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revisão de crenças
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O raciocínio crítico e a revisão de crenças 1
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Primeira versão. O texto se encontra em preparação. Portanto, seguramente haverá repetições, e
erros conceituais e de digitação. Caso detecte algum problema, por favor informar ao professor.
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As crenças e as redes cognitivas
Cátedra, 2021d
As crenças básicas ou invisíveis
Há dois jovens peixes nadando e, num certo momento,
encontram um peixe ancião nadando na direção oposta,
que acena para eles e diz:
–Olá, rapazes. Como está a água?
Os dois jovens peixes nadam mais um pouco, depois um
olha para o outro e pergunta:
–Água? Que diabo é isso?
David Foster Wallace
A filosofia é uma atividade crítica. O seu objeto de estudo são as crenças; Crenças
‘básicas’
todas as crenças. Seu ponto de partida é não tomar nada como “garantido”
e nada aceitar “por fé”.
Entre todo tipo de crenças, o principal alvo crítico da filosofia são as crenças
‘básicas’ ou ‘invisíveis’, i.e., as crenças ‘comuns’ dos seres humanos, crenças
geralmente consideradas ‘naturais’, ‘familiares’ –até ‘óbvias’ (cf. Stolnitz 1960).
O economista e cientista político John Kenneth Galbraith acunhou a expressão
“sabedoria convencional” ou “senso comum” (conventional wisdom) para fazer
referência às crenças básicas nas áreas sociais e humanas. Segundo esse autor,
devido à complexidade da vida social, tendemos a aderir a crenças que sejam
simples de entender, convenientes, confortáveis e que estejam de acordo com
nossos credos e valores –embora não sejam necessariamente corretas2.
9
Outro exemplo de crença invisível: “A ética depende da religião”
Às crenças básicas (ou ‘fundamentais’) dá-se, por vezes, o nome de “grandes
questões” ou “problemas fundamentais”.
O que são as crenças básicas? São crenças cuja verdade ou falsidade
determina a verdade ou falsidade de outras crenças, menos básicas (ou
‘derivadas’), que se seguem delas.
Vamos dar um exemplo clássico de crença básica: “Deus existe”.
“Deus existe” é uma crença básica (CB) de várias religiões. Dela se seguem
muitas crenças derivadas (CD), conformando, entre todas, grandes redes de
crenças. Por exemplo:
Rede de crenças da afirmação ‘Deus existe’
CB: “Deus existe”.
CD1: “Deus, o comandante divino, ditou Comandos ou Mandamentos
éticos”.
CD2: “A moralidade das nossas ações consiste em cumprir a vontade de
Deus expressa nos Mandamentos (i.e., nas invioláveis leis éticas de
Deus)”.
CD3: “Cumprir com os Mandamentos morais garante o acesso a uma outra
vida depois desta”.
CD4: “Existe uma vida depois desta”.
CD5: “Existe um Paraíso”.
CD6: “Existe uma alma imortal”.
CDn: E muitas, muitas outras crenças relacionadas...
Deus existe
Deus ditou
mandamentos morais
A moralidade consiste em
cumprir a vontade de Deus
Existe uma alma expressa em seus
imortal mandamentos morais A ética depende
Cumprir com os da religião
mandamentos morais
garante o acesso a uma
outra vida depois desta
O sentido da vida
consiste em cumprir
Existe uma outra os mandamentos
vida depois desta morais de Deus
depende da religião”.
10
A maioria das pessoas –inclusive muitas que não acreditam em Deus–
acredita que “A ética depende da religião”. Por exemplo, é comum ouvir frases
como: “A causa da imoralidade da nossa época é que as pessoas não visitam a
Casa do Senhor”...
Pausa.
Pense sobre o assunto.
–“A causa da imoralidade da nossa época é que as pessoas não visitam a Casa
do Senhor”/ não vão à igreja/ não são religiosos etc.
–Essa afirmação tem apoio empírico? Muito pouco, se considerarmos que, no
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Brasil, desde 2010 surge uma nova organização religiosa por hora! Dito de
outro modo, esse dado surpreendente pode ser utilizado para argumentar no
sentido contrário...
Por enquanto, deixaremos uma imagem, que vale mais do que mil palavras.
MATARÁS
3
<oglobo.globo.com/brasil/desde-2010-uma-nova-organizacao-religiosa-surge-por-hora-21114799>.
11
Nova pausa.
Pense sobre o assunto.
Existe algum problema nesta imagem?
Se acreditamos que “Deus, o ‘Comandante divino’, enunciou Comandos ou
Mandamentos éticos”, acreditamos que agiremos eticamente se seguirmos
esses Mandamentos. E se acreditamos que ‘Matar’ é um Mandamento moral
–algo que seria obrigatório acreditar se ‘Matar’ estivesse na lista dos
Mandamentos–, seriamos impelidos a obedecer e agir? Tudo indica que sim.
Síntese:
As pessoas sustentam, acriticamente, todo tipo de crenças (tanto básicas quanto
derivadas). E isso pode ser um grande problema cognitivo.
Qualquer crença, por estar fortemente interrelacionada a outras crenças, e bem
difícil de mudar, pois nossa identidade se sente inevitavelmente ameaçada.
(Em nossa rede de crenças, essa crença pressupõe, como já indicamos, a crença
CD2’: “A ética depende da religião”).
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Obviamente, o argumento se aplica à crença, ação, ato, mandamento etc. Por simplicidade, falarei
somente de ‘crença’.
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Em nossos dias, a crença de que a ética depende da religião é articulada na
denominada ‘Teoria do Mandamento (ou do Comandante) divino’. A ética
cristã está baseada nessa Teoria. Nessa versão, se entende que os textos
sagrados –por exemplo, os Dez mandamentos– contêm listas de deveres e
proibições. Esses mandamentos “se impõem independentemente das
consequências de cumpri-los: são deveres absolutos. Alguém que acredita ser a
Bíblia a palavra de Deus não terá dúvidas sobre os sentidos de ‘certo’ e de
‘errado’: ‘certo’ significa o que Deus quer e ‘errado’ significa qualquer coisa que
vá contra a vontade de Deus. Para esse crente, moralidade é uma questão de
seguir ordens absolutas [i.e., independentes das consequências e do contexto],
dadas pela autoridade absoluta: Deus” (Warburton, [2012]: 67-8).
Simples demais para ser verdade.
Matar é errado porque Deus disse que é errado matar. Ou seja: Deus torna o
ato de matar errado dizendo que é errado.
Mas se Deus dissesse que matar é certo,
então matar seria certo?
Você estará tentado a dizer: “Isso não pode
ser certo, pode?”. Se você continuar
pesquisando nessa direção, se adentrará,
inevitavelmente, no problema de Eutífron.
Muita gente crê que, se Deus não existe e, portanto, a ética não depende da
religião, não pode haver algo como ética ou moralidade. Eles responderiam
com um ‘sim’ definitivo à pergunta de Iván Karamázov –personagem do
romancista russo Fiodor Dostoievski: “Se Deus não existe, tudo está
permitido?”.
Será? Se (as pessoas acreditam que) Deus não existe, tudo está permitido?
Para construir uma resposta, é só procurar exemplos e contraexemplos.
Na República Checa, somente 19% de seus habitantes acreditam em algum
deus; na Polônia, país com o qual a República Checa compartilha uma extensa
fronteira, o número de crentes se eleva a 82%. Mas a porcentagem de crimes é
a mesma nos dois países, sem mencionar que os poloneses apoiam um partido
ultradireitista autoritário que, por natureza, é de valores éticos bem degradados:
anti-imigrantes, contra homossexuais, contra os direitos das mulheres,
negacionistas das responsabilidades do país no Holocausto, e poderíamos
seguir . Esse dado refuta o temor do personagem de Dostoievski?
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E agem de modo tão aberrante com boçal orgulho! Como disse a bruxa de
Shakespeare: “Se sente no ar: algo malvado vem desse lado” (Macbeth, 4.1.44-
5)... Se “o bem consiste em fazer sempre o que Deus ordena” e Deus ordenou
isso ou qualquer outra forma de discriminação, sim, algo muito ruim vem desse
lado. Ou Deus não sabe o que diz, ou o bem não consiste em fazer sempre o
que Deus ordena, ou os poloneses leram a Bíblia erroneamente ... De qualquer
forma, o que fazem é muito desumano: quem lhes dá o direito de expulsar seus
concidadãos de suas cidades? Como podem fazer sofrer desnecessariamente a
seus semelhantes? Não têm outra coisa mais interessante e construtiva para
fazer com suas próprias vidas do que intervir na vida dos outros?
Na verdade, tudo isso é detalhe: o exemplo só exibe a inevitável perversidade
que descansa na cega crença de que o bem consiste em obedecer cegamente
arbitrárias ordens cegas só pelo fato de serem cegamente declaradas sagradas.
Dito de outro modo: neste caso, o raciocínio crítico nos ajuda a ver uma
evidente prova cabal de que uma teocracia é inevitavelmente um lugar infernal.
Podemos finalizar com uma boa notícia: em março de 2021 o Parlamento
Europeu declarou que a União Europeia é “zona de liberdade para as pessoas
LGTBIQ” . Finalizar a passagem, pois a luta pelos direitos humanos só poderá
7
6 O Parlamento Europeu destaca sua profunda preocupação “com o crescente número de ataques
a lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais na UE por estados, autoridades, governos
nacionais e locais, além de políticos”. Cf.
<revistahibrida.com.br/2020/08/05/polonia-promove-campanha-para-pais-adotar-zonas-livres-de-
lgbts/>, <observador.pt/2019/07/31/jornal-distribui-autocolantes-com-a-frase-zona-livre-de-gays-na-
polonia>, <www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/07/europa-corta-verba-de-cidades-polonesas-que-
discriminam-gays.shtml>, <terra.com.br/noticias/parlamento-europeu-condena-zonas-livres-de-
ideologia-lgbt-na-polonia,e88ce3aa09ea2f447919b8b9b52a77d4vxsz37on.html>.
7
<elpais.com/internacional/2021-03-11/el-parlamento-europeo-declara-la-ue-zona-de-libertad-para-
las-personas-lgtbiq.html>.
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que apedrejá-los, tal como é ordenado (Levítico 24: 10-16)?
Um texto da Internet levanta perguntas profundas sobre como seguir essa
classe de ordens: “Levítico 21:20 afirma que eu não posso me aproximar do
altar de Deus se eu tiver algum defeito na visão. Eu admito que uso óculos para
ler. A minha visão tem mesmo que ser 100%, ou pode-se dar um jeitinho? Meu
tio tem uma horta. Ele viola uma ordem (Levítico 19:19), pois planta dois tipos
diferentes de vegetais no mesmo campo. A sua esposa também viola uma
ordem divina (Levítico 19:19), porque usa roupas feitas de dois tipos diferentes
de tecido (algodão e poliéster). Ele também tende a blasfemar muito. É
realmente necessário que eu chame toda a cidade para apedrejá-los, tal como é
ordenado (Levítico 24:10-16)?”.
“A Bíblia diz ainda que a barba não deve ser aparada nos cantos (19:27) e
que é permitido comprar escravos dos estados vizinhos (25:44). Há muito mais,
mas isso é o bastante para dar uma ideia” . 8
Pausa longuíssima.
Pense sobre o assunto.
A crença básica é: O bem consiste em fazer sempre o que Deus ordena.
Deus é o Comandante, e ele sabe o que ordena.
Não é simples demais para ser verdade?
Como Ele sabe o que ordenar?
E se, como sugere o filme Uma louca história do mundo, Moisés
tivesse tropeçado descendo do monte, e quebrado uma das três tábuas
originais...?9 Haveria cinco mandamentos que quebramos diariamente
sem sequer saber?
8
Cf. James Rachels, “Ethics and The Bible”, Think: Philosophy for Everyone 1, 93-101,
<bradpriddy.com/rachels/bible.pdf>.
9
Uma louca história do mundo (Mel Brooks, 1981, History of the World, Part I); ver:
<www.youtube.com/watch?v=Sj89D-PHc8M>.
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Sócrates e o exame das crenças
Sócrates (469-399 a.C.) é o primeiro grande pensador sobre questões éticas. Nos
livros de Platão (429-347 a.C.), escritos na forma de diálogos, Sócrates caminha
pelas ruas de Atenas questionando seus concidadãos sobre o significado de
conceitos como justiça, piedade, coragem, amizade, amor, conhecimento etc.
Sócrates indaga os fundamentos das crenças de seus interlocutores, esclarecendo
conceitos e explicitando as contradições de suas formas de pensar. Esses são os
elementos básicos do denominado “Método socrático (Elenchus)”:
“No método socrático [...] uma proposição aceita pelo interlocutor é testada
diante do conjunto de suas crenças com o objetivo de verificar a consistência do
todo. Fazendo perguntas, Sócrates buscava determinar se a primeira afirmação de
seu interlocutor era consistente ou inconsistente com as posteriores” 10.
Nos diálogos, os interlocutores de Sócrates percebem rapidamente que suas
crenças sobre um assunto, minutos antes tão firmes, estão apoiadas em bases
pouco sólidas; em preconceitos, não em conceitos bem justificados com razões
firmes. A reação típica do interlocutor de Sócrates era a de dar uma desculpa
pouco verossímil e se distanciar o mais rapidamente possível do lugar...
Sócrates deu início à Ética ou Filosofia moral. Esta disciplina, como bem
observa Warburton, longe de ficar restrita a uma pequena área de interesse
acadêmico, atinge igualmente a todos:
“O que faz com que uma ação seja boa ou má? Que queremos dizer quando
afirmamos que alguém devia ou não devia fazer qualquer coisa? Como devemos
viver? Como devemos tratar as outras pessoas? Estas são as questões
fundamentais que os filósofos têm discutido há milhares de anos. Se não
pudermos dizer por que razão coisas como a tortura, o assassinato, a crueldade,
a escravidão, o estupro e o roubo são eticamente erradas, que justificação
podemos ter para as impedir? É a moral unicamente uma questão de
preconceito, ou poderemos dar boas razões a favor das nossas crenças morais? A
10
Cf. Kleinman 2016. “O método socrático ainda é bastante utilizado, principalmente nas
faculdades de direito dos Estados Unidos. Primeiro, pede-se ao aluno que resuma o argumento de
um juiz. Em seguida, pergunta-se a ele se concorda com aquele argumento. O professor, então, atua
como “advogado do diabo”, levantando uma série de questões para fazer com que o estudante
defenda sua decisão.
Ao aplicar o método socrático, os estudantes podem começar a pensar criticamente, usando a
lógica e a razão para criar seus argumentos e procurar e identificar as falhas em seus
posicionamentos” (cf. Kleinman 2016).
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área da filosofia que trata destas questões é usualmente conhecida quer como
Ética quer como Filosofia moral” ([1992]: 71; grifo meu).
Comentários:
Existe uma enorme bibliografia sobre raciocínio crítico e ética. O aluno de
direito pode achar alguns dos livros interessantes:
Stanlick, Nancy; Strawser, Michael, 2015, Asking Good Questions: Case Studies in Ethics and
Critical Thinking, Hackett, Indianapolis.
Caruan Louis, 2006, Science And Virtue: An Essay on the Impact of the Scientific Mentality
on Moral Character.
Hoffmaster, Barry et al., 2018, Re-Reasoning Ethics: The Rationality Of Deliberation and
Judgment in Ethics.
Lafollette, Hugh, 2013, International Encyclopedia of Ethics: Practical Reasoning.
Head, Michael; Mann, Scott, 2005, Law in Perspective: Ethics, Society, And Critical Thinking.
Nobis, Nathan, 2018, Animals and Ethics 101, Thinking Critically About Animal Rights.
De fato, a maioria dos livros sobre raciocínio crítico tem um capítulo dedicado
a questões éticas e um capítulo dedicado a questões jurídicas. Cf., por exemplo,
Lavery, Jonathan; Hughes, William; Doran, Katheryn, 2015, Critical Thinking: an
Introduction to the Basic Skills. (Cáp. 12: “Moral Reasoning”; Cáp. 13: “Legal
Reasoning”).
Observemos, também, que existe uma diferença radical entre essa concepção
de Ética e aquela sustentada por quem acredita na Teoria do Mandamento
divino (crença da qual, como vimos, se segue outra crença: “A ética depende da
religião” ou, de modo mais simples, “O bem consiste em fazer sempre o que
Deus ordena”).
Para o pensador crítico, a ética depende de dar boas razões a favor de uma
crença ou uma ação; caso contrário, é um preconceito ou uma arbitrariedade.
Raciocínio crítico puro e aplicado para orientar a boa vida. A Ética à qual os
filósofos gregos dão início tem a mesma base que a ética que os pensadores
iluministas adotam partir do século XVII. Hoje essa ética é defendida pelas
pessoas que abraçam uma Ética ‘laica’ ou ‘humanista’ ou ‘secular’. Em síntese,
uma Ética baseada em valores como verdade, razão, humanismo, compaixão,
igualdade, liberdade e responsabilidade.
Em contraposição, para alguns religiosos a ética depende de seguir ordens
absolutas –i.e., independentes das consequências e do contexto–, ordens dadas
por uma autoridade absoluta. Pensamento religioso/ autoritário em sua máxima
expressão. O problema com esta última concepção é que qualquer pessoa que
não tiver sua mente ofuscada por um viés cognitivo religioso ou autoritário não
se sentirá conforme com ela. “Qual autoridade absoluta? Por que D é uma
autoridade absoluta? Como D sabe o que diz saber? Por que D e não W, X, Y
18
ou milhares de outros deuses?”...
Sócrates dizia que o maior mal moral é o exercido pela pessoa que acredita
que sabe o que é moral quando em realidade não sabe (só acredita sem saber,
porque não pode dar boas razões em favor do que acredita saber) (cf. Schwartz,
1966: 67). A presunção do religioso Eutífron, como veremos, é precisamente
essa; ele diz saber, e “com exatidão”, “o que é [moralmente] correto e
incorreto”. Mas Eutífron não é capaz de responder a nenhuma das objeções
que lhe faz Sócrates, que só demandam dele uma explicação ou justificação da
ordem moral em que acredita e que o leva a agir injustamente. Dito de modo
simples: Eutífron acredita, mas não sabe, porque não pode justificar aquilo que
acredita.
Não é necessário voltar à Grécia antiga para achar exemplos dessa presunção.
Se soubermos olhar, encontraremos muitos casos quotidianos! Título de
matéria de jornal: “Pastor ora pela morte de [comediante]” . Que título 11
11
Cf. <terra.com.br/diversao/gente/pastor-que-ora-pela-morte-de-paulo-gustavo-sera-processado,
01434ee92a1e99c77933de160b8e2e843pyz4eip.html>,
<congressoemfoco.uol.com.br/saude/pastor-que-ora-pela-morte-de-paulo-gustavo-sera-processado-
por-homofobia/>.
12
Cf. <f5.folha.uol.com.br/celebridades/2021/04/pastor-pede-perdao-ao-desejar-a-morte-de-paulo-
gustavo-tentei-defender-a-honra-de-deus.shtml>.
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ordens absolutas de uma autoridade absoluta” não parece ter justificação, nem
precisar de justificação. Só, obviamente, da autoritária afirmação injustificada:
“A autoridade absoluta é a absoluta justificação”. Mas, nesse caso, em um
mundo sem vieses tal autoridade absoluta teria que falar com a razão e com as
outras (supostas) autoridades religiosas ou éticas: Por que ele é uma autoridade
absoluta? Como tal autoridade sabe o que diz saber? Que razões eu tenho para
acreditar nessa autoridade absoluta –afinal, há tantas neste mundo tão extenso e
diverso! Por que eu teria que acreditar em alguma autoridade absoluta? E
haveria muitas questões mais...
O interessante –e incômodo– das questões morais é que mesmo não sendo
nós que tenhamos agido i/moralmente, igualmente entramos em uma dimensão
moral quando somos testemunhas próximas de um ato i/moral. E neste caso
gera curiosidade: os fiéis da igreja do pastor abandonarão a igreja ou apoiarão o
dito “líder religioso”? Olhar para outro lado parece uma terceira via obvia, mas
–e nisso radica o incômodo da Ética– é uma atitude imoral.
Uma ponderação filosófica exige que sejam explicitadas as (boas) razões em
favor de uma afirmação. Sem boas razões, não há juízo ético. O ‘dilema de
Eutífron’ apresentado por Sócrates põe em evidência essa questão.
A vida nos leva sempre a ter que tomar decisões éticas, seja no plano
existencial, seja no plano social. Portanto as respostas e, principalmente, os
fundamentos que orientem nossas respostas teóricas e práticas à questão ‘como
devemos viver?’ serão fundamentais para nossa qualidade de vida.
Um precedente histórico
A ética laica ou humanista entende que não é necessário (nem suficiente) ter
religião para ter virtude moral. Temos à nossa disposição fontes de orientação
ética: bom senso, raciocínio, piedade natural etc. Mas, o que significa dizer que a
piedade natural, por exemplo, pode guiar a uma virtude moral? A piedade
(pietas), a comiseração, a pena dos males alheios é, para muitos pensadores, um
sentimento universal e natural. Com diferentes conceitos –‘amizade’ (Aristóteles),
‘humanidade’ (Cícero), ‘piedade’ (Rousseau), ‘compaixão’ (Schopenhauer)–
muitos filósofos defenderam essa ideia.
Podemos esclarecer a questão fazendo uma fugaz viagem à antiga China. Ali, no
século IV antes de nossa era, o filósofo Mêncio afirmou que qualquer pessoa que
visse uma criança a ponto de cair em um precipício, correria para salvá-la. E faria
isso imediatamente, automaticamente, sem se questionar sobre qual é a cor, a
condição social ou a religião da criança. Esse impulso solidário é instintivo,
destacou Mêncio; tem sua origem na piedade natural, que é o ponto de partida
de nossas condutas éticas (cf. Droit [2009]: III).
Acho que o ponto em questão no exemplo de Mêncio é que nossas condutas
éticas não provêm da consulta de livros de mandamentos religiosos. Isso fica
claro se pensarmos em áreas da ética contemporâneas que incluem reflexões
sobre nossa relação com outras espécies ou com humanos ainda não nascidos.
Toda pessoa sensível coincidirá que “é cruel” fazer sofrer um cachorro, ou que
20
“é imoral” poluir o planeta que herdarão futuras gerações. Ou, reescrevendo o
que foi dito anteriormente de um modo mais objetivo: se uma pessoa afirmar
que “é cruel” fazer sofrer um cachorro, ou que “é imoral” poluir o planeta que
herdarão futuras gerações, poderemos ou não coincidir com ela, mas com
certeza qualificaríamos suas afirmações como ‘éticas’. A questão é que essa
pessoa dificilmente encontrará algum preceito explícito sobre esses assuntos nos
tratados religiosos clássicos. Mêncio, aliás, observou que nossa piedade se faz
extensiva aos animais, dando alguns passos iniciais em direção a uma ‘ética
animal’...
Atividade prática
Quem habita este planeta não é o Homem, mas os homens. A
pluralidade é a lei da Terra.
Hanna Arendt, A vida do espírito
A ética humanista, em contraste com a ética autoritária, pode distinguir-
se dela por um critério formal e outro material. Formalmente baseia-se
no princípio de que só o homem por si mesmo pode determinar o
critério de virtude e pecado, e não uma autoridade que o transcenda.
Materialmente baseia-se no princípio de que ‘bom’ é o que é bom para
o homem e ‘mau’ o que lhe é nocivo, sendo o bem-estar do homem o
único critério de valor ético.
Erich Fromm, Ética e psicanálise
Humanizamos o que ocorre no mundo e em nós mesmos apenas ao
falar disso, e no curso da fala aprendemos a ser humanos.
Hanna Arendt, Homens em tempos sombrios, 33-4
Até aqui vimos que existe uma grande diferença entre duas visões de Ética. A
que podemos denominar Ética laica ou humanista (que não é, em absoluto,
anti-religiosa) e a Ética religiosa ou autoritária (que é difícil negar que não se
incomode com os princípios pluralistas da Ética laica).
A seguir, você poderá ler um fragmento de um texto do historiador Y.
Harari, que confronta essas duas Éticas. Na parte final do fragmento escolhido,
ele compara decisões baseadas na compaixão, valor central da Ética laica, e
decisões baseadas na obediência à autoridade, fundamento da Ética religiosa, e
comenta: “Existe algo profundamente perturbador e perigoso no que tange a
pessoas que evitam matar só porque ‘Deus diz assim’”. Você acha que um
praticante radical da Ética religiosa tem como fugir de que um observador
externo, como Harari, faça um comentário dessa classe?
“[...] O que é o ideal laico ou secular? O compromisso secular mais importante é
com a verdade, que se baseia em observação e evidência e não na fé. Os
seculares esforçam-se para não confundir verdade com crença. Se você tem uma
crença muito forte numa narrativa, isso pode revelar muitas coisas interessantes
sobre a sua psicologia, sua infância e sua estrutura cerebral –mas não prova que
essa narrativa é verdadeira. (Muitas vezes, crenças fortes são necessárias
justamente porque a narrativa não é verdadeira).
21
Além disso, seculares não santificam nenhum grupo, nenhuma pessoa ou
nenhum livro como se ele ou ela, e só ele ou ela, tivesse a custódia única da
verdade. Em vez disso, santificam a verdade onde quer que ela possa se revelar –
em antigos ossos fossilizados, em imagens de galáxias distantes, em quadros de
dados estatísticos, ou nos escritos de várias tradições humanas. O compromisso
com a verdade fundamenta a ciência moderna, que capacitou o homem a
fissionar o átomo, decifrar o genoma, rastrear a evolução da vida e compreender
a história da própria humanidade.
O outro compromisso básico das pessoas seculares é com a compaixão. A ética
secular baseia-se não em obedecer aos preceitos deste ou daquele deus, e sim
numa profunda apreciação do sofrimento. Por exemplo, pessoas seculares
abstêm-se de assassinar não porque algum livro antigo proíbe, mas porque o ato
de matar inflige imenso sofrimento a seres sencientes. Existe algo profundamente
perturbador e perigoso no que tange a pessoas que evitam matar só porque
“Deus diz assim”. São pessoas motivadas mais por obediência do que por
compaixão, e o que farão elas se vierem a acreditar que seu deus lhes ordena que
matem hereges, bruxas, adúlteros ou estrangeiros? [...].
Harari, Yuval, 2018, “Secularismo: tenha consciência de sua sombra”
Atividade prática II
Ludwig Feuerbach afirmou: “Quando a moral se torna dependente da autoridade divina, as
coisas mais imorais, injustas e infames podem ser justificadas e estabelecidas” ([1841]: 314).
A frase faz sentido?
Pausa.
Pense sobre o assunto.
Você acredita que a ética depende da religião? Caso você acredite nisso,
poderia justificar sua crença respondendo a objeção de Sócrates?
Um dilema!
Não é nada bom ter um [touro agarrado pelos
chifres]: você não sabe nem como soltá-lo nem
como continuar segurando-o.
Terêncio Afro, c. 160 a.C., Phormio, 506
Dilema, lembremos, é uma situação problemática na qual é preciso escolher entre
duas alternativas contraditórias e igualmente inaceitáveis. O nome original do dilema
é “raciocínio dedutivo com dois chifres (syllogismus cornutus)”, devido à difícil
situação na qual se encontra quem o enfrenta.
Eutífron se encontra perante duas situações indesejáveis, [A] e [B]. Se [B], então o
que quer que seja bom é bom sem importar a opinião dos deuses. Se [A], então os
deuses poderiam, em vez disso, ordenar outra conduta.
Na situação [B], os deuses não têm função alguma no estabelecimento dos
valores morais: a moralidade é independente da religião. Na situação [A], os deuses
têm uma função instável: a moralidade é arbitrária.
23
Em síntese: quando se trata de moralidade, ou Deus é arbitrário ou Deus é
desnecessário.
Detonando Eutífron...
Ao longo do Diálogo Eutífron, à medida que Sócrates desenvolve seus
argumentos, vemos um Eutífron cada vez mais constrangido, tentando ajustar
sua definição, ‘afundando-se’ cada vez mais. A decepção e desilusão de
Sócrates no diálogo final pode nos dar uma ideia do resultado desse exame:
Sócrates: –Você acredita saber com precisão o que é [moralmente correto];
portanto, caro Eutífron, não me ocultes o que é.
Eutífron: –Em outra ocasião, oh Sócrates; agora tenho pressa, é tempo de eu
ir embora.
Sócrates: –O que você faz, amigo? Se retira levando com você minha grande
esperança de aprender o que é [moralmente correto]! (Eutífron, 15e).
24
Por que é difícil revisar crenças?
Voltemos a considerar a rede hierárquica apresentada acima.
Suponha que você acredita na crença básica ‘Deus existe’. Consegue
imaginar como seria a sua vida se, num dado momento, deixasse de acreditar
que Deus existe? Talvez você mudaria a sua relação com outras pessoas.
Possivelmente você mudaria sua relação com as instituições religiosas. A sua
crença em que “A ética depende da religião”, por exemplo, deveria ser
modificada. Você poderia, por exemplo, concluir que “tudo está permitido”, ou
tentar julgar a moralidade pela razão. Existem várias possibilidades. Mas o
ponto aqui é que revisar essa crença básica não nos resulta conveniente ou
confortável, porque altera nossa cosmovisão.
Quando observada no sentido inverso, i.e., da crença derivada à crença
básica, a rede revela outro obstáculo ao processo de revisão de crenças: se
fossemos convencidos pelo argumento de Sócrates de que “A ética não
depende da religião”, teríamos que rever (ou reorganizar) a crença básica que
fundamenta a crença derivada CD ’: ‘Deus existe’. Mas isso, evidentemente,
2
–Droit, Roger-Pol, [2009], Ética: uma primeira conversa, Martins Fontes, S.P., 2012.
***
25
Epicteto e o padrão para pesar crenças 13
Resumo: A busca de um padrão ou método para avaliar crenças tem uma longa
história. Epicteto foi um dos primeiros autores a explicitar claramente a importância
dessa busca. Neste trabalho, analiso uma passagem de seu livro Dissertações, na qual
ele sintetiza seu pensamento sobre o assunto.
Palavras-chave: Epicteto, método, raciocínio crítico, crenças.
Abstract: The search for a rule or method for evaluating beliefs has a long history.
Epictetus was one of the first authors to clearly explain the importance of this search. In
this paper I analyze a passage from his book Discourses, where he synthesizes his
thoughts on the subject.
Key-words: Epictetus, Method, Critical reasoning, Beliefs.
13
Artigo publicado na Revista O Manguezal. Menna, Sergio Hugo, “Epicteto e o padrão para pesar
crenças”, O Manguezal – Revista de filosofia 5, 192-201, 2020, E-ISSN: 2674-727.
14
Epicteto, [c. 135], Dissertações, 2.11.13-15. Daqui em diante, a referência (n.n.n) remete,
respectivamente, aos números do livro, da parte e da(s) linha(s) extraídas das Dissertações de
Epicteto, e a referência (M n.n) remete, respectivamente, a ‘Manual’, e aos números do capítulo e
da seção do Manual (Encheirídion) desse autor.
Agradeço ao prof. Aldo Dinucci pelos esclarecimentos sobre os termos técnicos em grego.
26
formação cidadã, porém, sempre, crenças. Crenças ruins, crenças falsas,
crenças errôneas, crenças irracionais, crenças invisíveis, crenças às vezes nativas
e crenças muitas vezes implantadas e sempre manipuladas para serem
operativas nas mentes de seus ingênuos portadores. Mas, em todos os casos,
crenças. Crenças, crenças, crenças.
Terêncio, um dramaturgo romano do século II, escreveu em sua comédia
Phormio: “Muitos homens, muitas crenças”. Erasmus deixou registrado que
essa frase foi muito popular no Renascimento, e dramaturgos, poetas e
pensadores, desde aqueles tempos até nossos dias, não deixaram de destacar
esses fatos correlatos: as pessoas são diferentes e, portanto, têm crenças
diferentes. “Alguns homens se deleitam com certas coisas; outros com outras”,
comenta Homero na Odisseia; “Os homens são de mil tipos diferentes e muito
variadas são as histórias de suas vidas: cada um tem seus próprios desejos”,
afirma o poeta latino Persius (Satires 5.52-5). E poderíamos continuar
acumulando frases de diferentes épocas e lugares com afirmações
semelhantes...
O aforismo de Terêncio, “Muitos homens, muitas crenças”, é bem
interessante. Sugere que os desejos e as preferências pessoais decidem as
crenças que cada um sustenta. Mas também insinua que da diversidade de
crenças inevitavelmente se seguem desacordos. Epicteto, um escravo que
chegou a ser o maior pensador do século II, explicitou essa implicação:
“Existem conflitos entre as crenças dos homens” (2.11.13).
O padrão de juízo
Filósofos antigos e metodólogos modernos entenderam que esses conflitos
poderiam ser resolvidos (ou, pelo menos, atenuados) se fosse possível
encontrar ou construir um método –um “padrão de juízo”, um procedimento,
uma forma de raciocínio– que pudesse diferenciar as boas crenças das crenças
ruins; ou seja, se tivéssemos um critério ou um conjunto de critérios que
permitisse classificar as crenças em função de sua proximidade com a verdade.
Com esse procedimento todos adotaríamos crenças confiáveis, e as relações
entre as pessoas tenderiam à harmonia e não ao conflito ou à guerra. Assim,
uma crença que representasse adequadamente a realidade seria reconhecida
como ‘conhecimento’; uma crença que não retratasse com precisão a realidade
continuaria sendo considerada uma ‘mera crença’ e catalogada como um erro,
uma falsidade, ou, até, como uma ilusão ou um delírio. “Se aquilo que é justo o
fosse para todos/ não existiriam conflitos entre os homens”, sintetizou o grande
poeta Eurípides. O “padrão de juízo” –o “raciocínio crítico”, em termos
contemporâneos– poderia mostrar a todos o que é justo, o que é verdadeiro e o
que é belo.
Lembremos, a modo de exemplo, que Anaxágoras acredita que ‘A Terra é
plana’ e que Sócrates acredita que ‘A Terra é redonda’. Existe, evidentemente,
27
“um conflito” entre essas crenças, e uma potencial disputa entre Anaxágoras e
Sócrates. Segundo os filósofos e metodólogos mencionados, se tivéssemos um
padrão de juízo que permitisse ponderar, julgar e avaliar adequadamente essas
crenças e, consequentemente, determinar qual delas é a melhor, poderíamos
diferenciar a realidade da aparência e o conhecimento da crença, e o conflito
ficaria resolvido. Neste caso, o padrão consistiria em uma simples experiência:
“Observemos esses barcos que estão partindo do porto. Se a Terra for plana, os
barcos diminuirão de tamanho na medida em que se afastam da costa; se a
Terra for redonda, os barcos ‘afundarão’ na medida em que se distanciam de
onde nós estamos: primeiro deixaremos de ver o casco; só depois, lentamente,
o mastro sumirá de nossa vista”. Essa experiência, e o raciocínio construído a
partir dela, constituem o padrão de juízo que resolve a questão. A qualidade
epistêmica da afirmação ‘A Terra é redonda’ seria apreciada com justeza por
todos, assim como a de qualquer outra afirmação sobre a realidade. Desse
modo “Não existiriam conflitos entre os homens”, idealmente, sobre nenhum
assunto...
O padrão de juízo teria outra utilidade quase tão importante quanto a de
evitar os conflitos. Ao permitir, digamos, “diferenciar o fato da ficção e o
verdadeiro do falso”, evitaria que as pessoas se extraviassem na irrealidade.
Epicteto capta essa função com toda claridade: “O padrão, quando encontrado,
resgatará da loucura aqueles que usam a sua opinião ou ‘parecer’ como medida
de tudo” (2.11.18). Com essas observações, ele extrai um corolário do que
sucede àqueles que abraçam crenças sem tentar estabelecer contato com a
verdade: se alienam da realidade, desejam o que não depende deles e tentam
fazer o impossível; por último, entram nos becos sem saída do delírio e da
alienação. E até de algo pior: “Até as grandes atrocidades têm como origem a
aparência” (1.28.11), observa ele pensando nas velhas atitudes tirânicas –nós
podemos atualizar essa observação pensando nas atuais atitudes fascistas. Ou
seja, Epicteto e outros pensadores da época compreenderam que só uma razão
desenvolvida na forma de padrões racionais –de raciocínio crítico, digamos–
pode avaliar a realidade com clareza e distinção e, consequentemente, nos
distanciar das aparências e, portanto, da alienação. Essa concepção é
importante, porque explicita que o exercício da razão e do raciocínio crítico –
que costumam ser reduzidos a uma mera exposição de um argumento técnico
que sustenta uma simples e inocente conclusão– nos distancia da loucura assim
como da violência e da intolerância. A tarefa racional e crítica é, portanto,
essencial. Epicteto capta essa questão com absoluta lucidez: “A luta [pela razão]
não é por algo banal, mas por ficar louco ou não” (fr. 28, apud Marco Aurélio,
[c. 180]: XI.38). Com essa concepção, Epicteto dá um tom polêmico à questão,
concepção que, poderíamos dizer, adquire muita atualidade em nossos dias.
28
A crença na crença
A busca por um ‘padrão de juízo’, i.e., por um método racional, teve uma longa
e criativa história. Valorizemos esse projeto ambicioso –e generoso– refletindo
novamente sobre sua proposta. Os conflitos humanos têm sua origem nos
choques entre crenças opostas, certo? Certo. Um padrão que possibilitasse
avaliar crenças rivais permitiria distinguir as crenças em função de sua
qualidade, certo? Certo. Então, se conseguíssemos encontrar um padrão
racional, todos os conflitos seriam dissolvidos, e a loucura, “a desconfiança
mútua” e o ódio poderiam ser abolidos, certo?
Nem tanto. Ironicamente, pensadores, filósofos e cientistas resolveram a
parte que parecia mais difícil da equação: encontrar um padrão de juízo que
pudesse diferenciar as boas crenças das crenças ruins. Mas, infelizmente, a
própria história revela que tal padrão não serviu muito para o objetivo de
resolver definitivamente os conflitos existentes “entre as crenças dos homens”
ou para tirá-los do delírio. Basicamente, porque aqueles que sustentam crenças
acreditam em narrativas que lhes resultam emocionalmente confortantes –
“acreditam na crença”, não nos padrões racionais para avaliar crenças e os fatos
que as sustentam. Porque constroem sua visão de mundo a partir da tradição
acrítica, da autoridade manipuladora ou de uma politizada e, por isso,
degradada religião.
Esse fracasso parcial do projeto de construir padrões racionais para ponderar
crenças, entretanto, não deve nos fazer esquecer do seu valor: graças à aplicação
sistemática de padrões de juízo como o raciocínio crítico e o método científico,
muitas pessoas no mundo humanizado cuidaram e cuidam adequadamente de
si mesmas e de sua comunidade. Hoje, por exemplo, podemos sustentar, e com
excelentes argumentos, que a Terra é redonda e, com evidências incontestáveis,
que jejum, preces e cloroquina não curam a Covid-19, e muitos outros itens de
conhecimento registrados nos livros didáticos e nas enciclopédias. Portanto, é
uma boa ideia dedicar um pouco de nosso tempo a compreender o que é um
padrão racional, ou, em termos mais contemporâneos, o raciocínio crítico, e
porque ele é importante para nossa vida e nossa qualidade de vida.
30
[8] E por que, então, não o buscamos? E por que depois de descoberto não o
utilizamos? [9] O padrão, quando encontrado, resgatará da loucura aqueles que
usam a sua opinião ou ‘parecer’ como medida de tudo. [10] Por quê? Porque
com o padrão eles poderão, partindo de princípios e conceitos claramente
definidos, examinar e julgar todos os casos particulares.
–Que assunto cabe pesquisar?
–O prazer.
–Submetam-no ao padrão, coloquem-no na balança. [...].
[11] É desse modo que se julgam e ponderam os assuntos depois de dispor de
padrões. [12] E é nisso que consiste a filosofia: em identificar e estabelecer os
padrões; [12.1] fazer uso deles depois de conhecidos é a atividade da pessoa
sábia e boa” (Diss., 2.11.13-20; itálico meu).
Por quê?
Criancinha Casimiro: –Porque minha avó contou isso para a minha mãe, e
minha mãe disse para mim.
Esta conversa imaginária com o poeta Casimiro de Abreu (quando criança) nos
oferece um exemplo (parcialmente) real. Casimiro (quando adulto) deixa claro,
em seu poema “Deus”, que começou a acreditar em Deus porque sua mãe lhe
disse que Ele existia (cf. [1853]). Sua mãe nada lhe disse, segundo sabemos,
sobre Papai Noel (nessa época essa crença não estava incluída na cesta básica
da tradição). Mas Xuxa, nossa querida Rainha dos baixinhos, em sua canção
“Papai Noel existe” exprime o ‘clima de opinião’ fazendo as criancinhas
cantarem “Papai Noel existe!”, perpetuando acriticamente essa crença.
Acreditar cegamente na Xuxa e nas autoridades, é uma boa forma de adotar
crenças?
Até o momento, falamos de duas fontes de crenças: os sentidos e a
autoridade. Mas, é claro, existem muitas fontes mais. Por exemplo, também
acreditamos por tradição. Seguimos os preceitos da nossa família ou da nossa
‘tribo’; achamos normal o que elas acham ‘normal’, só por estarmos
familiarizados com suas crenças, que por isso tornamos nossas.
Aprendemos a acreditar na tradição de acreditar na tradição. Aqui podemos
fazer uma pausa para revelar que essa fonte de crença é, também, fonte de
conflito: do mesmo modo em que achamos ‘normal’ um preceito moral
herdado de nossa tradição, acharemos ‘anormal’ (e até ‘imoral’) um preceito
moral muito diferente de pessoas de outras tradições –elas, por sua vez,
seguramente acharão ‘anormal’ (e até ‘imoral’) algum dos nossos ‘muito
normais’ preceitos morais. Conflito. Se não estivéssemos habituados a achar
que a tradição acrítica como forma de fixação de crenças é ‘normal’,
32
reconheceríamos que esse procedimento é muito ‘anormal’.
Sim; vistos de perto, tradição e autoridade são procedimentos de adoção de
crenças realmente estranhos –e, enquanto acríticos, potencialmente perigosas e
cruéis. Por isso, até que não ‘examinemos’ nossas vidas –i.e., enquanto
continuarmos sem revisar criticamente nossas crenças e as fontes dessas
crenças–, continuaremos vivendo como escravos (inconscientes) das tradições e
autoridades que por (des)ventura adotemos como ‘nossas’.
Um exemplo invisível
É importante ter em mente que para pensar soluções para
uma realidade, devemos tirá-la da invisibilidade.
Djamila Ribeiro
15
“Eu sou eu; eu estou onde está a minha escolha de vida”, disse Epicteto enfatizando a importância
do conceito (2.22.20). Com a expressão ‘escolha de vida’ (prohairesis), Epicteto pretende qualificar
aquelas decisões vitais através das quais expressamos nosso juízo –e, também, nossa liberdade e
nossa responsabilidade (cf. 1.17.18 e M 1.4, 1.9). A escolha vital é uma decisão racional e ética (e
existencial). Deriva da compreensão de uma distinção que veremos mais para frente: a que se segue
da discriminação racional entre as coisas que dependem de nós –tais como decidir livremente– e as
coisas que não dependem de nós –tais como as opiniões que os demais tem sobre nós. Uma vez
que internalizamos essa distinção, compreendemos que nós somos os únicos responsáveis das
coisas que dependem de nós, e que, portanto, nós e somente nós somos os únicos responsáveis de
que um curso de ação regido por uma crença siga, ou não, o seu rumo.
Para o conceito de ‘escolha de vida’, cf. Hadot, 2015.
16
Sobre o autoexame crítico do racismo, cf. Rodrigues, 2020. Recomendo fortemente o texto. A
autora segue as orientações da ‘desconstrução’, e faz uma “crítica à suposição da neutralidade dos
discursos”, crítica que lhe permite ver que “quem continua pretendendo se ver como neutro ou
neutra é quem, por acreditar que não tem cor, pode continuar oprimindo –seja as pessoas negras,
seja as pessoas brancas subalternizadas– por uma suposta neutralidade do saber”.
33
crenças culturalmente sancionadas”, i.e., de crenças que não reconhecemos
porque estão ‘naturalizadas’, porque formam parte da água em que nadamos, do
ar que respiramos, do modo em que vemos o mundo (Wellman, 1977: xviii,
apud King, 2013: 215). O racismo invisível –como qualquer outro ‘ismo’ invisível
construído pelos fios sutis de imperceptíveis crenças culturalmente incorporadas–
, é bem pernicioso, pois é difícil de identificar –principalmente em nós mesmos–
e, portanto, de erradicar17. Ele é, como afirma uma especialista no tema, “um
hábito acrítico da mente (que inclui percepções, atitudes, suposições e crenças)
que justifica a desigualdade e a exploração ao aceitar a ordem existente como
dada” (King, 2013: 217; grifo meu).
Com o pano de fundo dessa e de outras invisibilidades, é impossível construir
uma sociedade igualitária, justa e democrática. Por isso um processo educativo
baseado no raciocínio crítico e na sensibilidade social são indispensáveis.
Infelizmente, como observa essa pesquisadora, para realizar essa tarefa é preciso
ter formação crítica “em lógica, ética e reflexão”, formação “que a maioria das
pessoas não recebe, nem mesmo para capacitá-las a analisar anúncios
publicitários”. “Não somos educados para o nosso próprio interesse”, sentencia
ela de modo contundente (King, 2015: 658).
17
Para fazer referência ao conceito de ‘racismo’ como “expressão de crenças culturalmente
sancionadas”, utilizo o termo intuitivo ‘invisível’ e não termos mais técnicos como ‘estrutural’,
‘desconsciente’ ou ‘inconsciente’, pois suponho que esses termos técnicos têm nuances que
apontam a aspectos mais complexos do que aqueles que estou apresentando. Sou bem ciente –e
consciente– de que estou utilizando um exemplo de uma área que conheço pouco, mas me arrisco
a explorá-lo porque achei o exemplo expressivo, e porque entendo que se ajusta perfeitamente à
abordagem geral do meu texto.
34
inadvertidamente as impomos. Só depois estaremos em condições de
identificar algum ‘padrão’ –método, procedimento, raciocínio– que nos permita
determinar quais crenças funcionam e quais crenças não funcionam (no sentido
ético e no sentido epistêmico).
Permitir ou não permitir que uma crença fixada em nosso sistema cognitivo
determine sentimentos e ações, é uma escolha fundamental de vida que
impacta em nossa mente e em nossa possibilidade de liberdade, e que depende
de nossa responsabilidade. As crenças estão lá, ancoradas em nossa mente.
Poderíamos estar tentados a nos defender dizendo que nós não somos
culpados de que estejam onde estão: fomos educados para o racismo e para
outras formas de discriminação; fomos educados, como alerta Kant, para
obedecer a voz de ordem ‘Não raciocine: marche!’, ‘Não raciocine: pague!’,
‘Não raciocine: acredite!’; em nossa história pessoal nos foram “sobrepostas”
camadas e mais camadas de categorias artificiais que nos concedem uma fugaz e
ilusória superioridade, ao tempo que nos empobrecem existencialmente. E é
correto; as camadas sobrepostas de preconceitos com que fomos educados
começaram a se acumular em nosso cenário mental em uma etapa em que não
tínhamos ‘pleno uso da razão’. Mas, hoje, ‘em perfeito uso de nossas faculdades
racionais’, é parte da nossa decisão vital sermos cientes de que as crenças nunca
são inofensivas e que, gostemos ou não, nos constituem.
As crenças sempre determinam o que fazemos e o que sentimos.
“Deixaremos que antigas e silenciosas crenças continuem nos escravizando?” –
perguntaria Epicteto. “Teremos a coragem de ousar fazer uso da nossa própria
razão?” –perguntaria Kant.
“Depende de mim”, poderia cada um de nós lhes responder. “Eu decido: é
parte da minha decisão vital”; “eu estou onde está a minha escolha de vida”.
Afinal, como bem mostra o exemplo que estamos analisando, a escolha vital
tem a ver com nossa vida e nossa qualidade de vida, e com a vida e a qualidade
de vida daqueles que nos rodeiam –e dos que virão:
“Se hoje penso, escrevo, pesquiso e ensino contra o racismo é por não suportar
mais o sofrimento de viver num país em que pessoas negras são brutalmente
excluídas, violentadas e exterminadas em nome da minha suposta superioridade
branca. Esta é a cor da minha pele. Já o meu desejo tem sido destruir o racismo
que me impôs uma suposição de superioridade branca na qual não me
reconheço” (Rodrigues, ibid.).
podemos pensar que aquele que não tiver suas habilidades racionais
desenvolvidas, e por isso não tiver a capacidade de valorizar a qualidade de um
padrão racional, proporá qualquer absurdo, ou –o que é ainda pior– acreditará
cegamente em qualquer crueldade que propuserem aqueles que baixam o nível
19
O leitor interessado pode constatar essas observações na página da John Hopkins University, uma
incrível e útil ferramenta científica.
37
do padrão racional.
O problema, obviamente, não são as preces, o jejum ou qualquer outro rito
coletivo. Se fazem a algumas pessoas se sentirem melhor, qual o problema?
Nenhum do ponto de vista emocional. Podem rezar. Ou podem fazer
meditação zen ou dançar música trance se preferirem; o resultado não será
muito diferente –e será sem multiplicar entidades desnecessariamente . O 20
20
Existem, por exemplo, muitos estudos em psicologia evolucionista e neurociência que mostram
que a meditação zen ajuda a reduzir a ansiedade e os sentimentos negativos, assim como a iluminar,
i.e., a despertar de delusões e de crenças irracionais (cf. Wright, 2018). Existem estudos análogos
sobre o efeito da música trance na espiritualidade, na concepção ecológica e na experiência de
reencantamento (cf. Maccari, 2021). Ter um gato também ajuda.
21
<noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/08/01/lider-de-igreja-ligada-a-expansao-
do-coronavirus-na-coreia-do-sul-e-preso.htm>; <oglobo.globo.com/mundo/seul-processa-igreja-
evangelica-em-20-milhoes-por-causa-de-novo-surto-de-coronavirus-24646825>.
22
Um pastor ajoelhado no Palácio (no dia 05/04/2020): cf.Veja 2682, 15/04/2020. “Prefeito de
cidade do MS decreta ‘cerco de orações’ contra Covid-19”, cf. Aidar, 2020. “Para estar ileso ao
coronavírus é preciso ter coronafé”. Edir Macedo. Cf. <apublica.org/2020/03/megaigrejas-
continuam-abertas-e-dizem-que-fe-cura-coronavirus/>. O autor da frase não saiu ileso: cf.
<congressoemfoco.uol.com.br/saude/edir-macedo-que-chamou-coronavirus-de-tatica-de-satanas-
contraiu-covid-19/>.
38
custosíssimos feijões mágicos (R$ 1.000,00 o grão; no supermercado, você
obtém o mesmo produto por R$ 0,02)? Porque, como já indicamos, aqueles
23
23
<Noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/07/pastor-valdemiro-santiago-
vende-sementes-prometendo-a-cura-da-covid-19.htm>.
39
“é comparável à balança que usamos para determinar pesos” . Em uma balança24
de dois pratos, posso pôr um objeto em cada prato e decidir qual deles tem um
peso maior. Essa imagem pode ser estendida como metáfora, e, desse modo,
‘pesar’ mais do que pesos –especificamente, pesar crenças.
[6] Na sequência, Epicteto incorpora um longo parágrafo comparando o
‘parecer’ que não está apoiado em padrões –o ‘eu acho’, a opinião que emana
da crença, a apreciação de quem está ligado à aparência– com o juízo que se
fundamenta em um padrão.
Em outras partes de sua obra, Epicteto questiona o “eu acho” ou o “me
parece” daqueles que tomam decisões sem um padrão superior que os oriente.
Um exemplo claro se encontra nas Dissertações, onde um dos seus alunos,
questionado sobre por que sustenta uma crença indefensável responde “porque
assim me parece”. Epicteto lhe objeta: “você poderia demonstrar o que disse
com um argumento superior ao ‘me parece’?” (1.20.10). E complementa:
“Acaso o louco faz algo diferente daquilo que ‘lhe parece’?” (ibid.). “Como
chamamos aqueles que acreditam em toda e qualquer aparência? –Loucos”
(1.28.32-3).
Com essas observações, Epicteto extrai um corolário do que sucede àqueles
que abraçam crenças sem tentar estabelecer contato com a verdade: se alienam
da realidade, desejam o que não depende deles e tentam fazer o impossível,
entram nos becos sem saída do delírio e da alienação... Marco Aurélio, um dos
seus mais famosos leitores, concorda com ele: “Perseguir o impossível é
próprio de loucos” ([c. 180]: V.17).
Epicteto insiste fortemente em que devemos ter presente que do fato de uma
coisa nos parecer de uma maneira não se segue que ela é dessa maneira. Até
porque o ‘parecer’ tem sua origem na mente –i.e., na crença vinculada a essa
apreciação–, e as coisas sobre as quais emitimos nosso parecer estão na
realidade. ‘Parecer certo’ (plano do mental) é radicalmente diferente de ‘ser
certo’ (plano do real). Do fato de que é possível que para uma pessoa pareça
certa uma afirmação e para outra pareça certa uma afirmação contrária se segue
–se as duas pessoas concordarem em que seus ‘pareceres’ são emitidos sobre
uma realidade independente e externa– que uma das crenças está errada. E do
fato de as duas pessoas não terem mais do que seus ‘pareceres’ para decidir
qual das duas afirmações é falsa, se segue que inclusive as duas afirmações
poderiam ser falsas. Isso equivale a afirmar que o mero ‘me parece’ ou o
egocêntrico ‘eu acho’ não pode se constituir como um padrão apropriado para
determinar a relação da crença com a realidade. Epicteto ilumina essa
argumentação com o exemplo da balança: “mesmo no caso dos pesos [...] não
nos satisfazemos com a mera aparência; pelo contrário, buscamos um padrão
para cada caso”. Para compreender melhor a ideia pensemos no seguinte
24
A razão (lógos) inclina a balança (cf. 2.26.7). Epicteto também usa a analogia entre a razão e a
balança em 1.17.7-8, 1.28.30, 1.29.15, 2.11 e 3.26.18.
40
exemplo: dois quilos de chumbo podem nos parecer mais pesados do que três
quilos de pena, mas a balança se inclinará nos mostrando que o volume de
penas é mais pesado do que o do chumbo. Nesse caso, a balança é o padrão.
[7] Se existe um padrão para essas coisas, pergunta Epicteto, como poderia não
existir um padrão para ‘pesar’ crenças? “Esse padrão existe”, afirma muito
confiante. E, de um modo ainda mais otimista, supõe que esse padrão apto
para ‘pesar’ crenças pode resolver as guerras que se originam dos conflitos entre
crenças rivais. Da privilegiada perspectiva histórica de nosso conflitivo século
XXI, pensamos que teria sido muito bom para Epicteto ter achado um padrão
para pesar essa sua demasiada otimista crença...
[8] Epicteto nos alenta a buscar o padrão e nos incita a que depois de
descoberto, o utilizemos. [9] E aqui ele faz um comentário interessante: diz que
o padrão “resgatará da loucura aqueles que usam a mera crença como medida
de tudo”, ou seja, aqueles que em todo e qualquer assunto decidem com base
em desejos e aparências, i.e., que adotam crenças acríticas.
[10] Com o padrão, especifica Epicteto, aqueles hoje perdidos em sua
delirante bolha de crenças poderão examinar e julgar casos particulares –como,
por exemplo, o que é o prazer. E eventualmente, poderão retornar de seu
estado de alienação ou delírio.
[11] “Submete o teu tema ou problema ao padrão, coloca-o na balança”,
recomenda Epicteto. “É desse modo que se julgam e ponderam os assuntos
depois de dispor de padrões”.
Esta passagem, na qual Epicteto instala a imagem da balança como um
instrumento de avaliação racional, tem seu precedente na obra de Sócrates, o
autor mais admirado e citado por Epicteto. No Eutífron, por exemplo, Sócrates
incorpora a imagem da balança em relação aos conflitos humanos:
Sócrates: Quais são os assuntos de divergência que causam ódio e ira?
Verifiquemos isso do seguinte modo: se nós diferíssemos sobre a quantidade de
alguma coisa, essa divergência nos tornaria inimigos e nos deixaria irritados um
com o outro, ou nos dedicaríamos a contar e, em seguida, resolver a nossa
divergência sobre isso?
Eutífron: Sem dúvida, resolveríamos a nossa divergência contando.
Sócrates: E se divergíssemos sobre o tamanho de duas coisas, usaríamos a
medição e cessaríamos nosso desacordo?
Eutífron: Isso é assim.
Sócrates: E se divergíssemos sobre o mais pesado e o mais leve, recorreríamos à
pesagem e ficaríamos reconciliados?
Eutífron: Naturalmente.
Sócrates: Qual matéria de divergência nos faria irritados e hostis um com o outro
se fôssemos incapazes de chegar a uma decisão? Talvez não tenhas uma resposta
pronta, mas examina se esses assuntos são o justo e o injusto, o belo e o feio, o
bom e o mau. Não são esses os assuntos de divergência sobre os quais, quando
somos incapazes de chegar a uma decisão satisfatória, tu e eu, e outros homens,
tornamo-nos hostis uns com os outros sempre que o fazemos?
41
Eutífron: Certamente, Sócrates; o desacordo é sobre esses assuntos (Eutífron, 7b-
d).
Considerações finais
Eu não acredito na crença
E.M. Forster, [1938]: 327
44
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Quão necessário é o raciocínio crítico?
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