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O raciocínio crítico e a

revisão de crenças

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O raciocínio crítico e a revisão de crenças 1

Resistimos à invasão dos exércitos; não resistimos à invasão das


crenças.
Victor Hugo
As crenças são muito importantes. [...] São o mapa pelo qual
você orienta sua vida. É muito importante que o mapa seja
preciso, ou você pode acabar perdido. O problema de descobrir
se seu mapa para a vida é preciso ou não, é o mesmo problema
que traçar as bases do conhecimento.
Martin Cohen, 2015: 123-4

Até o momento, no curso estudamos os princípios do raciocínio crítico (RC) e


do método científico (MC). Nos centramos, principalmente, nos aspectos
procedimentais ou metodológicos da avaliação e escolha de crenças, i.e., no RC
estricto sensu, na justificativa que põe em contato as evidências e as crenças, a
realidade com a mente. Retomaremos esse aspecto nos próximos textos.
Apesar de termos priorizado os aspectos procedimentais ou metodológicos,
também mostramos a importância do RC e do MC na tarefa de avaliar e
escolher crenças. Por isso, os exemplos utilizados foram escolhidos no amplo
escopo que vai das crenças em teorias cientificas famosas até crenças sobre
questões quotidianas atuais, como as geradas pela pandemia.
O texto que analisaremos aqui –“Epicteto e o padrão para pesar crenças”–
também é sobre RC e MC. Especificamente, sobre o modelo de RC proposto
por um filósofo do século I, Epicteto, que utiliza a imagem de uma balança (o
‘padrão’) para pesar crenças. Mas ele desloca o centro da atenção para uma
classe peculiar de crenças: as que estão tão internalizadas em nós que não
somos cientes de que nossas ações e atitudes estão determinadas por elas: as
crenças básicas (muitas delas invisíveis).
Antes do artigo principal desta Apostila –“Epicteto e o padrão para pesar
crenças”– leremos um texto que incorpora e exemplifica as classes de crenças
nas quais estamos interessados: “As crenças e as redes cognitivas”.

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Primeira versão. O texto se encontra em preparação. Portanto, seguramente haverá repetições, e
erros conceituais e de digitação. Caso detecte algum problema, por favor informar ao professor.
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As crenças e as redes cognitivas
Cátedra, 2021d
As crenças básicas ou invisíveis
Há dois jovens peixes nadando e, num certo momento,
encontram um peixe ancião nadando na direção oposta,
que acena para eles e diz:
–Olá, rapazes. Como está a água?
Os dois jovens peixes nadam mais um pouco, depois um
olha para o outro e pergunta:
–Água? Que diabo é isso?
David Foster Wallace

E o que é a Filosofia? É a tentativa, penso, de enxergar


um palmo diante do nariz –o que não é tão fácil nem tão
inútil quanto muitos pensam. Afinal, o peixe é quem
menos sabe da água.
Roberto Gomes

Apenas somos cientes do que é significativo em nossa


própria existência [...]. O que sabe um peixe sobre a
água em que ele nada toda a sua vida?
Albert Einstein

A filosofia é uma atividade crítica. O seu objeto de estudo são as crenças; Crenças
‘básicas’
todas as crenças. Seu ponto de partida é não tomar nada como “garantido”
e nada aceitar “por fé”.
Entre todo tipo de crenças, o principal alvo crítico da filosofia são as crenças
‘básicas’ ou ‘invisíveis’, i.e., as crenças ‘comuns’ dos seres humanos, crenças
geralmente consideradas ‘naturais’, ‘familiares’ –até ‘óbvias’ (cf. Stolnitz 1960).
O economista e cientista político John Kenneth Galbraith acunhou a expressão
“sabedoria convencional” ou “senso comum” (conventional wisdom) para fazer
referência às crenças básicas nas áreas sociais e humanas. Segundo esse autor,
devido à complexidade da vida social, tendemos a aderir a crenças que sejam
simples de entender, convenientes, confortáveis e que estejam de acordo com
nossos credos e valores –embora não sejam necessariamente corretas2.

Enfatizemos as conclusões de Galbraith: tendemos a aderir a crenças simples e


confortáveis, independentemente de elas serem verdadeiras ou não.
Neste capítulo vamos ilustrar a natureza das crenças ‘básicas’ analisando duas
crenças. Em primeiro lugar, a crença de que os/as ‘vegetarianos/as’ têm crenças
com relação a questões sobre as quais nós (os/as ‘vegetarianos/as’) não temos
nenhuma crença –eles fazem uma escolha onde nós não temos a necessidade
de escolher.
2
Galbraith também observava que “diante da escolha entre mudar de crença e provar que não há
necessidade de fazer isso, a maioria das pessoas se inclina pela prova”.
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A segunda crença que analisaremos é a crença de que “A ética depende da
religião”.
Será que essas duas crenças são a classe de crenças ‘básicas’ ou ‘invisíveis’ –
i.e., as crenças simples, convenientes, familiares... e possivelmente falsas– das
quais fala Galbraith?

Um exemplo de crença invisível: amar animais ou comer animais?


‘Vegetariano/a’ é a pessoa que acredita que não é correto comer carne animal.
(E el@ pode dar vários e bons argumentos éticos, ambientais, médicos etc. a
favor de sua crença).
Existem diferentes classes de vegetarianos, e diferentes motivos para ser
vegetariano. O caso mais interessante para nós é o denominado ‘vegetarianismo
moral’, i.e., daquelas pessoas que entendem que “é moralmente errado matar
um animal pelo prazer de comê-lo” (cf. Law, 2010: I). É essa classe de
vegetarianismo que aqui analisaremos.
Todos conhecemos vegetarianos, e achamos que sua crença reflete um
‘modo de vida’, uma rede de crenças que os levam a acreditar no que
acreditam: que comer carne animal não é correto.
O termo ‘vegetariano’, para nós, supõe uma rede ou sistema de crenças, da
mesma maneira que termos como ‘feminista’. Mas, nós acreditamos que nós
não temos um sistema de crenças com relação a essas questões. Achamos que
somos a-vegetarianos e a-feministas. Mas, não é tão simples assim.
Nós temos crenças com relação a essas questões. Sempre agimos em função
das nossas crenças, sejamos, ou não, conscientes disso. Será que somos anti-
vegetarianos e antifeministas?
“As coisas são assim”, “sempre foi assim”, “é parte da nossa tradição”, “eu fui
educado desse modo” são algumas das frias autojustificativas conscientes com as
quais tentamos encobrir nossos icebergs de crenças invisíveis. Um motivo para
suspeitar de que há uma rede de crenças invisíveis motivando nossas respostas é
que todas elas procuram manter um distanciamento emocional...
Fazemos isso porque nos convêm? Poderíamos imaginar que sim. Gostamos
de comer carne (porque estamos acostumados a comer carne?).
Gostamos de comer carne. Por isso, seguir um caminho que nos leve a
comer só “tristes” vegetais parece um objetivo a evitar. Mas é fácil achar
contraexemplos para a explicação de que a real causa de não revisarmos nossas
crenças é somente a preguiça ou a conveniência.
Consideremos, já que antes o mencionamos, o feminismo, a luta pela
igualdade de direitos e condições das mulheres na sociedade.
Feminismo : Feminismo é um movimento político, filosófico e social que
def.

defende a igualdade de direitos entre mulheres e homens.


Não são apenas as mulheres que se intitulam ou compartilham de pensamentos
feministas –assim como não são apenas os homens que apoiam o esquema de
7
uma sociedade machista. Alguns homens, que se sentem incomodados com as
“regras de comportamento social do machismo” partilham da mesma visão de
liberdade e direitos igualitários.
O feminismo é um movimento social de ‘quebra’ da hierarquização dos sexos,
do sexismo e do machismo, reivindicando igualdade de direitos entre homens e
mulheres.

De um ponto de vista superficial, poderíamos interpretar que tal luta poderia


prejudicar os homens, fazer-lhes ‘perder direitos’. Então, digamos que para eles
é conveniente ser anti-feministas ou não ser feministas (apesar de que com isso
os estamos qualificando de egoístas, e até de imprudentes, já que seguramente
eles têm mulheres em sua família). Mas, em contraposição, não seria algo bom
para todas as mulheres? Elas lutam pela igualdade porque estão em situação
desigual, e têm algo a ganhar. Claramente sim, seria muito conveniente para as
mulheres serem anti-feministas. Mas, como sabemos, curiosamente existem
muitas mulheres anti-feministas! Esse, eu acho, é um caso análogo ao dos
homens e mulheres que aceitam alegremente que recortem suas aposentadorias
com a crença de que desse modo poderão manter suas aposentadorias... Uma
crença invisível. Implantada. E falsa. E prejudicial. O que quero enfatizar é que
as crenças invisíveis podem ser contrárias aos nossos interesses, à nossa
qualidade de vida e a muitos princípios éticos. Mesmo assim, as carregamos
sem tentar nos livrar delas.
Voltemos à nossa crença invisível principal: o vegetarianismo.
Uma pesquisadora do vegetarianismo observa com muita precisão: “Não
vemos o ato de comer carne como vemos o vegetarianismo –como uma opção,
baseada num conjunto de pressupostos sobre os animais, sobre nosso mundo e
sobre nós mesmos. Nós o vemos, em vez disso, como uma coisa ‘natural’, o
modo como as coisas sempre foram e o modo como as coisas sempre serão.
Comemos animais sem pensar no que estamos fazendo pelo fato de o sistema
de crenças que está por detrás desse comportamento ser invisível” (cf. Joy,
2014: II).
Observem que coloquei a questão em termos de ‘crença’. E que defini
‘vegetariano/a’ como a pessoa que acredita que matar animais e comer carne
animal não é correto.
Todos concordaremos com essa definição. Mas, se é assim, todos nós (ou a
maioria de nós), que não somos vegetarianos, acreditamos que matar animais e
comer carne animal está correto.
Os não-vegetarianos acreditam que matar animais para comê-los é correto!
Os não-vegetarianos acreditam que comer carne animal é correto!

Se formos não-vegetarianos, essa forma de colocar a questão nos causará


incômodo. Mas é estritamente correta!
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Nós acreditamos, sim, que não está errado comer carne animal, e que não é
errado matar animais para comer sua carne: nossa conduta certifica essa
crueldade ou displicência, a cada dia. Mas é uma crença sobre a qual
cotidianamente não somos cientes (sobre a qual não queremos ser cientes), tão
básica, tão ‘naturalizada’, que pode ser denominada crença invisível (cf. Joy,
2014).
Um parâmetro do alto grau de invisibilidade dessa crença compartilhada pela
maioria de nós é o fato de que não existe nome para descrever as pessoas que
têm essa crença alimentícia. Denomina-se ‘carnívoro’ (do latim carne + vorare;
devorador de carne) ao animal que se alimenta somente de carne; nós estamos
falando do animal que escolhe comer carne, e que acredita que não há
problema em matar para comer e em comer carne.
Se ‘vegetariano/as’ designa àqueles que comem vegetais, nós, que comemos
carne animal poderíamos ser qualificados de ‘carnianos/as’. Triste nome, mas
não podemos fugir da realidade nesse caso.
Quando uma crença está muito arraigada, ela é essencialmente invisível. Esse
é, claramente, o caso do ‘especismo’ –da discriminação com base na espécie:
“uma falta básica de respeito pela dignidade e pelas necessidades dos animais
não humanos, tão indefensável quanto o preconceito racial ou de gênero” (cf.
Dupré 2007). Evidentemente, as crenças invisíveis podem ser muito perigosas.
Você poderia dar outro exemplo de crença invisível?
Descrevemos as crenças que a filosofia critica dizendo que são, além de
importantes, ‘comuns’ –‘básicas’, ‘naturais’, ‘familiares’, ‘óbvias’, até o extremo
da invisibilidade. É evidente, a partir dos exemplos mencionados, que tais
crenças são realmente comuns. Virtualmente todos os seres humanos adultos,
qualquer for a cultura ou período histórico em que viveram, tiveram uma
crença de um tipo ou outro sobre questões ligadas à existência, à moralidade, à
sociedade etc. Se o leitor pensar durante uns momentos, descobrirá que isto é
verdade também relativamente a si próprio, por mais que as suas crenças sejam
vagas ou inseguras.
Ainda que existem muitas definições, para simplificar apresentaremos a
seguinte definição de trabalho do termo ‘filosofia’: a filosofia é o pensamento
crítico acerca de crenças básicas ou fundamentais.

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Outro exemplo de crença invisível: “A ética depende da religião”
Às crenças básicas (ou ‘fundamentais’) dá-se, por vezes, o nome de “grandes
questões” ou “problemas fundamentais”.
O que são as crenças básicas? São crenças cuja verdade ou falsidade
determina a verdade ou falsidade de outras crenças, menos básicas (ou
‘derivadas’), que se seguem delas.
Vamos dar um exemplo clássico de crença básica: “Deus existe”.
“Deus existe” é uma crença básica (CB) de várias religiões. Dela se seguem
muitas crenças derivadas (CD), conformando, entre todas, grandes redes de
crenças. Por exemplo:
Rede de crenças da afirmação ‘Deus existe’
CB: “Deus existe”.
CD1: “Deus, o comandante divino, ditou Comandos ou Mandamentos
éticos”.
CD2: “A moralidade das nossas ações consiste em cumprir a vontade de
Deus expressa nos Mandamentos (i.e., nas invioláveis leis éticas de
Deus)”.
CD3: “Cumprir com os Mandamentos morais garante o acesso a uma outra
vida depois desta”.
CD4: “Existe uma vida depois desta”.
CD5: “Existe um Paraíso”.
CD6: “Existe uma alma imortal”.
CDn: E muitas, muitas outras crenças relacionadas...

Deus existe

Deus ditou
mandamentos morais
A moralidade consiste em
cumprir a vontade de Deus
Existe uma alma expressa em seus
imortal mandamentos morais A ética depende
Cumprir com os da religião
mandamentos morais
garante o acesso a uma
outra vida depois desta

O sentido da vida
consiste em cumprir
Existe uma outra os mandamentos
vida depois desta morais de Deus

Cada uma dessas crenças, quando analisadas de um ponto de vista lógico,


histórico ou empírico, tem sérios problemas: muitos argumentos Você concorda com
essa rede de crenças
contrários e nenhum argumento a favor! Por enquanto, prestemos em que a ética depende
da religião?

atenção à crença derivada CD : “A moralidade das nossas ações consiste


2

em cumprir a vontade de Deus expressa nos Mandamentos (i.e., nas leis


invioláveis de Deus)”. Essa crença equivale à crença derivada CD ’: “A ética 2

depende da religião”.
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A maioria das pessoas –inclusive muitas que não acreditam em Deus–
acredita que “A ética depende da religião”. Por exemplo, é comum ouvir frases
como: “A causa da imoralidade da nossa época é que as pessoas não visitam a
Casa do Senhor”...
Pausa.
Pense sobre o assunto.
–“A causa da imoralidade da nossa época é que as pessoas não visitam a Casa
do Senhor”/ não vão à igreja/ não são religiosos etc.
–Essa afirmação tem apoio empírico? Muito pouco, se considerarmos que, no
3
Brasil, desde 2010 surge uma nova organização religiosa por hora! Dito de
outro modo, esse dado surpreendente pode ser utilizado para argumentar no
sentido contrário...

As pessoas acreditam, de modo muito consistente e acrítico, que “A ética


depende da religião”. O problema é que essa crença, quando filosoficamente
analisada, tem irresolúveis problemas lógicos. Analisaremos esse casso na
próxima seção.

Por enquanto, deixaremos uma imagem, que vale mais do que mil palavras.

MATARÁS

Pense sobre o assunto.


Existe algum problema nesta imagem?

3
<oglobo.globo.com/brasil/desde-2010-uma-nova-organizacao-religiosa-surge-por-hora-21114799>.
11
Nova pausa.
Pense sobre o assunto.
Existe algum problema nesta imagem?
Se acreditamos que “Deus, o ‘Comandante divino’, enunciou Comandos ou
Mandamentos éticos”, acreditamos que agiremos eticamente se seguirmos
esses Mandamentos. E se acreditamos que ‘Matar’ é um Mandamento moral
–algo que seria obrigatório acreditar se ‘Matar’ estivesse na lista dos
Mandamentos–, seriamos impelidos a obedecer e agir? Tudo indica que sim.

Não existe algo “profundamente perturbador e perigoso” nessa implacável


forma de ‘pensar’?

As crenças e as redes cognitivas hierárquicas


Ninguém adota uma nova crença de modo absolutamente independente de
todas suas outras crenças. As crenças sempre se organizam em grupos ou
redes. Sempre ocupam seu lugar em sistemas de crenças, nunca estão
isoladas.
Thomas Green

No exemplo que estamos analisando, “A ética depende da religião”, destacam-


se duas características das crenças. Em primeiro lugar, a de que as crenças se
organizam em redes cognitivas. Em segundo lugar, a de que as redes de crenças
são hierárquicas –nelas, algumas crenças, as crenças básicas, são mais
importantes do que as derivadas, já que estas dependem das básicas.
Se analisarmos a estrutura de qualquer rede de crenças, veremos que se uma
crença básica for falsa, então outras crenças que dela derivam e dela dependem
se tornarão falsas –ou, pelo menos, terão de ser revistas. (O caráter conflitivo de
uma crença derivada dependerá de quão distante estiver da crença básica da
rede a qual pertence).
O fato de as crenças estarem interligadas, de formarem redes cognitivas
hierárquicas com outras crenças, explica por que as crenças são tão difíceis de
mudar. Também explica por que, às vezes, apesar de existirem argumentos
contrários, insistimos em conservar uma crença que pode parecer trivial. Como
bem observa Lester, um psicólogo cognitivo,
“As crenças [...] se relacionam umas com as outras em uma rede que cria um
sistema de mundo fundamental para [a mente...]. Por isso, tentar mudar
qualquer crença, não importa quão pequena ou boba ela possa parecer, pode
produzir um efeito cascata por todo o sistema e, em última análise, ameaçar a
experiência de sobrevivência do indivíduo” (2000).

Algumas crenças básicas estão implícitas no modo como todos os dias


pensamos e agimos. Estas crenças são formas de orientar a nossa relação com o
mundo e são necessárias para que a nossa vida funcione (de determinada
12
maneira). Contudo, raramente essas crenças são explicitadas e esclarecidas e,
muito menos, examinadas criticamente. Por esse motivo, talvez a maneira em
que nossa vida funciona não seja a melhor (seja para nós, seja para aqueles que
nos rodeiam).

Síntese:
As pessoas sustentam, acriticamente, todo tipo de crenças (tanto básicas quanto
derivadas). E isso pode ser um grande problema cognitivo.
Qualquer crença, por estar fortemente interrelacionada a outras crenças, e bem
difícil de mudar, pois nossa identidade se sente inevitavelmente ameaçada.

A Teoria do mandamento (ou do comandante) divino


O bem consiste em fazer sempre o que Deus ordena.
Emil Brunner, The Divine Imperative, 1947

Voltemos à crença “A moralidade das nossas ações consiste em cumprir a


vontade de Deus expressa nos Mandamentos”. Um modo mais simples de
expressar essa ideia está em nossa epígrafe: “O bem consiste em fazer sempre o
que Deus ordena”. Mas, essa ideia, é correta? Como vimos, J.K. Galbraith
enfatizava que “tendemos a aderir a crenças simples de entender, convenientes,
confortáveis e que estejam de acordo com nossos credos e valores –embora não
sejam necessariamente [verdadeiras]”... Este será outro caso? “O bem consiste
em fazer sempre o que Deus ordena”, disse o autor da epígrafe. Antes de
acreditar em suas palavras, não seria importante perguntar-lhe: como você
sabe? Quais são suas evidências?
As pessoas que aceitam essa crença –“O bem consiste em fazer sempre o que
Deus ordena” – fazem afirmações como, por exemplo:
“A crença x é boa (ou ruim) porque a Bíblia afirma que a crença x é
boa (ou ruim)” . 4

(Em nossa rede de crenças, essa crença pressupõe, como já indicamos, a crença
CD2’: “A ética depende da religião”).

As pessoas que acreditam que “A ética depende da religião” fazem afirmações


do tipo “A Bíblia diz ...”, pensando que com isso tudo está resolvido, mas
fazem isso sem antes ter refletido sobre os fundamentos dessas crenças. E isso é
um problema. Pois esse procedimento tira o caráter ético da crença. Dito de
outro modo: “Fazer sempre o que Deus ordena” é só seguir ordens –é o que,
por exemplo, faz o soldado que segue a ordem “fazer sempre o que o General
ordena”. Como pode a obediência servil se converter em um ato ético?

4
Obviamente, o argumento se aplica à crença, ação, ato, mandamento etc. Por simplicidade, falarei
somente de ‘crença’.
13
Em nossos dias, a crença de que a ética depende da religião é articulada na
denominada ‘Teoria do Mandamento (ou do Comandante) divino’. A ética
cristã está baseada nessa Teoria. Nessa versão, se entende que os textos
sagrados –por exemplo, os Dez mandamentos– contêm listas de deveres e
proibições. Esses mandamentos “se impõem independentemente das
consequências de cumpri-los: são deveres absolutos. Alguém que acredita ser a
Bíblia a palavra de Deus não terá dúvidas sobre os sentidos de ‘certo’ e de
‘errado’: ‘certo’ significa o que Deus quer e ‘errado’ significa qualquer coisa que
vá contra a vontade de Deus. Para esse crente, moralidade é uma questão de
seguir ordens absolutas [i.e., independentes das consequências e do contexto],
dadas pela autoridade absoluta: Deus” (Warburton, [2012]: 67-8).
Simples demais para ser verdade.
Matar é errado porque Deus disse que é errado matar. Ou seja: Deus torna o
ato de matar errado dizendo que é errado.
Mas se Deus dissesse que matar é certo,
então matar seria certo?
Você estará tentado a dizer: “Isso não pode
ser certo, pode?”. Se você continuar
pesquisando nessa direção, se adentrará,
inevitavelmente, no problema de Eutífron.

Muita gente crê que, se Deus não existe e, portanto, a ética não depende da
religião, não pode haver algo como ética ou moralidade. Eles responderiam
com um ‘sim’ definitivo à pergunta de Iván Karamázov –personagem do
romancista russo Fiodor Dostoievski: “Se Deus não existe, tudo está
permitido?”.
Será? Se (as pessoas acreditam que) Deus não existe, tudo está permitido?
Para construir uma resposta, é só procurar exemplos e contraexemplos.
Na República Checa, somente 19% de seus habitantes acreditam em algum
deus; na Polônia, país com o qual a República Checa compartilha uma extensa
fronteira, o número de crentes se eleva a 82%. Mas a porcentagem de crimes é
a mesma nos dois países, sem mencionar que os poloneses apoiam um partido
ultradireitista autoritário que, por natureza, é de valores éticos bem degradados:
anti-imigrantes, contra homossexuais, contra os direitos das mulheres,
negacionistas das responsabilidades do país no Holocausto, e poderíamos
seguir . Esse dado refuta o temor do personagem de Dostoievski?
5

A realidade parece mostrar que é a frase oposta à de Iván Karmázov que


oferece uma descrição mais acurada da realidade: “Se (as pessoas acreditam
que) Deus existe, tudo está permitido”.
5
Cf. <brasil.elpais.com/brasil/2019/10/13/internacional/1570952160_793377.html> e
<brasil.elpais.com/internacional/2021-02-11/governo-ultranacionalista-da-polonia-aperta-o-cerco-
contra-os-historiadores-do-holocausto.html>.
14
Um exemplo bem atual. Observem bem: um terço das cidades da Polônia
quer se autodeclarar “zona livre de gays” e “zona sem ideologia LGBTQIA+” . 6

E agem de modo tão aberrante com boçal orgulho! Como disse a bruxa de
Shakespeare: “Se sente no ar: algo malvado vem desse lado” (Macbeth, 4.1.44-
5)... Se “o bem consiste em fazer sempre o que Deus ordena” e Deus ordenou
isso ou qualquer outra forma de discriminação, sim, algo muito ruim vem desse
lado. Ou Deus não sabe o que diz, ou o bem não consiste em fazer sempre o
que Deus ordena, ou os poloneses leram a Bíblia erroneamente ... De qualquer
forma, o que fazem é muito desumano: quem lhes dá o direito de expulsar seus
concidadãos de suas cidades? Como podem fazer sofrer desnecessariamente a
seus semelhantes? Não têm outra coisa mais interessante e construtiva para
fazer com suas próprias vidas do que intervir na vida dos outros?
Na verdade, tudo isso é detalhe: o exemplo só exibe a inevitável perversidade
que descansa na cega crença de que o bem consiste em obedecer cegamente
arbitrárias ordens cegas só pelo fato de serem cegamente declaradas sagradas.
Dito de outro modo: neste caso, o raciocínio crítico nos ajuda a ver uma
evidente prova cabal de que uma teocracia é inevitavelmente um lugar infernal.
Podemos finalizar com uma boa notícia: em março de 2021 o Parlamento
Europeu declarou que a União Europeia é “zona de liberdade para as pessoas
LGTBIQ” . Finalizar a passagem, pois a luta pelos direitos humanos só poderá
7

finalizar quando a intolerância e o fanatismo religioso finalizarem.


Pausa.
Como vimos antes, pessoas como o teólogo Emil Brunner sintetizam a Teoria
do Mandamento afirmando que “O bem consiste em fazer sempre o que Deus
ordena”.
Então, vamos seguir ordens para verificar se esse procedimento funciona
bem.
A homossexualidade é claramente condenada na Bíblia, “é abominação”
(Levítico 18:22). Então, aparentemente, podemos proceder como os
entediados poloneses.
Mas rapidamente surgem alguns probleminhas. A Bíblia também proíbe
comer carne gordurosa e moluscos. Os dois casos são “abominação” (Levítico
7:23 e11:10). O que fazer com as pessoas que comem carne e peixe? Temos

6 O Parlamento Europeu destaca sua profunda preocupação “com o crescente número de ataques
a lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais na UE por estados, autoridades, governos
nacionais e locais, além de políticos”. Cf.
<revistahibrida.com.br/2020/08/05/polonia-promove-campanha-para-pais-adotar-zonas-livres-de-
lgbts/>, <observador.pt/2019/07/31/jornal-distribui-autocolantes-com-a-frase-zona-livre-de-gays-na-
polonia>, <www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/07/europa-corta-verba-de-cidades-polonesas-que-
discriminam-gays.shtml>, <terra.com.br/noticias/parlamento-europeu-condena-zonas-livres-de-
ideologia-lgbt-na-polonia,e88ce3aa09ea2f447919b8b9b52a77d4vxsz37on.html>.
7
<elpais.com/internacional/2021-03-11/el-parlamento-europeo-declara-la-ue-zona-de-libertad-para-
las-personas-lgtbiq.html>.
15
que apedrejá-los, tal como é ordenado (Levítico 24: 10-16)?
Um texto da Internet levanta perguntas profundas sobre como seguir essa
classe de ordens: “Levítico 21:20 afirma que eu não posso me aproximar do
altar de Deus se eu tiver algum defeito na visão. Eu admito que uso óculos para
ler. A minha visão tem mesmo que ser 100%, ou pode-se dar um jeitinho? Meu
tio tem uma horta. Ele viola uma ordem (Levítico 19:19), pois planta dois tipos
diferentes de vegetais no mesmo campo. A sua esposa também viola uma
ordem divina (Levítico 19:19), porque usa roupas feitas de dois tipos diferentes
de tecido (algodão e poliéster). Ele também tende a blasfemar muito. É
realmente necessário que eu chame toda a cidade para apedrejá-los, tal como é
ordenado (Levítico 24:10-16)?”.
“A Bíblia diz ainda que a barba não deve ser aparada nos cantos (19:27) e
que é permitido comprar escravos dos estados vizinhos (25:44). Há muito mais,
mas isso é o bastante para dar uma ideia” . 8

Pausa longuíssima.
Pense sobre o assunto.
A crença básica é: O bem consiste em fazer sempre o que Deus ordena.
Deus é o Comandante, e ele sabe o que ordena.
Não é simples demais para ser verdade?
Como Ele sabe o que ordenar?
E se, como sugere o filme Uma louca história do mundo, Moisés
tivesse tropeçado descendo do monte, e quebrado uma das três tábuas
originais...?9 Haveria cinco mandamentos que quebramos diariamente
sem sequer saber?

Ainda que muitas pessoas acreditem que a ‘Teoria do Mandamento divino’ é


indispensável, quando analisada detalhadamente tal Teoria revela inúmeros
problemas. Mencionaremos somente a primeira –e já decisiva– objeção a esta
Teoria: o denominado dilema de Eutífron.
Pausa longa.
Pense sobre o assunto.
Que ‘a ética depende da religião’, é uma boa crença?
Segundo os historiadores da religião, existiram umas 4.200 religiões (Cf.
Shouler, 2010: I). Então, existiram 4.200 éticas?

Antes de analisar o problema do Eutífron, vamos falar brevemente do método


de Sócrates e de sua contribuição à Ética.

8
Cf. James Rachels, “Ethics and The Bible”, Think: Philosophy for Everyone 1, 93-101,
<bradpriddy.com/rachels/bible.pdf>.
9
Uma louca história do mundo (Mel Brooks, 1981, History of the World, Part I); ver:
<www.youtube.com/watch?v=Sj89D-PHc8M>.
16
Sócrates e o exame das crenças
Sócrates (469-399 a.C.) é o primeiro grande pensador sobre questões éticas. Nos
livros de Platão (429-347 a.C.), escritos na forma de diálogos, Sócrates caminha
pelas ruas de Atenas questionando seus concidadãos sobre o significado de
conceitos como justiça, piedade, coragem, amizade, amor, conhecimento etc.
Sócrates indaga os fundamentos das crenças de seus interlocutores, esclarecendo
conceitos e explicitando as contradições de suas formas de pensar. Esses são os
elementos básicos do denominado “Método socrático (Elenchus)”:
“No método socrático [...] uma proposição aceita pelo interlocutor é testada
diante do conjunto de suas crenças com o objetivo de verificar a consistência do
todo. Fazendo perguntas, Sócrates buscava determinar se a primeira afirmação de
seu interlocutor era consistente ou inconsistente com as posteriores” 10.
Nos diálogos, os interlocutores de Sócrates percebem rapidamente que suas
crenças sobre um assunto, minutos antes tão firmes, estão apoiadas em bases
pouco sólidas; em preconceitos, não em conceitos bem justificados com razões
firmes. A reação típica do interlocutor de Sócrates era a de dar uma desculpa
pouco verossímil e se distanciar o mais rapidamente possível do lugar...

Os fundamentos da Ética: o raciocínio crítico


Sócrates: –Examinemos novamente se essa é uma colocação válida; ou
acaso devemos deixá-la passar? Se um de nós, ou outra pessoa, meramente
diz que algo é assim, aceitaremos que isso é assim? Ou deveríamos
examinar o que o proponente quer dizer?
Eutífron: –Devemos examiná-lo.
Platão, c. 375 a.C., Eutífron, 9e

Sócrates deu início à Ética ou Filosofia moral. Esta disciplina, como bem
observa Warburton, longe de ficar restrita a uma pequena área de interesse
acadêmico, atinge igualmente a todos:
“O que faz com que uma ação seja boa ou má? Que queremos dizer quando
afirmamos que alguém devia ou não devia fazer qualquer coisa? Como devemos
viver? Como devemos tratar as outras pessoas? Estas são as questões
fundamentais que os filósofos têm discutido há milhares de anos. Se não
pudermos dizer por que razão coisas como a tortura, o assassinato, a crueldade,
a escravidão, o estupro e o roubo são eticamente erradas, que justificação
podemos ter para as impedir? É a moral unicamente uma questão de
preconceito, ou poderemos dar boas razões a favor das nossas crenças morais? A

10
Cf. Kleinman 2016. “O método socrático ainda é bastante utilizado, principalmente nas
faculdades de direito dos Estados Unidos. Primeiro, pede-se ao aluno que resuma o argumento de
um juiz. Em seguida, pergunta-se a ele se concorda com aquele argumento. O professor, então, atua
como “advogado do diabo”, levantando uma série de questões para fazer com que o estudante
defenda sua decisão.
Ao aplicar o método socrático, os estudantes podem começar a pensar criticamente, usando a
lógica e a razão para criar seus argumentos e procurar e identificar as falhas em seus
posicionamentos” (cf. Kleinman 2016).
17
área da filosofia que trata destas questões é usualmente conhecida quer como
Ética quer como Filosofia moral” ([1992]: 71; grifo meu).

Observemos que na concepção de Sócrates e deste autor –assim como na de


todos os autores contemporâneos– a exigência de (boas) razões, argumentos,
justificação etc. é imprescindível no juízo ético.

Comentários:
Existe uma enorme bibliografia sobre raciocínio crítico e ética. O aluno de
direito pode achar alguns dos livros interessantes:
Stanlick, Nancy; Strawser, Michael, 2015, Asking Good Questions: Case Studies in Ethics and
Critical Thinking, Hackett, Indianapolis.
Caruan Louis, 2006, Science And Virtue: An Essay on the Impact of the Scientific Mentality
on Moral Character.
Hoffmaster, Barry et al., 2018, Re-Reasoning Ethics: The Rationality Of Deliberation and
Judgment in Ethics.
Lafollette, Hugh, 2013, International Encyclopedia of Ethics: Practical Reasoning.
Head, Michael; Mann, Scott, 2005, Law in Perspective: Ethics, Society, And Critical Thinking.
Nobis, Nathan, 2018, Animals and Ethics 101, Thinking Critically About Animal Rights.
De fato, a maioria dos livros sobre raciocínio crítico tem um capítulo dedicado
a questões éticas e um capítulo dedicado a questões jurídicas. Cf., por exemplo,
Lavery, Jonathan; Hughes, William; Doran, Katheryn, 2015, Critical Thinking: an
Introduction to the Basic Skills. (Cáp. 12: “Moral Reasoning”; Cáp. 13: “Legal
Reasoning”).

Observemos, também, que existe uma diferença radical entre essa concepção
de Ética e aquela sustentada por quem acredita na Teoria do Mandamento
divino (crença da qual, como vimos, se segue outra crença: “A ética depende da
religião” ou, de modo mais simples, “O bem consiste em fazer sempre o que
Deus ordena”).
Para o pensador crítico, a ética depende de dar boas razões a favor de uma
crença ou uma ação; caso contrário, é um preconceito ou uma arbitrariedade.
Raciocínio crítico puro e aplicado para orientar a boa vida. A Ética à qual os
filósofos gregos dão início tem a mesma base que a ética que os pensadores
iluministas adotam partir do século XVII. Hoje essa ética é defendida pelas
pessoas que abraçam uma Ética ‘laica’ ou ‘humanista’ ou ‘secular’. Em síntese,
uma Ética baseada em valores como verdade, razão, humanismo, compaixão,
igualdade, liberdade e responsabilidade.
Em contraposição, para alguns religiosos a ética depende de seguir ordens
absolutas –i.e., independentes das consequências e do contexto–, ordens dadas
por uma autoridade absoluta. Pensamento religioso/ autoritário em sua máxima
expressão. O problema com esta última concepção é que qualquer pessoa que
não tiver sua mente ofuscada por um viés cognitivo religioso ou autoritário não
se sentirá conforme com ela. “Qual autoridade absoluta? Por que D é uma
autoridade absoluta? Como D sabe o que diz saber? Por que D e não W, X, Y
18
ou milhares de outros deuses?”...
Sócrates dizia que o maior mal moral é o exercido pela pessoa que acredita
que sabe o que é moral quando em realidade não sabe (só acredita sem saber,
porque não pode dar boas razões em favor do que acredita saber) (cf. Schwartz,
1966: 67). A presunção do religioso Eutífron, como veremos, é precisamente
essa; ele diz saber, e “com exatidão”, “o que é [moralmente] correto e
incorreto”. Mas Eutífron não é capaz de responder a nenhuma das objeções
que lhe faz Sócrates, que só demandam dele uma explicação ou justificação da
ordem moral em que acredita e que o leva a agir injustamente. Dito de modo
simples: Eutífron acredita, mas não sabe, porque não pode justificar aquilo que
acredita.
Não é necessário voltar à Grécia antiga para achar exemplos dessa presunção.
Se soubermos olhar, encontraremos muitos casos quotidianos! Título de
matéria de jornal: “Pastor ora pela morte de [comediante]” . Que título 11

significativo! Um compacto instantâneo de pensamento religioso, pensamento


autoritário e pensamento mágico (maligno)!
“Pastor ora pela morte de [comediante]”. Atitude triste e horrorosa. A oração
sempre foi um gesto (simbólico) do bem, e essa pessoa, que é um “líder
religioso”, o transformou em um instrumento do mal. Não é algo
“profundamente perigoso e perturbador”? O comediante em questão é um ator
que vive tranquilo com seus filhos e seu marido sem fazer mal a ninguém. Vai
saber por que crença estranha o pastor implicou com ele. Bom, ser comediante
se tornou uma profissão perigosa. Vai ver que procurando nas milhares de
páginas de proibições absolutas no Grande livro que ele diz ler está a seguinte:
“Piada ruim é abominável”. (A parte inconsistente é que dificilmente o pastor
procurou muito, pois tinha mais probabilidades de encontrar sua própria foto
no livro, com o rótulo: “Cancelado até se retratar”). Nota: realmente, se
soubermos olhar, encontraremos muitos casos quotidianos de distorção
cognitiva. O presente texto estava finalizado quando a pressão da opinião
pública levou o ofensor a tentar se retratar. Novo título de matéria de jornal:
“Pastor pede perdão ao desejar morte de [comediante]: ‘tentei defender a
honra de Deus’, disse” . Pera aí: Isso é um pedido de desculpas?!!.
12

E aqui encontra-se um enorme contraste filosófico e existencial. Sócrates nos


informa de que modo ele pode defender que sabe o que sabe sobre uma
questão moral, e todos nós, absolutamente todos nós, podemos seguir seus
raciocínios e evidências, e decidir como ele ou discordar dele. Mas, “seguir

11
Cf. <terra.com.br/diversao/gente/pastor-que-ora-pela-morte-de-paulo-gustavo-sera-processado,
01434ee92a1e99c77933de160b8e2e843pyz4eip.html>,
<congressoemfoco.uol.com.br/saude/pastor-que-ora-pela-morte-de-paulo-gustavo-sera-processado-
por-homofobia/>.
12
Cf. <f5.folha.uol.com.br/celebridades/2021/04/pastor-pede-perdao-ao-desejar-a-morte-de-paulo-
gustavo-tentei-defender-a-honra-de-deus.shtml>.
19
ordens absolutas de uma autoridade absoluta” não parece ter justificação, nem
precisar de justificação. Só, obviamente, da autoritária afirmação injustificada:
“A autoridade absoluta é a absoluta justificação”. Mas, nesse caso, em um
mundo sem vieses tal autoridade absoluta teria que falar com a razão e com as
outras (supostas) autoridades religiosas ou éticas: Por que ele é uma autoridade
absoluta? Como tal autoridade sabe o que diz saber? Que razões eu tenho para
acreditar nessa autoridade absoluta –afinal, há tantas neste mundo tão extenso e
diverso! Por que eu teria que acreditar em alguma autoridade absoluta? E
haveria muitas questões mais...
O interessante –e incômodo– das questões morais é que mesmo não sendo
nós que tenhamos agido i/moralmente, igualmente entramos em uma dimensão
moral quando somos testemunhas próximas de um ato i/moral. E neste caso
gera curiosidade: os fiéis da igreja do pastor abandonarão a igreja ou apoiarão o
dito “líder religioso”? Olhar para outro lado parece uma terceira via obvia, mas
–e nisso radica o incômodo da Ética– é uma atitude imoral.
Uma ponderação filosófica exige que sejam explicitadas as (boas) razões em
favor de uma afirmação. Sem boas razões, não há juízo ético. O ‘dilema de
Eutífron’ apresentado por Sócrates põe em evidência essa questão.
A vida nos leva sempre a ter que tomar decisões éticas, seja no plano
existencial, seja no plano social. Portanto as respostas e, principalmente, os
fundamentos que orientem nossas respostas teóricas e práticas à questão ‘como
devemos viver?’ serão fundamentais para nossa qualidade de vida.

Um precedente histórico
A ética laica ou humanista entende que não é necessário (nem suficiente) ter
religião para ter virtude moral. Temos à nossa disposição fontes de orientação
ética: bom senso, raciocínio, piedade natural etc. Mas, o que significa dizer que a
piedade natural, por exemplo, pode guiar a uma virtude moral? A piedade
(pietas), a comiseração, a pena dos males alheios é, para muitos pensadores, um
sentimento universal e natural. Com diferentes conceitos –‘amizade’ (Aristóteles),
‘humanidade’ (Cícero), ‘piedade’ (Rousseau), ‘compaixão’ (Schopenhauer)–
muitos filósofos defenderam essa ideia.
Podemos esclarecer a questão fazendo uma fugaz viagem à antiga China. Ali, no
século IV antes de nossa era, o filósofo Mêncio afirmou que qualquer pessoa que
visse uma criança a ponto de cair em um precipício, correria para salvá-la. E faria
isso imediatamente, automaticamente, sem se questionar sobre qual é a cor, a
condição social ou a religião da criança. Esse impulso solidário é instintivo,
destacou Mêncio; tem sua origem na piedade natural, que é o ponto de partida
de nossas condutas éticas (cf. Droit [2009]: III).
Acho que o ponto em questão no exemplo de Mêncio é que nossas condutas
éticas não provêm da consulta de livros de mandamentos religiosos. Isso fica
claro se pensarmos em áreas da ética contemporâneas que incluem reflexões
sobre nossa relação com outras espécies ou com humanos ainda não nascidos.
Toda pessoa sensível coincidirá que “é cruel” fazer sofrer um cachorro, ou que
20
“é imoral” poluir o planeta que herdarão futuras gerações. Ou, reescrevendo o
que foi dito anteriormente de um modo mais objetivo: se uma pessoa afirmar
que “é cruel” fazer sofrer um cachorro, ou que “é imoral” poluir o planeta que
herdarão futuras gerações, poderemos ou não coincidir com ela, mas com
certeza qualificaríamos suas afirmações como ‘éticas’. A questão é que essa
pessoa dificilmente encontrará algum preceito explícito sobre esses assuntos nos
tratados religiosos clássicos. Mêncio, aliás, observou que nossa piedade se faz
extensiva aos animais, dando alguns passos iniciais em direção a uma ‘ética
animal’...

Atividade prática
Quem habita este planeta não é o Homem, mas os homens. A
pluralidade é a lei da Terra.
Hanna Arendt, A vida do espírito
A ética humanista, em contraste com a ética autoritária, pode distinguir-
se dela por um critério formal e outro material. Formalmente baseia-se
no princípio de que só o homem por si mesmo pode determinar o
critério de virtude e pecado, e não uma autoridade que o transcenda.
Materialmente baseia-se no princípio de que ‘bom’ é o que é bom para
o homem e ‘mau’ o que lhe é nocivo, sendo o bem-estar do homem o
único critério de valor ético.
Erich Fromm, Ética e psicanálise
Humanizamos o que ocorre no mundo e em nós mesmos apenas ao
falar disso, e no curso da fala aprendemos a ser humanos.
Hanna Arendt, Homens em tempos sombrios, 33-4

Até aqui vimos que existe uma grande diferença entre duas visões de Ética. A
que podemos denominar Ética laica ou humanista (que não é, em absoluto,
anti-religiosa) e a Ética religiosa ou autoritária (que é difícil negar que não se
incomode com os princípios pluralistas da Ética laica).
A seguir, você poderá ler um fragmento de um texto do historiador Y.
Harari, que confronta essas duas Éticas. Na parte final do fragmento escolhido,
ele compara decisões baseadas na compaixão, valor central da Ética laica, e
decisões baseadas na obediência à autoridade, fundamento da Ética religiosa, e
comenta: “Existe algo profundamente perturbador e perigoso no que tange a
pessoas que evitam matar só porque ‘Deus diz assim’”. Você acha que um
praticante radical da Ética religiosa tem como fugir de que um observador
externo, como Harari, faça um comentário dessa classe?
“[...] O que é o ideal laico ou secular? O compromisso secular mais importante é
com a verdade, que se baseia em observação e evidência e não na fé. Os
seculares esforçam-se para não confundir verdade com crença. Se você tem uma
crença muito forte numa narrativa, isso pode revelar muitas coisas interessantes
sobre a sua psicologia, sua infância e sua estrutura cerebral –mas não prova que
essa narrativa é verdadeira. (Muitas vezes, crenças fortes são necessárias
justamente porque a narrativa não é verdadeira).
21
Além disso, seculares não santificam nenhum grupo, nenhuma pessoa ou
nenhum livro como se ele ou ela, e só ele ou ela, tivesse a custódia única da
verdade. Em vez disso, santificam a verdade onde quer que ela possa se revelar –
em antigos ossos fossilizados, em imagens de galáxias distantes, em quadros de
dados estatísticos, ou nos escritos de várias tradições humanas. O compromisso
com a verdade fundamenta a ciência moderna, que capacitou o homem a
fissionar o átomo, decifrar o genoma, rastrear a evolução da vida e compreender
a história da própria humanidade.
O outro compromisso básico das pessoas seculares é com a compaixão. A ética
secular baseia-se não em obedecer aos preceitos deste ou daquele deus, e sim
numa profunda apreciação do sofrimento. Por exemplo, pessoas seculares
abstêm-se de assassinar não porque algum livro antigo proíbe, mas porque o ato
de matar inflige imenso sofrimento a seres sencientes. Existe algo profundamente
perturbador e perigoso no que tange a pessoas que evitam matar só porque
“Deus diz assim”. São pessoas motivadas mais por obediência do que por
compaixão, e o que farão elas se vierem a acreditar que seu deus lhes ordena que
matem hereges, bruxas, adúlteros ou estrangeiros? [...].
Harari, Yuval, 2018, “Secularismo: tenha consciência de sua sombra”

Atividade prática II
Ludwig Feuerbach afirmou: “Quando a moral se torna dependente da autoridade divina, as
coisas mais imorais, injustas e infames podem ser justificadas e estabelecidas” ([1841]: 314).
A frase faz sentido?

Sócrates e o Eutífron: O que é (moralmente) correto?


O Eutífron de Platão está centrado em um diálogo entre Sócrates, nosso
pensador crítico, e Eutífron, uma espécie de sacerdote ou pastor, que se
apresenta como alguém que “sabe com exatidão como são as coisas divinas, e o
que é o correto e o incorreto” (Eutífron, 5e).
Já no início do diálogo, questionado por Sócrates, Eutífron define o que é
‘eticamente correto’. Simplesmente, eticamente correto é “o que é ordenado
pelos deuses”.
Ou seja, para Eutífron, as ações e crenças éticas dependem dos
mandamentos, ordens, leis ou comandos de uma divindade (ou de várias
divindades), mandamentos aos quais temos acesso pelos textos religiosos. Em
síntese: a ética está subordinada à religião. Mas, essa é uma boa crença?
Eutífron tinha a absoluta, dogmática e acrítica convicção de que sim, que é
obvio que o que é eticamente correto pode ser definido como “o que é
ordenado pelos deuses”. Mas, como sabemos, Sócrates exige que a vida seja
examinada... Então, essa crença, importante para a vida, deve ser examinada.
Qual o resultado desse exame?
Aqui, estamos particularmente interessados em uma breve passagem do
Eutífron, passagem em que Sócrates, de modo contundente, questiona uma
crença (acrítica) que Eutífron, e todos nós, temos como óbvia e verdadeira: que
22
a ética depende da religião. Ou, de modo mais simples, que “o bem consiste
em fazer sempre o que Deus ordena”. Disse Sócrates:
“Uma crença é correta porque Deus a ordenou, ou Deus ordenou essa crença
porque ela é correta?”.

Pausa.
Pense sobre o assunto.
Você acredita que a ética depende da religião? Caso você acredite nisso,
poderia justificar sua crença respondendo a objeção de Sócrates?

O raciocínio crítico e o argumento de Sócrates


Disse Sócrates:
“Uma crença é correta porque Deus a ordenou, ou Deus ordenou essa crença
porque ela é correta?”.

“A questão de Sócrates é se Deus faz verdades morais ou se ele meramente


reconhece que elas são verdadeiras” (Rachels e Rachels, [2012]). Em outras
palavras: ele pergunta se Deus inventa ou se Deus descobre as verdades morais.
A versão formalizada do argumento é a seguinte:
–Uma crença (A) é correta porque Deus a ordenou ou
(B) Deus ordenou essa crença porque ela é correta?
–Se A, então deus é arbitrário
–Se B, então deus é desnecessário
–Deus é arbitrário ou desnecessário

Um dilema!
Não é nada bom ter um [touro agarrado pelos
chifres]: você não sabe nem como soltá-lo nem
como continuar segurando-o.
Terêncio Afro, c. 160 a.C., Phormio, 506
Dilema, lembremos, é uma situação problemática na qual é preciso escolher entre
duas alternativas contraditórias e igualmente inaceitáveis. O nome original do dilema
é “raciocínio dedutivo com dois chifres (syllogismus cornutus)”, devido à difícil
situação na qual se encontra quem o enfrenta.

Eutífron se encontra perante duas situações indesejáveis, [A] e [B]. Se [B], então o
que quer que seja bom é bom sem importar a opinião dos deuses. Se [A], então os
deuses poderiam, em vez disso, ordenar outra conduta.
Na situação [B], os deuses não têm função alguma no estabelecimento dos
valores morais: a moralidade é independente da religião. Na situação [A], os deuses
têm uma função instável: a moralidade é arbitrária.
23
Em síntese: quando se trata de moralidade, ou Deus é arbitrário ou Deus é
desnecessário.

Quando se trata de moralidade, ou deus é arbitrário ou deus é desnecessário.


Em síntese, podemos concluir, com Ayer (1968), que “nenhuma ética pode ser
fundada na autoridade, mesmo que a autoridade seja divina”.

Detonando Eutífron...
Ao longo do Diálogo Eutífron, à medida que Sócrates desenvolve seus
argumentos, vemos um Eutífron cada vez mais constrangido, tentando ajustar
sua definição, ‘afundando-se’ cada vez mais. A decepção e desilusão de
Sócrates no diálogo final pode nos dar uma ideia do resultado desse exame:
Sócrates: –Você acredita saber com precisão o que é [moralmente correto];
portanto, caro Eutífron, não me ocultes o que é.
Eutífron: –Em outra ocasião, oh Sócrates; agora tenho pressa, é tempo de eu
ir embora.
Sócrates: –O que você faz, amigo? Se retira levando com você minha grande
esperança de aprender o que é [moralmente correto]! (Eutífron, 15e).

Eutífron, encurralado entre a realidade e os argumentos de Sócrates,


simplesmente escapa vergonhosamente do debate, inventando uma triste
desculpa. Desse final podemos concluir que o tema não era tão simples como
Eutífron acreditava inicialmente...
Também podemos vivenciar com muita clareza por que as pessoas em geral
não gostam do raciocínio crítico...

24
Por que é difícil revisar crenças?
Voltemos a considerar a rede hierárquica apresentada acima.
Suponha que você acredita na crença básica ‘Deus existe’. Consegue
imaginar como seria a sua vida se, num dado momento, deixasse de acreditar
que Deus existe? Talvez você mudaria a sua relação com outras pessoas.
Possivelmente você mudaria sua relação com as instituições religiosas. A sua
crença em que “A ética depende da religião”, por exemplo, deveria ser
modificada. Você poderia, por exemplo, concluir que “tudo está permitido”, ou
tentar julgar a moralidade pela razão. Existem várias possibilidades. Mas o
ponto aqui é que revisar essa crença básica não nos resulta conveniente ou
confortável, porque altera nossa cosmovisão.
Quando observada no sentido inverso, i.e., da crença derivada à crença
básica, a rede revela outro obstáculo ao processo de revisão de crenças: se
fossemos convencidos pelo argumento de Sócrates de que “A ética não
depende da religião”, teríamos que rever (ou reorganizar) a crença básica que
fundamenta a crença derivada CD ’: ‘Deus existe’. Mas isso, evidentemente,
2

não resultaria muito agradável de fazer para um crente dessa rede...

–Droit, Roger-Pol, [2009], Ética: uma primeira conversa, Martins Fontes, S.P., 2012.

***

O dilema de Eutífron é um argumento ineludível da


história da filosofia. Tanto que o filósofo Antony
O dilema de Eutífron
Flew sugere que “um bom teste da aptidão de
como teste de aptidão no
alguém para a filosofia é descobrir se ele pode
raciocínio crítico
apreender a força e o ponto” desse dilema (apud
Rachels e Rachels).

25
Epicteto e o padrão para pesar crenças 13

Sergio Hugo Menna, 2020b


A origem da filosofia [...reside na] compreensão da necessidade de
encontrar um padrão de juízo, comparável à balança que desenhamos
para determinar pesos.
Epicteto, Dissertações, 2.11.13-15
14

Resumo: A busca de um padrão ou método para avaliar crenças tem uma longa
história. Epicteto foi um dos primeiros autores a explicitar claramente a importância
dessa busca. Neste trabalho, analiso uma passagem de seu livro Dissertações, na qual
ele sintetiza seu pensamento sobre o assunto.
Palavras-chave: Epicteto, método, raciocínio crítico, crenças.
Abstract: The search for a rule or method for evaluating beliefs has a long history.
Epictetus was one of the first authors to clearly explain the importance of this search. In
this paper I analyze a passage from his book Discourses, where he synthesizes his
thoughts on the subject.
Key-words: Epictetus, Method, Critical reasoning, Beliefs.

Crenças e guerra de crenças


As crenças, nossas crenças, as crenças diferentes das nossas, as crenças opostas
às nossas; as grandes crenças, as pequenas, as perigosas, as aparentemente
inofensivas; o choque de crenças, as crenças estranhas, as crenças herdadas, a
crença nas crenças, enfim, todas as crenças e nossa convicção em nossas
crenças determinam os emaranhados rumos da história humana.
Que outra coisa além de crenças em harmonia pode impulsar as grandes
obras coletivas e as sociedades criativas? Que outra coisa senão uma guerra de
crenças pode ser postulada como a causa real das grandes guerras reais e até
dos pequenos conflitos quotidianos? Que mais do que crenças fanáticas e
fundamentalistas estão na base do racismo, do nacionalismo, do sexismo, do
especismo e de todas as formas de supremacismo (sempre ilusório) e de
discriminação (sempre cruel) que assolam o mundo contemporâneo?
Pessoas fazem carreatas e buzinam na frente de hospitais lotados de doentes
para se queixarem de um vírus que dizem que não existe, e não usam máscaras.
Crenças. Crenças bizarras, sim; contudo, crenças. Pessoas pedem que os
militares garantam sua ‘liberdade’ de morrer e contaminar seus concidadãos
indo trabalhar no pico do coronavírus. Crenças. Crenças que denotam falta de

13
Artigo publicado na Revista O Manguezal. Menna, Sergio Hugo, “Epicteto e o padrão para pesar
crenças”, O Manguezal – Revista de filosofia 5, 192-201, 2020, E-ISSN: 2674-727.
14
Epicteto, [c. 135], Dissertações, 2.11.13-15. Daqui em diante, a referência (n.n.n) remete,
respectivamente, aos números do livro, da parte e da(s) linha(s) extraídas das Dissertações de
Epicteto, e a referência (M n.n) remete, respectivamente, a ‘Manual’, e aos números do capítulo e
da seção do Manual (Encheirídion) desse autor.
Agradeço ao prof. Aldo Dinucci pelos esclarecimentos sobre os termos técnicos em grego.
26
formação cidadã, porém, sempre, crenças. Crenças ruins, crenças falsas,
crenças errôneas, crenças irracionais, crenças invisíveis, crenças às vezes nativas
e crenças muitas vezes implantadas e sempre manipuladas para serem
operativas nas mentes de seus ingênuos portadores. Mas, em todos os casos,
crenças. Crenças, crenças, crenças.
Terêncio, um dramaturgo romano do século II, escreveu em sua comédia
Phormio: “Muitos homens, muitas crenças”. Erasmus deixou registrado que
essa frase foi muito popular no Renascimento, e dramaturgos, poetas e
pensadores, desde aqueles tempos até nossos dias, não deixaram de destacar
esses fatos correlatos: as pessoas são diferentes e, portanto, têm crenças
diferentes. “Alguns homens se deleitam com certas coisas; outros com outras”,
comenta Homero na Odisseia; “Os homens são de mil tipos diferentes e muito
variadas são as histórias de suas vidas: cada um tem seus próprios desejos”,
afirma o poeta latino Persius (Satires 5.52-5). E poderíamos continuar
acumulando frases de diferentes épocas e lugares com afirmações
semelhantes...
O aforismo de Terêncio, “Muitos homens, muitas crenças”, é bem
interessante. Sugere que os desejos e as preferências pessoais decidem as
crenças que cada um sustenta. Mas também insinua que da diversidade de
crenças inevitavelmente se seguem desacordos. Epicteto, um escravo que
chegou a ser o maior pensador do século II, explicitou essa implicação:
“Existem conflitos entre as crenças dos homens” (2.11.13).

O padrão de juízo
Filósofos antigos e metodólogos modernos entenderam que esses conflitos
poderiam ser resolvidos (ou, pelo menos, atenuados) se fosse possível
encontrar ou construir um método –um “padrão de juízo”, um procedimento,
uma forma de raciocínio– que pudesse diferenciar as boas crenças das crenças
ruins; ou seja, se tivéssemos um critério ou um conjunto de critérios que
permitisse classificar as crenças em função de sua proximidade com a verdade.
Com esse procedimento todos adotaríamos crenças confiáveis, e as relações
entre as pessoas tenderiam à harmonia e não ao conflito ou à guerra. Assim,
uma crença que representasse adequadamente a realidade seria reconhecida
como ‘conhecimento’; uma crença que não retratasse com precisão a realidade
continuaria sendo considerada uma ‘mera crença’ e catalogada como um erro,
uma falsidade, ou, até, como uma ilusão ou um delírio. “Se aquilo que é justo o
fosse para todos/ não existiriam conflitos entre os homens”, sintetizou o grande
poeta Eurípides. O “padrão de juízo” –o “raciocínio crítico”, em termos
contemporâneos– poderia mostrar a todos o que é justo, o que é verdadeiro e o
que é belo.
Lembremos, a modo de exemplo, que Anaxágoras acredita que ‘A Terra é
plana’ e que Sócrates acredita que ‘A Terra é redonda’. Existe, evidentemente,
27
“um conflito” entre essas crenças, e uma potencial disputa entre Anaxágoras e
Sócrates. Segundo os filósofos e metodólogos mencionados, se tivéssemos um
padrão de juízo que permitisse ponderar, julgar e avaliar adequadamente essas
crenças e, consequentemente, determinar qual delas é a melhor, poderíamos
diferenciar a realidade da aparência e o conhecimento da crença, e o conflito
ficaria resolvido. Neste caso, o padrão consistiria em uma simples experiência:
“Observemos esses barcos que estão partindo do porto. Se a Terra for plana, os
barcos diminuirão de tamanho na medida em que se afastam da costa; se a
Terra for redonda, os barcos ‘afundarão’ na medida em que se distanciam de
onde nós estamos: primeiro deixaremos de ver o casco; só depois, lentamente,
o mastro sumirá de nossa vista”. Essa experiência, e o raciocínio construído a
partir dela, constituem o padrão de juízo que resolve a questão. A qualidade
epistêmica da afirmação ‘A Terra é redonda’ seria apreciada com justeza por
todos, assim como a de qualquer outra afirmação sobre a realidade. Desse
modo “Não existiriam conflitos entre os homens”, idealmente, sobre nenhum
assunto...
O padrão de juízo teria outra utilidade quase tão importante quanto a de
evitar os conflitos. Ao permitir, digamos, “diferenciar o fato da ficção e o
verdadeiro do falso”, evitaria que as pessoas se extraviassem na irrealidade.
Epicteto capta essa função com toda claridade: “O padrão, quando encontrado,
resgatará da loucura aqueles que usam a sua opinião ou ‘parecer’ como medida
de tudo” (2.11.18). Com essas observações, ele extrai um corolário do que
sucede àqueles que abraçam crenças sem tentar estabelecer contato com a
verdade: se alienam da realidade, desejam o que não depende deles e tentam
fazer o impossível; por último, entram nos becos sem saída do delírio e da
alienação. E até de algo pior: “Até as grandes atrocidades têm como origem a
aparência” (1.28.11), observa ele pensando nas velhas atitudes tirânicas –nós
podemos atualizar essa observação pensando nas atuais atitudes fascistas. Ou
seja, Epicteto e outros pensadores da época compreenderam que só uma razão
desenvolvida na forma de padrões racionais –de raciocínio crítico, digamos–
pode avaliar a realidade com clareza e distinção e, consequentemente, nos
distanciar das aparências e, portanto, da alienação. Essa concepção é
importante, porque explicita que o exercício da razão e do raciocínio crítico –
que costumam ser reduzidos a uma mera exposição de um argumento técnico
que sustenta uma simples e inocente conclusão– nos distancia da loucura assim
como da violência e da intolerância. A tarefa racional e crítica é, portanto,
essencial. Epicteto capta essa questão com absoluta lucidez: “A luta [pela razão]
não é por algo banal, mas por ficar louco ou não” (fr. 28, apud Marco Aurélio,
[c. 180]: XI.38). Com essa concepção, Epicteto dá um tom polêmico à questão,
concepção que, poderíamos dizer, adquire muita atualidade em nossos dias.

28
A crença na crença
A busca por um ‘padrão de juízo’, i.e., por um método racional, teve uma longa
e criativa história. Valorizemos esse projeto ambicioso –e generoso– refletindo
novamente sobre sua proposta. Os conflitos humanos têm sua origem nos
choques entre crenças opostas, certo? Certo. Um padrão que possibilitasse
avaliar crenças rivais permitiria distinguir as crenças em função de sua
qualidade, certo? Certo. Então, se conseguíssemos encontrar um padrão
racional, todos os conflitos seriam dissolvidos, e a loucura, “a desconfiança
mútua” e o ódio poderiam ser abolidos, certo?
Nem tanto. Ironicamente, pensadores, filósofos e cientistas resolveram a
parte que parecia mais difícil da equação: encontrar um padrão de juízo que
pudesse diferenciar as boas crenças das crenças ruins. Mas, infelizmente, a
própria história revela que tal padrão não serviu muito para o objetivo de
resolver definitivamente os conflitos existentes “entre as crenças dos homens”
ou para tirá-los do delírio. Basicamente, porque aqueles que sustentam crenças
acreditam em narrativas que lhes resultam emocionalmente confortantes –
“acreditam na crença”, não nos padrões racionais para avaliar crenças e os fatos
que as sustentam. Porque constroem sua visão de mundo a partir da tradição
acrítica, da autoridade manipuladora ou de uma politizada e, por isso,
degradada religião.
Esse fracasso parcial do projeto de construir padrões racionais para ponderar
crenças, entretanto, não deve nos fazer esquecer do seu valor: graças à aplicação
sistemática de padrões de juízo como o raciocínio crítico e o método científico,
muitas pessoas no mundo humanizado cuidaram e cuidam adequadamente de
si mesmas e de sua comunidade. Hoje, por exemplo, podemos sustentar, e com
excelentes argumentos, que a Terra é redonda e, com evidências incontestáveis,
que jejum, preces e cloroquina não curam a Covid-19, e muitos outros itens de
conhecimento registrados nos livros didáticos e nas enciclopédias. Portanto, é
uma boa ideia dedicar um pouco de nosso tempo a compreender o que é um
padrão racional, ou, em termos mais contemporâneos, o raciocínio crítico, e
porque ele é importante para nossa vida e nossa qualidade de vida.

A busca pelo padrão: Epicteto e o aperfeiçoamento da razão


Assim como um peso faz inclinar o braço de uma balança, a evidência
faz assentir a nossa mente.
Cicero, [45 a.C.], II.xii.38

A busca de padrões ou métodos racionais de avaliação –em síntese, de critérios


de raciocínio crítico– é um projeto constante na história do pensamento, pelo
menos no Ocidente. Poderíamos ilustrar esse projeto com o método de
Sócrates ou o de Aristóteles, ou com algum dos vários métodos da
Modernidade, como o de Bacon ou o de Descartes, ou com os principais da
29
Contemporaneidade, como o de Peirce ou o de Popper. Porém, não é
necessário desenvolver casos particulares e sofisticados. O objetivo central do
texto é esclarecer a estrutura dos procedimentos de construção e escolha de
crenças, tarefa que somente requer fazer um estudo geral e comparativo das
principais estratégias de construção de crenças existentes, sejam elas boas, como
o raciocínio crítico, sejam elas ruins, como a tradição, a revelação ou a
autoridade. Por isso, decidi acompanhar minha exposição com as simples
observações de um peculiar pensador de nome Epicteto, que insistiu sobre a
importância decisiva de elaborar padrões para pesar crenças.
Epicteto (55-c.135) foi um pensador grego que viveu em Roma. Escravo
durante grande parte de sua vida, dedicou-se à filosofia quando libertado. Lúcio
Flávio Arriano, um dos seus estudantes, comparou Epicteto a Sócrates –
seguramente por considerar que a obra de seu mestre estava à altura do genial
mestre do grande Platão; talvez considerando-se ele mesmo, discípulo do novo
Sócrates, como um novo Platão. Arriano não chegou a ser um novo Platão, mas
seu nome ficou na história por ter reunido suas anotações das aulas de Epicteto,
as quais, por volta do ano 140, publicou com os títulos Dissertações (Diatribes)
e Manual (Encheirídion).
Uma passagem do Livro II das Dissertações fala sobre o conceito em que
estou interessado: o padrão de juízo, e de sua importância na avaliação de
crenças. Por isso, primeiro transcreverei essa passagem e depois a comentarei
em detalhe, tentando revelar tudo o que Epicteto pode ter querido nos dizer
sobre os padrões. Para facilitar a análise, incorporei números entre colchetes,
[n°], distinguindo as unidades temáticas.
“[1] Esta é a origem da filosofia: [2] a tomada de consciência de que existe um
conflito entre as crenças dos homens, e [3] a percepção de que é preciso, então,
examinar cada crença para ver se é correta, [3.1] mantendo sempre uma atitude
de recusa da mera crença. [4] Também, o reconhecimento de que se deve
procurar a fonte do conflito entre as crenças. Por último, e principalmente, [5] a
compreensão da necessidade de encontrar um padrão de juízo, comparável à
balança que desenhamos para determinar pesos, ou à régua que usamos para
determinar se as linhas são retas ou tortas. [...].
[6] Que algo pareça certo para uma pessoa, é suficiente para que de fato sua
crença seja verdadeira? É possível que crenças contrárias [que parecem certas
para pessoas em conflito] sejam ambas corretas? Não, não é possível que todas
estejam certas. Portanto, a opinião de uma pessoa não é um critério para
determinar a verdade. O fato de algo parecer certo a um indivíduo não faz com
que de fato seja certo. Pois mesmo no caso dos pesos e das linhas não nos
satisfazemos com a mera aparência; pelo contrário, buscamos um cânone ou
padrão para cada caso. [7] Não haverá, então, neste caso [i.e., no caso do conflito
entre as crenças], um padrão mais elevado do que a mera opinião? É concebível
que aquilo que é mais necessário na vida não possa ser definido e descoberto?
Não; em absoluto: o padrão (κανόνα) existe.

30
[8] E por que, então, não o buscamos? E por que depois de descoberto não o
utilizamos? [9] O padrão, quando encontrado, resgatará da loucura aqueles que
usam a sua opinião ou ‘parecer’ como medida de tudo. [10] Por quê? Porque
com o padrão eles poderão, partindo de princípios e conceitos claramente
definidos, examinar e julgar todos os casos particulares.
–Que assunto cabe pesquisar?
–O prazer.
–Submetam-no ao padrão, coloquem-no na balança. [...].
[11] É desse modo que se julgam e ponderam os assuntos depois de dispor de
padrões. [12] E é nisso que consiste a filosofia: em identificar e estabelecer os
padrões; [12.1] fazer uso deles depois de conhecidos é a atividade da pessoa
sábia e boa” (Diss., 2.11.13-20; itálico meu).

O texto exprime, em poucas linhas, grande parte dos objetivos da filosofia


ocidental. [1] De modo muito significativo, Epicteto identifica a origem do
pensamento reflexivo nas crenças. [2] Mais especificamente, na constatação da
constante existência de crenças em conflito; no fato de que há, digamos, uma
perpétua guerra de crenças entre as pessoas. [3] Por esse motivo, ele entende
ser necessário examinar todas e cada uma das crenças para determinar se são
de qualidade, porque, é claro, [3.1] uma “mera crença”, uma crença que não
esteja vinculada com a realidade é epistemicamente desinteressante e existencial
e eticamente perigosa. “Que tempestade maior do que a de [crenças] poderosas
que arrancam nossa razão? E o que mais é esta tempestade senão uma
[crença]?” (2.18.29). [4] Do caráter perigoso e pernicioso das crenças se segue a
necessidade de indagar a fonte do conflito, o que nos leva a investigar as fontes
das crenças.

E se revisarmos nossas crenças?


Não é a descrença que é perigosa em nossa
sociedade: é a crença.
George Bernard Shaw, [1915]: Iviii.

Uma crença, segundo os dicionários, é o estado, disposição, processo, atitude


ou representação mental de quem acredita (em alguma coisa). Em outros
termos, é o que acontece na mente, não na realidade. O fato de estarem
fechadas na mente torna as crenças entidades difíceis de serem avaliadas e
mudadas.
Uma forma de chegar ao coração das crenças consiste em confrontar seu
conteúdo com as informações e os fatos que a realidade nos oferece –ou seja,
aplicar o raciocínio crítico. Essa abordagem nos permite decidir se a crença é
de qualidade, i.e., se é uma boa representação da realidade ou simplesmente a
expressão de uma ilusão ou de um delírio. Do ponto de vista cognitivo, é uma
abordagem bem útil e decisiva: com ela podemos compreender o mundo. Mas
essa abordagem não nos permite entender por que sustentamos as crenças que
31
sustentamos. Para isso, i.e., para nos compreendermos, temos que dar um
passo além: temos que compreender a origem das crenças que sustentamos,
temos que estudar a natureza de suas fontes.
Como sabemos, as crenças podem ter fontes muito diversas. Acreditamos –
i.e., fixamos crenças em nossa mente– por muitos motivos, e por motivos bem
diferentes. Às vezes, acreditamos conforme nossos sentidos nos informam: se
nossa visão nos disse que a pedra à nossa frente é branca, acreditamos que na
nossa frente há uma pedra que é dessa cor. Em muitos outros casos,
acreditamos por autoridade, i.e., acreditamos naquilo que afirma uma pessoa
ou instituição que respeitamos intelectualmente, moralmente etc.: quando
crianças, por exemplo, se nossos pais dizem que Deus e Papai Noel existem,
cremos cegamente em suas palavras (mais tarde, quando dizem que Papai Noel
não existe, também acreditamos neles).
Criancinha Casimiro: –Acredito que Deus e Papai Noel existem.

Por quê?
Criancinha Casimiro: –Porque minha avó contou isso para a minha mãe, e
minha mãe disse para mim.

Esta conversa imaginária com o poeta Casimiro de Abreu (quando criança) nos
oferece um exemplo (parcialmente) real. Casimiro (quando adulto) deixa claro,
em seu poema “Deus”, que começou a acreditar em Deus porque sua mãe lhe
disse que Ele existia (cf. [1853]). Sua mãe nada lhe disse, segundo sabemos,
sobre Papai Noel (nessa época essa crença não estava incluída na cesta básica
da tradição). Mas Xuxa, nossa querida Rainha dos baixinhos, em sua canção
“Papai Noel existe” exprime o ‘clima de opinião’ fazendo as criancinhas
cantarem “Papai Noel existe!”, perpetuando acriticamente essa crença.
Acreditar cegamente na Xuxa e nas autoridades, é uma boa forma de adotar
crenças?
Até o momento, falamos de duas fontes de crenças: os sentidos e a
autoridade. Mas, é claro, existem muitas fontes mais. Por exemplo, também
acreditamos por tradição. Seguimos os preceitos da nossa família ou da nossa
‘tribo’; achamos normal o que elas acham ‘normal’, só por estarmos
familiarizados com suas crenças, que por isso tornamos nossas.
Aprendemos a acreditar na tradição de acreditar na tradição. Aqui podemos
fazer uma pausa para revelar que essa fonte de crença é, também, fonte de
conflito: do mesmo modo em que achamos ‘normal’ um preceito moral
herdado de nossa tradição, acharemos ‘anormal’ (e até ‘imoral’) um preceito
moral muito diferente de pessoas de outras tradições –elas, por sua vez,
seguramente acharão ‘anormal’ (e até ‘imoral’) algum dos nossos ‘muito
normais’ preceitos morais. Conflito. Se não estivéssemos habituados a achar
que a tradição acrítica como forma de fixação de crenças é ‘normal’,
32
reconheceríamos que esse procedimento é muito ‘anormal’.
Sim; vistos de perto, tradição e autoridade são procedimentos de adoção de
crenças realmente estranhos –e, enquanto acríticos, potencialmente perigosas e
cruéis. Por isso, até que não ‘examinemos’ nossas vidas –i.e., enquanto
continuarmos sem revisar criticamente nossas crenças e as fontes dessas
crenças–, continuaremos vivendo como escravos (inconscientes) das tradições e
autoridades que por (des)ventura adotemos como ‘nossas’.

Um exemplo invisível
É importante ter em mente que para pensar soluções para
uma realidade, devemos tirá-la da invisibilidade.
Djamila Ribeiro

Apresentar um exemplo de revisão de crenças pode nos ajudar a entender


adequadamente a importante ‘escolha de vida’ que está em jogo na tarefa de
revisão crítica das nossas crenças15. Há alguns dias li um texto muito lúcido de
uma pesquisadora que examinou criticamente uma crença implantada (pelas vias
da autoridade e da tradição) em seu sistema de crenças. “A história da minha
educação para o racismo me diz que fui racializada como branca para ser
racista”, constata ela. E continua:
“Fui marcada como branca a fim de que esta marcação funcionasse como signo
de superioridade. Mas a mim hoje parece fácil perceber que a necessidade de
marcação de superioridade só existe para aquele que se sente inferior, que se sabe
fora do lugar de superioridade que almeja. [Por isso], há muitos anos tenho
trabalhado para desconstruir as camadas de racismo que me foram sobrepostas”16.
Esse texto, direto e honesto, explicita claramente a presença de uma rede de
crenças invisíveis, de camadas sobrepostas de crenças, oculta atrás do conceito de
‘racismo’. Porque o racismo pode ser algo muito mais sutil do que capta sua
definição de dicionário, i.e., a “atitude de hostilidade em relação a determinada
categoria de pessoas” (cf. Oxford Dictionaries). Um especialista no assunto faz
uma caracterização cirúrgica do problema: “O racismo pode ser a expressão de

15
“Eu sou eu; eu estou onde está a minha escolha de vida”, disse Epicteto enfatizando a importância
do conceito (2.22.20). Com a expressão ‘escolha de vida’ (prohairesis), Epicteto pretende qualificar
aquelas decisões vitais através das quais expressamos nosso juízo –e, também, nossa liberdade e
nossa responsabilidade (cf. 1.17.18 e M 1.4, 1.9). A escolha vital é uma decisão racional e ética (e
existencial). Deriva da compreensão de uma distinção que veremos mais para frente: a que se segue
da discriminação racional entre as coisas que dependem de nós –tais como decidir livremente– e as
coisas que não dependem de nós –tais como as opiniões que os demais tem sobre nós. Uma vez
que internalizamos essa distinção, compreendemos que nós somos os únicos responsáveis das
coisas que dependem de nós, e que, portanto, nós e somente nós somos os únicos responsáveis de
que um curso de ação regido por uma crença siga, ou não, o seu rumo.
Para o conceito de ‘escolha de vida’, cf. Hadot, 2015.
16
Sobre o autoexame crítico do racismo, cf. Rodrigues, 2020. Recomendo fortemente o texto. A
autora segue as orientações da ‘desconstrução’, e faz uma “crítica à suposição da neutralidade dos
discursos”, crítica que lhe permite ver que “quem continua pretendendo se ver como neutro ou
neutra é quem, por acreditar que não tem cor, pode continuar oprimindo –seja as pessoas negras,
seja as pessoas brancas subalternizadas– por uma suposta neutralidade do saber”.
33
crenças culturalmente sancionadas”, i.e., de crenças que não reconhecemos
porque estão ‘naturalizadas’, porque formam parte da água em que nadamos, do
ar que respiramos, do modo em que vemos o mundo (Wellman, 1977: xviii,
apud King, 2013: 215). O racismo invisível –como qualquer outro ‘ismo’ invisível
construído pelos fios sutis de imperceptíveis crenças culturalmente incorporadas–
, é bem pernicioso, pois é difícil de identificar –principalmente em nós mesmos–
e, portanto, de erradicar17. Ele é, como afirma uma especialista no tema, “um
hábito acrítico da mente (que inclui percepções, atitudes, suposições e crenças)
que justifica a desigualdade e a exploração ao aceitar a ordem existente como
dada” (King, 2013: 217; grifo meu).
Com o pano de fundo dessa e de outras invisibilidades, é impossível construir
uma sociedade igualitária, justa e democrática. Por isso um processo educativo
baseado no raciocínio crítico e na sensibilidade social são indispensáveis.
Infelizmente, como observa essa pesquisadora, para realizar essa tarefa é preciso
ter formação crítica “em lógica, ética e reflexão”, formação “que a maioria das
pessoas não recebe, nem mesmo para capacitá-las a analisar anúncios
publicitários”. “Não somos educados para o nosso próprio interesse”, sentencia
ela de modo contundente (King, 2015: 658).

Vida examinada, desconstrução, exame crítico de crenças herdadas e


implantadas; reflexão sobre si mesmo e sobre o lugar de fala; método socrático,
Padrão de Epicteto ou Padrão de Popper; psicanálise e consciência plena; tanto
faz a estratégia utilizada. O que importa é que revisemos criticamente nossas
crenças. Também, e principalmente, que analisemos com muita atenção as
fontes de nossas crenças, que compreendamos de onde elas vêm e porque elas
foram construídas. Olhando com cuidado, nos surpreenderemos ao reparar
que essas crenças não surgiram ‘naturalmente’ da experiência e da interação da
nossa própria rede de crenças com a experiência; pelo contrário, foram
sutilmente implantadas em nós por autoridades e pelo ‘clima de opinião’, e
foram inseridas na ‘opinião pública’ por pessoas que, a maior parte das vezes,
nem sequer acreditam nelas.
A sequência de atividades críticas antes mencionadas, i.e., revisar
criticamente nossas crenças e revisar as fontes de nossas crenças, é condição
necessária, mas não suficiente, para desmascarar nossas crenças e substituí-las
por outras melhores –i.e., mais adequadas a nossa realidade externa e a nossa
humanidade interna. Também temos que reconhecer nossos vieses cognitivos e
nossos preconceitos. Caso contrário, continuaremos carregando sentimentos
negativos e limitações de todo tipo sem perceber que nós mesmos

17
Para fazer referência ao conceito de ‘racismo’ como “expressão de crenças culturalmente
sancionadas”, utilizo o termo intuitivo ‘invisível’ e não termos mais técnicos como ‘estrutural’,
‘desconsciente’ ou ‘inconsciente’, pois suponho que esses termos técnicos têm nuances que
apontam a aspectos mais complexos do que aqueles que estou apresentando. Sou bem ciente –e
consciente– de que estou utilizando um exemplo de uma área que conheço pouco, mas me arrisco
a explorá-lo porque achei o exemplo expressivo, e porque entendo que se ajusta perfeitamente à
abordagem geral do meu texto.
34
inadvertidamente as impomos. Só depois estaremos em condições de
identificar algum ‘padrão’ –método, procedimento, raciocínio– que nos permita
determinar quais crenças funcionam e quais crenças não funcionam (no sentido
ético e no sentido epistêmico).
Permitir ou não permitir que uma crença fixada em nosso sistema cognitivo
determine sentimentos e ações, é uma escolha fundamental de vida que
impacta em nossa mente e em nossa possibilidade de liberdade, e que depende
de nossa responsabilidade. As crenças estão lá, ancoradas em nossa mente.
Poderíamos estar tentados a nos defender dizendo que nós não somos
culpados de que estejam onde estão: fomos educados para o racismo e para
outras formas de discriminação; fomos educados, como alerta Kant, para
obedecer a voz de ordem ‘Não raciocine: marche!’, ‘Não raciocine: pague!’,
‘Não raciocine: acredite!’; em nossa história pessoal nos foram “sobrepostas”
camadas e mais camadas de categorias artificiais que nos concedem uma fugaz e
ilusória superioridade, ao tempo que nos empobrecem existencialmente. E é
correto; as camadas sobrepostas de preconceitos com que fomos educados
começaram a se acumular em nosso cenário mental em uma etapa em que não
tínhamos ‘pleno uso da razão’. Mas, hoje, ‘em perfeito uso de nossas faculdades
racionais’, é parte da nossa decisão vital sermos cientes de que as crenças nunca
são inofensivas e que, gostemos ou não, nos constituem.
As crenças sempre determinam o que fazemos e o que sentimos.
“Deixaremos que antigas e silenciosas crenças continuem nos escravizando?” –
perguntaria Epicteto. “Teremos a coragem de ousar fazer uso da nossa própria
razão?” –perguntaria Kant.
“Depende de mim”, poderia cada um de nós lhes responder. “Eu decido: é
parte da minha decisão vital”; “eu estou onde está a minha escolha de vida”.
Afinal, como bem mostra o exemplo que estamos analisando, a escolha vital
tem a ver com nossa vida e nossa qualidade de vida, e com a vida e a qualidade
de vida daqueles que nos rodeiam –e dos que virão:
“Se hoje penso, escrevo, pesquiso e ensino contra o racismo é por não suportar
mais o sofrimento de viver num país em que pessoas negras são brutalmente
excluídas, violentadas e exterminadas em nome da minha suposta superioridade
branca. Esta é a cor da minha pele. Já o meu desejo tem sido destruir o racismo
que me impôs uma suposição de superioridade branca na qual não me
reconheço” (Rodrigues, ibid.).

Perfeito. Belíssima passagem. “O preconceito é uma crença que não foi


julgada”, disse Voltaire; julgada, desconstruída, criticada, a destrutiva crença –
“tempestade poderosa que arranca nossa razão”– é desativada, e o preconceito
“se dissolve no ar” –como um fantasma mitológico ferido pelos incisivos
argumentos.
Essa é a tarefa pendente em várias regiões das nossas redes de crenças:
revisar nossas crenças racistas, machistas, sexistas, microfascistas. Todos e
35
todas. Não há democracia plena, não há vida harmônica em comunidade –não
há possibilidade de grandes obras coletivas– com essas pulsões obscuras
vibrando em cada um dos que formam parte dela. E acho que podemos convir
que em todos os gráficos que ponderem tolerância, humanidade, laicidade ou
qualquer outro valor que potencialize a harmonia coletiva, hoje estamos no
nível vermelho –esse que nos filmes, com sirenes e luzes cintilantes, nos alerta
sobre a chegada do fim do mundo.
Se Epicteto lesse esse texto, com certeza não estaria familiarizado com vários
dos conceitos aqui mencionados, mas aposto que concordaria com a ideia
central. “Enfrentar tais tempestades depende de nós”, diria ele; “revisar essas
crenças é, sim, uma escolha de vida da pessoa sábia, justa e boa”.

Outras fontes de crenças


Alguns dizem conhecer lendo o fígado das aves, e não por
seu próprio raciocínio. É mais conveniente ouvi-los do que
acreditar neles.
Marcus Pacuvius

Falamos dos sentidos, uma fonte de crença confiável, e da autoridade e da


tradição (acrítica), fontes pouco e nada recomendáveis.
Existem, é claro, outras fontes de crenças ruins além dessas. Tendemos a
acreditar, por exemplo, naquilo que desejamos ou naquilo que nos parece
reconfortante, e estamos muito pouco interessados, nesses casos, em confrontar
a crença adotada ‘conforme nosso desejo’ com outra fonte independente de
informação –talvez um padrão– que aponta em direção de uma conclusão
diferente daquela apegada ao nosso coração. Muitos tentam ler as estrelas, o
voo dos pássaros, os sonhos; outros pretendem ler os fígados das aves; alguns
recomendam um medicamento sem ler a bula . Todos esses são casos em que
18

“é mais conveniente ouvir do que acreditar”. Essas estranhas fontes de crenças


sempre foram classificadas como modalidades do ‘pensamento mágico’ (ainda
que, como já observamos, essas fontes não tenham nada que possa ser
denominado ‘pensamento’). Nos últimos anos, porém, essas fontes passaram a
formar parte do complexo conceitual denominado ‘pós-verdade’: nossa
tendência a acreditar no que nossas emoções nos ditam e, consequentemente, a
negligenciar o que os fatos objetivos revelam, apesar de serem estes fatos nosso
único contato com a realidade. Assim, acreditamos facilmente em falsidades,
fake news e bobagens várias, muitas delas muito perigosas, que impactam em
nossa vida e em nosso futuro, e às vezes na vida e no futuro dos que nos
rodeiam. Como se não bastasse, infelizmente, também convertemos em fonte
de nossas crenças opiniões ridículas de gurus delirantes e de influenciadores
18
Cícero menciona a maioria dessas fontes. Cf. De adiv. I.15.28 e II.34.72; De nat. Deor. II.64.160
e II.65.163. Em todos os casos ele é cético sobre elas, além de opinar que “Conhecer o futuro é
inútil, e é miserável ficar angustiado sem qualquer benefício”. De nat. Deor. III.6.14.
36
ignorantes. Não raras vezes, as pessoas acreditam a partir do guia da fé –ou seja,
simplesmente por “acreditar na crença” e “ignorar evidências” (as expressões
são do grande romancista E. Forster, [1938]: 327-8). Em outros casos,
afortunadamente, as pessoas decidem em que acreditar seguindo as orientações
do raciocínio crítico e científico e das evidências disponíveis.

Fontes de crenças em conflito


Na pausa anterior mostramos de que modo uma única fonte de crenças –no
caso, a tradição– podia ser causa de conflitos; aqui podemos fazer uma pausa
final na apresentação das fontes de crenças, exemplificando de que modo
também surgem conflitos do choque de duas fontes de crenças diferentes, tais
como a razão –a confiança em um padrão racional como o raciocínio crítico– e
a fé –a crença injustificada na crença.
Cenário real: pandemia. Algumas pessoas, levadas pela cega fé, defenderam
que ‘Jejum e preces curam a Covid-19’ e que, portanto, era necessário fazer
jejuns e rezar; outras pessoas, orientadas pelo raciocínio crítico e pelo raciocínio
científico, argumentaram que ainda não há cura para a Covid-19, e que o
aconselhável até se obter uma vacina é fazer quarentena, manter distanciamento
social, usar máscaras e nunca deixar de lavarmos as mãos com água e sabão –
poderosíssima e econômica descoberta científica. Crenças em conflito? Sim;
apesar de neste caso a realidade falar muito claro, aqueles que negam a
realidade e afundam no absurdo gritam mais forte –e, como vimos, até buzinam
na frente dos hospitais. Ficou registrado: o governo do Brasil propôs um jejum
para “enfrentar” o coronavírus. Em um ato no Palácio da Alvorada, um pastor
se ajoelhou e gritou ao mundo sua visão mística: “Quero em nome de Jesus
declarar que no Brasil não haverá mais mortes pelo coronavírus!”, disse
entusiasmado. Teria sido muito bonito, se não fosse pelo incontestável fato de
que sua visão mística precisava no mínimo de um oftalmologista: na mesma
noite dessa ‘intuitiva’ visão, as agências de notícias informaram que houve no
Brasil várias dezenas de mortos, e o número de decessos aumentou com o
passar dos dias, e nas semanas seguintes disparou em várias centenas, e o
contador seguiu somando e somando, até superar as mil pessoas por dia! –
média que continuou ao longo de vários meses e que o contexto ideológico
imperante garante que se manterá até que cheguem as vacinas, vacinas que o
contexto ideológico imperante garante que demorarão . Lembrando Sócrates,
19

podemos pensar que aquele que não tiver suas habilidades racionais
desenvolvidas, e por isso não tiver a capacidade de valorizar a qualidade de um
padrão racional, proporá qualquer absurdo, ou –o que é ainda pior– acreditará
cegamente em qualquer crueldade que propuserem aqueles que baixam o nível

19
O leitor interessado pode constatar essas observações na página da John Hopkins University, uma
incrível e útil ferramenta científica.
37
do padrão racional.
O problema, obviamente, não são as preces, o jejum ou qualquer outro rito
coletivo. Se fazem a algumas pessoas se sentirem melhor, qual o problema?
Nenhum do ponto de vista emocional. Podem rezar. Ou podem fazer
meditação zen ou dançar música trance se preferirem; o resultado não será
muito diferente –e será sem multiplicar entidades desnecessariamente . O 20

problema não é anímico, é epistêmico: sabemos que aglomerações aumentam


os contágios; existem evidências incontestáveis disso: em estádios, em cinemas –
e em igrejas, como no contundente caso da Coréia do Sul, em que foram
contagiadas mais de 5000 pessoas em um só evento! . Aglomerações aumentam
21

contaminações; logo, o ato no Palácio da Alvorada em lugar de eliminar as


mortes as potencializou. Não é questão de crenças; é questão de fatos. Um
velho provérbio diz: ‘reza, mas não deixes de remar em direção da costa’. A
cada uma das pessoas que estavam nesse ato, alguém deveria ter dito: ‘reza, mas
deixa de remar em direção do abismo’...
Além da crença ‘jejum e oração curam Covid-19’, foram ouvidas outras
variantes arrebatadoras: uma cidade desperdiçou recursos públicos decretando
21 dias de oração e até mesmo um ‘cerco espiritual’ como medidas de combate
ao coronavírus, e o fundador da principal rede de igrejas evangélicas de toda a
América Latina cunhou esta pérola poética: “Para estar ileso ao coronavírus é
preciso ter coronafé!” (sic)22. Nem é preciso dizer que o cerco não funcionou e
que o autor da famosa frase não saiu ileso do coronavírus. Será que não tinha
coronafé?
Nossos próprios olhos e o raciocínio crítico nos mostram que jejum, cerco
espiritual e coronafé não funcionam contra o coronavírus. Mais do que isso:
especificamente o raciocínio de refutação –que poderíamos denominar ‘Padrão
de Popper’– nos mostra que essas crenças são falsas, que devem ser
abandonadas, que quem as sustenta está equivocado ou mente... Então, por que
muitos não se importam com esse violento choque contra o senso comum, a
lógica e a realidade? Por que alguns acreditam arbitrariamente em

20
Existem, por exemplo, muitos estudos em psicologia evolucionista e neurociência que mostram
que a meditação zen ajuda a reduzir a ansiedade e os sentimentos negativos, assim como a iluminar,
i.e., a despertar de delusões e de crenças irracionais (cf. Wright, 2018). Existem estudos análogos
sobre o efeito da música trance na espiritualidade, na concepção ecológica e na experiência de
reencantamento (cf. Maccari, 2021). Ter um gato também ajuda.
21
<noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/08/01/lider-de-igreja-ligada-a-expansao-
do-coronavirus-na-coreia-do-sul-e-preso.htm>; <oglobo.globo.com/mundo/seul-processa-igreja-
evangelica-em-20-milhoes-por-causa-de-novo-surto-de-coronavirus-24646825>.
22
Um pastor ajoelhado no Palácio (no dia 05/04/2020): cf.Veja 2682, 15/04/2020. “Prefeito de
cidade do MS decreta ‘cerco de orações’ contra Covid-19”, cf. Aidar, 2020. “Para estar ileso ao
coronavírus é preciso ter coronafé”. Edir Macedo. Cf. <apublica.org/2020/03/megaigrejas-
continuam-abertas-e-dizem-que-fe-cura-coronavirus/>. O autor da frase não saiu ileso: cf.
<congressoemfoco.uol.com.br/saude/edir-macedo-que-chamou-coronavirus-de-tatica-de-satanas-
contraiu-covid-19/>.
38
custosíssimos feijões mágicos (R$ 1.000,00 o grão; no supermercado, você
obtém o mesmo produto por R$ 0,02)? Porque, como já indicamos, aqueles
23

que sustentam crenças insustentáveis acreditam irracionalmente nas crenças,


não nos padrões racionais. Porque uma crença adicional da fé em tempos de
peste é que, para aqueles que acreditam contra os ditames da realidade e da
razão, os casos negativos não contam, porque para eles a realidade e a razão
não contam. Conjetura: poderíamos supor que invertem a lógica; que acreditam
porque é absurdo. Simples e perigoso assim.
Imaginemos o que seria viver uma pandemia em um país que toma suas
decisões exclusivamente no ‘pensamento’ autoritário, religioso e mágico.
Imaginemos também, a efeito de comparação, um país que em pandemia toma
suas decisões exclusivamente no raciocínio crítico. Haveria diferenças brutais,
não é? Principalmente em questões de qualidade de vida. De um lado, não se
acreditaria no vírus, não se usaria máscara, não se manteria distanciamento
social, não se empregaria água e sabão, se potencializaria o surgimento de novas
cepas em uma eterna espera da ‘imunidade de rebanho’ e se tomaria cada dia
um medicamento diferente “para ver se funciona”. De outro lado, todo o
contrário, com campanha acelerada de vacinação. Em que país você gostaria de
viver?
Preces, jejuns coletivos e cercos espirituais podem servir para afugentar
momentaneamente o medo à morte, mas, pelo visto uma e outra vez, nada
podem contra um surdo bichinho microscópico que não escuta as vozes do
delírio. Rezas e jejuns e gritos não funcionaram na longa e obscura Idade
Média, que foi muito longa, muito obscura e teve mortes de todas as classes:
torturas, guerras, cruzadas, inquisição e, enfatizo, pestes de todo tipo. Não
funcionaram. Por que começariam a funcionar vários séculos mais tarde, na
nova Idade Média que à força de gritos e ignorância os novos obscurantistas
querem nos impor?
Continuemos com a análise da passagem de Epicteto; é mais reconfortante.
O interesse principal de Epicteto é [5] que compreendamos que é necessário
“encontrar um padrão de juízo” para poder avaliar crenças conflitantes sobre
um mesmo assunto e, é claro, escolher a melhor. De fato, em várias passagens
das Dissertações ele insiste na necessidade de achar um padrão ou cânone para
julgar crenças (cf. 1.20.7.1-2 e 1.28.32-33).
Quando fala em ‘padrão’, Epicteto está procurando um critério racional, um
instrumento crítico; no caso, para poder ponderar crenças. A palavra grega que
ele utiliza, κανόνα, designa um instrumento de medida. O complemento da
frase não deixa lugar a dúvidas sobre isso. Ele disse que o padrão que procura

23
<Noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/07/pastor-valdemiro-santiago-
vende-sementes-prometendo-a-cura-da-covid-19.htm>.
39
“é comparável à balança que usamos para determinar pesos” . Em uma balança24

de dois pratos, posso pôr um objeto em cada prato e decidir qual deles tem um
peso maior. Essa imagem pode ser estendida como metáfora, e, desse modo,
‘pesar’ mais do que pesos –especificamente, pesar crenças.
[6] Na sequência, Epicteto incorpora um longo parágrafo comparando o
‘parecer’ que não está apoiado em padrões –o ‘eu acho’, a opinião que emana
da crença, a apreciação de quem está ligado à aparência– com o juízo que se
fundamenta em um padrão.
Em outras partes de sua obra, Epicteto questiona o “eu acho” ou o “me
parece” daqueles que tomam decisões sem um padrão superior que os oriente.
Um exemplo claro se encontra nas Dissertações, onde um dos seus alunos,
questionado sobre por que sustenta uma crença indefensável responde “porque
assim me parece”. Epicteto lhe objeta: “você poderia demonstrar o que disse
com um argumento superior ao ‘me parece’?” (1.20.10). E complementa:
“Acaso o louco faz algo diferente daquilo que ‘lhe parece’?” (ibid.). “Como
chamamos aqueles que acreditam em toda e qualquer aparência? –Loucos”
(1.28.32-3).
Com essas observações, Epicteto extrai um corolário do que sucede àqueles
que abraçam crenças sem tentar estabelecer contato com a verdade: se alienam
da realidade, desejam o que não depende deles e tentam fazer o impossível,
entram nos becos sem saída do delírio e da alienação... Marco Aurélio, um dos
seus mais famosos leitores, concorda com ele: “Perseguir o impossível é
próprio de loucos” ([c. 180]: V.17).
Epicteto insiste fortemente em que devemos ter presente que do fato de uma
coisa nos parecer de uma maneira não se segue que ela é dessa maneira. Até
porque o ‘parecer’ tem sua origem na mente –i.e., na crença vinculada a essa
apreciação–, e as coisas sobre as quais emitimos nosso parecer estão na
realidade. ‘Parecer certo’ (plano do mental) é radicalmente diferente de ‘ser
certo’ (plano do real). Do fato de que é possível que para uma pessoa pareça
certa uma afirmação e para outra pareça certa uma afirmação contrária se segue
–se as duas pessoas concordarem em que seus ‘pareceres’ são emitidos sobre
uma realidade independente e externa– que uma das crenças está errada. E do
fato de as duas pessoas não terem mais do que seus ‘pareceres’ para decidir
qual das duas afirmações é falsa, se segue que inclusive as duas afirmações
poderiam ser falsas. Isso equivale a afirmar que o mero ‘me parece’ ou o
egocêntrico ‘eu acho’ não pode se constituir como um padrão apropriado para
determinar a relação da crença com a realidade. Epicteto ilumina essa
argumentação com o exemplo da balança: “mesmo no caso dos pesos [...] não
nos satisfazemos com a mera aparência; pelo contrário, buscamos um padrão
para cada caso”. Para compreender melhor a ideia pensemos no seguinte
24
A razão (lógos) inclina a balança (cf. 2.26.7). Epicteto também usa a analogia entre a razão e a
balança em 1.17.7-8, 1.28.30, 1.29.15, 2.11 e 3.26.18.
40
exemplo: dois quilos de chumbo podem nos parecer mais pesados do que três
quilos de pena, mas a balança se inclinará nos mostrando que o volume de
penas é mais pesado do que o do chumbo. Nesse caso, a balança é o padrão.
[7] Se existe um padrão para essas coisas, pergunta Epicteto, como poderia não
existir um padrão para ‘pesar’ crenças? “Esse padrão existe”, afirma muito
confiante. E, de um modo ainda mais otimista, supõe que esse padrão apto
para ‘pesar’ crenças pode resolver as guerras que se originam dos conflitos entre
crenças rivais. Da privilegiada perspectiva histórica de nosso conflitivo século
XXI, pensamos que teria sido muito bom para Epicteto ter achado um padrão
para pesar essa sua demasiada otimista crença...
[8] Epicteto nos alenta a buscar o padrão e nos incita a que depois de
descoberto, o utilizemos. [9] E aqui ele faz um comentário interessante: diz que
o padrão “resgatará da loucura aqueles que usam a mera crença como medida
de tudo”, ou seja, aqueles que em todo e qualquer assunto decidem com base
em desejos e aparências, i.e., que adotam crenças acríticas.
[10] Com o padrão, especifica Epicteto, aqueles hoje perdidos em sua
delirante bolha de crenças poderão examinar e julgar casos particulares –como,
por exemplo, o que é o prazer. E eventualmente, poderão retornar de seu
estado de alienação ou delírio.
[11] “Submete o teu tema ou problema ao padrão, coloca-o na balança”,
recomenda Epicteto. “É desse modo que se julgam e ponderam os assuntos
depois de dispor de padrões”.
Esta passagem, na qual Epicteto instala a imagem da balança como um
instrumento de avaliação racional, tem seu precedente na obra de Sócrates, o
autor mais admirado e citado por Epicteto. No Eutífron, por exemplo, Sócrates
incorpora a imagem da balança em relação aos conflitos humanos:
Sócrates: Quais são os assuntos de divergência que causam ódio e ira?
Verifiquemos isso do seguinte modo: se nós diferíssemos sobre a quantidade de
alguma coisa, essa divergência nos tornaria inimigos e nos deixaria irritados um
com o outro, ou nos dedicaríamos a contar e, em seguida, resolver a nossa
divergência sobre isso?
Eutífron: Sem dúvida, resolveríamos a nossa divergência contando.
Sócrates: E se divergíssemos sobre o tamanho de duas coisas, usaríamos a
medição e cessaríamos nosso desacordo?
Eutífron: Isso é assim.
Sócrates: E se divergíssemos sobre o mais pesado e o mais leve, recorreríamos à
pesagem e ficaríamos reconciliados?
Eutífron: Naturalmente.
Sócrates: Qual matéria de divergência nos faria irritados e hostis um com o outro
se fôssemos incapazes de chegar a uma decisão? Talvez não tenhas uma resposta
pronta, mas examina se esses assuntos são o justo e o injusto, o belo e o feio, o
bom e o mau. Não são esses os assuntos de divergência sobre os quais, quando
somos incapazes de chegar a uma decisão satisfatória, tu e eu, e outros homens,
tornamo-nos hostis uns com os outros sempre que o fazemos?
41
Eutífron: Certamente, Sócrates; o desacordo é sobre esses assuntos (Eutífron, 7b-
d).

Essa é a função do padrão no contexto socrático. A novidade que pretende


introduzir Epicteto, conjeturamos, é a de que é possível construir padrões de
juízo para pesar crenças até sobre esses “assuntos de divergência” mencionados
por Sócrates: “o justo e o injusto, o belo e o feio, o bom e o mau”...
[12] Na última frase da passagem, Epicteto retoma o tema do início: a
necessidade de encontrar padrões de juízo, e conclui destacando que a função
da filosofia é determinar os padrões, e [12.1] que “a atividade da pessoa sábia e
boa” é fazer uso desses padrões.

A arte de pensar é a arte de viver


“A atividade da pessoa sábia [...] é fazer uso dos padrões” (2.11.20).
Para Epicteto, “a principal tarefa do filósofo é distinguir e julgar as [crenças],
e não aceitar nenhuma sem antes tê-la submetido à prova” (1.20.7.1-2). Na
passagem das Dissertações que analisamos, fica claro que Epicteto concebe a
tarefa da filosofia, a busca de um padrão para avaliar crenças, como uma arte de
pensar (cf. 1.20.13.3).
“Qual é a matéria do filósofo? [...]. O raciocínio (ὁ λόγος). Qual é seu objetivo?
[...] Ter um raciocínio correto. Qual é sua missão? [...] Conhecer os elementos
da razão, saber que qualidades tem cada um deles e como se adaptam uns aos
outros e quanto se segue disso” (4.8.11-12). Para que serve um raciocínio
correto? “Para estabelecer o que é verdadeiro, o que é falso e o que é incerto, e
distinguir o verdadeiro do falso e do incerto” (1.7.5-8; cf. 1.28.1-3 e 1.20.5-8).

Epicteto afirma que a tarefa da filosofia, que é uma atividade racional, é


procurar padrões racionais para avaliar crenças. Aqui fica claro que ainda que
Epicteto concebe a razão, o lógos, como universal, entende que é a pessoa que
pratica a filosofia –i.e., o raciocínio crítico– que, por dedicação, formação e
prática, pode fazer um uso apropriado da razão para elaborar padrões racionais
para ponderar crenças. Em outras palavras: para Epicteto, é a própria razão
que, como epistemologia e como técnica, melhora a si mesma desenvolvendo-
se na forma de métodos que possibilitam discernir o certo do errado e,
consequentemente, permitem escolher ou recusar desejos e rumos de ação.
Como sentencia Epicteto: “A luta [da razão] não é por algo banal, mas por
ficar louco ou não” (fr. 28, apud Marco Aurélio, [c. 180]: XI.38). Ou seja, que
só uma razão desenvolvida na forma de padrões pode nos permitir avaliar com
clareza e distinção, e desse modo nos permitir nos aproximar da realidade e,
consequentemente, nos distanciar das aparências. A tarefa, portanto, não é
banal; como vimos, as aparências nos alienam da realidade e nos aproximam da
loucura. “Até as grandes atrocidades têm como origem a aparência” (1.28.11).
42
Como já mencionamos, Epicteto idealiza a tarefa da filosofia como uma arte
de pensar. Mas também a idealiza como uma arte de viver (technê peri bion).
“A atividade da pessoa sábia e boa é fazer uso dos padrões”, enfatiza na última
linha da passagem analisada acima (2.11.20).
A finalidade deste texto foi explicitar, na obra de Epicteto, os aspectos
relacionados à filosofia como uma busca de padrões, i.e., como uma arte de
pensar. Porém, complementarei minhas observações com breves indicações
que destacam porque ela é, ao mesmo tempo, uma arte de viver. (De fato, a
grande maioria dos estudos sobre Epicteto se centram nesta última arte).
Um simples e importante exemplo mostrará qual a relação intrínseca entre a
arte de pensar a arte de viver no pensamento de Epicteto.
Para Epicteto, um ponto central em que se aplica a razão é “em discernir [...]
o que depende de nós do que não depende de nós” (1.1; 3.2.1-2). “Em que
consiste a educação?”, pergunta ele retoricamente. E responde: “Consiste em
discernir, dentre todas as coisas, aquelas que dependem de nós daquelas que
não dependem de nós” (1.22.9; cf. 1.1.23.2). Dada sua importância, esse é o
primeiro tema que ele analisa, tanto nas Dissertações (1.1) quanto no Manual
(M 1.1-6).
A aplicação da razão, do lógos, na discriminação “do que é meu e do que
não é meu, do que é possível fazer e do que não é possível fazer” é para
Epicteto o fundamento de toda arte de viver –e de morrer (1.1.21). Isso é
simples de compreender. Tal distinção racional permite, por exemplo, eliminar
duas crenças muito perniciosas: a crença que insiste em que aquilo que não
depende de nós sim depende de nós, e a crença que sustenta que aquilo que
sim depende de nós na realidade não depende de nós. Para Epicteto, essas
duas errôneas crenças gerais, se adotadas e seguidas, têm o potencial de nos
afundar no mal moral e na impotência: “Esta é a maior prova de infortúnio e
infelicidade: quero algo e não acontece; quem é mais desafortunado do que eu?
Não quero algo e acontece; quem é mais infeliz do que eu?” (2.17.19). É por
isso que ele entende que, por oposição, o discernimento, que nos permite
identificar e evitar essas crenças, traz a nossas vidas “um curso sereno” (M 1.8),
imagem em que Epicteto comprime sua concepção da felicidade (cf. 1.3.4-6,
1.4.3). “Resista, infeliz! Não desanime! A luta é grande: por um reino, pela
liberdade, pela imperturbabilidade, pela felicidade!” (2.18.28).
Para Epicteto, o que depende de nós são o juízo, o desejo e a ação; o que
não depende de nós são coisas externas como a saúde, a fama, “nossas
posições, as opiniões que os demais têm sobre nós” (M 1.1) etc. Não depende
de mim, por exemplo, ter dinheiro, nem tampouco o eventual olhar
reprobatório das pessoas por eu não ter dinheiro; sim depende de mim não me
importar por isso. Depende de mim estudar para fazer um ensaio, dedicar-lhe
tempo, redigi-lo o melhor que puder e entregá-lo dentro do prazo; não
depende de mim a nota que o professor dará. Para enfrentar esta classe de
43
situações, Epicteto nos legou uma regra geral:
“Examine cada [crença] dolorosa ou triste, e coloque à prova. Utilize
principalmente esta regra: ‘Devo classificá-la entre as coisas que dependem de
mim ou entre as coisas que não dependem de mim’? Se você concluir que faz
parte das coisas que não dependem de você, tenha bem presente que não lhe diz
respeito” (M 1.1).

Para finalizar, centremo-nos na principal categoria destacada por Epicteto: “o


que depende de nós é o juízo”, isto é, depende de nós decidir em que crenças
acreditamos, em aceitar as boas, eliminar as ruins e ser indiferentes às
indiferentes. A “escolha de vida”. Com relação a esta problemática, Epicteto
nos legou uma de suas mais famosas passagens:
“O que perturba os homens não são as coisas, mas as crenças sobre as coisas.
Por exemplo: a morte nada tem de terrível, ou Sócrates teria se afigurado assim.
É a opinião que temos a respeito da morte –de que ela é terrível– que é terrível!
Então, quando os obstáculos se apresentarem, ou quando nos inquietarmos ou
nos afligirmos, jamais consideremos outra coisa a causa, senão nós mesmos –isto
é, as nossas próprias crenças” (M 1.5).

“Que outras coisas nos amarguram e alienam senão as crenças?” (2.16.24). As


crenças são perigosas e poderosas. Por isso, segundo Epicteto, as crenças
devem ser o nosso objeto de interesse prioritário –e também os desejos
baseados nessas crenças, e as ações que realizamos a partir dessas crenças.

Considerações finais
Eu não acredito na crença
E.M. Forster, [1938]: 327

A busca de um padrão ou de padrões –de um critério ou de critérios, de um


método ou de métodos– para avaliar crenças e construir conhecimento, é o
objetivo central da filosofia –de todas as áreas da filosofia e, com maior
precisão, de todas as áreas do conhecimento. Que outra coisa era a tão desejada
pedra filosofal?
Dediquei este texto a destacar a importância que Epicteto concede à busca de
padrões; no caso, de padrões para ponderar e comparar crenças. Para Epicteto,
como vimos, nossas crenças dependem de nós, e é essencial nos preocuparmos
com a sua qualidade. Essa tarefa, hoje, é mais importante –e mais difícil– do
que nunca, porque estamos sendo bombardeados por informações falsas,
desinformação, teorias da conspiração etc., em um contexto em que a crença na
crença parece ter alcançado o nível de biossegurança 4, de risco individual e
comunitário elevados.

44
Referências bibliográficas
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–Wright, Robert, 2018, Por que o budismo funciona, Sextante, R.J.

45
Quão necessário é o raciocínio crítico?
Epicteto, c. 145

No capítulo II do Manual de Epicteto encontramos esta breve e


interessante passagem:

Um dos presentes disse [a Epicteto]:


–Persuade-me de que a razão (o lógos, a lógica) é útil.
–Queres que te demonstre isso?
–Sim!
–Então tenho de usar uma argumentação (lógica).
O homem concordou [e então Epicteto perguntou]:
–E como saberás se eu te apresentar uma falácia [i.e., um argumento
logicamente inválido]?
Quando o homem ficou em silêncio, Epicteto disse:
–Vês? Tu mesmo concordas que a razão é necessária, pois sem ela
não é possível saber se é necessária ou não. (M 2.25).

Epicteto defende que a própria pergunta sobre a necessidade de


estudar lógica (raciocínio crítico em geral) pressupõe que é necessário
estudar lógica (raciocínio crítico). Pois para responder essa pergunta é
preciso argumentar; mas, se não soubermos lógica (se não tivermos
domínio dos princípios da argumentação), não saberemos se os
argumentos apresentados ao responder são bons ou não.

46

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