitora, eu não me sinta
atraída pela mesma. Há em contraste galhos de uma árvore, o que lembra a
capa de uma versão em língua inglesa do livro, publicado pela Vintage Classics
em 1995.
Ainda assim, não há, no que concerne ao meu conhecimento da
narrativa, uma ligação direta às imagens — tanto da capa da editora Cosac &
Naify quanto da capa da Vintage Classics — ao conteúdo do livro. A capa da
Cosac & Naify não conta nas informações do livro, apenas quem preparou o
trabalho tipográfico. Há, porém, uma afetividade pelo livro da Cosac & Naify
justamente pelo fato de ter sido o primeiro livro de capa dura do Faulkner que
adquiri e também por ser uma edição que já está esgotada graças à extinção
dessa editora.

A contracapa segue o padrão da foto da capa e não há um texto crítico


sobre o livro, apenas um fragmento de um dos capítulos que, para os quais
conhecem a narrativa, sabem que é uma das introduções mais profundas da
história. No interior, há uma foto do autor tirada por Henri Cartier Bresson, em
1947, que é seguida pela folha rosto e, posteriormente, o primeiro capítulo. O
livro contém o apêndice da família Compson publicado anos após a edição
original, e seu elemento posterior é uma biografia do autor. A parte final da
edição termina com as informações editoriais do livro. Esses epitextos, sugeridos
por Genette (2009), para um leitor novo não parecem tão atrativos, mas, para
aqueles que conhecem a editora e o autor, podem sentir a necessidade, quem
sabe a vaidade, de adquirir a edição: justamente por ser um volume já esgotado
e de capa dura.

Por conseguinte, publicada em 2017, a edição de “O Som e a Fúria” da


Companhia das Letras já possui uma elaboração editorial com mais elementos
paratextuais do que a edição da Cosac & Naify. Apesar do volume se assemelhar
na parte da tradução, uma vez que ambas possuem o mesmo tradutor, elas
muito se diferem no que concerne à “história que contam” do objeto livro, a
começar pela capa escolhida para a edição. A foto da capa é, segundo as
informações, um acrílico sobre tela com linhas vermelhas que se misturam e se
emaranham entre si, vazando e escorrendo pela pintura. Não há nela o nome do
livro ou do autor, o que fica a cargo da jacket de plástico transparente que
envolve o livro e dá um toque diferenciado em conjunto com a foto da pintura.
Junto ao logo da editora, há o termo Prêmio Nobel, um parâmetro que a
Companhia das Letras costuma usar em livros de autores consagrados com o
prêmio — o que contribui para uma maior visibilidade do objeto. A edição da
Cosac & Naify não possui essa informação na capa ou contracapa, apenas na
biografia do autor no final do livro. Sob essa ótica, os epitextos da Companhia
das Letras se mostram mais vantajosos que os da Cosac & Naify.

A edição de 2017 não possui orelha em anexo à capa, visto que a mesma
é uma continuação da pintura que estampa o livro. Esse detalhe se difere da
orelha na contracapa, com um texto sobre William Faulkner. Em comparação
com a edição de 2015, a contracapa da Companhia das Letras chama a atenção
ao se referir a obra como: “uma das mais contundentes peças de ficção
produzidas no século XX”, junto a citação de uma crítica de Sartre, também
presente na edição.

O interessante da edição da Companhia das Letras, já passando para


seus peritextos, é o fato de possuir um sumário que conta com, além da
narrativa, artigos sobre a narrativa. O primeiro se trata de um comentário do
tradutor sobre o desafio que é traduzir William Faulkner para o português; o
segundo, é um artigo escrito por Sartre sobre a temporalidade da narrativa — o
que enriquece não somente a experiência da leitura, como também aprofunda o
entendimento do livro, que é conhecido por seus desafios no que concerne sua
história e seus acontecimentos.

Discutido isso, é pertinente dizer que, apesar de ambas possuírem a


mesma tradução, elas fornecem diferentes leituras. Um leitor desaviado sobre a
escrita e o contexto de Faulkner, ao pegar a edição da Cosac & Naify, se
encontrará, parafraseando o artigo de Sartre, “estilhaçado e embaralhado aos
pedaços”, afinal, já entramos na narrativa com um capítulo sob a perspectiva de
um personagem que nada entende, nada sente, apenas vê.
Dessa forma, “o leitor se vê tentado a encontrar referências e a
restabelecer a cronologia por sua própria conta” (SARTRE, 2017, p. 326). Isso
torna o artigo sobre a temporalidade da obra um must read para aqueles que
mergulham em “O Som e a Fúria”. Logo, para um novo leitor, a escolha da edição
da Companhia das Letras se fará mais vantajosa que a edição da Cosac & Naify
pelo que acrescenta, tanto para a leitura como para o volume. O que pode ser
diferente para aqueles já acostumados às narrativas de William Faulkner:
cativados pela questão da proximidade, pela afeição, supostamente irão
escolher a edição da Cosac & Naify, talvez as duas, se tiverem, como o meu
caso, uma relação que ultrapassa a leitura. A questão, por fim, não é qual a
melhor obra: mas qual, para determinado leitor, seja novo ou velho, oferece
melhor experiência.

CONCLUSÕES

Se amamos um livro, apreciaremos uma bela edição dele. Às vezes,


criamos uma espécie de relação e de conexão com o objeto livro: observamos
sua capa, lemos sua contracapa e folhamos as primeiras páginas para nos
aprofundarmos sobre o que ele nos traz. Um livro é muito além do que uma
história, é um envolvimento: de um leitor que, ao pegar o livro que chamou sua
atenção na prateleira, criará uma afeição pelo objeto de antes de criar uma
ligação com sua história.

As edições da obra de William Faulkner analisadas e descritas podem


representar inúmeros sentimentos nos diferentes tipos de leitores que se
escondem por aí. Alguns optam pela edição com um maior número de
paratextos, outros com a de menor número. A questão é que, como Manguel
(2004) referiu, “é o leitor que deve atribuir significado a um sistema de signos e
depois decifrá-lo” (2004, p. 10), ou seja, a escolha de uma edição será sempre
tendo em vista o que o leitor procura.

REFERÊNCIAS
CUNLIFFE, Marcus. História da Literatura dos Estados Unidos. Editora Revista
Branca, 1986.

FAULKNER, William. O Som e a Fúria. São Paulo: Cosac & Naify, 2015.

FAULKNER, William. O Som e a Fúria. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

GENETTE, Gérard. Paratextos Editoriais. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

GOULART, Ilsa. FERREIRA, Norma. Relações que entremeiam leitor e livro: da


materialidade à afetividade. Álabe 12, 2015: pp. 1-16.

MANGUEL, A. Uma história da leitura. São Paulo: Cia das Letras, 2004.

SARTRE, Jean-Paul. Sobre O som e a fúria: a temporalidade imprecisa na obra


de Faulkner. In: FAULKNER, William. O Som e a Fúria. São Paulo: Companhia
das Letras, 2017.

WILLIAMSON, Joel. William Faulkner e Southern History. New York: Oxford


University Press, 1993.

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