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0 INCONSCIENTE psicanálise e teatro:

homologias
TEATRAL Antonio Quinet
INTRODUÇÃ

O Inconsciente é teatral. Todos nós, seres humanos, somos atores de umn


drama cujo enredo nos escapa e cujo autor desconhecemos. Nossos ro-
teiros são escritos e representados na Outra Cena, primeiro nome que
Freud deu ao Inconsciente. Este se expresa através de cenas em sonhos
pesadelos e fantasias e de modo performático em atos e atuações. Lacan
chamou-o de o "Outro" que, por mais que o conheçamos. permanece por
definição desconhecido, sempre Outro. O processo analítico é uma leitu-
ra/escritura de uma dramaturgia escrita pelo Outro. O Inconsciente é es-
truturado como um teatro'. Por sua vez, o espetáculo teatral é sempre, em
maior ou menor grau, uma encenação do Inconsciente, uma mise-en-scè-
ne de um texto transformado em espetáculo de corpo e falas, luz e som.
As elaboraçóes e reflexões, algumas inéditas na psicanálise, que
apresento nesse livro são fruto de minha prática tanto como psicanalis-
ta quanto ser-para-o-teatro" que exerço há mais de 15 anos como dra-
maturgo, diretor de teatro e, por vezes, ator. Quando, depois de longo 17
percurso como psicanalista, comecei a tazer teatro, fui considerado um
"herege" tanto pelo meio psicanalítico quanto pelo meio teatral. Não foi
fácil accitarem a perspectiva inédita de transmissão da psicanálise pela via
de teatro, que sempre foi meu propósito. Mas pouco a pouco, ao longo
dos anos, com casa sempre lotada em meus espetáculos aqui no Brasil e
em outras partes do mundo, a aceitação foi acontecendo e hoje a Cia. In-

I. Esta assertiva, que pretendo desenvolver neste livro como uma tese, engloba "O In-
consciente é estruturado como uma linguagem" de Lacan (que fez um divisor de águas
na psicanálise a partir dos anos 1950) e acrescenta suas elaboraçóes posteriores sobre o
Inconsciente real e o nó borromeano. O "Inconsciente teatral" é uma construção psi
canalitica que leva em conta os três registros RSI - Real, Simbólico e Imaginário, cujo
desenvolvimento teórico encontramos a partir dos anos 1970 em Lacan.
cricCi 2007, é
consciente em Cena, que
pclos psicanalistas, tenao uma agenda sempre
em
respeitada pela claasse teatr
1ovada.

Ouero também, neste livro, fazer justiça e agradecer


a meu colega
nróximos do Campo Lacaniano que sempre me apoiaram

convites e até mesmo encomendas


treia em Londres no Freud Museum de Hilda e Freud e da.
de
imulardaeam
espetáculos
Depois .

e da apresentaçà
de La leçon de Charcot em Paris,
reconhecimento internacional.
no
La Hospital Salpêtrière, ady taçâo
Cada vez mais encontro correlaçoes entre a
psicanálise e
inspiradas por essas duas praticas que trabalham como
Inconscien
teatro
tista. Sim, não se trata apenas de teorias e sim ar.
de praxis. Dráma, auee vem
do grego, significa "ação" e se refere a arte de encenar um texto.
que faz o analisante, como Freud logo Não éa
percebeu ao dar o primeiro nome
de "tratamento catártico ao tratamento analitico? O
analisante coloca
em
ação seu drama na cena analítica.
O teatro, para Freud, é um tratamento
por meio da dramatização. A
psicanálise, por vez, permite encenar no div o "teatro privado" de
sua

cada um. Eis como a paciente histérica Anna O.


e devaneios na
designou suas fantasias
origem da psicanálise, em seu momento pré-inaugural, e
que Freud soube escutar. A análise, em
comparação com a definição aris-
totélica da tragédia, é um tratamento
trágico que traz na transterência
analitica o destino do sujeito com o terror
que ele tem por seu desejoe
a compaixão por sua covardia. Segundo Aristóteles em A Poética, "a tra-
18 gedia é a mimesis de uma ação importante e completa, de certa extensao,
num estilo tornado agradável pelo de cada
emprego separado uma
ac
Suas formas, segundo as partes; ação apresentada, nao com a ajuda de

una rror
narrativa, mas por atores e que suscitando a compaixao c
tem por efeito a catarsis dessas emoções". A análise e o teatro são no
com
OgOs no tratamento do real dos afetos usando métodos diteren
Dcivos diversos. Voltaremos diversas vezes a essa definiçao en
s ho-
um de seus
fatores e aspectos ao longo deste livroe veremos
mologias são múltiplas.
consciente tem uma pulsacão: ele se abre e sefech
cle se abre
análise as associacões fluem,
na as
acs
cenas
Dai a pouc
o u c o

$altam
dos porões e as fantasias emergem no
palco
agaras

Se
fecha, não vem nada. Como no teatro, ao aD**
luzes o Inconsciente em cena se dá em espetáculo e tudo acontece... ate
o fechar das cortinas e o acender das luzes. O Inconsciente pulsa como
um espetáculo teatral. Num abrir e fechar de olhos. O teatro é como
um lapso no tempo, um chiste no repente ou um sonho que, como um

togo de artificio, é preparado durante horas e se acende em um instante.


O teatro é um sonho que se leva muito tempo ensaiando e se realiza na
efeméride de um
espetáculo. O
é feito para provocar o desper-
teatro
tar do sono da realidade, rasgao véu de Maia e presentihca o real como
o raio cortando o céu. Ele abre a cortina de veludo da realidade e traz
à cena os objetos excluídos, nas suas modalidades escópica e invocante:
olhar e voz. Coloca em funcionamento o objeto a mais-de-gozar, tanto
na sua versão de objeto agalmático, precioso, causa de desejo, quanto na
sua versão de abjeto, causa de horror, angústia ou compaixão. O teatro
fascina, entusiasma e desperta tanto o desejo quanto a angústia.
A relação entre psicanálise e teatro se encontra no início da desco-
berta freudiana e da criação da psicanálise desde A interpretação dos so-
nhos de 1900, na referència à Poética de Aristóteles (o tratamento analí-
tico como catarse das paixões nas tragédias), e no Inconsciente no palco
dos corpos histéricos que Freud percebeu nas lições de Charcot no Hos-

pital La Salpêtrière. Essa relação nunca foi abandonada nem por Freud
nem por Lacan, que não só se serviram das peças de teatro como utiliza-
ram conceitos e termos dos vocabulários teatrais para elaborarem suas

teorias e abordarem a clínica psicanalítica.


Freud deixou-se ensinar por Edipo Rei, Hamlet, O mercador de Ve 19
neza, Macbeth, Rei Lear, assim como pelas peças de Ibsen e Schnitzler,
entre outras. E Lacan por Antigona e Edipo em Colona de Sófocles, por
Hamlet em seu longo estudo no Seminário vi e por diversas peças de
Molière como O avarento, O misantropo, Anfitriáo, além da trilogia de
Claudel, balcão de Jean Genete O despertar da primavera de Wede
Lacan Freud breves citações e referên-
kind. Encontramos também em e

cias a outras peças.


Em seu texto Personagens psicopáticos no palco, Freud apresenta diver

entre teatro e psicanálise e, ao longo de sua obra, várias


sas articulaçóes
referências e conceitos do teatro, como catarse, gozo do espectador, cena,

utilizados ele. Não encontramos em Lacan texto similar, mas


etc., são por
indicativos trechos e passagens de seu seminário, como
alguns preciosos e
estudo sobre Hamlet, onde desenvolve a relaço do Inconse
o teatro, e sua referëncia ao teatro grego para o desenvolvimen..ente com
ntodo con-
ceito do semblante. Encontramos, assim, em
des teses Con.
Lacan, grandes bre
essa articulação e suas homologias de forma condensada
A relação entre psicanálise e teatro nao é abordada neste livro cr

uma "psicanálise aplicada, usando os conceitos analíticos para "anl


omo
los" ao teatro. Não se trata de uma psicanálise supostamente anlico icá
icada
à literatura, ao teatro, às artes plásticas ou a qualquer outra forma
de
expressão artística, como foi feito por muitos pós-freudianos. Só e
exis-
te uma psicanálise aplicada: a psicanálise aplicada a um sujeito -
eis a
orientação de Lacan, que seguimos.
Vamos às obras de arte para apreendermos algo do Inconsciente. E
isto não é psicanálise aplicada. Na verdade, é ao contrário, aponta Lacan.
Trata-se efetivamente de psicanálise teórica. Em relação å questão teóri-

ca que a adequação a uma obra de arte coloca, qualquer espécie de ques


tão clínica é uma questão de psicanálise aplicada". Assim, quando Freud
e Lacan recorreram as obras de teatro, não foi para aplicar ali a psicaná
lise e analisar o autor, e sim para encontrar subsídios para bem-dizer a

psicanálise e seus conceitos.


A psicanálise e o teatro têm em comum a criação artística. Ambos
são da ordem do poema, sendo a psicanálise também do matema, por ser

transmissível através de teoria, conceitos, grafos, esquemas, casos e os pro

prios matemas. Além do saber textual e matêmico, a psicanálise incul


20 transmissão pela via da criação. Assim como o ato artístico, o ato anan
e Sempre inédito, inventado. O "fazer semblante" para o analista e co

um fazer teatral e a interpretação analítica deve ser poética.


a t c m a e poema estão juntos como formas de transmissão da p
strar neste livro
nàlise e náo são excludentes. E o que pretendemos demonstrar
a partir da homologia entre psicanálise e teatro pela via do
zendo as peças de teatro, com sua transmissão artística, pela via dopo
Teorien desig
leatro têm etimológica na ação de
ver.
e teoria sua raiz Pcctudor pectador.

na o ato de ver, teatroo lugar de onde se vêe teoros signihca s


da teort
da
reor
CUm ser

8regos nomearam o homem como um ser


teatrar c
im
b s e r

de ver e ol
aquele que vai ao teatro produz saber ao dedicar-se ao *
e
ao
ato
espe
o
var unindo toca
filosofia e arte. Todo teatro verdadeiro qu quando
m i s s ã o
ociável

i n d i s s o c i a

tador é
produtor de teoria -

daí sua função de


tran
r os e r r c c o n h

o artístico. O teatro è catártico na depuração de afetos, iíndices do


do gozo
real que constituem o gozo artistico que Freud compara com o gozo que
conjuga prazer e desprazer no jogo dofort-da" da criança que Ihe permite

a elaboração de um savoirfaire com a ausência do Outro.


A importância da arte para a psicanálise está não apenas em sua
men-

conteudo transmissivel, mas também e principalmente em


sagem, como
do
seu poder de nos tocar, causar, emocionar, ou seja, de mobilizar algo
desejo em espectadores. "O modo pelo qual uma obra nos toca, e
nós,
nos toca precisamente
da maneira mais profunda, ou seja, no plano do
Lacan
Inconsciente, decorre de sua composição, de seu arranjo", nos diz
análise de Hamlet. E ele continua: "Se uma peça nos emociona
sua
6.. em razão do espaço que ela nos oferece, pelas dimensões de seu de

senvolvimento, para colocar o que, em nós, está escondido, ou seja, nossa


própria relação com o nosso próprio desejo",
dimensão da representação, isto é,
O teatro acrescenta à literatura a

a dimensão da encenação real no aqui e agora do por atores com


teatro

seus e falas. Dentre as diversas modalidades artísticas, o teatro


corpos
Inconsciente teatral em cena. O teatro é a
tem o privilégio de colocar o
arte mais próxima da psicanálise.
O que pretendo fazer é uma psicanálise inplicada, uma psicanálise
das
implicadapelo teatro. E justamente a partir do teatro, da literatura e
analista, seguindo os passos de Freud e Lacan,
vai
artes plásticas que o

encontrara fonte para melhor abordar,


melhor falar, melhor explicitar e
sintomas e fenômenos. E também 21
melhor conhecer o Inconsciente, seus

nconsciente
uma psicanálise implicada no teatro em particular, pois o

se artes é o mesmo Inconsciente que se encontra na prå-


que expressa nas
tica psicanalítica. Essa implicação é da ordem de uma construção teórica
Eis o que nos permi-
gue concerne homologias e analogias entre ambos.
te falar de Inconsciente teatral.
não é objeto para a psicanálise, é uma construção
Oteatro um
como diz o filósofo lacaniano, teatrólogo e dramaturgo francès François
dele extrair teoria e
Kegnault'. Lacan e Freud se referem ao teatro para
avançar a psicanálise. A psicanálise é implicada pelo
teatro, na me-
razer

dida em quc o teatro trouxe e continua trazendo vários subsidios para a

II. Cf.capítulo "O gozo do espetáculo".


a d

Construção do saber analitico começar pelo proprio conceito de d


-

Sejo inconsciente e incestuoso descoberto por Freud a partir da tragéd:


grega Edipo Rei, de Sófocles. dia
A psicanálise também está implicada no teatro de diversas mancir-
eiras:
o sonho implicado na montagem da cena teatral, a fantasia implicadanno
espetáculo visual, o discurso do Outro do Simbólico implicado no teve
texto
teatral, o Imaginário nos corpos dos atores, o Real na sua presença real
em cena. O Inconsciente teatral se expressa no corp0, como noS mostrae
ao
sujeito histérico e os atores e atrizes das artes cênicas.
Afim de demonstrar como o Inconsciente é estruturado como
um
teatro, segundo a teoria que pretendo expor, dividi este livro em d
partes. A primeira écomposta de textos em que abordo a relação da psi
canálise com o teatro pela via do matema, estabelecendo relações
entre
ambos teorizando e conceitualizandoo que me permitiu até
agora mi-
nha experiência de psicanalista, dramaturgo, encenador e ator.
Na se-
gunda parte, retomo a via do poema
e
faço uma apresentação das mi-
nhas peças de teatro e suas encenações, trazendo reflexões
minhas e de
comentadores sobre seu conteúdo, encenação e
articulação com a psica-
nálise. Descreverei o conjunto, na ordem da
produção artística, na for-
ma ensaística de um memorial,
para apontar o da quê psicanálise, peça
por peça, pretendo transmitir.
Neste livro, trato, portanto, da
relação
homologias e diferenças
-

entre teatro e
psicanálise pela via da formalização exemplificando-a a
-

2
partir da experiência teatral da Cia. Inconsciente em Cena",
que assume
a
perspectiva obra inacabada, do saber incompleto e do continuum
da
do lnconsciente, sempre em transformação.
Talvez, hoje em dia, só na arte em
canálise é ainda
-

particular no teatro -

e na
psi
possível discorrer sobre
essas "inutilezas"
que consti-
tuem a essência do homem. O Inconsciente
teatral'.
A partir de 2003 entrei
decisivamente na área de teatro ao escrever
minha primeira
peça, A lição de Charcot. Depois de já ter
tado mais dois dirigido e mon
espetáculos
Ye -

X, SeArTorquato 2006 passei a in


-

em
Serir minha
pesquisa de psicanálise e teatro no meio acadêmico ao
o
cargo de professor adjunto de Mestrado e assum
em seguida de Doutorado em
. No
que serefere mais
ver os especificamente à relação entre ato teatral
capitulos relativos às peças e aro
anautico,
Variações freudianas 1: 0sintomae Hilda e kreua.
Psicanálise, Saúde e Socicdade na Universidade Veiga de Almeida uva),
no Rio de Janeiro. E logo em seguida criei a Cia. Inconsciente em Cena
com o objetivo de transmitir a psicanálise através do teatro. Em 2017, de-
cidi fazer um pós-doutorado no intuito de reunir e sistematizar as elabora-

ções teóricas e reflexöes sobre a prática teatral que venho efetuando.


Agradeço ao meu amigoe colega Raul Pacheco, que me acolheu no
Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da PUC-SP. Mais do
leitor de
que um orientador, Raul toi um grande interlocutor e exímio
meu texto proporcionando-me retificaçõcs, elaborações e novas conclu-
sões que culminaram na produção deste livro. Agradeço a Bruno Luz
por sua incansável dedicação e parceria em todos os momentos da pro-

dução, a Lucia Seixas pelo auxílio na preparação final do texto e revisão,


a Diana Aranha pela leitura afinada e a Carol Gischewski por seu talen-
to ao transtormar este livro num objeto de arte.
Meus agradecimentos também aos que participaram dos espetá-
culos da Cia. Inconsciente em Cena, a todos os colegas psicanalistas
tanto da minha Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
como das outras escolas e associações psicanalíticas pelo acolhimen-

to e entusiasmo que têm demonstrado com minhas peças. E a todos da


classe teatral que me aceitaram como colega de trabalho e que vêm ao
duas
longo desses anos apoiando e prestigiando a articulação entre essas
lnconsciente.
artes que colocam em cena o

Este livro pode ser lido na sequência dos capítulos ou de forma sal-

teada pois cada capítulo tem um enfoque próprio que pode ser lido iso- 23
ladamente. O leitor poderá fazer suas próprias articulações dos capítulos
entre si. No primeiro capítulo, mais
difícil e condensado, articulo as ela-

teóricas serão destrinchadas e desenvolvidas ao longo de


borações que
todo o livro. Para os leigos e iniciantes em psicanálise, este livro é uma
conceitos e matemas, sua cli-
porta de entrada na psicanálise -

com seus

nica e implicação nas artes -

a partir do teatro. Para os psicanalistas é


aportes do os teatro. P'ara todos, este
uma retomada da psicanálise com
livro é um palco do Inconsciente teatral.

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