Você está na página 1de 114

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO E ARTES - FCA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA
CONTEMPORÂNEA

RICARDO KALAN SCHWARZ

O GESTO MUSICAL DO BATERISTA NA MÚSICA DE CONCERTO:

UM ESTUDO DA OBRA CHRONOS X DE ROBERTO VICTORIO

CUIABÁ, 2017
RICARDO KALAN SCHWARZ

O GESTO MUSICAL DO BATERISTA NA MÚSICA DE CONCERTO:

UM ESTUDO DA OBRA CHRONOS X DE ROBERTO VICTORIO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea
da Universidade Federal de Mato Grosso como
requisito para a obtenção do título de Mestre em
Estudos de Cultura Contemporânea na Área de
Concentração Interdisciplinar. Linha de Pesquisa:
Poéticas Contemporâneas.

Orientação: Profª Drª Tais Helena Palhares.

CUIABÁ, 2017
Este trabalho é dedicado aos meus pais Osmar
Schwarz e Márcia Kalan Schwarz, que sempre
apoiaram e me incentivaram nos estudos.
Também dedico este trabalho especialmente à
minha noiva Gabriela Giovana Carvalho de
Cesaro pelo carinho, respeito, compreensão e
apoio moral durante estes dois anos de
percurso.
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus, o criador de tudo, porque Ele é quem nos capacita e
nos dá forças para lutar e vencer as dificuldades do nosso dia-a-dia.
À minha orientadora Profª Drª Tais Helena Palhares pela paciência, incentivo,
orientações, correções e sugestões pertinentes ao trabalho durante estes dois anos de percurso.
Ao exímio Profº Drº, compositor, instrumentista e regente Roberto Pinto Victorio, pelo
apoio, incentivo e suas contribuições através de dados cedidos nas entrevistas que auxiliaram
no desenvolvimento deste trabalho. Além disso, por ser um grande compositor renomado
nacionalmente e internacionalmente, tive a imensa honra estudar e apresentar algumas de suas
composições para percussão como o KA, Codex Troano e Mandala, além de poder
desenvolver este trabalho sobre Chronos X.
Aos professores examinadores Drª Teresinha Rodrigues Prada Soares e Drº Eduardo
Flores Gianesella pela disponibilidade e por aceitarem o convite para banca examinadora,
além de se interessarem pelo trabalho e contribuírem para o enriquecimento do mesmo.
Ao professor Drº Fernando Martins de Castro Chaib pelas suas contribuições no
Exame de Qualificação.
Aos meus tios Domingos Sávio Santos e Selma Schwarz Santos e família, pelo
acolhimento e a ajuda que me deram na minha mudança de São Paulo-SP para Cuiabá-MT.
Agradeço a todos os meus tios e primos por parte de pai e mãe.
Aos meus pais Osmar Schwarz e Márcia Kalan Schwarz, pelo apoio moral, financeiro,
por confiarem e acreditarem em mim, e me incentivarem a fazer este curso desde o início até
o fim. Agradeço também, às minhas irmãs pianistas e musicistas Cristiana Schwarz Gomes e
Valéria Schwarz Caffaro, e aos meus cunhados Leandro Loureiro Gomes e Vitor Caffaro pelo
apoio e incentivo dado ao trabalho.
Agradeço também, especialmente, a minha querida noiva Gabriela Giovana Carvalho
De Cesaro e sua família pelo carinho, compreensão, paciência e incentivo para a realização do
trabalho.
Aos amigos, professores e colegas do Programa de Pós Graduação em Estudos de
Cultura Contemporânea, por também me sugerirem algumas ideias durante o Curso de
Mestrado.
RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo geral verificar de que forma o gesto musical contribui
para a execução expressiva da obra Chronos X do compositor brasileiro Roberto Victorio,
com enfoque na gestualidade produzida pelo intérprete na execução da bateria desta obra,
composta para bateria e flauta transversal. Teve-se, como ponto de partida, o processo de
maturação do gesto do intérprete que de início geralmente é rudimentar e desprovido de
expressividade, mas que com o passar do tempo conforme os ensaios, estudos e
planejamentos realizados, vai se desenvolvendo até a execução mais aperfeiçoada. Mesmo
imanente do fazer musical, o gesto musical somente há algum tempo tornou-se objeto de
pesquisa de cunho musicológico, composicional ou interpretativo. Em se tratando de gesto,
não é somente um simples movimento mecânico que um indivíduo possa fazer, mas sim,
movimento dotado de significado e intenção que busca exprimir ideias, pensamentos, estados
anímicos, sentimentos, etc. A metodologia desenvolvida neste trabalho baseou-se,
primeiramente, na busca por um maior entendimento da palavra gesto e suas várias formas de
utilização na vida cotidiana. Posteriormente, a pretensão foi discutir sobre sua manifestação
no contexto musical e especificamente no âmbito dos instrumentos de percussão, com atenção
especial à bateria. Num segundo momento, foi realizada a discussão a respeito das
transformações pelas quais a música passou no século XX, onde surgiram novas formas de
criação e composição inovadoras que foram denominadas por Música de Vanguarda. Em
seguida, tem-se a apresentação de alguns aspectos relacionados ao pensamento musical-
composicional de Roberto Victorio e sua vertente própria denominada Música Ritual, termo
oriundo da etnomusicologia. E por último a descrição sobre as características de sua obra
Chronos X que tem como temática a multiplicidade do tempo expressada através da escrita da
partitura. No último momento deste trabalho tem-se a descrição de todo o percurso do
processo de construção da performance de Chronos X realizada pelo intérprete, que se inicia a
partir da primeira leitura da partitura, passando pelo processo de memorização da obra através
dos ensaios individuais, até o procedimento de elaboração e obtenção de gestos capazes de
outorgarem-lhe um caráter performativo expressivo. Para cada etapa desta construção
performativa foram gravados vídeos que serviram de ferramentas de análise dos resultados
obtidos, uma vez que da primeira leitura para o final do estudo foram verificadas mudanças
significativas em relação aos gestos, que inicialmente eram rudimentares e com o passar do
tempo tornaram-se expressivos.

Palavras-chave: Gesto musical. Bateria. Chronos X. Roberto Victorio.


ABSTRACT

The present work has as general objective to verify that forms the musical gesture contributes
for the expressive execution of the work the Brazilian composer‟s Roberto Victorio Chronos
X, with focus in the gestualidade produced by the interpreter in the execution of the drums of
this work, composite for drums and traverse flute. It was had, as starting point, the process of
maturation of the interpreter‟s gesture that at the beginning is usually rudimentary and without
expressiveness, but that in the course of time according to the rehearsals, studies and
accomplished plannings, it goes if developing until the execution more improved. Same
immanent of doing musical, the musical gesture there is only some time became object of
research of stamp musicological, compositional or interpretative. In if treating of gesture, it is
not only a simple mechanical movement that a individual can do, but, I move endowed with
meaning and intention that it looks for to express ideas, thoughts, psychic states, feelings, etc.
The methodology developed in this work was based, firstly, in the search for a larger
understanding of the word gesture and their several use forms in the daily life. Later, the
pretension was to discuss about its manifestation, in the musical context and specifically in
the extent of the percussion instruments, with special attention to the drums. In a second
moment, the discussion was accomplished regarding the transformations by the which the
music passed in the century XX, where new creation forms and composition innovators that
were denominated by Music of Vanguard appeared. Soon afterwards, the presentation of
some aspects related to the thought is had musical-compositional of Roberto Victorio and his
slope denominated own Ritual Music, term originating from of the etnomusicologia. It is last
the description on the characteristics of his work Chronos X that has as theme the multiplicity
of the time expressed through the writing of the score. In the last time of this work the
description of the whole course of the process of construction of the performance of Chronos
X is had accomplished by the interpreter, that begins starting from the first Reading of the
score, going by the process of memorization of the work through the individual rehearsals,
until the elaboration procedure and obtaining of gestures capable of grant it a character
expressive performative. For each stage of this performative construction they were recorded
video that served as tools of analysis of the obtained results, once of the first reading for the
end of the study significant changes were verified in relation to the gestures, that initially
were rudimentary and in the course of time they became expressive.

Keywords: Musical Gesture. Drums. Chronos X. Roberto Victorio.


SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS ......................................................................................................... 01

LISTA DE TABELAS ........................................................................................................ 04

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 05

CAPÍTULO 1 – ESTUDOS, DISCUSSÕES E REFLEXÕES ACERCA DO GESTO


MUSICAL ............................................................................................................................ 08

1.1 O Gesto ................................................................................................................ 09


1.1.1 A Expressividade do Gesto ......................................................................... 10
1.1.2 A Intenção do Gesto .................................................................................... 11
1.1.3 O Processo de Significação do Gesto .......................................................... 12
1.1.4 Os Membros Superiores e Inferiores na Produção do Gesto ....................... 13

1.2 Sobre o Gesto Musical .......................................................................................... 14


1.2.1 O Gesto Instrumental (ou do intérprete) ................................................ 21
1.2.2 O Gesto em Percussão ............................................................................ 24

CAPÍTULO 2 – ROBERTO VICTORIO E SUA OBRA CHRONOS X NO CONTEXTO


DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA DE CONCERTO .................................................. 36

2.1 Música de Vanguarda ........................................................................................... 36


2.2 Roberto Victorio ................................................................................................... 41
2.3 Chronos X ............................................................................................................. 48

CAPÍTULO 3 – ESTUDO E CONSTRUÇÃO DA PERFORMANCE DA OBRA


CHRONOS X ......................................................................................................................... 56

3.1 Gestos Obtidos na Primeira Leitura de Chronos X ............................................... 59


3.1.1 Primeira Leitura da Primeira Parte (páginas 1, 2 e 3) ............................... 59
3.1.2 Primeira Leitura da Segunda Parte (páginas 4, 5 e 6) ............................... 63
3.1.3 Primeira Leitura da Terceira Parte (páginas 7, 8 e 9) ............................... 67
3.1.4 Primeira Leitura da Quarta Parte (páginas 10 e 11) ................................. 70

3.2 O Ensaio................................................................................................................. 72
3.2.1 O Ensaio Individual ................................................................................ 74
3.2.2 Gestos Finais Obtidos no Ensaio Individual .......................................... 80

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 87

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 90

ANEXOS ................................................................................................................................ 93
1

LISTA DE FIGURAS

Capítulo 1
Figura 1: Modelo padrão básico de uma bateria acústica (acervo particular do autor) .......... 31
Figura 2: Pé do instrumentista em contato com o pedal para a extração sonora do bumbo
(acervo particular do autor) ..................................................................................................... 32
Figura 3: Exemplo de modelo de pedal de bumbo de uma bateria (acervo particular do autor)
.................................................................................................................................................. 33
Figura 4: Exemplo de modelo de estante de chimbau de uma bateria (acervo particular do
autor) ....................................................................................................................................... 33

Capítulo 2
Figura 5: Exemplo de espaço liso que ocorre na obra KA de Roberto Victorio ..................... 47
Figura 6: Exemplo de espaço estriado que ocorre na obra KA de Roberto Victorio .............. 48
Figura 7: Legenda com as indicações das peças da bateria da obra Chronos X de Roberto
Victorio (2002) ........................................................................................................................ 50
Figura 8: Baquetas de madeira (acervo particular do autor) ................................................... 51
Figura 9: Baquetas de feltro (acervo particular do autor) ....................................................... 52
Figura 10: Trecho específico da obra Chronos X, em que se solicita as baquetas de feltro ... 52
Figura 11: Exemplo de aproximação com o pontilhismo de Webern, utilizado por Victorio na
página 1 da peça Chronos X .................................................................................................... 54
Figura 12: Sequência de mudanças de métrica que ocorrem na página 4 da peça Chronos X
.................................................................................................................................................. 54
Figura 13: Trecho onde há ausência de métrica, mas que possui improvisação ..................... 54
Figura 14: Trecho onde há ausência de métrica e improviso .................................................. 55
Figura 15: Exemplo de preenchimento do tempo/espaço dos compassos com semicolcheias,
fusas e quiálteras que ocorrem na página 2 da peça Chronos X ............................................. 55

Capítulo 3
Figura 16: Exemplo de trecho da obra Chronos X em que ocorreu gesto expressivo na leitura à
primeira vista da primeira parte .............................................................................................. 59
Figura 17: Célula que mais se repete ao longo de todas as partes da obra Chronos X ........... 61
Figura 18: Trecho em que ocorre a leitura e execução simultânea de dois ou mais
componentes da bateria, localizado na página 2 da obra Chronos X ...................................... 63
2

Figura 19: Célula rítmica da página 1, que se repete na página 4 da obra Chronos X ........... 65
Figura 20: Sequência de células rítmicas da página 2, que se repetem na página 5 da obra
Chronos X ............................................................................................................................... 65
Figura 21: Sequência de células rítmicas da página 4, que se repetem na página 6 da obra
Chronos X ............................................................................................................................... 66
Figura 22: Sequência de células rítmicas da página 4, que se repetem na página 6 da obra
Chronos X ............................................................................................................................... 66
Figura 23: Variação rítmica da célula apresentada anteriormente, a qual ocorre nas páginas 4 e
11 da peça Chronos X ............................................................................................................ 66
Figura 24: Trecho em que há a execução de peças diferentes pelas duas mãos, localizado na
página 9 da obra Chronos X .................................................................................................. 68
Figura 25: Exemplo de trecho em que obtive uma boa execução através de gestos expressivos,
presente na página 9 da obra Chronos X ............................................................................... 69
Figura 26: Trecho em que há ausência de fórmula de compasso, onde a célula rítmica aparece
sob a notação aleatória e com mudança rítmica, na página 10 da peça Chronos X .............. 70
Figura 27: Célula rítmica em que ocorre erro de execução que resultou num gesto expressivo,
localizado na página 11 da obra Chronos X .......................................................................... 71
Figura 28: Trecho de finalização da quarte parte e de toda a obra Chronos X, localizado na
página 11 ............................................................................................................................... 71
Figura 29: Exemplo de passagem em que há falta de memorização total, na obra Chronos X
................................................................................................................................................. 75
Figura 30: Exemplo de célula que não foi memorizada totalmente, na obra Chronos X ....... 76
Figura 31: Exemplo de trecho em que ocorreu os gestos percussivo interpretativo e gesto
percussivo expressivo, localizado na página 10 da obra Chronos X ....................................... 76
Figura 32: Exemplo de trecho em que ocorreram os gestos percussivo interpretativo e gesto
percussivo expressivo, localizado na página 4 da obra Chronos X ......................................... 77
Figura 33: Exemplo de trecho em que ocorreram os gestos percussivo interpretativo e gesto
percussivo expressivo, localizado na página 5 da obra Chronos X ......................................... 77
Figura 34: Exemplo de trecho que apresenta tipos de dinâmicas contrastantes, localizado na
página 1 da obra Chronos X .................................................................................................... 78
Figura 35: Exemplo de trecho onde não houve fluência rítmica, localizado na página 9 da obra
Chronos X ............................................................................................................................... 78
Figura 36: Exemplo de trecho em que houve boa extração tímbrica, localizada na página 7 da
obra Chronos X ....................................................................................................................... 79
3

Figura 37: Exemplo de trecho onde houve aprimoramento de gestos, localizado na página 1 da
obra Chronos X ....................................................................................................................... 80
Figura 38: Exemplo de gesto aprimorado, localizado na página 5 da obra Chronos X ......... 81
Figura 39: Exemplo de trecho em que houve aprimoramento de gestos, localizado na página
11 da obra Chronos X .............................................................................................................. 82
Figura 40: Exemplo de trecho onde houve aprimoramento e descoberta de gestos, localizado
na página 4 da obra Chronos X ............................................................................................... 82
Figura 41: Exemplo de trecho onde houve a descoberta de novos gestos, localizado na página
3 da obra Chronos X ............................................................................................................... 83
Figura 42: Exemplo de trecho onde houve descoberta de novos gestos, localizado na página 3
da obra Chronos X .................................................................................................................. 84
Figura 43: Exemplo de novos gestos realizados, localizados na página 5 da obra Chronos X
................................................................................................................................................ 84
Figura 44: Trecho onde o gesto com o pé direito se destaca, localizado na página 6 da obra
Chronos X .............................................................................................................................. 85
Figura 45: Ultima célula rítmica da página 1 da obra Chronos X ......................................... 86
4

LISTA DE TABELAS

Capítulo 2
Tabela 1: Exemplos de estrangeiras escritas para bateria no contexto da música
contemporânea de concerto ..................................................................................................... 41
Tabela 2: Exemplos de obras brasileiras escritas para bateria no contexto da música
contemporânea de concerto ..................................................................................................... 41
Tabela 3: Tipos de instrumentos que fazem parte das obras da série Chronos ...................... 49
5

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa foi realizada com o intuito verificar de que forma o gesto musical
contribui para a execução expressiva da obra Chronos X do compositor brasileiro Roberto
Victorio, com enfoque na gestualidade produzida pelo intérprete na execução da bateria desta
obra, composta para bateria e flauta transversal. Teve-se, como ponto de partida, o processo
de maturação do gesto do intérprete que de início geralmente é rudimentar e desprovido de
expressividade, mas que com o passar do tempo conforme os ensaios, estudos e
planejamentos realizados, vai se desenvolvendo até a execução mais aperfeiçoada. Vale
ressaltar que não se pretende aqui estabelecer um padrão universal, mas oferecer uma
possibilidade de interpretação e construção performativa da obra Chronos X que venha abrir
possibilidades de novas leituras futuras.
Mesmo imanente do fazer musical, o gesto musical somente há algum tempo tornou-se
objeto de pesquisa de cunho musicológico, composicional ou interpretativo. Isso se deve
graças às mudanças na música contemporânea onde o compositor passou a sugerir tipos de
gestos a partir de indicações específicas na partitura. Além disso, também o surgimento da
música eletrônica e eletroacústica no século XX contribuiu para a redescoberta do gesto
musical como objeto científico sendo que, a partir dessas novas formas de se fazer música o
corpo do intérprete passou a estar ausente na performance musical. Foi preciso eliminar o
corpo do instrumentista na realização musical para que se notasse a importância da presença
dele, o qual desde a antiguidade sempre foi elemento essencial na produção sonora dos
instrumentos musicais. O contato do ouvinte com a música era através da performance, o
qual, mesmo não participando diretamente no ato de produzir os sons dos instrumentos, se
envolvia com a música de forma que internamente reconstruísse toda a gestualidade que o
cercava, já que a música era resultado dos corpos que a produziam.
Em se tratando de gesto, não é somente um simples movimento mecânico que um
indivíduo possa fazer, mas sim, movimento dotado de significado e intenção que busca
exprimir ideias, pensamentos, estados anímicos, sentimentos, etc. Apesar das diversas
maneiras de utilização, o termo gesto está intrinsecamente ligado às ações que envolvem o
corpo humano. Na música, o mesmo está ligado às ações corporais na extração sonora e tem
sido pesquisado e analisado na execução de vários instrumentos em diversas obras musicais
contemporâneas, sendo um elemento considerado essencial para tornar a performance musical
expressiva.
6

No que concerne mais especificamente ao contexto dos instrumentos de percussão,


apesar destes serem considerados os mais antigos surgidos na História da Música, foram
explorados grandemente apenas no século XX no contexto da música ocidental. Um deles,
especificamente, é a bateria, instrumento que se consolidou enquanto tal no século XX e que
possui ainda um escasso repertório de obras para música de concerto, sendo uma delas a
Chronos X.
O interesse da realização desta pesquisa surgiu devido às experiências musicais
obtidas ao longo desses anos, onde foram interpretadas diversas obras escritas para bateria e
percussão no âmbito da música popular e erudita, tendo, o autor deste trabalho, como
principal instrumento utilizado na carreira artística-musical, a bateria.
A escolha por Roberto Victorio foi feita pelos seguintes motivos: por este ser um
grande compositor brasileiro reconhecido nacionalmente e internacionalmente; pelas suas
contribuições importantes para a música de concerto através da escrita de obras destinadas a
vários instrumentos, inclusive, ao repertório da bateria e dos instrumentos de percussão; por
haver proximidade com o professor que atua nos cursos de Bacharel em Composição e
Licenciatura em Música da Universidade Federal de Mato Grosso, o que facilita a realização
de entrevistas para lhe fazer indagações a respeito de seu pensamento musical-composicional
e sua obra Chronos X. Esta obra foi escolhida como campo de análise sobre o gesto musical
justamente por ser escrita para bateria, instrumento musical escolhido para intermediar o
objeto de pesquisa e o campo de análise.
Na primeira parte deste trabalho, foram trazidos estudos, reflexões e discussões de
autores e estudiosos, estes que buscaram apresentar definições e características relacionadas
ao gesto, além de alguns exemplos de suas várias formas de utilização na vida cotidiana. Em
seguida, a discussão gira em torno do gesto no contexto musical, uma vez que este fenômeno
comunicativo faz parte de várias ações do fazer musical, em especial, a do intérprete na
execução instrumental. Buscou-se também discutir a respeito do gesto especificamente no
âmbito dos instrumentos de percussão com atenção especial à bateria.
A segunda parte consiste na discussão a respeito das transformações pelas quais a
música passou no século XX, onde surgiram novas formas de criação e composição
inovadoras que foram de difícil aceitação pelos defensores da música tradicional. Para estas
novas formas de se fazer música, atribuiu-se o nome de Música de Vanguarda, contexto onde
está inserido o compositor brasileiro Roberto Victorio e sua Obra Chronos X. Em seguida,
tem-se a apresentação de alguns aspectos relacionados ao pensamento musical-composicional
deste compositor que alicerçam o seu processo criativo, uma vez que ele criou uma vertente
7

própria denominada Música Ritual, termo oriundo da etnomusicologia. E por último a


descrição sobre as características de sua obra Chronos X que tem como temática a
multiplicidade do tempo expressada através da escrita da partitura.
Na última parte, há a descrição de todo o percurso do processo de construção da
performance de Chronos X realizada pelo intérprete, que se inicia a partir da primeira leitura
da partitura, passando pelo processo de memorização da obra, até o procedimento de
elaboração e obtenção de gestos capazes de outorgarem-lhe um caráter performativo
expressivo.
No corpo deste trabalho também seguem as Considerações Finais, Referências
Bibliográficas e os Anexos. Para uma melhor ilustração, nos anexos estão inseridos a partitura
completa da obra Chronos X e os vídeos gravados da primeira leitura e dos ensaios
individuais desta obra, realizados pelo autor deste trabalho.
8

Capítulo 1
Estudos, Discussões e Reflexões acerca do Gesto Musical

Vários estudiosos se dedicam à pesquisas e discussões envolvendo o termo gesto como


SANTIAGO, 2009; ZAVALA, 2012, BARROS, 2010; ZAGONEL, 1992; entre outros. Estes
autores em seus estudos partem do princípio que a palavra gesto, apesar de possuir um sentido
bastante amplo e dar margem a diversas formas de utilização, está relacionada às ações que
envolvem o corpo humano.
No dicionário Michaelis1: o termo gesto é definido como “movimento do corpo,
principalmente das mãos, braços, cabeça e olhos, para exprimir ideias ou sentimentos, na
declamação e conversação; forma de se expressar”. Seu significado na língua inglesa
especificamente no dicionário Cambridge2 apresenta três definições: “um movimento das
mãos, braços, ou cabeça, etc. para expressar uma ideia ou sentimento; uma ação que expressa
seus sentimentos ou intenções, embora possa ter pouco efeito prático; utiliza-se um gesto para
expressar ou enfatizar alguma coisa” (tradução minha).3
Começando com estas definições - as quais giram em torno das palavras ação,
movimento corporal, expressão, intenção, ideia e sentimento - constata-se, primordialmente,
que o gesto é definido não apenas como um simples movimento do corpo (parte concreta do
gesto), mas exprime uma ideia ou sentimento (parte abstrata do gesto) na ação do indivíduo
em se comunicar com alguém. Neste sentido, Zagonel, estudiosa e pesquisadora no campo da
música, afirma que o gesto realizado por uma pessoa gera uma imagem ou expressão visual
que é levada em conta no ato da comunicação “[...] na tentativa de que seu discurso seja
melhor compreendido” (ZAGONEL, 1992, p.7).
Partindo destas definições de dicionário e dos estudos de alguns autores, será discutido
neste capítulo as formas de uso da palavra gesto, seus aspectos e características relevantes, e a
utilização deste termo no que diz respeito à música e, mais especificamente, ao intérprete de
bateria (instrumento musical percussivo).

1
Disponível em: < http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=gesto> Acesso em 21 de set de
2016.
2
Disponível em: < http://dictionary.cambridge.org/dictionary/english/gesture> Acesso em 21 de set de 2016.
3
“a movement of the hands, arms, or head, etc. to express an idea or feeling; an action that expresses your
feelings or intentions, although it might have little practical effect; to use a gesture to express or emphasize
something”.
9

1.1 O Gesto

O gesto é uma ação que está presente no nosso cotidiano e utilizado para expressar
algo, seja discretamente, ou de forma extravagante. Ele é um fenômeno comunicativo no dia-
a-dia e uma palavra de sentido amplo que dá margem a diversas formas de utilização, sendo
algo proveniente de ações que envolvem o corpo humano.

Gesto é uma palavra usada em muitas disciplinas, como psicologia, linguística,


antropologia, estética e musicologia; pode estar ligado a muitas conotações
diferentes, algumas mais gritantes, outras mais sutis entre si. Dentro dessa
diversidade semântica cada significado guarda, cada qual a sua maneira, uma ligação
com um aspecto fundamental, que é o movimento do corpo humano. O movimento
das mãos, do corpo, do aparato vocal etc. (BARROS, 2010, p. 8).

Zavala enfatiza essa diversidade de formas de utilização do gesto ao afirmar que


“gesto é um termo que pode ser utilizado de muitas maneiras, sendo uma palavra que faz parte
do nosso vocabulário cotidiano” (ZAVALA, 2012, p.17). De forma mais geral, a autora
apresenta o gesto em dois casos: como ato simbólico, metáfora ou figura de linguagem, onde
o gesto cria simbolismos que dão significado a algo. Ou seja, “a palavra gesto é utilizada de
forma simbólica aludindo a uma atitude que pelas suas características tem um sentido e uma
intenção” (ZAVALA, 2012, p.17). A autora exemplifica este caso com o gesto solidário o
qual tem o intuito de auxiliar ou ajudar alguém, sendo que o movimento do corpo humano
não é o centro deste tipo de ação. No segundo caso, a autora apresenta o gesto como
movimento corporal repleto de simbolismos exemplificando com os gestos produzidos por
uma pessoa raivosa. Aqui nesse caso “[...] a palavra gesto se refere à realização de
movimentos corporais que têm um componente expressivo que nos permite identificar
emoções, afetos (nesse caso, a raiva)” (ZAVALA, 2012, p.17).
Por outro lado, o gesto também é aprendido, variando o seu modo de utilização
conforme a cultura onde ele é produzido. Considerando este aspecto, o gesto produzido por
um indivíduo expressa sua singularidade enquanto ser participante de uma cultura específica.
Para Santiago e Meywericz (2009) “gesto é algo inteligível e culturalmente aprendido”
(SANTIAGO E MEYWERICZ, 2009, p.83). Estes mesmos autores, fundamentando-se em
Mauss, afirmam que tanto os gestos como a postura e os movimentos corporais são
aprendidos culturalmente e não são apenas estímulos biológicos. Da mesma forma, Mendes e
Nóbrega (2004, p. 127), definem os gestos como “campos de visibilidade da articulação entre
natureza e cultura”, e nesta articulação as linguagens específicas são apresentadas
expressando as características individuais e culturais.
10

1.1.1 A expressividade do gesto

Uma das características, caminhos ou possibilidades do gesto é a expressividade.


Independente da cultura onde o gesto é produzido, ele está repleto de expressão. Godoy e
Leman apud Zavala (2012) citam a origem da palavra gesto no latim gestus, com o
significado de pose ou postura que indica um comportamento expressivo tendo o objetivo de
comunicar sentimentos, significando também, atitude. De acordo com os autores, a
expressividade sempre esteve presente e em estreita relação com a ação gestual do ser
humano.

Na etimologia da palavra gesto é possível constatar estreitas relações com a


utilização atual do termo. Na origem da palavra estão contidas as ideias de
expressão, comunicação de sentimentos, ação, atitude, comportamento, postura e
movimentos corporais inseridos dentro da dança (podemos ampliar essa ideia como
movimentos corporais inseridos dentro de uma arte ou linguagem) (ZAVALA, 2012,
p.17,18).

A respeito da expressividade como uma característica do gesto, Iazzetta afirma que o


mesmo:
[...] é entendido aqui não apenas como movimento, mas como movimento capaz de
expressar algo. É, portanto, um movimento dotado de significação especial. É mais
do que uma mudança no espaço, uma ação corporal, ou um movimento mecânico: o
gesto é um fenômeno de expressão que se atualiza na forma de movimento
(IAZZETTA, 1997, p.7).

Zagonel apresenta posição semelhante à de Iazzetta (1997) e ainda acrescenta ao gesto


o poder, capacidade ou possibilidade de simbolizar:

Diferente, pois do movimento, que é “deslocamento, ato de mover-se, mudança de


posição no espaço em função do tempo, em relação a um sistema de referência”, que
não tem nenhum sentido de expressão em si; o gesto tem um objetivo preciso, de
produzir ou simbolizar. (ZAGONEL, 1992, p.2)

A partir das afirmações destes autores, compreende-se que a expressividade sempre


esteve contida no gesto não importando o tipo de cultura onde é realizado, o que faz com que
se diferencie um simples movimento mecânico de um movimento que é capaz de expressar
algo. Portanto, o gesto difere-se de um movimento simples executado por um indivíduo que
se refere apenas ao deslocamento ou mudança de posição no espaço em função do tempo,
tendo assim o gesto o poder de expressar, produzir ou simbolizar.
Ainda sobre o aspecto da expressividade, Zavala (2012) reforça essa questão dizendo
que em meio à amplitude do uso do termo gesto correspondente às diversas maneiras de
11

utilizá-lo, em diferentes contextos, a expressão é um dos traços recorrentes nesse processo


(ZAVALA, 2012, p.17). Na visão da autora “o gesto tem como característica primordial a sua
capacidade potencial de expressar ideias, pensamentos, estados anímicos e/ou, no caso de
alguns gestos que integram um tipo de linguagem, reforçar ou contradizer essa linguagem”
(ZAVALA, 2012, p.17). Indo ao encontro do que Iazzetta (1997) diz sobre o gesto, ao mesmo
tempo em que um indivíduo apresenta um discurso através da fala, pode utilizar-se de gestos
para tornar mais enfática a comunicação com o ouvinte tendo o objetivo de melhorar a
compreensão daquilo que foi discursado. O gesto, portanto, é uma ferramenta do discurso de
um indivíduo, que, segundo Zagonel (1992), “[...] recorre à imagem para aumentar a eficácia
da comunicação” (ZAGONEL, 1992, p.7).

1.1.2 A intencionalidade do gesto

Uma segunda característica do gesto é a intencionalidade. Quando um movimento


torna-se significativo para alguém que imprime uma intencionalidade e interpretação a ele,
este sim pode ser considerado um gesto. A verdade é que o movimento corporal está contido
no gesto enquanto ação motora do sujeito, pois é necessário que haja o movimento para que
ele se concretize numa forma, contorno ou imagem. Barros (2010) aborda dois aspectos
interessantes sobre a interpretação do gesto os quais são o subjetivo e a dependência do
contexto, pois dependendo do indivíduo e do contexto em que o gesto é produzido pode
resultar em interpretações distintas sobre o mesmo. O movimento para ser gesto precisa estar
num contexto em que haja intencionalidade passível de interpretação.

O gesto guarda uma relação com o movimento, mesmo que metafórica. Porém nem
todo movimento pode ser considerado um gesto: para um movimento ser
considerado um gesto ele deve se tornar significativo para um sujeito que imprima
uma intencionalidade e interpretação a esse gesto. Claramente isso introduz um
aspecto subjetivo bem como um aspecto de dependência de contexto. Um mesmo
observador em diferentes contextos pode ter interpretações diferentes, ou em um
mesmo contexto dois observadores podem interpretar o mesmo gesto de maneiras
totalmente diversas. (BARROS, 2010, p.8)

Zavala (2012) discorre sobre o lado inconsciente de quem realiza o gesto e que pode
ser interpretado por outro indivíduo que o observa. De acordo com essa autora, “essa
intencionalidade não implica necessariamente uma tomada de consciência por parte de quem
o realiza, estando, sim, relacionada com a interpretação de quem percebe o gesto e a sua
intenção” (ZAVALA, 2012, p.17). Um indivíduo pode muitas vezes fazer gestos que não
12

estavam no script, ou seja, de forma não planejada e inconsciente. Aí então, entra em cena o
ouvinte (receptor) o qual interage visualmente e mentalmente com o gesto inconsciente do
intérprete e lhe atribui significado expressivo.
A intencionalidade do gesto, além de ser passível de interpretação seja através da
subjetividade de um intérprete ou ouvinte, num ou mais contextos determinados, também se
refere à “[...] organização do gesto, o que tem uma direção, uma forma desenhada no tempo, e
é capaz de transmitir uma intenção expressiva, mesmo não podendo-se afirmar em todos os
casos se essa foi „planejada‟ ou não” (ZAVALA, 2012, p.17). Com isso, tendo como exemplo
a execução de uma obra musical, busca-se ao máximo planejar e selecionar os tipos de gestos
a serem utilizados para a obtenção do resultado sonoro almejado, ou seja, o gesto é
primordialmente analisado, pensado e direcionado a uma finalidade que atenda as
necessidades da obra.

1.1.3 O processo de significação do gesto

Uma terceira característica do gesto é o processo de significação. O gesto, então,


produz ou simboliza e representa algo sendo um fenômeno de expressão e intenção que é não
só um movimento simples do corpo humano no espaço em função do tempo, mas
acompanhado de significado. Tanto Hatten (2006) apud Matschulat (2011, p.18) como
Zagonel (1992) se referem ao gesto como uma formação energética projetada no tempo e
possuidora de significado. Esse processo de significação está relacionado à dependência de
contexto apontado por Barros (2010), pois dependendo do contexto onde o gesto está inserido
podem surgir distintas interpretações a respeito do mesmo em que um ou mais indivíduos
atribuem significados de acordo com suas experiências, visões e percepções individuais
(subjetividade).
No caso da música, sendo uma arte performativa, a tendência é que o gesto em música
seja também algo que auxilie na construção significativa de uma obra de arte e não simples
movimento corporal. Langer (1953) faz a distinção entre um gesto “normal” e o gesto como
ferramenta na construção de uma obra de arte:

Gesticulação, como parte do nosso comportamento, não é arte. É simplesmente


movimento vital. Apenas quando o movimento que foi, inicialmente, um gesto
genuíno, é executado a partir da imaginação, pode tal gesto se tornar um elemento
artístico, uma dança-gestual. Desta forma, ele se torna uma forma simbólica livre,
que poderá ser usada para transmitir ideias de emoção, consciência e premonição, ou
13

poderá ser combinada a outros gestos ou incorporada a eles, para expressar uma
intenção física e mental (LANGER, 1953, p.175).

1.1.4 Os membros superiores e inferiores na produção do gesto

A maioria dos autores, assim como as definições de dicionário (apresentados na


introdução deste capítulo), enfatiza que os gestos são produzidos especialmente pelos
membros superiores do corpo humano. Toma-se como exemplo Zagonel, a qual diz que o
gesto “[...] é um movimento exterior ao corpo, mais particularmente dos membros superiores,
sobretudo das mãos ou da cabeça, que com frequência reveste de significado ou dá mais força
à língua falada” (ZAGONEL, 1992, p.13). Por este viés, tem-se também como exemplo
Zavala (2012, p.17) que ao tratar sobre a origem etimológica da palavra gesto - referente à
postura ou pose que indica um comportamento expressivo e comunicação de sentimentos -
destaca que isso é feito em particular através das mãos.
Tendo em vista estes exemplos de definições destas autoras (bem como dos
dicionários), nota-se que não há a atribuição de exclusividade aos membros superiores como
produtores de gestos (ou seja, os gestos não são produzidos somente e/ou exclusivamente
pelos membros superiores). Então, desta forma, isso quer dizer que os membros inferiores
também produzem gestos, mas que visualmente podem ser mais discretos e não tão
perceptíveis quanto os membros superiores. Para enfatizar esta questão, Santiago e
Meywericz (2009) trazem uma definição que se refere ao gesto como movimento de todos os
segmentos do corpo (e não só dos membros superiores), que com isso constata-se, nesse caso,
que os membros inferiores também podem produzir gestos assim como os superiores.

Uma definição de dicionário se refere a gesto como sendo movimento de todos os


segmentos do corpo, voluntário ou involuntário, que revela “estado psicológico ou
intenção de exprimir ou realizar algo”; o gesto é definido como “aceno, mímica,
expressão singular, aparência, aspecto, fisionomia maneira de se manifestar; atitude,
ação” (SANTIAGO e MEYWERICZ, 2009, p.83).

Para dar ênfase aos membros inferiores como produtores de gestos, toma-se como
exemplo, uma criança que ao ficar com birra do pai e/ou da mãe após levar uma bronca, ela
cruza os braços, pula e bate os pés no chão. Um outro exemplo é de uma pessoa que bate o pé
no chão por estar muito tempo esperando a outra se arrumar para ir ao parque.
Após as definições e características do gesto, além de exemplos de algumas formas de
utilização no cotidiano, no próximo tópico será discutido sobre o gesto musical.
14

1.2 Sobre o gesto musical

O gesto em música pode ser discutido sob aspectos distintos como sua conceituação, o
que pode ser observado e percebido em relação à gestualidade do compositor, de um
intérprete-instrumentista numa performance musical, o que este gesto representa para os
ouvintes ou em determinados contextos. Porém, este tipo de estudo requer um tempo
considerável, devido a grande complexidade de análise e compreensão.
De acordo com Chaib (2012):

Nas artes performativas o fenômeno gestual é encarado de diversos modos, sendo


encontradas as mais variadas interpretações sobre o mesmo. Em algumas formas de
expressão artística como a música, dança, pintura e teatro, os autores e intérpretes
geralmente se apropriam de forma plural do conceito de gesto (CHAIB, 2012,
p.159).

Pesquisas que consideram o gesto musical como sendo algo inseparável ou imanente
do fazer musical surgiram apenas recentemente, tornando alvo de investigação seja de cunho
musicológico, composicional ou interpretativo (ASSIS e AMORIM, 2009, p.1). De acordo
com Iazzetta (1997) algo fundamental que contribuiu para o gesto musical tornar-se objeto de
pesquisa foram consequências trazidas pelo desenvolvimento da tecnologia no século XX, a
qual contribuiu para o nascimento da música eletrônica e eletroacústica. Durante muitos anos,
num longo processo de transformação da cultura musical, as pessoas aprenderam e se
acostumaram a ouvir os sons produzidos pelos corpos do instrumentista e do instrumento. O
contato do ouvinte com a música era através da performance que, mesmo não participando
diretamente no ato de produzir os sons dos instrumentos, ele se envolvia com a música de
forma que internamente reconstruísse toda a gestualidade que o cercava, já que a música era
resultado dos corpos que a produziam. Sendo assim, para o ouvinte, a ausência dos corpos dos
instrumentistas não seria bem-vinda, sendo essencial a presença dos mesmos.

Durante milênios as pessoas aprenderam a ouvir sons que guardavam relações


estreitas com os corpos que os produziam. Subitamente, toda a experiência auditiva
acumulada em um longo processo de evolução da cultura musical é transformada
pelo surgimento dos sons eletrônicos. A audição desses sons não revela as relações
mecânicas, concretas e aparentes dos instrumentos acústicos tradicionais, já que
estes são gerados através de processos elétricos, invisíveis à nossa percepção. São
sons novos e extremamente ricos, mas ao mesmo tempo, conflituosos, já que vêm
desvestidos de qualquer conexão com corpos ou gestos (IAZZETTA, 1997, p.2).

Em se tratando da performance ao vivo, Iazzetta (1997) discute, fundamentado em


Leppert (1993), a importância da experiência visual no envolvimento entre intérprete e
público. Este último autor se refere à importância de fato da presença corporal do intérprete e
15

do instrumento para materializar e dar localidade ao acontecimento sonoro fazendo com que o
ouvinte possa reconhecer mais rapidamente as fontes de produção sonora (Leppert apud
IAZZETTA, 1997, p.3). O som é gerado e propagado pelo ar, sendo um fenômeno abstrato já
que um indivíduo não pode vê-lo e nem sequer segurá-lo. Iazzetta (1997) aponta a força que
existe na conexão entre o som e a imagem que o acompanha sendo que, antes do surgimento
da música eletrônica e digital seria anormal que se ouvisse música sem ver o corpo que a
produzisse, havendo então um “[...] caráter mágico da ligação entre aquilo que se ouve e
aquilo que se vê” (IAZZETTA, 1997, p.2,3). Sendo o som algo abstrato e sabendo-se que a
performance musical ocorre numa localidade (seja num teatro, praça ou qualquer espaço
aberto ou fechado), a presença do corpo do intérprete e do instrumento faz com que haja um
tipo de materialidade da performance musical.
Outro fator relevante que contribuiu para a redescoberta do gesto musical como objeto
científico diz respeito, de acordo com Assis e Amorim (2009), à música contemporânea4 e
suas características sendo que o compositor passou, de certa forma, a controlar ou sugerir os
gestos a partir de indicações específicas da partitura.

Uma vez que a música contemporânea rompe com a discursividade tonal e, portanto,
com uma estrutura sintática subordinada às funções tonais tradicionalmente
reconhecidas, a coordenação dos gestos não pode mais ser deduzida da melodia ou
da harmonia. Ela deve obedecer às indicações específicas da partitura, ou seja, passa
a ser controlada diretamente pelo compositor e não está mais condicionada a um
conjunto de convenções preestabelecidas (ASSIS e AMORIM, 2009, p.1).

Na visão teórica de Hatten, é preciso entender o gesto humano antes de sua


manifestação nas obras musicais sofisticadas (Hatten apud Matschulat, 2011). Existem
composições de música contemporânea que se encaixam no perfil de sofisticação sendo que,
inúmeras obras de um compositor apresentam a manipulação dos gestos do intérprete através
das indicações presentes na partitura, resultando em uma performance musical diferenciada e
contagiante, dentro de uma beleza estética. Nesse caso, um estudo aprofundado sobre o gesto
contribui acentuadamente para o melhor desenvolvimento possível do caráter gestual de uma
composição e uma interpretação da mesma, e que haja coesão na estética contemporânea.
O gesto em música torna-se cada vez mais complexo de ser analisado e conceituado à
medida que surgem novas composições musicais de diversos gêneros ou estilos; quando este
gesto é poético; quando se transforma numa marca pessoal do compositor, uma referência que
identificamos como típica daquele compositor. A música de concerto, sendo um tipo de

4
Neste trabalho o termo “música contemporânea” é entendido como o que diz respeito à música clássica
composta na atualidade seguindo uma linha de especulação criativa originada na música clássica de concerto.
Ver discussão no início do capítulo 2.
16

música com apresentações que ocorrem geralmente e tradicionalmente em ambientes


fechados como o auditório e o teatro, possuindo uma formalidade própria, apresenta um
comportamento gestual dos intérpretes diferente dos shows e apresentações de Rock e de
Samba, dentre outros estilos musicais. Quando cada estilo de música apresenta um tipo
específico e particular de expressão gestual através do corpo humano, essa especificidade se
fragmenta e estende-se a cada intérprete e obra musical em particular. Por isso, é importante
ressaltar que o que se encontra são trabalhos, principalmente dissertações de mestrado, que
abordam o gesto musical numa obra musical específica e de um compositor específico, até
porque os compositores também se diferenciam quanto ao estilo e caráter gestual de suas
obras. Levando-se em conta a sofisticação ou o grau de complexidade existente em
composições de música contemporânea, é possível se concentrar e aprofundar em uma única
obra para realizar os estudos sobre o gesto musical, podendo haver vários e distintos aspectos
a serem levantados, observados e analisados.
A complexidade de análise do gesto musical se deve, para Barros (2010), ao que pode
ser entendido como uma unidade portadora de conteúdo musicalmente significativo sendo
que, um evento musical pode se decompor em partes mínimas que podem ser analisadas
isoladamente, as quais se inter-relacionam e constituem uma propriedade repleta de conteúdo
musical significativo.

Partamos do princípio de que um evento musical pode ser decomposto até


chegarmos aos seus elementos mínimos, muito embora o que acarreta a experiência
musical não é cada um desses elementos mínimos isolados, mas a propriedade que
surge da inter-relação entre eles, em conjunto. Esta propriedade que surge da relação
dos elementos mínimos é o que constitui uma determinada configuração portadora
de conteúdo musicalmente significativo (BARROS, 2010, p.10;11).

Para Zagonel (1992), a complexidade do gesto em música se dá pelo “[...] grande


número de componentes que intervém nos atos de criação e execução musical” (ZAGONEL,
1992, p.8). Essa questão está ligada tanto ao gesto do compositor quanto ao gesto do
intérprete, ou então, o que Salles (1998) denomina poética do autor 5. Enquanto o primeiro,
através do gesto composicional, cria e/ou elabora uma obra musical num processo que
demanda tempo e requer escolhas em meio a um vasto campo musical, o segundo tem o papel
de interpretar e executar a obra musical criada realizando gestos corporais na extração sonora
do instrumento e, obedecendo as indicações da partitura. Neste caso, também há um vasto
campo musical de possibilidades a serem testadas e escolhidas pelo intérprete durante um
período de tempo.

5
Para mais detalhes, ver SALLES, 1998.
17

Outro fator de complexidade do gesto diz respeito à sua amplitude funcional em


virtude do seu poder de expressividade. O gesto além de ser uma unidade portadora de
conteúdo musicalmente significativo, também apresenta conteúdo expressivo, o que faz com
que possamos aprender a compreender os acontecimentos sonoros durante a performance
musical. Kurtenbach e Hulteen apud Iazzetta (1997) falam a respeito desta amplitude
funcional do gesto resultante do seu poder de expressividade. Eles afirmam que:

Os gestos amplificam suas funções em virtude de sua expressividade. Quer dizer,


um gesto pode controlar vários parâmetros ao mesmo tempo, permitindo assim que
o usuário possa manipular os dados de uma maneira que seria impossível se tivesse
que modificar um parâmetro de cada vez. Por exemplo, um maestro controla
simultaneamente o tempo e o volume do gesto musical. O ritmo do gesto controla o
tempo e o tamanho do gesto controla o volume. Isso permite uma comunicação
eficiente que não seria possível pelo ajuste individual do tempo e do volume
(Kurtenbach e Hulteen apud IAZZETTA, 1997, p.8).

Steuernagel apud Silva (2010) traz as idéias de condução e interação gestual. Na visão
de Steuernagel, há uma rede de relações entre elementos que estruturam o gesto musical, e no
processo composicional, há a relação entre os gestos que estruturam a composição em sua
totalidade. Ainda o autor discorre sobre a possibilidade de tratar o gesto como uma unidade
ou agrupamento, que resulte num olhar geral da composição no momento em que despontam
as interações entre gestos diferentes na obra musical (Steuernagel apud SILVA, 2010, p.99).
Consequentemente, essas interações gestuais que estruturam a peça, de certa forma, atraem e
direcionam a atenção do ouvinte na performance musical. De acordo com Sullivan apud Silva
(2010) “O gesto ajuda a atrair a atenção do respondente para algumas coisas e para longe de
outras” (p.99). Steuernagel apud Silva (2010) complementa dizendo que:

Visto deste prisma, ele [o gesto] se torna uma ferramenta essencial para direcionar a
atenção do ouvinte na condução deste através da peça que se desenrola. Negligenciar
a importância do gesto é omissão que aumenta o risco de uma “escuta
desgovernada” por parte do ouvinte. O compositor que se exime de controlar, até o
limite de sua capacidade, esta escuta através da condução gestual negligencia o
aspecto talvez mais importante da música: o reconhecimento da intenção e
direcionamento de seus esforços criativos (Steuernagel apud SILVA, 2010, p. 99).

Neste sentido Zagonel (1992) distingue dois tipos de gestos: físico (movimento
concreto) e mental (movimento abstrato). O primeiro é relacionado ao contato com um objeto
tendo como resultado a produção do som e, ele não se limita apenas a técnica de tocar, mas
também é um elemento essencial do fenômeno de expressão. É por isso que o instrumentista
se esforça em tornar a sua música expressiva no sentido amplo do termo, pois os gestos não
podem ficar sem significado (ZAGONEL, 1992).
18

O gesto mental, o qual se produz no pensamento (intelectualmente), engloba dois


aspectos importantes que são: o que faz referência ao gesto físico (imagem mental) e o que é
entendido como movimento sonoro (som se deslocando no tempo) sendo que ambos fazem
parte da vida de um compositor ou instrumentista (intérprete). De acordo com Zagonel (1992)
“o compositor, ao conceber uma ideia musical, constrói a imagem do movimento sonoro e
pode prever o gesto instrumental necessário à sua concretização” (ZAGONEL, 1992, p.17).
Há uma relação entre o compositor e o intérprete, já que o segundo a partir da leitura da
partitura imagina o movimento sonoro desejado e transforma em som concreto (o que foi
pensado pelo primeiro). Sendo assim, entende-se que o gesto mental precede o físico, este que
como ação concreta pertence ao intérprete e, vale lembrar também que, há problemas de
Idiomatismo do instrumento (por exemplo: Violonismo, Pianismo). Um aspecto interessante e
que resume toda esta parte é que há uma inversão de caminhos sendo que, o compositor vai
do gesto a composição e o intérprete da composição ao gesto. Iazzeta (1997) ao se referir a
essa distinção feita por Zagonel (1992), complementa destacando o controle que o
instrumentista tem sobre uma série de parâmetros musicais que são dependentes dos seus
gestos instrumentais, sendo esses parâmetros condizentes com as dinâmicas, articulação,
timbre, fraseado, etc. (IAZZETTA, 1997, p.8). Portanto, o gesto físico não se limita apenas a
mera produção do som, mas leva-se em conta no ato musical a percepção e análise das
características e especificidades do mesmo, seu comportamento e suas qualidades ou tipos de
sons que podem ser extraídos no contato com o instrumento. Essa questão é de suma
importância na execução de uma obra musical, pois é preciso obedecer às indicações da
partitura que foram elaboradas pelo compositor para que se alcance a sonoridade almejada.
Sobre o gesto mental utilizado pelo compositor, ou, a poética do autor denominada por
Salles (1998), antes de compor uma obra certamente já passou por diversas experiências
sonoras6, testes com combinações de sons, fraseados, articulações, resultando em um
armazenamento na memória de como tudo tende a soar, ou seja, isso ele já prevê antes de
compor o gesto instrumental. Além de apontar para o corpo do músico ou as especificidades
do instrumento, o gesto mental também pode fazer referência a uma estrutura sonora
particular como a de um arpejo que se desloca de um ponto ao outro no espaço das alturas
sonoras e a marcação de um bumbo numa orquestra, o qual reflete gestualmente a delimitação
de uma unidade temporal regular (IAZZETTA, 1997, p.9;10). Para Iazzetta (1997) “de certa
forma, o gesto físico está ligado mais diretamente à interpretação da música, enquanto a

6
Os “rascunhos” do artista. Para mais detalhes, ver SALLES, 1998.
19

composição se apoia muito mais no gesto mental” (ibidem, 1997, p. 10). O autor ainda afirma
que o ouvinte “[...] completa a cadeia recriando mentalmente os gestos físicos do intérprete no
momento da audição” (ibidem. p.10).
Fora a distinção entre gesto físico e mental, há a diferenciação entre gesto musical e
gesto corporal. Enquanto o primeiro está atrelado ao fazer musical, o segundo não
obrigatoriamente (ou exclusivamente) está presente nessa realização, podendo fazer parte de
diversos tipos de ação além da execução musical. Apesar disso, essencialmente o gesto
musical depende do gesto corporal para a concretização e manipulação dos sons, a qual é feita
por algumas partes do corpo na execução dos instrumentos musicais (geralmente mãos,
braços, aparato vocal e pés). Para Zavala (2010), apesar destes dois tipos de gestos poderem
ser separados para a pesquisa científica, eles têm uma interligação intrínseca na realização do
intérprete. Já Iazzeta (1997), tem uma posição diferente e encara o gesto corporal como um
tipo de gesto físico que não têm a função de realizar a extração sonora, mas de se expressar
acompanhando o som realizado.
Souza apud Silva (2010) apresenta duas faces complementares de fundamentação
teórica sobre o gesto musical: movimento e significação. Ele considera o movimento não de
um objeto real e físico, mas sim, o de sensação de movimento presente nas estruturas sonoras.
Quanto à significação, segundo o autor, está relacionada às organizações sintáticas a partir do
movimento sonoro (Souza apud SILVA, 2010, p.98). Hatten apud Matshulat (2011)
caracteriza o gesto musical como uma formação energética do som projetada no tempo, o que
ele denomina como gesto aural o qual não se limita apenas a ação física na produção sonora,
mas possui um contorno característico que atribui significado expressivo aos sons (Hatten
apud SILVA, 2010, p.19). Matschulat (2011) baseia-se no pensamento de Hatten falando a
respeito dos sons os quais estão sintetizados em elementos musicais como o timbre,
articulação, dinâmica e tempo e sua coordenação em vários níveis sintáticos sendo que, os
sons são unidades expressivas as quais são manipuladas pelos gestos musicais baseados nos
afetos humanos e na comunicação dos mesmos.
Na visão de Zavala (2010) o termo gesto musical se refere aos movimentos corporais
utilizados na realização musical (gestos corporais) ou aos gestos musicais indiferenciados
(gestos composicionais como unidades de sentido musical; e gestos corporais que concretizam
ou realizam os gestos musicais). Para Hatten apud Zavala (2010) há uma ligação entre os
gestos corporais e os gestos musicais sendo que é necessária a presença e a ação do corpo para
conceber os gestos musicais.
20

Por outro lado, numa definição instrumental de gesto musical, Silva (2010) traz
primeiramente “a ideia de gesto como a imagem de um evento sonoro, a condensação de uma
sonoridade” (SILVA, 2010, p.97). Num segundo momento, o autor faz referência ao
pensamento de Zagonel (1992) e apresenta a ideia de gesto musical como um movimento que
possui significado e uma intenção precisa que tem o intuito de elucidar as intenções estéticas e
expressivas do artista, sendo o gesto então uma sonoridade que significa (SILVA, 2010).
Souza apud Silva (2010) afirma que:

O gesto musical é uma forma percebida em um evento realizado num espaço sônico
(um espaço formado pelas dimensões do campo perceptivo, que correspondem aos
parâmetros musicais) cuja unidade – sua capacidade de ser percebida como uma
totalidade, sua Gestalt – é responsável pela articulação e coesão das idéias musicais
(Souza apud SILVA, p.98).

E ainda aponta uma possibilidade de conceituação sobre o gesto musical:

Um movimento no campo perceptivo, percebido através da variação de um ou mais


parâmetros musicais e da permanência de outros, que apresenta uma forma
reconhecível, a qual, no processo de significação musical, cumpre a dupla função de
dar forma às unidades sintáticas do discurso (e assim dar sentido às estruturas
musicais, evidenciando sua direcionalidade potencial) e de atuar como signo nos
possíveis processos de representação que ocorrem na música, incluindo a expressão
de estados psicológicos e modalidades (ibidem, p.98).

Sendo assim, para Silva (2010) o gesto musical é um movimento sonoro o qual
significa e não só apresenta as intenções estéticas e expressivas do intérprete, mas também
articula e traz coesão às ideias musicais.
A partir das definições dos autores acerca do termo gesto musical, será discutido no
próximo tópico o gesto do intérprete mais especificamente.

1.2.1 O gesto instrumental (ou do intérprete)

Dentre as categorias de gestos levantadas por Zagonel, destaca-se a do gesto


instrumental, o qual envolve a relação intérprete-instrumento. O intérprete conhecendo as
características, particularidades ou especificidades do instrumento que toca, utiliza-se dos
movimentos corporais que são peculiares a ele para a extração sonora. Em se tratando de
obedecer à especificação da partitura de uma obra musical, a qual requer certos tipos de
sonoridades, isso é feito de forma pensada pelo intérprete, ou seja, há a intenção de extrair tais
sonoridades requeridas. De acordo com Zagonel (1992) “na produção natural do som pelos
instrumentos acústicos, o gesto participa de maneira íntima do fenômeno físico, determina
21

diretamente certos atributos decisivos para a percepção e a musicalidade” (ZAGONEL, 1992,


p. 21). Indissociavelmente, há uma percepção táctil e cinestésica – esta que segundo o
dicionário on-line Michaelis se refere à cinestesia que é a “percepção dos movimentos
musculares, peso e posição dos membros, por meio de estímulos próprios” 7 - do que acontece
no momento em que o instrumento é tocado, onde se analisa alguns fatores presentes no ato
de tocar como as noções de espacialidade e tempo, tipos de contato com o instrumento,
movimento corporal, além do comportamento do som, dos parâmetros sonoros e a técnica. Os
efeitos sonoros atraem a percepção de análise do gesto, os quais testam os conhecimentos do
intérprete quanto à sua capacidade de perceber o que pode ser mudado ou não, quanto ao que
foi produzido naquele instante, fazendo com que se pense de forma mais aprofundada e
crítico-analítica melhorando o desempenho na execução, e obtendo o melhor resultado sonoro
possível.
O pesquisador francês François Delalande apud Zagonel (1992) divide o gesto
instrumental em: “gesto que efetua”, “gesto que acompanha” e “gesto figurado”. O primeiro
diz respeito à produção mecânica efetuada pelo intérprete para a extração sonora do
instrumento, baseada na técnica necessária adquirida para produção do som. Esse tipo de
gesto é o embrião do toque instrumental, já que a partir dele é que irão surgir os outros gestos
ligados à expressão do corpo e percepção do ouvinte. O instrumentista através da prática dos
estudos procura um aperfeiçoamento de sua técnica para execução, com o objetivo de
alcançar a melhor qualidade sonora. É o movimento corporal que faz o som se manifestar e
interfere na sua produção. Vale ressaltar que inicialmente no aprendizado de um instrumento
musical, geralmente os gestos do indivíduo são rudimentares e a expressividade pode estar
ausente (ZAGONEL, 1992). Há um processo de maturação através de exercícios práticos para
o fortalecimento da musculatura, desenvolvimento da coordenação, agilidade, articulação
rítmica, dentre outros, até num momento em que o gesto chega a um certo automatismo.
Precisa-se, então, maturar os gestos base, deixando-os o mais automático possível, para então
haver mais liberdade para se expressar posteriormente.
O gesto que efetua está estreitamente ligado aos gestos físico e mental, já que, ao
aprender uma técnica gestual necessária para a produção sonora, o indivíduo antes imagina o
movimento que foi aprendido e memorizado para em seguida entrar em contato físico com o
instrumento.

7
Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=cinestesia> Acesso em: 26 de set
de 2016.
22

Sendo os gestos base, em sua maioria, gestos que efetuam desprovidos de expressão,
compreende-se que o indivíduo adquire gestos básicos para a produção sonora do instrumento
os quais vão ganhar expressividade fortemente e principalmente, a partir do contato com
diversas obras musicais. Durante os estudos e ensaios de uma obra musical estes gestos vão
ganhando expressividade, possibilitando a criação e realização de outros gestos pertinentes
para a execução técnica-expressiva de uma determinada obra, considerando a poética singular
e um nível ou grau de complexidade da mesma.
O gesto que acompanha, como o próprio nome diz, acompanha o gesto que efetua, e
faz apologia ao significado. O gesto acompanhante ultrapassa os limites do gesto técnico e o
corpo todo faz parte do processo para tornar a música executada em uma arte de expressão
sonora-corporal. A emoção é um fator participante, contribuindo para que o resultado a partir
disso seja sempre musical. Porém a expressão sem a técnica apurada ou vice-versa, põe em
risco a qualidade do resultado final da execução de uma obra musical. É necessário haver um
equilíbrio entre técnica e expressividade para que a música não seja somente mecânica e
muito menos sem qualidade técnica-sonora.

É o gesto que engendra o som. Assim, a uma certa qualidade gestual corresponde
inevitavelmente uma certa qualidade sonora, tanto na dinâmica quanto no timbre do
som. É por isso que o intérprete procura aperfeiçoar ao máximo seu gesto, para
reproduzir o mais exatamente possível o som que possui em mente: ele procura uma
adequação do gesto ao som. Tal adequação dependerá do controle desses gestos
mecânicos; que será possível graças aos conhecimentos adquiridos dos efeitos de
seus gestos em contato com o instrumento. Conhecimentos, esses, arraigados em sua
memória e acessíveis automaticamente conforme as necessidades (ZAGONEL,
1992, p.23;24).

O gesto figurado está associado ao receptor (ouvinte) o qual não percebe somente os
gestos mecânicos, mas também, os utilizados pelo intérprete voluntariamente ou não, segundo
Zagonel (1992). Esta autora afirma que: “o ouvinte de uma gravação é, por sua vez, capaz de
criar todo um balé imaginário da execução, e de fazer ele mesmo a mímica em função da
percepção musical e dos conhecimentos visuais da ação do intérprete” (ZAGONEL, 1992, p.
26).
De acordo com Santiago e Meywericz (2009), o gesto de um instrumentista pode
representar uma identidade cultural direcionada aos valores, costumes e comportamentos que
ele vivencia na sociedade sendo que, ele gesticula e ao mesmo tempo pode transmitir
conteúdos específicos musicais e simbólicos, metafóricos, que atraem símbolos de um
universo cultural que são familiares ao próprio intérprete e ao espectador. Os autores trazem
23

como exemplo o flautista Artur Andrés Ribeiro (1959) do grupo musical Uakti8 na obra
Krishna I9, o qual realiza um movimento circular com o corpo sendo um gesto que tem um
significado simbólico. Na cultura ocidental, oriental, africana e em outras culturas pelo
mundo, os movimentos circulares remetem a simbologias como vivência da totalidade do self,
integração do self com tudo que o rodeia, percepção circular de vida, misticismo, eternidade,
mito do eterno retorno (SANTIAGO e MEYWERICZ, 2009, p.89).
O caráter multimodal do gesto musical é importante e determinante na análise do
aspecto gestual de um músico-instrumentista, o qual pode ser denominado como ponto chave
(CAMURRI et al 2004). Podemos perceber e analisar o gesto musical não só a partir da
estrutura sonora da obra a qual ele obedece para a extração sonora, mas também envolvendo
diversos aspectos que vão da parte física, do corpo, emoções, cultura até a significação.
Camurri et al (2004) realizaram uma pesquisa sobre o gesto expressivo visando entender os
mecanismos não-verbais da comunicação emocional e expressiva. Eles primeiramente
apontam o gesto natural como o uso mais comum do termo “gesto” em meio a várias
definições sobre o mesmo existente na literatura, o qual auxilia dando suporte à comunicação.
Estes autores citam uma definição atribuída por Cassel (1990) ao gesto natural como
referindo-se a tipos de gestos espontâneos gerados por um indivíduo num momento em que
fala em público, conta uma história ou realiza uma conversação. Os mesmos autores também
se baseiam em Kurtenbach e Hulteen (1990) os quais definem o gesto como “a movement of
the body that contains information”10 .
Camurri et al (2004) afirmam que o gesto natural tem relação com os domínios afetivo
e emocional no que diz respeito à informação (o que eles denominam como conteúdo
expressivo) contida e transmitida por este gesto o qual é denominado gesto expressivo, e isso
ocorre particularmente no contexto das artes performativas. Quanto ao conteúdo expressivo,
segundo estes autores, está relacionado a aspectos tais como sentimentos, estados de espírito,
afeto e intensidade da experiência emocional. Os mesmos trazem o exemplo de uma pessoa
caminhando a qual pode ser reconhecida pelo modo como anda sendo que, também, a partir
disso, há a possibilidade de captar informações sobre seu estado emocional. Há dois tipos de
análise desse caso sendo a primeira condizente com as características físicas do movimento, e
a segunda relacionada a captação do conteúdo expressivo direcionado ao estado emocional,
apresentado pelo modo que a pessoa caminha.

8
UAKTI foi um grupo instrumental fundado em 1978 na cidade de BeloHorizonte - MG, que encerrou suas
atividades em 2015.
9
Disponível on-line: <https://www.youtube.com/watch?v=5yZijDmnLuY>
10
“um movimento do corpo que contém informação” (tradução livre do autor).
24

Esses autores ampliam o conceito de gesto definido por Hutenbach e Hulteen (1990).
Além do gesto natural, o gesto musical, o movimento humano e o gesto visual também são
gestos expressivos (CAMURRI et al). No caso dos músicos, estes apresentam conteúdos
expressivos através de gestos expressivos específicos na interpretação musical. Segundo
Camurri et al (2004) “o gesto na performance musical usa ambos canais auditivo e visual na
captação de conteúdos expressivos, e, assim, é multimodal em sua essência” 11 (CAMURRI et
al, 2004, p.3) 12. Neste sentido o gesto na performance musical não se restringe ao gesto físico
e funcional do intérprete, mas também, ao gesto expressivo presente na produção sonora.
A partir das ideias aqui levantadas, no próximo tópico será discutido sobre o gesto em
percussão com ênfase na bateria.

1.2.2 O gesto em percussão

A música produzida no século XX permitiu uma ampliação na quantidade de


composições musicais escritas, contribuindo para a grande exploração e expansão de
composições escritas para os instrumentos de percussão, no contexto da música ocidental.

O século XX foi caracterizado por uma grande expansão na quantidade de


composições musicais escritas, com especial atenção para os instrumentos de
percussão (solo, música de câmara, concertos, repertório orquestral, dentre outros).
Diferentes compositores e escolas composicionais contribuíram para o
desenvolvimento da literatura percussiva, gerando novas possibilidades
interpretativas e novos desafios aos intérpretes (MORAIS, 2010, p. 62).

Como se sabe, o universo da percussão apresenta uma variedade de instrumentos que


possibilitam uma grande amplitude sobre a exploração tímbrica e permitem diversos meios de
execução. Em relação à extração sonora dos instrumentos de percussão, é imprescindível o
uso do gesto físico do intérprete para que tal ação aconteça sendo que, o gesto proporciona um
movimento que entra em contato físico com o instrumento. Chaib e Catalão (2011) apontam
dois tipos de contatos existentes entre o percussionista e os instrumentos de percussão:

O percussionista poderá tocar um instrumento directamente com as mãos ou


indirectamente com o auxílio de baquetas e/ou qualquer outro artefacto manipulável.
Desta forma, a relação de contacto com o seu instrumento será diferente observando
o caso de outras famílias de instrumentos (CHAIB E CATALÃO, 2011, p.2).

11
Tradução livre do autor.
12
“[...] gesture in music performance uses both the auditory and the visual channels to convey expressive
information, and, thus, it is multimodal in its essence”.
25

Para a execução de uma determinada obra para percussão, Chaib (2012) considera o
movimento corporal como um dos aspectos expressivos principais na construção da
performance do percussionista, acreditando que os gestos realizados e a percepção
contribuirão para a ampliação das possibilidades de apresentação e compreensão do conteúdo
musical. Com isso, podem ser gerados distintos níveis de expressão os quais permitem
ampliar as faculdades e horizontes interpretativos do intérprete. Neste sentido, este autor
apresenta três diferentes perspectivas sobre o gesto na ação da performance percussiva: Gesto
Percussivo, Gesto Percussivo Interpretativo e Gesto Percussivo Expressivo, conforme
podemos ver a citação abaixo:

Três diferentes pontos de vista sobre o gesto foram aqui analisados. O primeiro, ao
qual chamaremos Gesto Percussivo (GP), será o responsável pela extração sonora do
instrumento, processo imprescindível para uma performance musical percussiva. O
segundo, conceitualizado como Gesto Percussivo Interpretativo (GPI), discutirá o
exercício e domínio intelectual do percussionista sobre a obra capaz de outorgar-lhe
um caráter performativo único e original. Finalmente, o terceiro conceito de gesto
que denominamos Gesto Percussivo Expressivo (GPE) será a simbiose dos dois
gestos anteriores, somados a uma concepção de movimento corporal que transcende
as questões técnicas de execução instrumental (CHAIB, 2012, p.160).

O primeiro tipo de gesto apresentado por Chaib (2012) tem similaridade com o gesto
que efetua de Delalande apud Zagonel (1992). O primeiro autor fundamenta-se em Godoy no
que diz respeito aos gestos produtores de som, afirmando serem movimentos indispensáveis e
que originam os gestos corporais relacionados à performance percussiva, já que, sem estes
primeiros movimentos não é possível que haja a execução dos instrumentos de percussão
realizada pelo intérprete. Sendo assim, o gesto percussivo é o gesto imprescindível para a
extração sonora dos instrumentos de percussão, representando o primeiro contato entre
intérprete e instrumento. Para Chaib (2012): “De caracter puramente técnico, mas não
interpretativo, esse gesto será o primeiro passo dado para a construção de uma performance
em percussão, podendo ser considerado a primeira fonte de interlocução expressiva do
intérprete” (CHAIB, 2012, p.165).
O segundo gesto (percussivo interpretativo), o qual pode ser associado ao gesto mental
definido por Zagonel (1992), corresponde à relação entre os gestos realizados e o caráter
interpretativo da obra, momento em que o percussionista se esforça para descobrir e encontrar
formas de ação corporal adquiridas no espaço e o tipo de sensação que isso causa aos
espectadores. Chaib (2012) primeiramente destaca a importância que deve ser dada ao espaço
entre instrumento e instrumentista no repertório percussivo para a construção de gestos
percussivos. Para este autor “o intérprete tem que, antes de tudo, perceber o seu plano de
26

espaço em relação ao instrumento que está à sua frente” (CHAIB, 2012, p.165). Neste sentido,
é importante o intérprete verificar e determinar a posição no palco, disposição (no caso da
percussão múltipla), distância e a altura dos instrumentos que venham corresponder, da
melhor forma, tanto às suas características físico-corporais (altura, tamanho das mãos, braços,
etc.) como à estética visual do palco, o que caracterizará os movimentos realizados com o
corpo na interpretação da obra.
Quando se trata de percussão múltipla, a relação entre instrumentista e instrumento é
mais complexa, pois existem diversos instrumentos de percussão com características físico-
sonoras distintas, e a montagem ou disposição dos mesmos varia de acordo com cada obra
musical. Nesse caso, paralelamente, além dos vários tipos de gestos percussivos distintos,
podem ser obtidos diversos gestos corporais incluindo o movimento de deslocamento no
espaço para o alcance dos instrumentos. Neste sentido, além dos braços e os pulsos como
ferramentas importantes na condução das mãos para a extração sonora dos instrumentos,
Chaib (2012) atribui importância ao tronco e aos membros inferiores (pernas, pés) na
execução instrumental:

Admitimos que, para a grande maioria das obras escritas para percussão, os braços e
os pulsos serão importantes para conduzir as mãos à extração do som do
instrumento. Mas devemos também constatar que os movimentos realizados com as
pernas, os pés e o tronco do intérprete ampliarão as suas possibilidades para uma
execução instrumental mais eficaz. É possível evidenciarmos isso bem claramente
nas montagens feitas para a execução de obras que envolvem percussão múltipla,
onde a inutilização dos membros inferiores e tronco tornaria bastante limitada a
execução instrumental e os possíveis meios de interpretação e expressividade
(CHAIB, 2012, p.166).

Sendo assim, pode-se constatar que mesmo os membros inferiores não estando ligados
direto na extração sonora dos instrumentos servem de apoio ou suporte e interferem em tal
ação sendo que, a posição e o equilíbrio do corpo podem auxiliar na precisão dos toques os
quais resultam em determinados tipos de som.
Sobre essa questão da espacialidade, Chaib (2012) se refere ao que ele chama de
memória espacial, sendo algo preponderante na elaboração da performance. Este tipo de
memória, segundo o autor, somado à memória muscular – sendo um termo utilizado na
performance musical ou na metodologia de estudos dos instrumentos – forma o que ele
denomina memória corporal. Portanto, as ações corporais do intérprete estão sintetizadas nos
movimentos realizados para a extração sonora dos instrumentos e ao mesmo tempo no
deslocamento do corpo no espaço. Porém, vale ressaltar o que este autor diz sobre esta
memória corporal, a qual não deve fugir do conteúdo musical que queira se apresentar numa
27

determinada obra, ou seja, deve estar relacionado com a memória auditiva para que não haja
escassez de material musical que resulte numa execução instrumental puramente coreográfica.
Pode-se dizer de maneira simples que, segundo Vieira (2014), esta memória auditiva está
relacionada ao armazenamento dos sons na mente através da audição, os quais podem ser
resgatados no momento em que o indivíduo precisar. Ela se divide em memória imediata,
memória de médio prazo e memória mediata, uma vez que o indivíduo tende a melhorá-la
quando a exercita mais frequentemente, estando relacionada à informação que é recebida, a
associação realizada na absorção desta informação e o interesse pela mesma.

É verdadeiro que quanto mais eu exercito o memorizar, mais a minha memória


melhora. No entanto, ela está relacionada a alguns fatores, como, por exemplo: a
informação que se recebe; a associação que se faz quando quero reter uma
informação e o interesse que tenho em guardar determinada informação. Se não
interessa, é como diz o velho ditado “entra por um ouvido e sai pelo outro”
(VIEIRA, 2014, p.1).

O intérprete na execução musical exerce um esforço intelectual para criar, determinar


e escolher gestos que auxiliem na apresentação do conteúdo musical de uma obra. De acordo
com Chaib (2012) “o gesto pensado para a execução musical poderá ajudar a transmitir a
nossa ideia do conteúdo musical a ser transmitido” (CHAIB, 2012, p.166). Numa perspectiva
intelectual do gesto ligada ao plano artístico, o autor, fundamentado em Langer, enfatiza a
necessidade de observar a origem e a intencionalidade dos movimentos corporais sendo que,
somente estes serão considerados elementos artísticos se forem imaginados e/ou pensados
anteriormente, ou seja, se não houver um trabalho racional por parte do intérprete o gesto
torna-se movimento desprovido de significado artístico. Nesse caso, o gesto é pensado pelo
intérprete na execução musical para a interpretação do conteúdo musical de uma determinada
obra, sendo algo oposto à realização de um simples gesto natural ou vital como o de respirar
ou caminhar, os quais não precisam de um esforço intelectual. Chaib (2012) fundamentado
em Gil no que diz respeito ao gesto intelectual do intérprete, afirma que o mesmo “[...] deverá
reagir a diferentes situações criando diversas alternativas corporais para distintos trechos ou
passagens” (CHAIB, 2012, p.166).
Sobre a questão do movimento natural, na visão de Chaib (2012), em muitos casos, os
movimentos do percussionista não possuem elementos que os caracterizem como naturais
sendo que é exigido um esforço físico, equilíbrio e metodologia de estudos baseada numa
série de repetições dos mesmos movimentos para que se tornem executáveis ou realizáveis.
Segundo este autor:
28

Não se tratam apenas de repetições de um gesto para a resolução de um problema


que envolva passagens musicais tecnicamente difíceis. O que está escrito na
partitura pode não necessariamente implicar dificuldade, mas a movimentação
corporal que permite o melhor posicionamento do instrumentista sobre o
instrumento é que pode gerar certo desconforto, justamente por não se tratar de algo
natural (CHAIB, 2012, p.167).

Sobre isso, pode-se dizer que apesar do intérprete realizar várias repetições dos
movimentos durante os estudos na preparação de uma obra musical ou um repertório,
adquirindo um certo automatismo, os esforços físico e intelectual continuam a serem
exercidos durante a performance musical, pois é necessário a concentração do intérprete no
ato performático estando o mesmo num ambiente, seja qual for, onde estão presentes os
espectadores. O instrumentista quer apresentar ao público o máximo do que foi estudado
anteriormente e isso exige um esforço na hora da performance para manter os movimentos
treinados sendo que, em algum momento pode-se perder a atenção e o domínio sobre o que se
está produzindo por qualquer razão que venha distrair o intérprete. Ocorrem muitos casos em
que o intérprete estuda e ensaia uma obra musical de um jeito e na apresentação os
movimentos saem de outra forma muitas vezes por conta do nervosismo, mesmo que a obra
seja simples. Neste sentido, é necessário o controle sobre o corpo que consequentemente
interfere nos parâmetros como as articulações, fraseados, os timbres, etc., além das
movimentações corporais no espaço diante do instrumento, pois a falta desse controle pode
colocar em risco a performance.
O terceiro gesto definido por Chaib (2012) (gesto percussivo expressivo) possui um
ponto chave que é o estímulo visual, sendo este utilizado como fonte de diálogo entre
intérprete e espectador, com o intuito de através dos gestos realizados pelo primeiro na
performance inspirar a percepção musical do segundo para a captação do conteúdo musical a
ser apresentado. Em comparação com a dança, o autor fala sobre o termo “partitura corporal”
o qual é denominado pelos coreógrafos e bailarinos na construção ou preparação da
coreografia, podendo ocorrer uma alternância ou fusão dos gestos entre o corpo e o exercício
intelectual do intérprete na apresentação do conteúdo. Ainda segundo este autor “[...] um
mesmo gesto poderá ser executado pelo intérprete (e captado pelo público) com atitudes
diferentes. O resultado final gestual poderá derivar das atitudes vinculadas ao gesto [...]”
(CHAIB, 2012, p.171). Por isso, o trabalho com o corpo no que diz respeito ao seu poder de
expressividade é importante para o estímulo visual que venha atrair a atenção do espectador,
já que, um mesmo movimento pode ser simplesmente mecânico e pouco eficiente, ou dotado
de significado expressivo que vão depender da intenção e dos esforços criativos do intérprete.
29

Este “gesto percussivo expressivo” pode ser associado ao “gesto que acompanha”
denominado por Delalande e apresentado anteriormente, pois ambos apresentam a ideia de
transcendência do gesto técnico ou de questões técnicas de execução instrumental e enfatizam
a questão da expressividade corporal do intérprete. Diferentemente da conceituação do “gesto
percussivo” e o “gesto que efetua”, esses dois tipos de gestos não tem a relação direta com a
produção sonora, mas acompanham os eventos sonoros realizados e serve de ferramenta de
estímulo visual para atrair a atenção e fascinar o espectador.
Por outro lado, Traldi, Campos e Manzolli (2007) apresentam a seguinte tipologia dos
gestos destinados ao repertório percussivo: Gesto Musical, Gesto Incidental ou Residual. Eles
definem o primeiro como:

Gesto Musical (GM): diferentes padrões temporais descritos por estruturas sonoras
variando no tempo e que são produzidos por instrumentos musicais sob a ação de
um intérprete, dada uma notação musical específica, utilizada num contexto
interpretativo específico (TRALDI, CAMPOS E MANZOLLI, 2007, p.3).

E definem o segundo como:

Gesto Interpretativo Incidental ou Residual (GI): é o movimento natural e


inevitável do corpo do intérprete, em especial da cabeça e dos braços, na execução
instrumental (ibidem, p.3).

O primeiro gesto apresentado por estes autores, o qual está relacionado aos diferentes
padrões de tempo descritos por estruturas sonoras que variam no tempo, tem como exemplos
trazidos pelos mesmos as escalas, glissandos, acordes, notas longas e curtas. Com isso,
verifica-se que este tipo de gesto condiz com movimentos sonoros que dependem do gesto
percussivo (gesto corporal do percussionista, gesto que efetua) para a sua produção. A
conceituação do segundo gesto é similar ao gesto percussivo interpretativo apresentado por
Chaib (2012), pelo viés da ação corporal do intérprete-percussionista na movimentação
espacial perante os instrumentos, baseado na interpretação de uma obra musical realizado pelo
mesmo. Traldi, Campos e Manzolli (2007) afirmam que o gesto interpretativo incidental é
mais fácil de ser detectado nas obras de percussão em relação às outras compostas para outros
instrumentos, já que há uma grande extensão espacial necessária para a execução dos
instrumentos percussivos. A justificativa para essa afirmação feita pelos autores, é que o
intérprete muitas vezes tem que se deslocar no espaço para executar uma configuração de
instrumentos de diversos tamanhos, pesos, disposições de teclados e alturas diferentes, ou
seja, durante a troca de um instrumento para o outro há uma movimentação espacial que
consequentemente cria uma intrigante e sutil “dança”.
30

Segundo Kumor apud Traldi e Tullio (2009), essa dança sutil ocorre pela mudança de
posição do músico, com o ato de se estender e inclinar-se no instrumento e na movimentação
de braços, pulsos e mãos no controle das baquetas (contato indireto) ou apenas das mãos
(contato direto), os quais terão responsabilidade na produção sonora dos instrumentos. Pelo
fato do gesto interpretativo incidente estar diretamente relacionado com a produção sonora
dos instrumentos de percussão, então os percussionistas e estudantes de instrumentos de
percussão precisam ter este tipo de gesto em seu vocabulário, pois é logo imanente do fazer
musical percussivo. Devido a muitos estudos sobre a eficiência do movimento corporal
utilizado na técnica de execução instrumental, o percussionista precisa se utilizar das técnicas
e métodos de estudo que venham ajudar no desenvolvimento de uma performance eficaz em
palco.
De acordo com Traldi, Campos e Manzolli (2007), muitos compositores consideram o
movimento corporal como parte que integra a performance em suas composições e alguns
deles, passaram a dar tanta importância que algumas obras só têm como ser compreendidas
quando são assistidas ao vivo. Com isso, o caráter auditivo das obras ganha o estímulo visual
como seu aliado em apresentações. Estes autores ainda discutem sobre o “gesto interpretativo
cênico” o qual não será abordado neste trabalho, pois entende-se que o mesmo é um tipo de
gesto que não se encontra presente na partitura da obra a ser analisada.
Chaib e Catalão (2011), discutem acerca da interpretação de uma obra musical por um
percussionista. Para estes autores, o percussionista utiliza-se de metáforas baseadas em gestos
de outros instrumentistas ou performers pertencentes à outras áreas artísticas, sendo que esse
recurso ajuda o intérprete na elaboração gestual da obra. Ao orientar-se gestualmente o
percussionista poderá estabelecer a ligação entre eventos sonoros sem necessariamente
realizar a produção sonora, o que acarretará no fornecimento de mais requisitos para o ouvinte
interpretar de forma mais complexa o conteúdo musical o qual for apresentado.

No trabalho de construção da interpretação de uma obra musical o percussionista,


em diversas ocasiões, se utiliza de metáforas inspiradas em gestos realizados por
outros instrumentistas ou performers de outras áreas artísticas. Essa ferramenta
auxilia o intérprete na composição do gesto musical da obra. Ao também orientar o
próprio sentido gestual do seu corpo o percussionista poderá, por exemplo, vincular
dois eventos sonoros de curta duração, sem que esse predicado esteja
necessariamente relacionado à produção sonora. Esses gestos poderão fornecer mais
requisitos ao ouvinte, auxiliando-o a interpretar de uma forma mais complexa o
discurso musical apresentado (CHAIB E CATALÃO, 2011, p.9).

Chaib e Catalão (2011) apresentam o trabalho realizado por Schutz e Liptscomb em


2004 sobre a marimba dentro do estilo de experimentação cross-modal interaction. A
31

intenção deste trabalho foi verificar a percepção da articulação do toque sobre o instrumento.
Quatro articulações expressivas foram escolhidas como staccato, abafado, normal e legato.

Os estímulos, gravados em áudio e áudio/vídeo, foram apresentados a 70


participantes divididos em 3 grupos com distintas habilidades musicais (24,24 e 22
indivíduos). Uma escala com valores de 0 (máximo staccato) a 100 (máximo legato)
foi apresentada. Com o auxílio de um cursor, os indivíduos apontaram a sua
sensação relacionada aos estímulos expostos. Durante as análises de resultados
verificou-se que as informações transmitidas pelo gesto do percussionista faziam os
participantes alterarem as percepções do som, sendo que o mesmo não correspondia
à realidade das respostas (ibidem, p.9).

Diante do exposto, verifica-se que o gesto interfere na percepção do som dependendo


de como ele é produzido, da expressão que é utilizada. Por isso, a expressão vai indicar qual é
a intenção interior do percussionista no ato de tocar e qual o tipo de interpretação relativa a
cada trecho específico da obra. No que diz respeito à relação social com o ouvinte, o
intérprete e sua gestualidade pode gerar um vínculo e contato com o mesmo de forma que sua
atenção é atraída aos acontecimentos gestuais e sonoros da performance.
A bateria (Figura 1) é um instrumento musical surgido no século XX a partir da junção
de tambores e pratos, tendo como fator importante a criação do pedal para percutir o bumbo e
chimbau assim como a invenção de suportes para segurar as peças. Esse instrumento
proporcionou novas formas de execução, uma vez que anteriormente era tocado por três ou
mais percussionistas nas orquestras e bandas marciais. A gestualidade passou a ser de uma
única pessoa executando todas as peças ou componentes através das mãos (com ou sem
baquetas) e dos pés (pedais). A bateria é uma junção de peças ou instrumentos de distintas
origens e tradições, sendo considerada uma subcategoria da percussão que segundo Nicholls
apud Carinci (2012) “[...] é uma seção de percussão em miniatura” (p.25).

Figura 1: Modelo padrão básico de uma bateria acústica (acervo particular do autor).
32

O surgimento da bateria trouxe mudanças e novidades em relação ao gesto musical no


mundo da percussão sendo que, novos gestos físicos ou tipos de contatos com os pratos e
tambores foram estabelecidos onde as técnicas tradicionais abriram espaço para as técnicas
estendidas. No final do século XIX ou início do século XX, houve a criação do pedal para o
bumbo e “naquele momento, tocar o bumbo com o pé, que até então era tocado com as mãos,
poderia ser considerado um dos primeiros usos da técnica estendida da então recém-nascida
bateria” (CARINCI, 2012, p.31). Atualmente, essa técnica não é mais estendida, mas
elementar e indispensável para apenas um baterista executar o instrumento em diversos
contextos ou estilos musicais populares e até na música erudita.
A partir das considerações de Chaib e Catalão (2011) acerca dos contatos direto e
indireto, podendo ser constantes ou inconstantes com os instrumentos de percussão, pode-se
dizer que os pés na execução da bateria podem apresentar tanto contato indireto constante
(contato durável) e inconstante (contato pontual), dependendo do contexto. Isto é feito a partir
do uso dos pedais que são os artefatos manipuláveis para se tocar o bumbo e o chimbau.
Porém, diferentemente das mãos, as quais propriamente servem como eixos que realizam o
movimento do artefato manipulável em direção ao instrumento, os pés não são os únicos
elementos que proporcionam o movimento tanto do batedor do pedal do bumbo quanto da
haste do pedal da máquina de chimbau.

Figura 2: Pé do instrumentista em contato com o pedal para a extração sonora do bumbo (acervo
particular do autor).

Diferentemente da mão, normalmente o pé não é utilizado para segurar um artefato


manipulável até pela sua anatomia ou o seu formato dificultar esse tipo de ação. Na bateria
acústica, utiliza-se o pé para pisar no pedal que aciona mecanismos internos e externos para a
33

reprodução do golpe no bumbo ou no chimbau. No caso do primeiro, o pé pisa na sapata do


pedal que aciona uma corrente ligada a um eixo controlado pela pressão de uma mola para
movimentar o batedor que percute o bumbo (ver Figura 3).

Figura 3: Exemplo de modelo de pedal de bumbo de uma bateria (acervo particular do autor).

No caso do chimbau o que muda é a distancia entre o pedal e os pratos sendo que o
pedal é pisado e aciona uma corrente que está ligada à haste onde o prato superior é travado
pela presilha, numa distância em que possa haver o movimento que estabeleça o contato com
o prato inferior (ver Figura 4). O contato dos pés com as peças da bateria se distancia ainda
mais por conta da utilização de calçados (tênis, chinelo, sapato, etc.).

Figura 4: Exemplo de modelo de estante de chimbau de uma bateria (acervo particular do autor).
34

O que se percebe é que a gestualidade dos pés é limitada e restrita em relação à das
mãos na bateria pelos primeiros estarem sujeitos ao acionamento dos pedais, numa
espacialidade restrita, mas mesmo assim são coordenados com a intenção de extrair alguns
tipos de sons e combinações de sons que caracterizam a interpretação da composição ou obra
musical. Essa limitação do movimento dos pés é acentuada quando falamos da questão visual
da performance musical, já que geralmente a bateria é posicionada em palco de frente para o
público o que faz com que os pés fiquem visualmente encobertos pelo bumbo e a máquina de
chimbau (esta nem tanto como o bumbo devido ao seu formato específico).
Há outra questão preponderante a ser discutida na presente pesquisa que é sobre a
montagem da bateria, a qual interfere na construção da performance e da gestualidade do
baterista. Carinci (2012) fala da importância atribuída por diversos autores à montagem deste
instrumento na construção tanto de uma concepção musical personalizada ou padronizada.
Neste sentido, baseado em Aquino (2008)13, esse autor apresenta duas visões de montagem do
set14: concepção fechada e concepção aberta. A primeira diz respeito aos kits padronizados
(como ilustrado anteriormente na figura 1) compostos por peças básicas e vendidos no
mercado. Já a segunda concepção condiz com a ampliação e personalização da montagem do
instrumento e sua sonoridade, onde há a adição de outras peças ao kit básico, sendo outros
tipos de instrumentos de percussão como o cowbell, tamborim, pandeirola ou pandeiro meia-
lua, etc., ou até mesmo o acréscimo de mais pratos e tambores. A concepção aberta acontece
mais frequentemente na música de vanguarda, segundo Carinci (2012). Sendo assim, a
montagem da bateria acústica vai depender de pelo menos três fatores: o gosto pessoal do
baterista; o tipo de música ou estilo musical (como Rock, Jazz, Samba, etc.); e as indicações
ou sugestões do compositor.
A partir das considerações de Chaib (2012) acerca da relação espacial entre
instrumentista e instrumento na construção dos gestos percussivos, percebe-se que essa
questão é relevante no que diz respeito à bateria. O intérprete necessita perceber o plano de
espaço em relação a este instrumento sendo que, esta conexão entre ambos é complexa não
apenas por se tratar de um instrumento de percussão múltipla, mas porque além das mãos
também utiliza os pés para a extração sonora. Esta complexidade se dá pela movimentação
simultânea dos membros superiores e inferiores que ocorrem na execução de diversas
composições ou obras musicais, exigindo certo nível de coordenação motora do intérprete.

13
“Thiago Aquino (2008), em artigo para a Encontro Nacional da Associação Brasileira de Etnomusicologia,
investiga a apresentação do verbete bateria em diferentes dicionários, bem como propõe as concepções aberta e
fechada para designar a personalização ou não em relação à montagem da bateria” (CARINCI, 2012, p.21).
14
Conjunto.
35

Por sentar-se no banco para tocar o instrumento sua posição em relação ao mesmo fica
restrita, pois o baterista não se desloca no espaço em relação à bateria acústica utilizando
pernas e pés (pois os mesmos estão apoiados nos pedais para acionar os mesmos na
execução). Apesar disso, ele faz movimentos com os braços, a cabeça e o tronco na busca
e/ou alcance das peças para executar os gestos percussivos, estes que variam conforme as
características de cada peça (pratos e tambores). É importante que se dê atenção e haja a
organização da distância, altura e disposição das peças do instrumento em relação ao corpo do
baterista de acordo com suas características físicas pessoais, e também respeitando a
imposição de uma obra, estabelecendo uma conexão precisa entre corpo-instrumento, que
provavelmente resultará numa construção performativa eficaz.
36

Capítulo 2
ROBERTO VICTORIO E SUA OBRA CHRONOS X NO CONTEXTO DA MÚSICA
CONTEMPORÂNEA DE CONCERTO

O termo “música contemporânea” é controverso e há distintas definições sobre o


mesmo. Para Hartwig (2014) este termo se refere à música realizada na nossa época que
cronologicamente começou a ser feita no século XX até os dias atuais. Zagonel (2007)
entende o termo “música contemporânea” como algo muito genérico e que pode gerar
distintas formas de entendimento onde leva-se a pensar que toda e qualquer música realizada
na atualidade pode ser considerada contemporânea. Por outro lado, Zampronha (2011) encara
a música contemporânea não como todo tipo de música realizada na época atual, mas sim,
sendo a música clássica composta nos dias atuais que segue uma linha de especulação criativa
originada na música clássica de concerto, uma vez que esta linha é a conexão que une vários
compositores e propostas estéticas pertencentes ao passado e o presente.
A música contemporânea é também denominada por Menezes (2008) e Griffiths
(1987) como música nova e música moderna, respectivamente, sendo a música que pertence
aos séculos XX e XXI, criada após os movimentos impressionista, regional e os
nacionalismos. Não houve simplesmente o surgimento de uma tendência uniforme, mas sim,
de várias tendências onde pode-se mencionar duas escolas: as tendências neo-clássicas e neo-
românticas (conservadoras que representam uma reação ao experimentalismo); e a de música
de vanguarda, onde se compreende o experimentalismo.
Neste trabalho o termo “música contemporânea” será abordado de acordo com o
conceito de Zampronha. Além disso, o conceito de escola de música de vanguarda trazido por
Griffiths será adotado para discussão a ser realizada no seguinte tópico, isso por entender que
o compositor brasileiro Roberto Victorio com sua obra Chronos X se enquadra na mesma.

2.1 Música de Vanguarda

O período pós Segunda Guerra Mundial foi marcado pelo surgimento de tendências
musicais no âmbito erudito onde foram compostas obras dotadas de técnicas de composição
inovadoras, as quais em sua maior parte apresentaram um caráter experimentalista que foge
aos padrões ou formas tradicionais de se fazer música. Neste sentido, apesar das restrições e
difícil aceitação destas inovações “polêmicas” por parte dos defensores da música tradicional
37

clássica e romântica, vários compositores vanguardistas desenvolveram ideias em suas


composições como o uso da matemática por Webern e Xenakis, e as operações casuais
utilizadas por Cage baseadas nas filosofias orientais. De acordo com Zagonel (2007):

Os resultados musicais se tornam, desta maneira, bastante diferentes daquilo que se


produzia até final do século XIX. Por isso, antes de mais nada, é importante que o
ouvinte que se dispõe a ouvir Música Contemporânea se desprenda de seus
paradigmas antigos, e abra suas percepções para entender e apreender outras formas
de expressão musical. Quem for buscar as agradáveis melodias do romantismo, por
exemplo, não vai achar. Mas poderá encontrar, isso sim, uma música que retrata
com mais veracidade a época em que se vive hoje, um mundo plural (ZAGONEL,
2007, p.1).

Por este viés, o âmbito da música contemporânea retrata atividades interpretativas,


composicionais e analíticas que por muitas vezes reconhecem que há a inter-relação entre
vertentes estéticas concebidas no século XX. Além disso, estas também dialogam com outros
tipos de manifestações culturais e esferas do conhecimento humano sob a perspectiva
cientificista, assim como manifestação folclórica, tradicional ou sagrada (MONTEIRO, 2010,
p.36). Neste contexto de obras vanguardistas, por exemplo, um conceito que pode ser
amplamente discutido e que é utilizado pelo importante compositor brasileiro Roberto
Victorio, especificamente nas obras da série Chronos, é a questão das dimensões do tempo
apresentada pelo filósofo e matemático russo Pietr Ouspensky em sua obra Tertium Organum
(1912). Este que de acordo com Victorio (s/d) é contemporâneo de Einstein e uma das mentes
mais brilhantes do século XX, sendo o que mais esteve próximo de compreender os conceitos
misteriosos e insondáveis de tempo e espaço. Diferenciando-se de outros pensadores pela
objetividade de suas ideias e esquemas, no início do século XX, trouxe conceitos
revolucionários que resultaram em uma nova percepção de tempo e espaço como aspectos
inseparáveis. Ouspensky, de forma categórica, define a relação espaço-tempo como sendo a
“fronteira da tetradimensionalidade” (p.1;2).

Os movimentos no espaço tridimensional, isto é, todos os nossos movimentos


mecânicos e as manifestações das forças fisico-químicas – a luz, o som, o calor, etc
– são apenas as nossas sensações de algumas propriedades, incompreensíveis para
nós, dos sólidos tetradimensionais [...] o tempo, assim como o espaço, não flui. Nós
é que estamos passando, caminhantes, num universo tetradimensional” (Ouspensky
apud VICTORIO, p.2).

Esta “tetradimensionalidade” dita pelo autor é apresentada pela física relativista de


Einstein, a qual situa o tempo como uma quarta coordenada integrante do espaço
tridimensional que se expande ao infinito sendo que, a partir disso segundo Victorio (s/d),
38

Ouspensky instaura um espaço-tempo hexadimensional15 separado em espaço tridimensional


[composto pela linha (dimensão 1), plano (dimensão 2) e sólido (dimensão 3)] e tempo
tridimensional [composto pela linha do tempo (dimensão 4), superfície do tempo (dimensão
5) e sólido do tempo (dimensão 6)], que parte de um ponto caracterizado como dimensão zero
e atinge o infinito correspondente a sexta dimensão. Vale ressaltar que o tempo tido como a
quarta dimensão espacial, determina uma linha do tempo estendida a qual permite, através do
presente, a leitura do passado e do futuro (p.2;3). Sobre estas seis dimensões apresentadas por
Ouspensky, Victorio percebe que:

[...] as dimensões 1, 2 e 3 (do espaço) são ocupações estáticas e simples projeções


passivas de corpos que se movimentam no tempo, como sombras da
quadridimensionalidade; e as dimensões 4, 5 e 6 (do tempo) são ocorrências em
movimento e expansão – em um universo curvo – que projeta flashes no universo
tridimensional e que são lidos como momentos do tempo (VICTORIO, s/d, p.4).

Sendo o tempo algo misterioso e insondável, para Ouspensky segundo as palavras de


Victorio, falar sobre este aspecto requer a utilização de símbolos pela dificuldade de expressá-
lo através de palavras. De acordo com Victorio “tão logo descobrimos que tempo e espaço são
apenas as propriedades da nossa receptividade meta sensorial, ou numênica, concluímos que o
conceito do espaço tempo existe em uma esfera que transcende os limites da perceptibilidade
sensorial humana”.

Essa sensação incompleta do tempo (da quarta dimensão) – a que obtemos através
dos sentidos tridimensionais – nos dá a impressão do movimento, isto é, cria a ilusão
de um movimento que não existe de fato, mas em cujo lugar só existe
verdadeiramente a expansão numa direção inconcebível para nós (Ouspensky apud
VICTORIO, p.5).

Neste sentido, o filósofo e matemático russo, ainda segundo as palavras de Victorio,


simbolicamente, esclarece as três dimensões do tempo como sendo a quarta pertencente à
“sequência dos momentos de realização de uma possibilidade”, a quinta “é a linha da
existência eterna ou a repetição das possibilidades realizadas”, e por último a sexta “é a linha
de realização de todas as possibilidades” (p.4). Segundo Nunes (2009), respectivamente, esta
quarta, quinta e sexta dimensões apresentada por Ouspensky representam “uma linha que liga
pontos passados a pontos futuros”; o “espessamento desta linha, formando um plano, através
do acúmulo de distintos agoras”; e a “altura do plano, que tece a trama de possíveis caminhos

15
Ver esquema feito por Victorio. Disponível em:
<http://www.robertovictorio.com.br/artigo/arquivos/ouspensky-e-o-espaco-tempo-musical/> Acesso em: 03 de
nov de 2016.
39

para cada agora, ou seja, o plano das possibilidades alternativas” (Encarte do CD da série
Chronos).
Dentre as transformações ocorrentes na música ao longo do século XX, citadas por
Zagonel (2007) em seu artigo, tem-se algumas que são pertinentes a presente pesquisa. Elas se
referem à experimentação e pesquisa de sons, a valorização do timbre, as distintas abordagens
de ritmo e métrica, e a criação de novas grafias. Estas estão presentes na obra Chronos X de
Roberto Victorio que será analisada neste trabalho.
Em se tratando da experimentação e pesquisa de sons, é característico do compositor
desta época o desejo e vontade de descobrir novas fontes sonoras que resultam na ampliação
das possibilidades musicais relacionadas aos timbres, materiais sonoros e as formas de se
tocar os instrumentos. Esta época trouxe para a música mudanças em relação à sonoridade,
sendo estas resultantes da aplicação de novas técnicas de composição e de instrumentos com
sons inovadores e tecnológicos. Segundo Brito (2003, p.25) “o timbre tornou-se o parâmetro
por excelência no século XX, pela ampliação das fontes sonoras que foram incorporadas ao
fazer musical”, fator este relevante e determinante para algumas obras musicais sendo que,
anteriormente a altura do som era o parâmetro privilegiado e valorizado por possibilitar a
criação de melodias. No que concerne ao repertório para percussão, Zagonel (2007) cita a
obra Ionisation (1931) do compositor francês Edgar Varése para ilustrar essa valorização do
timbre. Esta peça é puramente executada ritmicamente e rica em timbres extraídos de
instrumentos de percussão por treze percussionistas, onde a variedade tímbrica é essencial
para o resultado musical. Outro exemplo citado por Zagonel (2007) é a obra Rhythmetron
(1968) do compositor brasileiro Marlos Nobre. Esta apresenta ritmos simples, porém
executados em vários instrumentos permitindo variedades e riquezas sonoras através da
exploração tímbrica dos mesmos.
Sobre a métrica e ritmo na música contemporânea, Zagonel (2007) destaca quatro
aspectos: a intensificação do uso de polirritmias (diferentes ritmos e métricas) em que o
resultado gera sensações de desestabilização métrica; as mudanças constantes da métrica de
um compasso para o outro; a utilização de compassos ímpares ou não convencionais (de
cinco, sete pulsos/tempos); e a busca por uma música cuja sensação é de ausência de ritmo e
métrica imitando a música eletrônica. Mesmo que haja uma partitura escrita tradicional que
divida a música em partes ou fragmentos de forma regrada, ao ouvir a execução de uma obra
o ritmo e a métrica tendem a desaparecer dando lugar a acontecimentos ou eventos sonoros
onde os sons se misturam e se sucedem ao longo do percurso musical.
40

A exploração de vários novos sons e valores rítmicos além dos já conhecidos


tradicionalmente, fez com que fosse preciso criar novas formas de notação musical. Os
compositores criaram novas formas de escrita musical que correspondessem às novas ideias
de suas composições, não ignorando os elementos gráficos tradicionais, mas sim, realizando a
soma entre o não-convencional e o convencional. De acordo com Zagonel (2007):

Existem elementos da grafia já convencionados e utilizados por todos como, por


exemplo, que os sons agudos são escritos na parte superior e os graves mais
embaixo. Mas, em última análise, todo tipo de escrita é permitido para decodificar
uma idéia musical. Basta que a maneira de executar cada novo sinal seja
detalhadamente descrita, em uma relação que acompanha a partitura. No entanto, é
preciso observar que continua havendo músicas escritas da maneira tradicional, com
as notas na pauta, assim como, em muitas delas, o compositor mistura sinais criados
por ele com elementos gráficos convencionais. O importante é que a escrita
corresponda o mais claramente possível à idéia musical do compositor,
possibilitando sua execução por qualquer instrumentista (ZAGONEL, 2007, p.10).

Desta maneira, apesar dos diferentes sinais criados pelos compositores, a escrita
tradicional manteve-se intacta no sentido de que é utilizada até os dias atuais. Mas de fato, o
mais importante de tudo, seja a escrita inovadora ou tradicional, é que para a execução
musical da obra o instrumentista sinta e compreenda com clareza a ideia musical do
compositor a partir da leitura dos códigos da partitura, de forma a entender qual é a vontade
do mesmo.
Tradicionalmente, na visão de Reimer (2013), considera-se a bateria acústica um
instrumento musical utilizado para a improvisação na música popular. Porém este instrumento
tem emergido na música contemporânea com um crescente interesse por parte dos
compositores que criaram repertórios escritos para obras solo, em grupo de bateria, bateria e
outros instrumentos, e partes da bateria. Sobre a escrita musical para bateria, de acordo com
Carinci (2012) “grande parte da performance da bateria não é grafada e isso é parte da
tradição do instrumento, variando dentro do contexto musical. Por um outro lado,
compositores tem ultimamente escrito para este instrumento” (p.44).
Em pesquisa realizada a busca destas obras para o conhecimento acerca das mesmas,
encontrou-se muitas composições estrangeiras e poucas relativas a compositores brasileiros.
Alguns exemplos destas podem ser visualizados nas Tabelas 1 e 2, e também, assistidas no
site do youtube.
41

Obra Compositor Ano Formação


Ti.Re-Ti.ke-Dha James Dillon 1979 Bateria solo
Blue Too Stuart Saunders Smith 1983 Bateria solo
Brush Stuart Saunders Smith 2001 Bateria solo
Elusive Peace Rand Steiger 2001 Bateria e violoncelo
Two Lights Stuart Saunders Smith 2002 Bateria solo
Dark Full Ride Julia Wolfe 2002 Quarteto de baterias
Ringer 2009 Nicole Lizée 2009 Bateria solo

Tabela 1: Exemplos de obras estrangeiras escritas para bateria no contexto da música contemporânea de
concerto.

Obra Compositor Ano Formação


Triunvirato Pascoal Meirelles 2001 Trio de baterias
Chronos X Roberto Victorio 2002 Bateria e flauta transversal
Afável Azael Neto 2013 Bateria e violão de oito cordas

Tabela 2: Exemplos de obras brasileiras escritas para bateria no contexto da música contemporânea de
concerto.

No próximo tópico, sem a pretensão de esgotar os assuntos sobre Roberto Victorio,


serão discutidos alguns aspectos sobre o pensamento musical-composicional deste compositor
que auxiliarão na discussão acerca do gesto na obra escolhida.

2.2 Roberto Victorio

Nascido no Rio de Janeiro em 1959, o compositor brasileiro Roberto Victorio faz parte
da geração de compositores pós década de 1950 sendo que, para Rodrigues (2004), ele “é
„herdeiro‟ da geração de compositores brasileiros que participou dos Festivais de Verão da
cidade de Darmstardt” (RODRIGUES, 2004, p.4).
Em relação ao pensamento vanguardista, - tendo como antecessores os compositores
Gilberto Mendes, Willy Correa, Pierre Boulez, Olivier Messiaen, Ligeti, e até indiretamente
John Cage, de acordo com Rodrigues (2004) – Roberto Victorio criou uma vertente própria
denominada por ele “Música Ritual”. Esta é inexistente ou não registrada em qualquer
classificação musicológica como ocorre com outras vertentes do século XX sendo o
42

dodecafonismo, serialismo, música eletrônica, neo-classicismo, dentre outras. Sua poética está
relacionada aos conceitos apresentados por ele os quais são: des-percepção, música, ritual,
tempo e música ritual, onde para ele a música relaciona o mundo imaterial com o mundo
material e tem a ideia de música como rito, tendo como referência a antropologia de Lévi-
Strauss (RODRIGUES, 2004, p.5). Tem como referencia os compositores George Crumb
(1929) e Karlheinz Stockhausen (1928-2007) por estes possuirem um percurso ritual em suas
composições (apesar que isso segundo Victorio16 não significa que os mesmos tenham em sua
linguagem a música ritual, do ponto de vista etnomusicológico). E além destes, Bartok (1881-
1945) e Leo Brouwer (1939) também foram referências marcantes e fundamentais em sua
formação musical sendo que, o primeiro através de suas relações intrínsecas com as pesquisas
etnomusicológicas, fez uma aproximação muito especial entre a música étnica (folclórica) e
contemporânea. Já o segundo, é muito admirado por Victorio, pois o violão foi seu primeiro
instrumento (ele é Bacharel em Violão pela FAMASF-Rio) e esse compositor cubano
revolucionou a escrita e a estética muito romantizada do violão antigo.
Monteiro (2010) - em sua dissertação de mestrado intitulada Tetragrammaton IV:
Multipercussão e Música Ritual em Roberto Victorio - fez uma reflexão sobre ritualidade e
música ritual procurando trazer uma definição sobre Música Ritual. Ele percorreu os
caminhos da etnomusicologia exemplificando culturas onde a música e o ritual religioso se
misturam, com intuito de entender a relação existente entre estes dois componentes, e assim,
compreender mais profundamente a criação musical e a concepção particular de Victorio
sobre Música Ritual. Monteiro (2010) afirma que:

A sagração religiosa e a música aparecem atadas em inúmeros episódios da história


da humanidade. A música, como uma das mais significativas expressões culturais
para quase todas as civilizações, desde tempos imemoriais, e a religião, enquanto
manifestação humana de respeito, fidelidade e gratidão ao Divino pelo milagre da
natureza universal e da existência da vida, são factores essenciais em praticamente
todas as estruturas socioculturais. Para muitas sociedades ou grupos étnicos esta
manifestação artística traduz-se num elo de integração entre o mundo material e o
mundo espiritual (MONTEIRO, 2010, p.16).

Independentemente de Victorio ser um compositor que está ligado à música erudita


europeia (música de concerto), ele se distingue de outros compositores por seu trabalho ser
realizado no Brasil onde há uma grande cultura musical referente aos instrumentos de
percussão, que é associada fortemente a ritos religiosos. O trabalho de Victorio, segundo as
palavras de Monteiro (2010), tem a interferência da origem cultural deste compositor que,

16
Entrevista realizada no dia 25 de agosto de 2016.
43

talvez, isso represente uma forma de afirmação do valor cultural do Brasil “[...] ainda que sob
um olhar peculiar, coadunado ao vanguardismo da arte contemporânea” (MONTEIRO, 2010,
p. 18).

[...] por mais que se reconheça em Roberto Victorio um compositor claramente


associado à cultura musical erudita da Europa, não nos devemos esquecer de que
realiza o seu trabalho no Brasil, país em que há uma cultura de percussão e, em
especial, da sua performance associada a ritos religiosos, particularmente forte.
Logo, o seu conjunto de pertenças já é inevitavelmente diferente do de um
compositor exclusivamente europeu. Os seus referenciais são compostos pela
história da sua trajectória de vida (MONTEIRO, 2010, p.18).

O termo „música ritual‟ tem sua origem na etnomusicologia e é utilizado na definição


de manifestações musicais agregadas a vários ritos e cerimônias religiosas,
independentemente de gênero, formato musical, timbre e natureza. Porém, o trabalho
composicional de Victorio não parte das manifestações de crenças populares ou religiosas
(MONTEIRO, 2010, p. 19). De acordo com Victorio apud Monteiro (2010), sobre Música
Ritual:

É um termo da etnomusicologia que eu utilizo para definir uma vertente da música


contemporânea de concerto. Na verdade um afluente pouquíssimo explorado que
alicerça as resultantes sonoras a processos arcanos na feitura da obra musical, tais
como: numerologia, tradição cabalística hebraica, terminologias e intenções veladas
alquímicas e o estudo das músicas rituais de etnias não ocidentais e o
estabelecimento de conexões não-visíveis na construção do arcabouço sonoro de
minhas obras (Victorio apud MONTEIRO, 2010, p.19).

Esses processos arcanos envolvem invisivelmente o processo conceptivo musical de


Victorio, pois assim como em toda ou qualquer tipo de composição, atrás do tecido sonoro de
suas composições existe uma construção invisível que serve de alicerce a todas as ocorrências
sonoras. Ele utiliza a expressão „música ritual‟ para aproximar a sua música às manifestações
culturais que realizam o culto ao divino, sendo fonte de inspiração para a sua criação musical.

Esta busca de coerência no amálgama entre dois universos aparentemente tão


distantes, como a música (enquanto construção elaboração sonora) e o ritual (como
prática e mecanismo de transcendência) forma o alicerce do trabalho composicional
que intitulo música ritual. [...] O ritual como manifestação prática, concretizando
formas expressivas e sintonizado com a música no sentido de transmissão em níveis
distintos de percepção, através de canais simbólicos. Ritual e música unindo-se
como formas expressivas e unificadoras, com poder de materializar os estados
subliminares de consciência, não só em intenção, mas em ação (Victorio apud
MONTEIRO, 2010, p.19;20).

O pensamento composicional de Victorio é fundamentado em teorias estéticas como


de Gillo Dorfles e Susanne Langer, assim como nos escritos dos físicos Albert Einstein e
44

Fritjof Capra; no pensamento dos músicos-compositores Boulez, Schaeffer e Webern; na


filosofia de Bachelard, sendo este um filósofo francês reconhecido e utilizado na academia; na
filosofia e ritualidade de Ouspensky, este que foi matemático e místico ligado à ritualidade no
dia-a-dia, a qual vivenciou na sua própria vida e de seus discípulos iniciados; dentre outros
(RODRIGUES, 2004, p.6).
Victorio atribui importância ao timbre em suas composições seguindo o pensamento
musical do século XX, uma vez que anteriormente a este período a música era embasada na
harmonia, melodia e ritmo, paradigmas estes que possibilitavam um tratamento sonoro
homogêneo (RODRIGUES, 2004, p.1). Este compositor fundamenta o timbre numa
“profundidade perspética sonora” sendo que para ele é um “[...] elemento musical que sempre
existiu, porém relegado à uma “natural” finalização / resultado sonoro das junções e
particularidades do processo de amálgama e distinção sonora” (VICTORIO, 2003, p.1). O
timbre não era valorizado tão quanto na atualidade que segundo Rodrigues (2004) “[...] era
pensado como uma característica própria do instrumento, mas sem valor no que se refere à
gerador de ideias musicais, apresentando-se como um coadjuvante e quase que marginal nessa
configuração” (RODRIGUES, 2004, p.1).
Portanto, o timbre é um parâmetro imprescindível e objeto de estudo na música de
Victorio. Este compositor busca de forma aprofundada perceber e compreender as
características únicas de cada objeto sonoro presentes na composição, permitindo um
alargamento das ferramentas composicionais e possibilitando a construção de um espectro
sonoro mais rico. Tendo como referência Webern para o trato do timbre, Victorio em suas
obras geralmente faz com que a altura esteja subordinada ao timbre no que se refere ao
ataque, intensidade e pressão na execução das notas. Ele trabalha as sonoridades de cada
instrumento musical segundo suas características sonoras individuais e a tessitura dos
mesmos, engendrando “[...] o que ele denomina como „ambiências‟ ou „aglomerados de
acontecimentos espaciais‟, que denotam a sensação da percepção de tempo e espaço”
(RODRIGUES, 2004, p.2).
A nova forma de abordagem sobre o timbre no século XX que o caracteriza como
ferramenta composicional, contribuiu segundo a visão de Victorio para que houvesse
mudanças na notação tradicional, resultando na busca e elaboração de escritas rebuscadas e
inovadoras por parte dos compositores. De acordo com Victorio (2003):

A partir do momento em que o processo criativo se concentrou nas inúmeras


possibilidades tímbricas, como intenção primeira, houve um automático salto da
escrita musical e da notação como um todo. O desvínculo com as raízes da música
45

ocidental tradicional (enquanto trilhar tonal, forma, desenvolvimento, acabamento,


suporte harmônico, etc) e a quebra abrupta com o “chão” horizontal (enquanto
coerência e construção do arcabouço linear no discurso musical) foram fatores
decisivos na abertura e vislumbre dos inúmeros afluentes até então, não trilhados
pela música de concerto como manifestação intimamente associada ao processo
criativo / artístico (VICTORIO, 2003, p.1).

Em se tratando desta questão, a escrita de Victorio mistura a notação tradicional e a


notação gráfica ou aleatória. Na concepção dele a partitura tem uma função
“transcodificadora” que de acordo com Rodrigues (2004), fundamentando-se em Victorio,
“transfere informações musicais em códigos gráficos, que por sua vez se transformarão
novamente em música” (RODRIGUES, 2004, p.6). Victorio denomina o termo “universos
musicais” ao processo de transferência de sensações a escrita da partitura, referindo-se as
possibilidades emergentes no momento que a obra escrita codificada no papel torna-se música
novamente. Para o autor e compositor a partitura é um suporte para a realização musical, mas
os códigos escritos não é a música de fato.
No expressivo repertório composicional e percurso etnomusicológico de Victorio,
pode-se identificar a partir da sua grafia musical diversas maneiras de expressão do arcabouço
sonoro revelador de sua ritualística musical. Mesmo que o intérprete tenha que se familiarizar
com os vários tipos de notações gráficas desenvolvidas no século XX, a investigação do
significado atribuído pelos compositores aos códigos da partitura pode disponibilizar ao
intérprete “[...] importantes referências auxiliadoras no desvelamento do conteúdo semântico
extra-musical contido numa obra, enriquecendo o trabalho performativo” (MONTEIRO,
2010, p.36).
Outro aspecto ou conceito discutido por Victorio é o tempo na música, que para ele,
fundamentando-se em Langer (1980), não se restringe a mera contagem cronométrica ou
simples medida de unidade, mas ultrapassa as fronteiras da percepção tridimensional, sendo o
tempo mensurado, contado ou cronométrico apenas uma corrente do conceito de tempo
musical. Para Victorio (2003):

A partir de uma nova abordagem, que se descortinou com a entrada no século XX,
em todas as áreas, a noção de tempo assumiu um papel direcionador no processo de
adentramento em outros universos, até então inimagináveis. O tempo, agora liberto
do casulo da simples diferenciação cronométrica (tempo pulsante Bouleziano) é
distendido à dimensão superior da percepção e do pensamento
(quadridimensionalidade) (VICTORIO, 2003, p.7).

Por este viés de tempo não cronométrico, Langer apud Victorio (2003) traz o conceito
de “tempo virtual” afirmando que “toda música cria uma ordem de tempo virtual, em que suas
46

formas sonoras se movem umas em relação às outras [...] o tempo virtual está tão separado da
sequência de acontecimentos reais quanto o espaço virtual o está do espaço real” (Langer
apud VICTORIO, 2003, p.9). Este conceito trazido pela autora é entendido por Victorio
(2003) “como múltiplas leituras que ocorrem a partir da percepção do fluxo ou eixo condutivo
temporal e as possibilidades conectivas decorrente da transformação de códigos”
(VICTORIO, 2003, p.9). Sendo assim, a execução de uma obra musical proporciona um
momento vivenciado e experienciado que é distinto do real, gerando uma ordem de tempo
virtual em que ocorre o movimento de eventos sonoros num espaço virtual, uma vez que o
indivíduo percebe a passagem do tempo através das mudanças destes eventos que se sucedem
podendo ter várias interpretações a respeito do fluxo temporal (afluente transitório), sendo o
tempo uma experiência interior. Nesta ausência de contagem ou medida do tempo Victorio se
aplica o termo “des-percepção”17 sendo que, a partir dessa nova noção de tempo a indicação
de pulso nas obras musicais quase se torna inexistente havendo uma flexibilidade na
performance do intérprete.

Essa nova percepção do tempo, que se abriu a partir do convívio com a


imprevisibilidade e com a inconstância nos percursos das obras, permitiu uma
convergência nos resultados visuais e sonoros das obras musicais (a partir da
escrita), onde cada vez mais a noção de tempo, como indicadora de pulso, quase
deixa de existir. As indicações, ainda quando em notação convencional, ou com
resquícios da mesma, tendem à uma performance que permite uma flexibilidade tal,
que o resultado sonoro, gira sempre em torno das possibilidades individuais de cada
receptor, seja ele intérprete ou ouvinte, onde as variantes visuais impostas à escrita,
se mostram em estreita sintonia com os resultados sonoros cada vez mais
distanciados da noção de tempo cronométrico (VICTORIO, 2003, p.15).

O espaço também é outra questão discutida na música de Roberto Victorio.


Primeiramente, Rodrigues (2004) fundamentando-se em Ferraz (1998), afirma ser a textura
sonora ou musical o elemento gerador da sensação de espaço em música, o que corresponde à
soma entre a tessitura e o timbre da sonoridade. A mesma autora aponta duas ocorrências de
sensação de espaço em Victorio herdadas do serialismo, as quais são o pontilhismo18
weberiano e os espaços lisos e estriados boulezianos, além de dizer que este compositor
utiliza recursos composicionais denominados por Boulez como “[...] „o não temperamento das
notas‟ e sons „não homogêneos‟, isto é, o preenchimento do espaço de altura por textura
pontilhista, como por exemplo, em „Variações‟ de Webern para piano solo [...]”
(RODRIGUES, 2004, p.5). O tratamento tímbrico relacionado à fatura da nota, ao perfil do
17
O termo “des-percepção” é utilizado por Victorio e significa deixar de perceber algo gradualmente.
18
Esta é uma técnica composicional que segundo Rodrigues (2004) é “caracterizada por texturas distribuídas,
frases (quando existem) curtíssimas com saltos melódicos de alturas, onde as sonoridades parecem dispersas,
separadas por mais ou menos intervalos de tempo” (p.5).
47

ataque e duração, a manutenção do gesto composicional e do gesto da performance em


relação ao resultado sonoro, além das variações de dinâmicas que reforçam a sensação
espacial sonora, são citados pela autora como características marcantes encontradas em
Victorio, uma vez que estas podem ser vistas na obra Quatro Visões deste mesmo compositor
a qual tem como referência a obra Variações de Webern.
Rodrigues (2004) também fala a respeito dos espaços lisos e estriados de Boulez, os
quais podem ser encontrados em Quatro Visões. Para a autora, fundamentando-se em Boulez:

[...] os espaços lisos se caracterizam por espaços sem corte, sem mensuração, isto é
não constitui uma medida, nem uma ordem cronológica estimada, descentralizando
o eixo temporal e escapando da percepção enquanto sensação de tempo contado. Os
espaços estriados distinguem-se pela percepção do corte fixo ou por corte variável,
pela irregularidade ou regularidade. Possui dentro de si a diferença como parte de
sua estrutura. Movimento, pontilhismo, repetição ou não repetição, pulsação
sistemática, tempo contado. De maneira que no tempo/ espaço liso “ocupa-se o
tempo sem contá-lo” enquanto que no tempo/ espaço estriado “não se conta o tempo
para ocupá-lo” (RODRIGUES, 2004, p.8).

Neste sentido, os espaços liso e estriado possuem aspectos ou características que os


distinguem entre si, principalmente, no que se trata do preenchimento que pode ocorrer
através de muitos ou poucos eventos sonoros. O primeiro é representado pela ausência de
métrica, medida, ordem cronológica, fórmula de compasso, que condiz com a sensação de
tempo não contado e/ou pulsado sistematicamente. Desta forma, este tipo de espaço é
caraterizado, até certo ponto, por uma homogeneidade temporal, e também, por ser
preenchido por poucos eventos sonoros e que contém uma movimentação rítmica restrita ou
quase inexistente (ver Figura 5).

Figura 5: Exemplo de espaço liso que ocorre na obra KA de Roberto Victorio.

O espaço estriado, pelo contrário, apresenta fórmulas de compasso, medida, tempo


contado, pulsação sistemática, podendo ser caracterizado pela presença de tempos
homogêneos, bem como não-homogêneos, e seu preenchimento baseado geralmente em
muitos eventos sonoros com intensas movimentações e variações rítmicas (ver Figura 6).
48

Figura 6: Exemplo de espaço estriado que ocorre na obra KA de Roberto Victorio.

A partir dos aspectos levantados e discutidos, no próximo tópico será falado


especificamente sobre a peça Chronos X de Roberto Victorio.

2.3 Chronos X

Esta obra19 foi composta por Roberto Victorio no ano de 2002 especificamente para
duo de flauta transversal e bateria. Foi dedicada à flautista Odette Ernest Dias e estreada pela
mesma20, sendo uma obra que faz parte das dez composições que integram a série Chronos.
Sobre as características específicas, esta obra possui 11 páginas que constituem
basicamente uma única seção de caráter expressivo movido, não havendo indicação de
andamento ou velocidade de pulso. Desta forma, tem-se a sucessão de eventos sonoros que
ocorrem sob a simbiose entre notação tradicional (proporcional ou métrica) e notação não-
tradicional (relativa ou aleatória), onde quase não há interrupções ou silêncios que só
acontecem e de forma sucinta na transição de uma notação para outra. Além disso, esta obra
apresenta indicações de técnicas estendidas a serem realizadas pela flauta transversal,
acentuações, ligaduras, bem como a presença e ausência de fórmulas de compasso que
caracterizam os tempos-espaços lisos e estriados. As dinâmicas variam entre piano (p) à
fortississímo (fff), sendo a maior parte caracterizada pelas de grande volume ou intensidade.
Existem várias células rítmicas que se repetem e, segundo Victorio 21, tem-se gestos que se
simbiotizam, multiplicam e se atualizam com o passar dos trechos. Há também a presença de
uma bula ou legenda com as indicações dos componentes da bateria no pentagrama, sem
indicar de que forma esses devem ser dispostos na montagem do instrumento.

19
Está disponível em áudio no CD da série Chronos e vídeo no site do youtube, ambos gravados pelo flautista
Rogério Wolf e o percussionista Eduardo Gianesella.
20
Entrevista realizada no dia 02 de março de 2017.
21
Entrevista realizada no dia 08 de março de 2017.
49

Assim como todas as composições desta série de acordo com Victorio, Chronos X
possui como elementos direcionadores o tempo e a relação temporal interna, buscando
representar o tempo terreno ou a percepção do tempo incogniscível que se materializa como
duração de acordo com a percepção humana.

A série Chronos, num total dez obras para diversas formações instrumentais, foi
escrita em quatro anos e concebida a partir do conceito grego que define o tempo em
sua instância terrestre, ou seja, a tentativa de explicar ou trazer ao mundo as formas
tridimensionais dessa entidade que se desterritorializa quando tentamos entendê-la
como materialidade ou como meio de traduzir o incognoscível ao mundo da matéria
(VICTORIO, s/d, p.1).

Além disso, destaca-se a presença de uma alternância de notação na apresentação e


desenvolvimento dos materiais que tem por objetivo proporcionar a oscilação da leitura e
execução em cada montagem de acordo com a repetição de acontecimentos em meio a
distintas formas de tempo ou de possibilidades sonoras, as quais podem ser manifestadas no
mundo real.
Considerando o timbre um parâmetro imprescindível na música de Victorio, nesta
série Chronos, o novo conceito sobre o mesmo como ferramenta composicional é amplamente
utilizado por este compositor o que contribui para que as dez obras possuam uma riqueza
sonora. Elas apresentam formações instrumentais que contam com diferentes tipos de
instrumentos e sem contar o que Victorio denomina recursos não-instrumentais, estes que
alargam as nuances tímbricas de algumas destas obras (ver Tabela 3).

Instrumentos Categoria
Violoncelo e Bandolim Cordas
Piano Cordas e percussão
Flauta transversal, flauta bororo, clarinete e Sopros e madeiras
clarinete baixo
Gongos, congas, bongôs, vibrafone, crotales, Percussão
bateria, marimba, etc.
Assovio, efeitos percussivos, gestos, voz e Recursos não instrumentais
silêncios

Tabela 3: Tipos de instrumentos que fazem parte das obras da série Chronos.

Em cada uma das obras desta série, este compositor faz com que a altura esteja
subordinada ao timbre no que se refere ao ataque, intensidade e pressão na execução das
notas, e ainda, realiza o trato do timbre trabalhando com as sonoridades de cada instrumento
50

musical segundo suas características sonoras peculiares e a tessitura dos mesmos,


engendrando ambiências ou acontecimentos espaciais os quais denotam a sensação da
percepção de tempo e espaço. Misturando a notação tradicional e a notação gráfica ou
aleatória, Victorio transferiu as informações musicais de todo esse processo em códigos
gráficos da partitura que novamente se tornarão música ao serem executados pelos intérpretes.
Especificamente em Chronos X, este processo exercido por Victorio acontece com
dois tipos diferentes de instrumentos sendo a flauta transversal, a qual nesta obra utiliza-se de
técnicas estendidas, e a bateria. O primeiro instrumento é conhecido por ser fabricado em
metal e que consequentemente apresenta um timbre metálico, sendo sua extensão
aproximadamente entre Si 2 à Ré 6, dependendo do tipo de fabricação e da experiência do
intérprete-flautista. Já a bateria acústica e suas determinadas peças que são os tambores e os
pratos, pode apresentar uma extensão entre bumbo como sendo o que apresenta o som mais
grave e o chimbau o mais agudo. Os timbres ou as sonoridades podem variar dependendo dos
materiais, das dimensões ou tamanhos dos tambores e pratos, tipos de baquetas ou artefatos
manipuláveis e os pedais utilizados para a extração sonora, além da forma como o intérprete
executa seguindo as descrições da partitura.
No que concerne à notação da bateria nessa obra, ela é específica e possui elementos
tanto tradicionais como não tradicionais. Ao começar pela legenda, a qual indica as peças da
bateria no pentagrama, verifica-se que a notação é diferente da tradicional deste instrumento
sendo que, cabe ao intérprete-baterista se adaptar à diferente grafia e localização da maioria
das peças da bateria no pentagrama (ver Figura 7).

Figura 7: Legenda com as indicações das peças da bateria da obra Chronos X de Roberto Victorio
(2002).

A partir disso, observa-se que a montagem do instrumento envolve bumbo, surdo, tom
grave, tom médio, tom agudo, caixa, chimbau, prato médio e grave. Cabe ao intérprete
51

posicionar estas peças de uma forma que atenda ao seu gosto particular e o formato de seu
corpo, já que não há uma especificação de como elas devem ser dispostas. Esta montagem é
caracterizada pelas abordagens de percussão múltipla e concepção aberta, sendo o primeiro
pelo fato de ter vários instrumentos que serão executados (simultaneamente ou não,
dependendo do trecho) numa só obra musical, e o segundo por haver um tambor a mais no kit.
De acordo com a montagem da bateria, o resultado gestual é diferente e/ou específico, pois
dependendo da disposição bem como a altura e distância das peças em relação ao corpo do
instrumentista, são exigidos movimentos corporais específicos para o alcance das mesmas e a
execução das notas e frases musicais.
A execução dessa obra é baseada em sua maior parte no contato indireto do intérprete
com o instrumento seja com as mãos ou com os pés. O contato direto com as mãos aparece
em alguns momentos, onde é necessário o abafamento do som emitido pelas peças da bateria
(principalmente dos pratos médio e grave) de acordo com notas de curta duração de tempo
seguidas de pausas, assim como a indicação na partitura para a realização de um som seco.
Para os membros superiores são requeridos dois tipos de baquetas ou artefatos manipuláveis
os quais são as baquetas de madeira e baquetas de feltro sendo que, a utilização de um e de
outro tipo resulta em timbres distintos devido às suas diferenças materiais, e os membros
inferiores utilizam os pedais do chimbau e do bumbo. As baquetas de madeira (ver figura 8)
são os artefatos mais utilizados durante a maior parte do tempo, uma vez que as baquetas de
feltro (ver figura 9 abaixo) são solicitadas em um único e curto trecho (ver figura 10 abaixo).

Figura 8: Baquetas de madeira (acervo particular do autor).


52

Figura 9: Baquetas de feltro (acervo particular do autor).

Figura 10: Trecho específico da obra Chronos X, em que se solicita as baquetas de feltro.

O conceito de “des-percepção” do tempo real denominado por Victorio é um fator


presente nesta peça sendo que, nela existe uma delimitação temporal e volatilidade de escrita
que se renovam a cada performance pelo trânsito entre a relatividade e a proporcionalidade,
uma vez que quando se tem duas leituras de um mesmo material a partir de óticas de notações
diferentes, tem-se como resultado novas percepções22 a cada momento. Essa “des-percepção”
do tempo real se dá porque nesta peça mesmo havendo ou não métrica definida, ou seja, a
fórmula de compasso, o desenrolar dos eventos sonoros não permite perceber a existência de
um pulso regular que defina precisamente essa métrica, havendo então uma instabilidade ou
até inexistência de pulso. Sendo assim, o tempo existe enquanto fluxo temporal em conjunto
com a alternância das escritas que tem o intuito de desfazer a percepção contínua das
apresentações, contrapondo os inúmeros momentos condensados em vários planos
simultâneos e nas intervenções de silêncio e imobilidade total do gesto do intérprete. Victorio
caracteriza este tempo de suas obras da série Chronos como:

[...] um tempo imantado pela descontinuidade na construção do arcabouço da obra,


onde os motivos geradores sofrem (pela notação) constantes mutações de escrita e
escuta, desfazendo e refazendo os fluxos internos pelos deslocamentos

22
Percepções distintas de intérpretes diferentes ou do mesmo intérprete.
53

planimétricos, instabilidade de pulso e interseções de notação durante todo o


percurso.

No encarte do CD Chronos (2009), Nunes faz um comentário acerca das obras do


mesmo. Este autor afirma que a temática destas obras é a multiplicidade do tempo expressada
principalmente através da escrita da partitura e na maneira como as partes da peça se
combinam. Para ele, a ênfase está voltada para a quinta dimensão do tempo apresentada por
Ouspensky, e ela representa a espessura de uma linha que liga pontos passados a pontos
futuros. Vale lembrar e ressaltar que, neste mesmo encarte, essa espessura mencionada por
Nunes significa a formação de um plano causado pelo acúmulo de diferentes agoras, os quais
são tempos que ocorrem simultaneamente e são heterogêneos entre si que permitem uma
diferenciação qualitativa. Isso é representado na partitura a partir de distintos espaços rítmicos
que podem ser métricos ou proporcionais, ou então, determinados ou aleatórios, que resultam
em gestos distintos pelas diversas maneiras que se pode executar o mesmo elemento por
intérpretes diferentes. Neste mesmo texto, Nunes se refere ao instrumentista não apenas como
máquina de produção sonora, mas através da partitura escrita participa ativamente em
atividades como a fluidez rítmica, a utilização do corpo e o foco no gesto corporal, que
permite ele trazer seu tempo particular para a obra possuindo um papel de co-autor da mesma,
o qual auxilia o compositor a construir o que este autor chama de “trama resultante”. Tem-se
como resultado final de todo esse processo uma profunda experiência sendo também
ritualística, onde ocorre a celebração do tempo.
O espaço em Chronos X assim como em todas as obras da série possui as
características do pontilhismo de Webern e os espaços lisos e estriados de Boulez, os quais
são geralmente utilizados por Victorio em suas composições. Nesta obra, os aspectos do
pontilhismo weberiano são verificados na escrita da partitura onde há a separação ou
dispersão das notas da flauta transversal e da bateria acústica em mais ou menos intervalos de
tempo, uma vez que a tessitura é bastante explorada no preenchimento do espaço
apresentando saltos intervalares e variações de sons agudos e graves. Esta variedade sonora
enfatiza o uso do conceito por Victorio de “sons não homogêneos” e “não temperamento das
notas” denominado por Boulez. Além disso, pode-se perceber a existência de variações de
dinâmicas também presentes na peça as quais reforçam a sensação espacial (ver Figura 11).
54

Figura 11: Exemplo de aproximação com o pontilhismo de Webern, utilizado por Victorio na página 1
da peça Chronos X.

Sobre os espaços liso e estriado, constata-se nesta obra a presença (bem como a
ausência) de métrica que caracterizam a não homogeneidade do tempo, onde há e não há -
dependendo dos trechos da peça - a mensuração, medida, ordem cronológica estimada ou
tempo contado. Quando se tem a medida do tempo, que caracteriza o espaço estriado,
encontram-se alternâncias de fórmulas de compasso (ver figura 12) que apresentam
denominador quatro, oito, dezesseis e trinta e dois, havendo variação de unidades de
compasso (número superior das fórmulas de compasso).

Figura 12: Sequência de mudanças de métrica que ocorrem na página 4 da peça Chronos X.

No caso da ausência de métrica, que caracteriza o espaço liso, pode ser encontrada em
trechos onde se requer a improvisação ou não da bateria. Quando há esta improvisação,
indicam-se quais peças da bateria serão executadas durante a mesma conforme a Figura 13.

Figura 13: Trecho onde há ausência de métrica, mas que possui improvisação.
55

Quando não há a improvisação, apenas executam-se as notas sem se preocupar com o


seguimento de uma métrica determinada por fórmula de compasso (ver Figura 14).

Figura 14: Trecho onde há ausência de métrica e improviso.

O preenchimento do tempo/espaço dos compassos é basicamente realizado com


figuras de curto valor de duração, havendo comumente semicolcheias e fusas (ver figura 15)
na maior parte da obra, além de ter presente em alguns momentos diferentes tipos de
quiálteras. Em suma, esse preenchimento é bastante denso o que torna a obra repleta de
eventos sonoros que ocorrem um atrás do outro rapidamente sendo que, o silêncio é
praticamente inexistente.

Figura 15: Exemplo de preenchimento do tempo/espaço dos compassos com semicolcheias, fusas e
quiálteras que ocorrem na página 2 da peça Chronos X.

Com base nos dados levantados nos capítulos 1 e 2 deste trabalho, no próximo
capítulo será realizada a análise do gesto musical na execução da bateria acústica na obra
Chronos X de Roberto Victorio, com o intuito de oferecer uma possibilidade de construção
performativa nesta obra que abrange um processo que vai desde a primeira leitura da partitura
até a performance expert.
56

Capítulo 3
Estudo e Construção da Performance da Obra Chronos X de Roberto
Victorio

Na música assim como em outras manifestações artísticas como a dança e o teatro, a


performance é uma questão preponderante e imprescindível a ser discutida, pois é algo que
abrange todas as manifestações musicais. De forma restrita, para Sloboda (2008) a
performance musical está relacionada a execução musical consciente de um ou mais
executantes os quais interpretam uma peça direcionada à um determinado público, escrita, na
maior parte das vezes, por alguém que “não está diretamente envolvido na execução”
(SLOBODA, 2008, p.87). Neste sentido, comumente tem-se a execução de obras por parte de
intérpretes que não são os compositores das mesmas, mas há de se deixar claro que
paralelamente a isso existem compositores que ao mesmo tempo são intérpretes de suas
próprias obras.
Tendo em vista uma composição concebida anteriormente, os performers a
interpretam no ato de execução musical podendo também serem considerados criadores ou
co-autores da obra concebida. O compositor registra suas intenções de forma objetiva
geralmente numa partitura sendo que, sem esta fica difícil caracterizar uma obra musical, e o
grau de perfeição da execução musical do intérprete torna-se algo difícil de ser analisado e
respondido (SLOBODA, p.87).
Ao retratar sobre a partitura musical, Sloboda (2008) apresentou em seus estudos
sobre performance em música três tipos de estágios que envolvem a relação do intérprete com
a partitura sendo eles: a performance não premeditada na primeira leitura da partitura ou o
que é conhecido por leitura à primeira vista; ensaio ou prática (performance gerada por um
período de exposição continuada à partitura); e a performance expert (produto mais ou menos
acabado do ensaio; memorização total de uma partitura). Estes três estágios são desenvolvidos
de várias maneiras e depende da experiência e conhecimento musical e nível técnico de leitura
e execução. A primeira leitura, por exemplo, pode ser realizada pela leitura de trechos
específicos; com o auxílio de um áudio; ou executando somente os movimentos necessários
para a extração dos sons.
Neste capítulo será feito um exame da partitura da obra Chronos X de Roberto
Victorio centrando em questões relacionadas ao gesto. Serão discutidos os dois primeiros
tipos de estágios apresentados por Sloboda com o intuito de utilizá-los como ferramentas
57

aplicadas na construção da performance desta obra, além dos estudiosos discutidos nos
capítulos 1 e 2. Ressalto que os procedimentos utilizados foram pensados para esta obra em
específico e não se aplica, necessariamente, a outras obras apesar de não excluí-las.
Em todos esses anos tendo contato com várias partituras de obras para bateria
(somente sob notação tradicional) e percussão de vários compositores, e também, com vários
métodos de estudos, experimentei e adotei formas de primeira leitura que me auxiliaram nos
estudos e preparação para as performances. Uma destas formas que mais utilizei e ainda
utilizo nos dias atuais é a de ler e examinar primeiramente um trecho ou compasso,
identificando e tentando memorizar os elementos presentes na grafia da partitura antes de
entrar em contato com o instrumento. Logo em seguida, após a leitura e exame do trecho
específico, eu entro em contato com o instrumento para tentar reproduzir exatamente o que foi
lido ou ao menos uma grande parte, e assim, faço da mesma maneira estes procedimentos com
os outros trechos da partitura. Além disso, sempre procuro repetir várias vezes cada trecho ou
até parte do trecho isoladamente com o intuito de memorizá-los o melhor possível, para em
seguida estabelecer a conexão entre todos os trechos. Em se tratando de uma partitura
complexa e cheia de informações visuais, primeiramente, a minha maior preocupação sempre
foi de obedecer às articulações rítmicas das notas e figuras específicas, para então,
posteriormente, dar atenção às dinâmicas, acentuações e outros sinais indicados na partitura.
No estudo de Sloboda (2008) acerca da primeira leitura23, identifiquei ao menos cinco
aspectos que interferem nesta questão: os mecanismos operantes do sistema de movimento
dos olhos sobre a partitura, sendo eles os movimentos sacádicos e as fixações; o nível técnico
de leitura e execução do intérprete (fluência ou não na leitura da partitura); o conhecimento da
grafia musical e seu funcionamento; a quantidade de informações contidas na partitura; e a
partitura específica de um instrumento musical.
Especificamente na obra Chronos X, eu quis experimentar novas formas de leitura à
primeira vista para verificar como outros aspectos - além dos citados no parágrafo anterior –
podem interferir neste tipo de leitura, além de quais tipos de gestos podem ser obtidos a partir
de todo o processo. Estes outros aspectos são: a realização dos movimentos corporais em
contato com a bateria; a realização dos movimentos corporais sem contato com a bateria,
simulando os toques no ar (com as baquetas) e no chão (com os pés); e o acompanhamento do
áudio da obra.

23
Para mais detalhes ver SLOBODA, 2008.
58

Para esta experimentação a obra foi dividida em quatro partes contendo três páginas
cada, com exceção da última com 2 páginas. Vale ressaltar que, esta divisão por páginas foi
feita sem análise prévia da obra e para esta experimentação em específico, uma vez que isso
não significa que todos que interpretarem esta obra posteriormente devam fazer da mesma
maneira que aqui é apresentada. Há de se destacar também que, para esta ocasião, somente a
leitura da bula da bateria foi realizada previamente.
A primeira parte foi lida no dia 18 de julho de 2016 às 9:35 e as outras três partes
foram lidas no dia 19 de julho de 2016, sendo a segunda às 10:43, a terceira às 13:59 e a
quarta às 14:45, horário local de Cuiabá-MT. Na primeira parte eu li as páginas 1, 2 e 3
executando a bateria simultaneamente. Na segunda parte li as páginas 4,5 e 6 seis vezes
repetidas sem parar, ou seja, cada vez em que terminava a leitura destas três páginas ao final
da página 6 retornava direto para o início da página 4, dando início novamente ao percurso.
Isso foi feito sem a execução do instrumento, mas realizando movimentos no ar com as
baquetas e os pés batendo no chão, simulando os toques de ambos nas peças da bateria. Na
terceira parte da experimentação, a estratégia foi semelhante a da segunda, porém aplicada a
leitura das páginas 7, 8 e 9 e com o acompanhamento do áudio da obra. A quarta parte foi
caracterizada pela soma das estratégias da segunda e terceira partes realizadas na leitura das
páginas 10 e 11. Nesta ocasião, dividi esta parte em duas subpartes A e B sendo a primeira
correspondente à leitura destas duas páginas por três vezes seguidas, fazendo os movimentos
das mãos com baquetas no ar e dos pés no chão; e na segunda subparte fiz o mesmo com o
acompanhamento do áudio da obra. A leitura a primeira vista das quatro partes foram
gravadas em vídeo servindo de registros para uma análise posterior.
O objetivo geral de todo esse procedimento foi verificar os primeiros gestos obtidos na
primeira leitura da obra Chronos X, a fim de servir como ponto de partida para o
aprimoramento destes gestos a ser feito durante os ensaios individuais, na busca pela melhor e
efetiva execução possível da obra. Importante ressaltar que o estudo realizado não contemplou
os gestos do flautista, nem aqueles que ocorrem entre um instrumentista e outro na execução
de música de câmara, embora a obra seja composta para Bateria e Flauta.
59

3.1 Os gestos obtidos na primeira leitura de Chronos X

3.1.1. Primeira leitura da primeira parte (páginas 1, 2 e 3)

A partir da minha observação referente ao vídeo gravado da primeira parte da obra


Chronos X, verifiquei alguns aspectos relacionados aos gestos resultantes da forma de leitura
adotada para esta parte. Ao considerar o que Delalande apud Zagonel (1992) discute sobre o
gesto que efetua e as considerações de Zagonel (1992) a respeito disso, percebi que os meus
gestos estavam, em sua maioria, mecânicos, rudimentares, desprovidos de expressão e
imprecisos. Em raros momentos consegui realizar gestos dotados de expressividade, mais
especificamente, em trechos de tempos e espaços lisos que contém poucas informações
escritas, nos quais tive facilidade de leitura e compreensão instantânea. Isso ocorreu, por
exemplo, no segundo compasso do segundo sistema da página 3, situação em que sustentei e
aumentei a dinâmica de uma única nota executada no surdo da bateria (Figura 16). Nesta
situação, realizei um movimento do meu tronco juntamente com os braços quando os levantei
de uma forma que estivessem acompanhando o aumento da dinâmica da nota. Esse
movimento pode ser considerado um gesto que acompanha e gesto percussivo expressivo.

Figura 16: Exemplo de trecho da obra Chronos X em que ocorreu gesto expressivo na leitura à primeira
vista da primeira parte.

De forma geral, há a necessidade de aprimorar e automatizar os gestos estando de


acordo com as ideias musicais de Victorio registradas na partitura. Apesar das boas técnicas
de segurar as baquetas e acionar os pedais da bateria, adquiridas ao longo dos anos de estudos
e práticas musicais, a ocorrência dos aspectos verificados pode ser considerada normal acerca
de uma primeira leitura de qualquer obra musical.
Essa falta de expressividade dos meus gestos iniciais está de acordo com o que
Kurtenbach e Hulteen apud Iazzetta (1997) falam a respeito da amplitude funcional do gesto,
resultante do seu poder de expressividade. Vale lembrar que um gesto pode ter o controle de
vários parâmetros simultaneamente, havendo a impossibilidade de alterar cada parâmetro
individualmente. Estes parâmetros estão de acordo com a visão de Matschulat (2011) acerca do
60

som, sintetizado no timbre, articulação, dinâmica, tempo e sua coordenação em vários níveis
sintáticos.
Os meus gestos, nesta primeira parte de Chronos X, apresentaram uma dificuldade e
imprecisão de controle simultâneo dos parâmetros citados por eu ainda não estar familiarizado
e não ter memorizado todas as indicações da partitura. Constatei que as dinâmicas foram
homogêneas praticamente o tempo inteiro em uma intensidade que pode ser considerada forte
(f), e isso, se deve a realização de gestos de grande amplitude de movimento. Os timbres
extraídos ainda são pobres, o que demanda maior criatividade na exploração de regiões
diferentes das peças da bateria em consenso com as especificações da partitura. As
articulações foram desorganizadas e distantes da obediência aos valores de duração das notas,
a maioria baseada em semicolcheias e fusas.
Crucialmente, houve uma grande dificuldade de absorção de todo o conteúdo musical
dessas três primeiras páginas devido à existência de muitas informações contidas na partitura
a serem traduzidas pelo olho. Essa dificuldade resultou nos gestos indecisos, imprecisos e
inseguros, pois ler o texto musical com o movimento sacádico dos olhos e retornos sobre o
que não foi entendido e compreendido, retardaram e quebraram a sequência e precisão dos
movimentos. Havendo uma grande quantidade de informações a serem absorvidas pelo olhar,
no que concerne aos sinais de dinâmicas, acentos e as figuras de valor curto de duração, ficou
difícil concatenar tudo ao mesmo tempo e executar os movimentos de forma contínua, precisa
e em uma velocidade plausível.
Nas passagens ou eventos musicais houveram erros de leitura, visto que de acordo
com Sloboda (2008) esse tipo de situação está relacionado à execução de notas erradas e
falhas no andamento e ritmo da música, isso no contexto condizente aos músicos experts ou
performers habilidosos. Os meus erros de leitura nesta primeira parte de Chronos X foram os
seguintes: troca de peças da bateria na execução (ou execução de peças erradas em desacordo
com o que estava especificado na partitura, por exemplo, onde estava especificado para tocar
o tom agudo, eu executei o prato médio); não execução de algumas notas; e notas executadas
a mais do que está escrito na partitura. Estes erros resultaram em uma execução desorganizada
em que se teve a quebra da sequência precisa dos trechos, dado que, não foi possível coletar
rapidamente todas as informações contidas na partitura simultaneamente. Em alguns
momentos, observei no vídeo que eu parei para fixar o olho em alguns trechos específicos na
tentativa de conseguir assimilar todas as indicações, mas isso resultou em lentos e inseguros
movimentos corporais. Sendo assim, a execução dos trechos ficou prejudicada.
61

Um fator ou aspecto preponderante a ser considerado que também contribuiu para os


erros de leitura, foi o de identificação das peças da bateria no pentagrama devido à falta de
costume com a legenda proposta por Victorio. Pelo fato de haver semelhança do desenho das
figuras ou notas que representam a escrita dos tambores (caixa; tambor agudo, médio e grave;
surdo e bumbo) e dos pratos (médio e grave) no pentagrama, isso me fez ficar confuso e
trocar as peças de lugar na execução. Eu confundi espaço com espaço e linha com linha, ou
seja, na execução troquei uma peça que é escrita em uma determinada linha por outra peça
que é específica de outra linha, assim como troquei uma peça escrita em um determinado
espaço por outra peça que é específica ou pertence a outro espaço do pentagrama. Isso se deu
porque, na maioria dos trechos, eu fiz a leitura de forma rápida sem fixar os olhos por muito
tempo num mesmo trecho.
Nesta primeira parte de Chronos X identifiquei que, também, há a repetição de uma
célula rítmica (ver Figura 17) que aparece em vários momentos da obra.

Figura 17: Célula que mais se repete ao longo de todas as partes da obra Chronos X.

Neste tipo de situação, considerei o que Sloboda (2008) diz sobre a linguagem falada
visto que, há palavras que já são tão comuns que muitas vezes não precisam de fixação direta
para absorvê-las ou entendê-las, ou seja, por já conhecer as palavras, o leitor promove saltos
na leitura das mesmas utilizando-se da visão periférica identificando-as de forma indireta. Na
música a questão da leitura é mais complexa, pois é uma arte em que a criação está presente o
tempo inteiro onde as notas são recombinadas cada dia mais e mais, não existindo, portanto,
padrões assim como ocorre nas diversas línguas faladas. Porém, segundo Sloboda (2008) não
há “um „dicionário‟ consensual de padrões musicais”, mas, por outro lado, há configurações
que são “conhecidas e recorrentes de alturas e ritmos em diversas melodias que um leitor
poderia aprender a reconhecer como unidades” (SLOBODA, 2008, p.94). Desta forma, em
Chronos X, considero a célula rítmica observada como uma configuração que se apresenta em
fusas distribuídas uma por uma em cada tambor da bateria, reconhecendo-a como uma
unidade presente nesta obra.
62

Inicialmente, esta célula se apresenta no único compasso presente no segundo sistema


da página 1 e, em seguida, no primeiro compasso do primeiro sistema da página 2. No
entanto, para mim esta repetição ainda foi pouca e insuficiente para que eu memorizasse
totalmente esta célula, com a finalidade de executá-la precisamente e/ou fluentemente. Na
página 1, a minha execução, por um lado, foi boa por apresentar um bom controle muscular
dos gestos tendo, em certa medida, fluência rítmica. Por outro lado, eu executei as peças
erradas na segunda, terceira e quarta nota das cinco que formam essa célula rítmica. Já na
página 2, não errei as peças, mas a execução não foi tão eficiente porque no início quando
executei a primeira nota, simplesmente parei para olhar e conferir se estava executando a peça
correta do instrumento. Sendo assim, logo em seguida eu recomecei a execução rapidamente e
acertei todas as peças. Este tipo de situação é algo que não poderia acontecer em uma
performance, pois prejudicaria a qualidade da mesma.
Em se tratando especificamente dos movimentos corporais identificados nesta
primeira leitura, no vídeo, verifiquei que em determinados momentos fiz movimentos faciais
e com a cabeça. Ao lembrar o que Camurri et al (2004) discutem a respeito do caráter
multimodal do gesto musical, logo percebi que estes movimentos apresentaram conteúdo
expressivo referente a sentimentos de indecisão e insegurança, uma vez que eu estava confuso
e com dúvida em vários trechos da obra. A contração dos lábios e sobrancelhas; e os
movimentos da cabeça de um lado para o outro, ora olhando para a partitura, ora olhando para
as peças da bateria, evidenciaram esses sentimentos. Eu realizei o primeiro gesto quando olhei
fixamente na partitura e não tinha certeza se estava executando as peças certas da bateria de
acordo com o que estava indicado nos trechos da partitura. Já o segundo gesto representou a
minha intenção de localizar as peças certas a serem executadas em determinado trecho. Por
este viés, percebi que eu ainda não estava familiarizado totalmente com o meu plano de
espaço em relação ao instrumento, ou seja, precisava maturar ou consolidar a memória
espacial que juntamente com a memória muscular resultam na memória corporal.
Um dos trechos em que o nível de dificuldade desta primeira leitura e execução foi
acentuado está localizado no único compasso do terceiro sistema da página 2. A dificuldade
deste trecho se dá pela leitura e execução de dois ou mais componentes do set da bateria
simultaneamente (Figura 18) sendo que, este tipo de situação ocorre nas quatro partes da obra.
63

Figura 18: Trecho em que ocorre a leitura e execução simultânea de dois ou mais componentes da
bateria, localizado na página 2 da obra Chronos X.

Percebi através da observação do vídeo que nesta parte foi difícil concatenar a
sequência de leitura de um, dois e até três componentes do instrumento simultaneamente,
além de coordenar os movimentos (realizados seja com as mãos, mãos e pé direito, etc.). Se
nos outros trechos desta primeira parte da obra ocorreram dificuldades que condizem aos
erros de leitura, controle dos parâmetros sonoros e identificação dos componentes da bateria
no pentagrama, neste grande trecho o mesmo se deu e em um nível superior que dos demais
trechos. Houveram momentos em que percuti peças que não estavam escritas na partitura; na
execução simultânea de duas peças eu acertei uma e errei a outra; na execução simultânea de
três peças acertei duas e errei uma e, em alguns casos, acertei uma e errei duas; e também
inverti as peças da bateria na leitura, resultando na troca delas na execução.
Considerando o que Zavala (2012) discute a respeito do lado inconsciente de um
indivíduo que realiza o gesto, posso afirmar que em alguns momentos deste trecho em que
executei notas que não estavam escritas, bem como de outros desta primeira parte da obra,
foram gestos inconscientes ou não planejados.
Nesta primeira parte, por se tratar de uma primeira leitura, não foi possível ainda
compreender profundamente as ideias musicais concebidas pelo compositor, a fim de
imaginar o movimento sonoro e transformá-lo em som através do contato com o instrumento
obedecendo às indicações da partitura que foram elaboradas pelo mesmo, para que se alcance
a sonoridade pretendida.

3.1.2. Primeira leitura da segunda parte (páginas 4, 5 e 6)

Nesta segunda parte, ocorreram situações similares as da primeira parte sendo algumas
delas comuns na maior parte de toda a primeira leitura da obra. Os meus gestos estavam
rudimentares e sem o controle preciso dos parâmetros simultâneos; tive dificuldade na
64

absorção de todo o conteúdo musical contido nos trechos; houveram erros de leitura; e ainda
um pouco de dificuldade na identificação das peças da bateria na partitura. Porém, não
pretendo aqui me aprofundar novamente nelas (assim como na terceira e quarta partes), e sim,
apenas relatar outras ocorrências presentes nesta segunda parte da obra.
Primeiramente, é importante ressaltar que as páginas 4, 5 e 6 são de uma
complexidade maior de leitura em relação às páginas 1, 2 e 3, pois possuem muitos trechos
densos com a presença de tempo-espaço estriado em que há movimentações rítmicas intensas,
além de conter várias informações a serem traduzidas pelo olho. São repletos de articulações
baseadas em figuras de curto valor de duração como semicolcheias e fusas, e também, tem
registrados vários momentos de notas tocadas simultaneamente, além dos sinais de dinâmicas,
acentuações, fermatas, cesuras, etc. Por outro lado, encontram-se dois trechos com ausência
de fórmula de compasso, ou seja, que são caracterizados pelo tempo-espaço liso, onde, assim
como na primeira parte da obra, tive mais facilidade de leitura e execução. No entanto, ao
comparar esses com os da primeira parte verifiquei que são mais difíceis porque possuem um
maior número de notas a serem tocadas em um mesmo espaço de tempo, duas notas tocadas
simultaneamente e algumas apogiaturas (simples, dupla e tripla).
Não obstante, a densidade da leitura dessa segunda parte da obra foi compensada e
amenizada pelos seguintes fatores: As seis repetições realizadas simultaneamente aos
movimentos corporais após a primeira leitura das três páginas; a leitura da primeira parte
(páginas 1, 2 e 3); a repetição de células rítmicas advindas das páginas 1, 2 e 3; a repetição de
duas células rítmicas presentes na página 4 desta segunda parte da obra;
Em relação ao primeiro fator citado, por um lado, as seis repetições da leitura das
páginas juntamente com os movimentos corporais, contribuíram para o aumento do nível de
memorização visual dos trechos (através das fixações e movimentos sacádicos dos olhos); da
memorização espacial (o plano de espaço da bateria, a disposição das peças) através dos
movimentos corporais na localização e execução das peças corretas de acordo com o que foi
lido; da minha familiarização com a bula da bateria; e de sincronismo entre os movimentos
dos olhos na leitura com os movimentos corporais. Desta forma, houve uma diminuição
quanto aos erros de leitura referente às trocas de lugares das peças na leitura e execução, e
peças tocadas a mais ou a menos do que estava escrito na partitura. Por outro lado, até o
exato momento esse número de repetições não foi o suficiente para permitir uma execução
fluente dos trechos, de forma a atribuir gestos expressivos.
No que se trata ao segundo fator mencionado, este de certa forma contribuiu para a
minha leitura da segunda parte porque através do primeiro contato com a obra na leitura das
65

três primeiras páginas, fui me familiarizando com a bula da bateria e tendo a percepção da
forma como esta obra se desenha. Com isso, eu fui para a leitura da segunda parte um pouco
mais maduro em relação à identificação das peças da bateria no pentagrama e ao caráter da
obra. Desta maneira, houve uma redução dos erros de leitura nesta segunda parte, o que
contribuiu para uma melhora não só da minha leitura, mas também, da precisão de alguns dos
meus gestos na execução de alguns trechos (principalmente dos trechos caracterizados por
tempo-espaço liso) ainda que, não houve uma fluência considerável.
Em se tratando do terceiro fator, a repetição das células rítmicas tanto da primeira
parte como da segunda também contribuíram para compensar a densidade desta segunda
parte. A partir disso, foi possível reconhecê-las mais facilmente e executá-las através dos
movimentos corporais de forma um pouco mais eficaz, mesmo não tendo conseguido executá-
las fluentemente e obedecendo às dinâmicas e outras especificações. Estas células podem ser
visualizadas nas Figuras 19, 20, 21 e 22.

Figura 19: Célula rítmica da página 1, que se repete na página 4 da obra Chronos X.

Através da observação do primeiro e do segundo vídeo, comparei a execução desta


célula nos dois casos e verifiquei que no segundo vídeo houve uma melhora em relação ao
primeiro. Neste, eu havia executado quatro notas, ou seja, uma a mais do que estava escrito e,
além disso, numa dinâmica forte (f) ao invés de suave ou piano (p) como estava especificado
na partitura. Já no segundo vídeo, realizei exatamente as três notas em uma dinâmica mais
suave (mf) e melhor articuladas.

Figura 20: Sequência de células rítmicas da página 2, que se repetem na página 5 da obra Chronos X.
66

Nesta situação, a minha execução desta sequência de células apresentou uma melhora
significativa, pois mesmo não tendo fluência rítmica ao menos não errei nenhuma nota, algo
que aconteceu enfaticamente na primeira parte da obra.

Figura 21: Sequência de células rítmicas da página 4, que se repetem na página 6 da obra Chronos X.

Esta sequência também apresentou melhora na segunda execução, já que, na primeira


vez em que a executei na página 4 errei uma nota concernente à abertura do chimbau, situação
em que não realizei o movimento com o pé esquerdo para abrir e fechar esta peça da bateria.

Figura 22: Sequência de células rítmicas da página 4, que se repetem na página 6 da obra Chronos X.

Assim como no caso anterior, nesta seção a melhora foi em relação ao acerto de notas
equivocadas executadas na primeira execução.
Nesta segunda parte da obra, identifiquei também a existência de uma variação da
célula rítmica representada na Figura 17, que corresponde à mudança de valor de duração de
tempo ou variação rítmica, visto que ela se tornou uma quiáltera (Figura 23).

Figura 23: Variação rítmica da célula apresentada anteriormente, a qual ocorre nas páginas 4 e 11 da
peça Chronos X.
67

Considerando as ocorrências ou aspectos verificados, percebi que, mesmo havendo


repetições de células rítmicas, a leitura desta segunda parte foi uma primeira leitura porque eu
não fazia ideia ou não sabia que aconteceriam tais repetições nesta segunda parte. Aliás, essas
repetições (que ocorrem entre outras e/ou novas células) somente contribuíram para aumentar
o nível da minha memorização parcial dessas células, pois nesta parte ainda não foi possível
uma execução fluente das mesmas além de não conseguir estar livre para me expressar
corporalmente. Há a necessidade de memorização total dos trechos, ou seja, estar seguro na
leitura destes para então me sentir mais livre em realizar esforços intelectuais na descoberta
de tipos de ações corporais no espaço, assim como gestos percussivos que ocasionem
estímulos visuais e a melhor extração sonora possível. E isto será possível mediante o número
de ensaios e o tempo disponível para o real amadurecimento da obra.

3.1.3. Primeira leitura da terceira parte (páginas 7, 8 e 9)

Esta parte da obra exibe vários trechos caracterizados por tempo-espaço liso e a
repetição de muitas células rítmicas oriundas da primeira e segunda parte, um tanto que
contribuiu para uma execução mais eficiente. Além disso, há três fatores preponderantes que
facilitaram a execução desta parte: as seis repetições da leitura, os movimentos corporais e o
acompanhamento do áudio da obra. As repetições da leitura em companhia com os
movimentos corporais auxiliaram no exercício de memorização visual dos trechos e
memorização corporal (memória muscular + memória espacial). O áudio serviu para
comparar o que eu estava fazendo com o que é feito no áudio, ou seja, meus movimentos com
os movimentos do intérprete da gravação, além de servir de estímulo para se aprofundar na
obra. Posso dizer que de certa forma, nesse caso, eu me coloquei no lugar do ouvinte fazendo
o que Delalande apud Zagonel (1992) denomina gesto figurado.
Depois de ler as páginas 7, 8 e 9 escutando o áudio da obra e realizando os
movimentos corporais, curiosamente, ocorreu um fato que atraiu a minha atenção. Senti que
enquanto eu fazia essa leitura com a bateria e sem a escuta do áudio na gravação do vídeo,
este áudio continuou sendo executado na minha mente e serviu de estímulo para a leitura
quanto à execução do instrumento. Isso impulsionou e auxiliou na memorização
principalmente dos trechos de tempo-espaço liso (sustentação de sons, improvisos, notas
isoladas). Juntamente na execução dos trechos, essa escuta do áudio mentalmente me fez
68

entrar no fluxo sonoro da obra e lembrar a sonoridade dos trechos a ponto de querer imitar o
que foi ouvido (gesto figurado).
Em contrapartida, há poucos trechos com existência de métrica ou proporção onde se
apresentam novas células rítmicas e de difícil leitura e execução. Estas apresentam uma ou
duas peças simultâneas da bateria, algumas apogiaturas e quiálteras. Há um trecho (Figura
24) que eu julgo o mais difícil de ser lido e executado nesta parte, pelo motivo deste
apresentar a execução de algumas peças alternadamente realizada pelas duas mãos.

Figura 24: Trecho em que há a execução de peças diferentes pelas duas mãos, localizado na página 9 da
obra Chronos X.

Nesse caso, tem-se a sobreposição de duas células que resultam em uma polirritmia24
visto que, cada mão executa uma célula específica. Na observação do vídeo, apurei que eu
não consegui executar este trecho corretamente nesta primeira leitura, pois além de errar as
peças a serem tocadas de acordo com o que está escrito, a dinâmica não foi obedecida e nem
houve fluência rítmica.
Na Figura 25 pode-se observar um exemplo de trecho assinalado por tempo-espaço
liso, onde eu consegui realizar de forma expressiva a execução de notas sustentadas seguindo
os sinais de decrescendo. Na sustentação da primeira nota feita no tom médio da bateria,
realizei gestos repetitivos e contínuos com as mãos que possuíam inicialmente uma grande
amplitude de movimento para a realização de uma dinâmica fortíssima (ff). Esta amplitude
dos gestos foi diminuindo gradativamente até que eu atingisse uma dinâmica pianíssima (pp).
Na sustentação das notas executadas nos pratos médio e grave simultaneamente, o processo
foi similar a da nota anterior, mas, com a diferença de que inicialmente realizei um ataque
repentino com a intenção de obedecer à indicação do esforzando (sfz) na partitura. Este ataque
foi realizado através de gestos com as mãos saindo de uma posição alta no espaço até percutir
a borda dos pratos. Após este ataque, subitamente houve uma diminuição da amplitude dos
movimentos e também de dinâmica até chegar em pianíssimo (pp). Nas três últimas notas, fiz
um ataque fortíssimo (ff) no tom grave, surdo e bumbo simultaneamente, através de gestos
24
Superposição de divisões rítmicas contrastantes.
69

com uma intenção precisa utilizando as duas mãos e o pé direito, o que resultou em uma
sonoridade notoriamente estrondosa.

Figura 25: Exemplo de trecho em que obtive uma boa execução através de gestos expressivos, presente
na página 9 da obra Chronos X.

Eu ainda não tive fluência na execução das células rítmicas repetidas pelo fato de eu
ter feito a primeira leitura desta parte, e também, porque estas células apareceram
aleatoriamente entre os trechos novos sendo que, o melhor, talvez, seria repetir cada uma
delas várias vezes com a ideia de que poderão ser memorizadas totalmente. Desta forma, eu
estando seguro e tendo memorizado eficientemente estas células, a tendência pode ser a
melhor execução possível e fluente obedecendo às indicações da partitura.
Verifiquei que os gestos estavam mais livres do que antes, mas que ainda precisa-se
fazer alguns ajustes para o aperfeiçoamento dos mesmos. Vale ressaltar que a maioria das
dinâmicas ainda não foi totalmente obedecida, mas a experiência adquirida na leitura das
outras partes da obra, facilitou a primeira leitura desta parte. Desta forma, houveram alguns
gestos mais precisos que resultaram uma exploração maior de timbres nas peças da bateria.
Sendo assim, a obra já começou a adquirir uma forma performativa mais eficaz.
Se a identificação das peças da bateria no pentagrama já não era tanto problema na
segunda parte, nesta seção isso diminuiu mais ainda. Mesmo assim, ocorreram alguns
pequenos erros principalmente nos eventos com muitas notas de curta duração e quiálteras.
As conexões entre os eventos precisam ser mais ágeis e a rítmica assim como as
dinâmicas serem trabalhadas e aperfeiçoadas, terminando-se com as rupturas. o que será feito
através do estudo mais aprofundado da obra. Comparando a minha leitura de obras
tradicionais com este processo da leitura desta partitura, há de se estabelecer um paralelo. Nas
obras tradicionais, houve uma série de repetições de um ou mais padrões rítmicos que
permitiram para mim uma leitura mais simplificada, ágil e rápida. Já em Chronos X, não há
tais repetições, mas sim, sequências de notas e células rítmicas distintas que só se repetem
ocasionalmente, havendo entre elas algumas que sofrem variações rítmicas. Isto, então,
dificultou a minha leitura que se deu de forma mais lenta e imprecisa.
70

3.1.4. Primeira leitura da quarta parte (páginas 10 e 11)

Esta parte é caracterizada por ser a mais breve das quatro, principalmente, porque
possui somente duas páginas. Além do mais, esta apresenta compassos curtos sendo que, na
página 11, há somente dois sistemas onde o primeiro possui dois compassos, e o segundo um
compasso contendo duas fusas que finalizam a obra inteira.
A minha primeira leitura desta parte foi boa, pois houveram poucos erros de leitura e a
familiarização com a bula já havia atingido um nível considerável após a leitura das outras
três partes da obra. Aliás, quando estes erros ocorreram, em alguns momentos da execução,
eu fiz a correção deles de forma súbita após errar algumas peças da bateria. As três repetições
da primeira leitura realizadas na subparte A auxiliadas pelos movimentos corporais,
contribuíram, da mesma forma como na segunda e terceira parte, para o exercício inicial de
memorização dos trechos (visualmente e corporalmente). Nas outras três repetições da
subparte B, desta vez junto com a execução do áudio, foi possível comparar os meus
movimentos com os do intérprete do áudio através do que seria o gesto figurado. Pelo fato
desta quarta parte ser a mais sucinta das quatro partes, isso permitiu que eu tivesse mais
facilidade na absorção da leitura assim como dos movimentos necessários à extração sonora
com ênfase nos trechos assinalados por tempo-espaço liso. Nos tempos-espaços estriados,
como de costume, não houve ainda a fluência rítmica na execução, mas pelo menos foi viável
reconhecer as peças da bateria a serem executadas. Em alguns casos a mente processava as
informações rápidas, mas o corpo demorou um pouco para responder onde os gestos teriam
que ser ágeis.
Assim como nas outras, encontram-se células rítmicas novas e repetidas. Inclusive, no
início tem-se uma segunda variação da célula (ilustrada na Figura 17) que mais se repete na
obra e aparece escrita em semicolcheias em um trecho designado de tempo-espaço liso e sob a
notação não-tradicional (Figura 26).

Figura 26: Trecho em que há ausência de fórmula de compasso, onde a célula rítmica aparece sob a
notação não-tradicional e com mudança rítmica, na página 10 da peça Chronos X.
71

Nesse trecho, obtive o melhor desempenho na execução de toda esta parte da obra, já
que, eu estava seguro na leitura. Meus gestos foram precisos, ágeis e expressivos, embora não
tenha seguido totalmente as indicações de dinâmicas. Ao ver o vídeo, notei que na execução
da apogiatura nos tambores agudo, grave e médio, e no surdo, seguida de uma colcheia tocada
no bumbo, realizei um gesto que acompanha/gesto percussivo expressivo. Pelo fato de ter
havido um percurso sonoro que inicia-se em um tambor mais agudo até finalizar em um mais
grave, tive a sensação de um movimento sonoro de descida ou caída que fez com que eu
abaixasse o meu tronco e os meus braços acompanhando este movimento.
No penúltimo compasso desta parte, ocorreu um fato inusitado que condiz com a
minha realização de uma expressão negativa por meio de movimentos com cabeça girando de
um lado para o outro. Com isso, esse gesto significou uma insatisfação minha por ter errado a
execução de peças da bateria em uma célula rítmica (Figura 27), algo que está ligado ao
caráter multimodal do gesto musical trazido por Camurri et al (2004).

Figura 27: Célula rítmica em que ocorre erro de execução que resultou num gesto expressivo, localizado
na página 11 da obra Chronos X.

Diante disso, o erro se refere à efetivação do tom agudo onde o correto seria o prato
grave, caso que ocorreu na segunda nota da célula rítmica após a apogiatura simples aplicada
no prato agudo, conforme foi destacado na Figura 27.
A finalização da quarta parte (que significa a finalização de toda a obra) foi realizada
precisamente, seguindo a dinâmica e as peças da bateria indicadas (Figura 28). Sendo assim,
esta boa execução mostra que ao menos o final da obra está praticamente pronto havendo a
necessidade de trabalhar fortemente o meio da obra.

Figura 28: Trecho de finalização da quarte parte e de toda a obra Chronos X, localizado na página 11.
72

Sintetizando o que ocorreu na minha primeira leitura da obra Chronos X, posso


afirmar que neste primeiro estágio (que envolve a relação do intérprete com a partitura)
apresentei uma leitura e execução ainda superficial, já que, foi somente meu primeiro contato
com esta obra (isso poderia ter sido minimizado se eu tivesse feito uma análise prévia e
considerado uma divisão mais atenta aos aspectos musicais da obra). Foi um processo inicial
de memorização do conteúdo musical tal como de memorização corporal, familiarização com
a bula da bateria, sendo uma fase rudimentar da execução da obra. Neste sentido, na maior
parte, encontrei-me situado na primeira perspectiva sobre o gesto na ação da performance
percussiva (gesto percussivo) apresentada por Chaib (2012), assim como n o gesto que efetua de
Delalande apud Zagonel (1992). Vale lembrar que, apesar disso, em alguns trechos foi viável
a realização de gestos percussivos expressivos.
É importante dizer também que, conforme fui lendo as partes da obra, os erros de
leitura e a falta de familiaridade com a bula da bateria foram diminuindo, uma vez que, de
certa forma, as estratégias utilizadas na leitura auxiliaram no processo de familiarização com
algumas partes desta obra. Isso ocorreu enfaticamente nos trechos que contém tempo-espaço
liso, onde tive mais facilidade de absorção do texto musical e em certa medida liberdade para
me expressar e melhor controle dos parâmetros musicais (timbre, articulações, frases,
dinâmicas, etc.).
Nesta primeira leitura da obra, especialmente nos trechos caracterizados por tempo-
espaço estriado, o corpo ainda é refém da leitura e processamento das informações do texto
musical, estando preso ou com falta de liberdade para se expressar e acompanhar todos os
sons dos eventos da obra promovendo uma sutil dança.
Aqui foi o primeiro passo dado para a construção da performance da obra Chronos X.
Posteriormente, no ensaio individual, o gesto percussivo interpretativo e o gesto percussivo
expressivo/gesto que acompanha aparecem mais frequentemente e isso será discutido no
próximo tópico.

3.2 Ensaio

O período de estudos de uma obra, também chamado de ensaio, faz parte da vida de
muitos músicos que, geralmente, ocupam a maior parte do tempo com ensaios que podem ou
não exigir uma grande quantidade de esforços. A forma e o número de ensaios realizados
podem determinar a destreza e agilidade de um intérprete. É neste momento que o intérprete
73

tem o direito e liberdade para errar (algo que deve ser evitado o máximo possível na
apresentação final) e fazer os ajustes necessários; criar, testar e descobrir formas ou caminhos
de interpretação e aperfeiçoamento técnico-expressivo da obra; selecionar e fazer as melhores
escolhas que proporcionem a melhor execução possível da obra ensaiada. O ensaio faz com
que os intérpretes adquiram experiência em todos os sentidos, desde a parte técnica de
execução do instrumento, até a parte intelectual no que diz respeito à criatividade e esforços
para interpretar a obra da melhor maneira possível, que venha ser apreciada pelos
espectadores na apresentação final.
Segundo Sloboda (2008), os estudos sobre o estágio do ensaio apresentam
experiências pessoais e observações informais. De acordo com este autor, os músicos experts
utilizam estratégias de ensaio que não se restringem em fazer várias repetições de uma mesma
passagem, mas também, na divisão dessas passagens ou partes problemáticas em pequenas
partes. Muitas vezes, é preciso solucionar o problema de uma parte pequena de uma frase, de
um trecho ou de uma passagem. Para este autor, também, os músicos experts reiteram que o
domínio de uma obra musical roga pela elaboração e construção de representações múltiplas,
estas que podem consistir em anotações e rabiscos na partitura, ou simplesmente, em
representações mentais que são significantes para o intérprete.
Um dos problemas substanciais de performers, mencionados por Sloboda (2008), é o
de controle consciente completo da sequência da performance. De acordo com este autor “as
pistas de cada pequeno trecho são obtidas por associação a partir do trecho precedente, de
modo que, quando algo dá errado, não há como salvar a performance; a memória
simplesmente „seca‟” (SLOBODA, 2008, p.118). Muitas vezes, para um intérprete é normal
memorizar somente alguns pontos de uma obra musical, uma vez que se no ensaio ele é
interrompido para o debate sobre aspectos da execução, faz-se necessário voltar a um desses
pontos memorizados para reiniciar a performance no ensaio. Para intérpretes experientes,
segundo Sloboda (2008), o domínio total de uma obra permite a habilidade de iniciar a
execução da obra por qualquer trecho ou passagem, pois o intérprete consciente sabe o que
vem a seguir. Este autor também ressalta que uma obra musical aprendida de forma
apropriada é caracterizada pela habilidade de pensar nela sem se preocupar em olhar para o
instrumento. Além disso, ele afirma que muitas vezes a realização de um ensaio intensivo de
uma obra não sucede melhoras significativas.
74

3.2.1 O Ensaio Individual

Desde a realização da primeira leitura da obra Chronos X, que ocorreu entres os dias
18 e 19 de julho de 2016, o estudo da obra não foi realizado de modo sistemático e/ou
frequentemente. Somente retomei este estudo sete meses depois no dia 15 de fevereiro de
2017, onde procurei manter uma disciplina diária. Após duas semanas e meia de estudos e
ensaios individuais, eu gravei um vídeo no dia 04 de março de 2017 para observar e analisar o
que mudou da minha primeira leitura para este dia. Nesse período, de forma intensiva, eu
busquei memorizar os trechos da obra o máximo que eu pudesse para realizar esta gravação.
O intuito era obter melhoras significativas na leitura e execução em relação à primeira leitura,
além de compensar o grande tempo em que fiquei sem o contato constante com esta obra. O
processo de ensaios particulares foi feito por mim através de diversas repetições de passagens;
de pequenas partes de cada passagem; de cada página da obra individualmente; de duas, três
ou mais páginas seguidas; e de todas as páginas.
A realização da primeira leitura, de certa forma, interferiu nesse processo de ensaio,
pois através dela tive o primeiro contato com a obra em meio a diferentes formas ou
estratégias de leitura que proporcionaram a familiarização e o exercício das memórias
corporal, visual e auditiva. Ou seja, foi possível uma memorização inicial da obra (de alguns
pontos) quanto aos movimentos corporais realizados na extração sonora, simultaneamente a
distribuição destes no plano de espaço da bateria; quanto à memorização visual de algumas
células rítmicas (com destaque para a da Figura 17), trechos ou passagens, e poucos sinais de
dinâmica, acentuações e ligaduras; quanto à memorização das sonoridades de algumas células
rítmicas, trechos ou passagens (que foi possível no momento em que entrei em contato com o
instrumento, e também, através da escuta do áudio da obra); e a familiarização com a bula da
bateria. A partir disso, no início do ensaio individual eu fui resgatando o que eu havia
memorizado na primeira leitura para realizar os primeiros ajustes, e assim, poder exercitar a
memória de pontos que ainda não haviam sido memorizados, uma vez que seria diferente este
processo se eu não tivesse feito a primeira leitura previamente. Acredito que a primeira leitura
da obra me auxiliou a ter uma visão geral de sua estrutura visto que, talvez, se eu tivesse
adotado a repetição intensa de cada passagem especificamente, o processo de memorização
total da estrutura da obra levaria mais tempo para se concretizar. Dentre todos os aspectos
citados, a familiarização com a bula da bateria foi o que fez a maior diferença, pois no ensaio
individual eu não precisei parar, na maior parte do tempo, para verificar quais peças da bateria
estavam escritas na partitura.
75

Observando atentamente o vídeo, constatei que houve uma melhora significante em


relação aos aspectos que foram citados e analisados na primeira leitura da obra. Dentre estes
aspectos tem-se: os erros de leitura e execução; controle dos parâmetros musicais (timbres,
articulações, frases, acentuações, dinâmicas, etc.); e os gestos.
Em se tratando de erros de leitura na execução, percebi que alguns destes ocorreram
pela falta de memorização total de alguns trechos e células rítmicas. O primeiro fator citado
faz lembrar o que Sloboda (2008) diz sobre a memorização de alguns pontos de uma obra por
parte do intérprete. No meu caso, eu consegui memorizar vários trechos desta obra, assim
como, tive muita dificuldade na memorização de outros (ver exemplo na Figura 29). Das 11
páginas, praticamente, a página 1 é a única que está memorizada totalmente.

Figura 29: Exemplo de passagem em que há falta de memorização total, localizado na página 4 da obra
Chronos X.

No exemplo ilustrado, tem-se a transição do primeiro compasso para o segundo


compasso da página 4, realizada diretamente entre uma célula rítmica que se repete duas
vezes em toda obra, e outra que só se apresenta neste trecho. Aqui, houve um erro de
execução que se refere a não execução da apogiatura simples e a primeira nota da segunda
célula, assim como ausência de fluência rítmica. Entre as duas primeiras notas ou figuras
desta célula que finaliza o primeiro compasso, há um grande salto na tessitura da bateria
(característico da técnica pontilhista) que se inicia com uma nota grave executada no surdo e
culmina em duas notas simultâneas executadas, sendo uma no tambor agudo e outra no
chimbau. A distância entre estas peças no plano de espaço da bateria é grande, e isso, durante
os ensaios intensivos da obra, me fez elaborar um gesto longo com o braço direito cruzando
sobre o braço esquerdo. Primeiramente eu toquei o surdo com a mão direita, depois desloquei
o braço direito à esquerda passando por sobre o braço esquerdo para percutir o chimbau,
simultaneamente a mão esquerda no tambor agudo. O fato de que, neste caso, o valor de
duração das notas dessa passagem é curto, exige que eu realize com agilidade o gesto
elaborado, algo que não aconteceu na gravação do vídeo, e ainda por cima, atrapalhou a
sequência de execução das outras notas.
76

Na Figura 30, há um exemplo de célula rítmica que eu não memorizei totalmente e


resultou em erros de leitura e execução, mesmo esta se apresentando duas vezes durante toda
obra, isso porque ela se apresenta primeiramente na página 4 e sua única repetição se dá
somente na página 10.

Figura 30: Exemplo de célula que não foi memorizada totalmente, na obra Chronos X.

Neste exemplo, os gestos foram imprecisos e indecisos quebrando a sequência da


performance e o fluxo da obra. Esta célula rítmica foi de difícil memorização porque se
apresenta em quiáltera com subdivisão em semicolcheias e fusas, e também, a variedade de
peças a serem executadas e duas peças tocadas simultaneamente.
Os gestos percussivos interpretativos e gestos percussivos expressivos ocorreram com
mais frequência neste ensaio individual. Para exemplificar estas ocorrências separei três
trechos específicos (Figuras 31, 32 e 33).

Figura 31: Exemplo de trecho em que ocorreram os gestos percussivo interpretativo e gesto percussivo
expressivo, localizado na página 10 da obra Chronos X.

Durante o estudo deste trecho no meu ensaio individual, testei e encontrei formas de
ações corporais no espaço que atribuíssem expressividade às notas executadas. Dentre estas
ações, escolhi a que condiz com movimentos laterais e rápidos da cabeça e do tronco
seguindo a direção dos toques realizados com as baquetas de madeira, na região central dos
pratos da bateria. Para deixar claro, quando eu toco o prato grave que está localizado à minha
direita, os movimentos são direcionados para a direita, e quando eu toco o prato médio à
esquerda, os movimentos são direcionados para a esquerda. Esta forma de ação corporal
serviu para não só acompanhar os sons produzidos, mas também, teve a intenção de dinamizar
e enfatizar o discurso musical deste trecho que consiste na realização de toques rápidos e
aleatórios, que são interrompidos por pausas de curta duração de tempo.
77

Figura 32: Exemplo de trecho em que ocorreram os gestos percussivo interpretativo e gesto percussivo
expressivo, localizado na página 4 da obra Chronos X.

Neste caso, o gesto percussivo expressivo ocorreu na execução da apogiatura simples e


da semicolcheia pontuada (conforme destacado na Figura 30), ambas tocadas nos pratos da
bateria, uma vez que este gesto foi elaborado durante o ensaio individual. Na observação do
vídeo, verifiquei que eu levanto primeiro o braço esquerdo juntamente com o tronco para
percutir o prato médio, seguido pelo levantamento do braço direito para percutir o prato
grave. Ao percutir os pratos, logo em seguida abaixei estes membros do corpo quase que
simultaneamente, e isso tudo feito de forma rápida. Há de recordar que este foi um trecho em
que na primeira leitura eu havia executado outras peças da bateria.

Figura 33: Exemplo de trecho em que ocorreram os gestos percussivo interpretativo e gesto percussivo
expressivo, localizado na página 5 da obra Chronos X.

Neste exemplo, eu realizei um gesto no vídeo e que foi elaborado no ensaio individual,
que consiste em movimentos mais curtos e contínuos na intenção de sustentar brevemente a
nota executada na caixa da bateria numa dinâmica mp. Na verdade, percebi que no vídeo a
dinâmica não foi bem explorada assim como o timbre da caixa. Além disso, ao término da
sustentação da nota, eu levantei e paralisei as duas mãos com as baquetas ficando imobilizado
parcialmente e, isto foi feito com a intenção de enfatizar esta paralisação do trecho por conta
da indicação da cesura na partitura.
O controle dos parâmetros musicais através dos gestos teve uma melhora significante,
porém, ainda faz-se necessários alguns ajustes. No que se trata da obediência às dinâmicas, de
uma forma geral, eu obedeci mais as de forte intensidade contidas entre f e fff. As dinâmicas
mais suaves como mf e p precisam ser mais exploradas sendo que, os gestos na execução de
trechos que contém esses tipos de dinâmicas foram realizados com uma força e peso que
tendem a extrair sons mais fortes. Para esse tipo de situação, há a necessidade de realizar
78

gestos mais curtos e contidos, praticamente próximos a superfície de cada peça da bateria,
buscando controlar o excesso de força e peso. Na Figura 34 trago um exemplo de trecho em
que há uma sequência de células rítmicas com sinais de dinâmicas contrastantes, onde no
vídeo identifiquei que precisam ser trabalhadas.

Figura 34: Exemplo de trecho que apresenta tipos de dinâmicas contrastantes, localizado na página 1 da
obra Chronos X.

Na observação do vídeo, verifiquei que apesar das articulações das notas serem
eficientes em todo este trecho, prevaleceu em média uma dinâmica aproximadamente forte (f).
Nesta situação, precisa-se elaborar gestos peculiares a cada dinâmica na tentativa de gerar
uma diferenciação qualitativa entre elas que ocasione efeitos sonoros eficientes.
Falando especificamente das articulações das notas, observa-se que na primeira leitura
não houve fluência rítmica e que, devido ao ensaio intenso, esta fluência teve uma melhora
significativa. Há exceções de alguns trechos que não tiveram fluência rítmica pela falta de
memorização total (ver exemplo da Figura 35).

Figura 35: Exemplo de trecho onde não houve fluência rítmica, localizado na página 9 da obra Chronos
X.

Neste caso, mesmo não errando a execução de nenhuma peça do instrumento, eu não
articulei as notas precisamente de forma a atender a característica desta célula (quiáltera).
Sobre a questão dos timbres, houve uma melhora na extração destes na maior parte
dos trechos, mas ainda há a necessidade de explorá-los em outros. Os timbres extraídos nos
pratos e no aro da caixa foram os mais ricos nesse estágio da obra (Figura 36).
79

Figura 36: Exemplo de trecho em que houve boa extração tímbrica, localizada na página 7 da obra
Chronos X.

No exemplo ilustrado, realizei gestos sutis, ágeis e controlados na execução da


apogiatura tripla no prato médio e de uma nota longa no prato grave. Neste ato, utilizei as
pontas das baquetas no centro de cada prato com a intenção de deixa-los soar por mais tempo
seguindo a indicação de ligadura de expressão. Isso resultou em uma sonoridade com um
timbre brilhante. Em seguida, realizei um ataque forte na borda tanto do prato grave quando
do chimbau, abafando rapidamente em sequência o primeiro que resultou em um timbre seco.
A quantidade de ensaios que fiz nessas duas semanas e meia, ainda foi insuficiente
para a memorização total da obra, além da execução totalmente fluente e obediência a todas
as dinâmicas e outros sinais indicados na partitura. A primeira página da obra é a que está
mais memorizada porque eu pouco olho para a partitura e, nas outras páginas, eu ainda tenho
a dependência total de leitura da partitura para lembrar os trechos. Ressalto a importância da
memorização total da obra para uma execução mais eficiente, além de permitir uma maior
liberdade para se expressar sem ter a preocupação de errar os trechos que, caso isso aconteça,
é mais fácil retomar a sequência da obra no trecho que vem a seguir, o que não põem em risco
a qualidade da performance. Neste sentido, além da memorização da partitura da obra,
também há a importância da memorização da performance no que diz respeito à virada das
páginas, da troca de baquetas, e dos gestos peculiares de cada trecho, não descartando a
ocorrência de aspectos durante a apresentação que não estavam planejados e que por muitas
vezes, ao invés de atrapalhar, podem enriquecer a performance.
As ações realizadas na primeira leitura permitiram que eu tivesse uma visão geral da
estrutura da obra e o início de memorização da mesma em diversos aspectos; e as ações
tomadas no ensaio serviram para complementar e continuar o que começou a ser feito na
primeira leitura, pois depois de ter tido uma visão geral da estrutura da obra, o trabalho a ser
feito foi o de memorização da sequência de notas, trechos ou passagens e células rítmicas para
haver maior liberdade em testar e elaborar gestos percussivos expressivos, fazer a distinção
qualitativa entre as dinâmicas, e seguir os sinais de acentuações e ligaduras.
80

3.2.2 Gestos finais obtidos no ensaio individual

Após a gravação e análise do vídeo do dia 04 de março de 2017, os meus ensaios


individuais foram retomados a fim de continuar o processo de aperfeiçoamento da execução
da obra para a realização da gravação de outro vídeo, que serviu como ferramenta para análise
do que mudou em relação aos gestos realizados no vídeo anterior e dos gestos realizados na
primeira leitura da obra. Os ensaios continuaram sendo realizados de forma intensa e
sistemática, uma vez que a ideia inicial foi dar prioridade à repetição dos trechos e células
rítmicas que ainda não foram memorizados. Depois destas repetições e, considerando o que
Sloboda (2008) discute sobre o controle consciente da performance, utilizei a estratégia de
voltar e executar os trechos e células precedentes a fim de memorizar a sequência da
performance até estes trechos e células não memorizadas, onde através disso pistas poderiam
ser geradas que me fizessem recordar o que vinha a seguir. Em seguida, ensaiei e repeti
isoladamente cada uma das quatro partes dividas da obra para depois juntá-las e repetí-las
várias vezes preparando para a gravação do vídeo. Este vídeo foi gravado no dia 10 de março
de 2017.
Um ponto importante a ressaltar é que eu juntei e colei as páginas da partitura de três
em três conforme a divisão estabelecida em quatro partes (com exceção da quarta parte que
foram duas páginas), uma vez que isto foi feito para facilitar a virada de página para não
prejudicar o fluxo da obra durante a performance. Aliás, eu também juntei duas estantes de
partitura para apoiar as folhas, já que, não foi possível colocar três folhas juntas somente
numa estante.
Em todo este processo, foi possível aprimorar alguns gestos e descobrir alguns novos e
efetivos. Nas Figuras 37 à 45 a seguir, tem-se os exemplos da ocorrência destes aspectos em
alguns momentos da obra.

Figura 37: Exemplo de trecho onde houve aprimoramento de gestos, localizado na página 1 da obra
Chronos X.

Neste trecho houve o aprimoramento dos gestos realizados no vídeo anterior, uma vez
que no vídeo atual foram consoantes à obediência das dinâmicas contrastantes. Para realçar
81

estes contrastes existentes entre as dinâmicas específicas de cada célula rítmica, nos ensaios
individuais busquei trabalhar o tamanho ou amplitude dos gestos, assim como a extração de
timbres das peças da bateria (toques com a ponta ou o pescoço das baquetas, no centro ou na
borda das peças) e a intensidade ou força dos toques. Observando atentamente o vídeo,
percebi que nas dinâmicas mais suaves utilizei gestos numa posição próxima das peças da
bateria, bem como utilizei gestos longos numa posição alta nas dinâmicas fortíssimas (ff).
Esta alternância gestual causou um efeito dando ênfase às mudanças súbitas de dinâmica. Há
de ressaltar que este trecho foi executado mais efetivamente nos ensaios do que na gravação
do vídeo.
Na Figura 38 tem-se outro exemplo de gesto que foi aprimorado, sendo um na
execução da caixa. A diferença em relação ao vídeo anterior foi que, no vídeo atual eu
diminuí a amplitude do movimento para atender a dinâmica mp, e também, explorei a parte
lateral da caixa obtendo assim uma sonoridade fina, aguda e menos cheia do que se percutisse
o centro da caixa.

Figura 38: Exemplo de gesto aprimorado, localizado na página 5 da obra Chronos X.

Na Figura 39, tem-se o exemplo de um aprimoramento e de novos gestos realizados na


finalização da obra. No vídeo anterior, apesar da boa articulação das notas, eu havia
executado numa intensidade quase ff, assim como foi nos trechos precedentes. Aliás, eu
quebrei o fluxo final da obra ao me movimentar e colocar rapidamente as baquetas sobre a
caixa após a execução da última nota. Já no vídeo atual, realizei gestos mais suaves e com um
sucinto giro do tronco para a direita no intuito de obter a dinâmica mf e, após a execução da
última nota, levantei a mão direita lentamente para enfatizar a minha intenção de deixar o som
do surdo continuar soando. Logo depois de girar sucintamente meu tronco a direita, retornei-o
a posição original e, simultaneamente, desci cautelosamente o meu braço direito para então
ficar poucos segundos imobilizado. Ressalto a importância desta imobilização final porque
mesmo a execução da obra ter sido finalizada, ela parece continuar soando, ou seja, o fluxo
dela continua por mais algum tempo. Destaco inclusive que o som da última nota executada
pela flauta transversal é sustentado por mais algum tempo até o decrescimento e paralisação
total. Sendo assim, qualquer movimento alheio que o baterista fizer neste trecho prejudica a
82

qualidade desta finalização da obra, quebrando o fluxo ainda existente. A importância disso,
também, se baseia no futuro relacionamento com o gesto dos espectadores, uma vez que a
minha ideia neste final é desfazer a imobilidade corporal não só ao término do fluxo da obra,
mas também, no início dos aplausos do público.

Figura 39: Exemplo de trecho em que houve aprimoramento de gestos, localizado na página 11 da obra
Chronos X.

Na Figura 40 há outro exemplo de aprimoramento de gestos, assim como, de


descoberta de um novo gesto.

Figura 40: Exemplo de trecho onde houve aprimoramento e descoberta de gestos, localizado na página
4 da obra Chronos X.

Neste exemplo ilustrado acima, descobri durante o ensaio individual, três novos gestos
que foram realizados na transição entre a primeira, segunda e terceira célula rítmica do
primeiro compasso. Sobre o primeiro gesto, após a execução da primeira célula rítmica com a
mão esquerda no chimbau e mão direita no tom agudo, realizei o cruzamento dos braços para
direcionar e posicionar a mão direita no chimbau e a mão esquerda no tom médio, e assim
executá-los seguindo as notas da partitura. O segundo gesto consiste no toque com a mão
esquerda no tom grave, e o terceiro se refere ao deslocamento da esquerda para a direita
realizado pelo braço direito para alcançar o surdo e percuti-lo, resultando assim no
descruzamento dos braços. Este encadeamento ou sucessão de gestos foram por mim criados
ou elaborados para melhor articular as fusas das três células rítmicas, uma vez que,
anteriormente, eu realizava a maioria dos gestos somente com a mão direita em todos os
tambores e isso causava um esforço muito grande, que comprometia a boa articulação das
notas. Inclusive nos primeiros ensaios eu executava estas notas numa dinâmica acima do que
estava indicado na partitura, mas com os novos gestos e o ajuste da força aplicada foi possível
alcançar a dinâmica mf. Em seguida, na transição entre a última célula do primeiro compasso
83

e a primeira do segundo compasso (que foi ilustrado na Figura 29), o gesto que consiste no
cruzamento do braço direito por cima do esquerdo foi aprimorado e bem executado neste
vídeo atual. Se no vídeo anterior, além de não conseguir realizar o gesto estudado, não houve
fluência rítmica e não consegui dar sequência na execução das notas das células rítmicas
posteriores do compasso, neste vídeo atual ocorreu o inverso.

Figura 41: Exemplo de trecho onde houve a descoberta de novos gestos, localizado na página 3 da obra
Chronos X.

Neste exemplo ilustrado, houve a realização de gestos laterais com a cabeça que
acompanharam e enfatizaram as acentuações das últimas fusas da segunda célula rítmica,
conforme destacado na Figura 41. Além disso, logo em seguida fiz o abafamento do surdo
com as mãos (estabelecendo um contato direto com esta peça) seguido de uma imobilidade
corporal. O abafamento serviu para dar ênfase ao término desta passagem e essa imobilidade
total do corpo, significou a paralização rápida da minha execução representada pela fermata.
A seguir, na Figura 42, tem-se uma passagem que consiste na improvisação com livres
permutações25 ou o que Victorio denomina aleatoriedade controlada26, onde realizei gestos o
mais rápido possível numa dinâmica fff. Ao término da linha de sustentação desta
improvisação seguida de uma cesura e uma fermata, fiquei totalmente imóvel até em
sequência executar uma nota no prato grave realizando um gesto com a mão direita
acompanhado de movimentos ascendente e descendente do tronco. Posteriormente,
rapidamente um gesto com a intenção de abafar o som do prato e fiquei imobilizado
novamente, obedecendo aos sinais de cesura e fermata. Em seguida, finalizando este trecho,
eu realizei um gesto moderado com as mãos me dirigindo com as baquetas ao tom grave. E
assim, realizei um gesto curto na extração sonora feita na borda deste tambor, sob a dinâmica
p, para posteriormente ir crescendo a dinâmica até um mf no tom agudo. Esta atitude resultou
numa sonoridade misteriosa e em timbres macios nos tambores.

25
Para mais detalhes, ver ANTUNES, 1989.
26
Entrevista realizada no dia 02 de março de 2017.
84

Figura 42: Exemplo de trecho onde houve descoberta de novos gestos, localizado na página 3 da obra
Chronos X.

Um fator que está presente nesta obra e que faz parte da vida de muitos intérpretes-
bateristas é a troca de baquetas. Nesta obra ela acontece no final da página 5 entre um evento
sonoro que contém a improvisação com livres permutações e duas notas seguidas executadas
nos pratos com baquetas de feltro (Figura 43). No primeiro evento eu realizei no vídeo gestos
rápidos e fortíssimos seguindo a dinâmica estabelecida na partitura e, além disso, fiz
expressões faciais para enfatizar a forte energia que este trecho apresentou para mim.
Inclusive estes gestos que realizei me fizeram associá-los aos de muitos bateristas de rock que
os fazem de forma parecida nas finalizações de várias músicas em shows. Depois de toda esta
energia transmitida, ao fim da linha de sustentação da improvisação, os pratos continuaram
soando e eu realizei um gesto lento com as mãos tendo a intenção de apoiar as baquetas de
madeira sobre a caixa. Em seguida, também através de um gesto lento, peguei as baquetas de
feltro para executar cada prato de uma vez com gestos cautelosos realizados pelos braços com
o acompanhamento de impulsos leves e ascendentes do tronco. Ressalto a importância desta
cautela na troca de baquetas para não quebrar o fluxo da obra, além disso, este trecho, possui
uma cesura seguida de um evento sonoro com dinâmica suave e movimentação rítmica
praticamente nula. Vale ressaltar também a importância dos pratos continuarem soando após a
mudança entre os dois eventos para que durante a troca de baquetas não fique um espaço
vazio.

Figura 43: Exemplo de novos gestos realizados, localizados na página 5 da obra Chronos X.

Em toda a obra, tive a impressão que os gestos realizados pelos pés pouco se
destacaram ou não pareciam ser tão perceptíveis, além de estarem encobertos visualmente
pelas peças da bateria. Vale enfatizar que, principalmente, o pé esquerdo na abertura do
chimbau foi muito pouco utilizado e o pé direito no bumbo, na maioria das vezes, foi
85

gesticulado entre várias notas executadas com as mãos. Em raros momentos da obra, o pé
direito se destaca como pode ser visualizado no exemplo da Figura 44.

Figura 44: Trecho onde o gesto com o pé direito se destaca, localizado na página 6 da obra Chronos X.

Nesta situação, em meio a sustentação da nota na caixa em mf, a primeira nota do


bumbo foi executada através de um gesto que consiste na utilização da ponta do pé no meio
da sapata do pedal, no intuito de extrair um som fortíssimo. Ademais, depois deste gesto
realizado, mantive o batedor do pedal pressionado na pele do bumbo (contato indireto
durável) a fim de abafar o som seguindo a indicação da cesura (isto aconteceu nas três notas).
De forma semelhante, na segunda nota utilizei também a ponta do pé, mas com menos força
em relação à primeira. Já na terceira nota, para obter um som sob a dinâmica mf, o gesto foi
realizado através de um curto movimento do pé com o calcanhar apoiado no pedal.
Na célula rítmica que mais se repete em toda a obra, representada na Figura 17,
realizei três tipos de conjuntos de gestos distintos. O primeiro conjunto gestual se refere ao
movimento da mão direita no surdo; movimentos da mão esquerda no tom médio seguido do
tom agudo; movimento da mão direita no tom grave; e pé direito no bumbo (este que sempre
será feito desta forma). O segundo conjunto gestual está relacionado à seguinte sequência:
movimento da mão direita no surdo; mão esquerda no tom médio; braço direito cruzando
sobre o esquerdo direcionando a mão direita no tom agudo; mão esquerda no tom grave; e pé
direito no bumbo executado simultaneamente do descruzamento dos braços. Durante os
ensaios eu havia testado estes gestos e verifiquei que dois deles poderiam ser eficientes na
execução da célula. Sendo assim, deixei em aberto para utilizar um ou outro em qualquer
parte da obra (com exceção do trecho que será descrito a seguir) até para dinamizar esta célula
que tanto se repete. O terceiro conjunto de gestos foi elaborado para atender a necessidade da
transição da última célula contida no final do último compasso da página 1 (Figura 45), para
essa célula rítmica da Figura 17 no primeiro compasso da página 2. Este conjunto consiste na
seguinte sequência: mão direita no surdo; mão direita no tom médio; mão esquerda no tom
agudo; mão direita no tom grave; e pé direito no bumbo. Essa necessidade surgiu devido ao
abafamento anterior do som do prato agudo realizado com a mão esquerda, respeitando a
86

última nota de curta duração da célula rítmica representada na Figura 45. Em se tratando que a
célula rítmica da Figura 17 é executada logo em seguida, torna-se difícil (ou não há tempo
suficiente) de soltar a mão esquerda do prato agudo abafado para preparar o movimento em
direção ao tom médio, prejudicando assim toda a sequência das notas.

Figura 45: Última célula rítmica da página 1 da obra Chronos X.

Portanto, nesses últimos ensaios por mim realizados, foi possível criar, descobrir e
aprimorar vários gestos que tornassem expressiva a execução da obra Chronos X, sendo um
processo de amadurecimento e organização das ideias que teve como base anterior a primeira
leitura e os primeiros ensaios individuais. Aqui os gestos percussivos interpretativos e gestos
percussivos expressivos/gestos que acompanham ocorreram enfaticamente comparando aos
primeiros ensaios. De acordo com Salles (1998) a maior parte dos artistas entende a criação
como um processo que se inicia no caos até o que ela denomina cosmos, ou seja, o que seria a
organização das ideias. Primeiramente tem-se planos, ideias e possibilidades que estão
acumuladas e que com o tempo vão sendo escolhidas e/ou selecionadas, adequadas e/ou
amalgamadas. Estas, então, depois de testadas e selecionadas, permitem o surgimento de um
objeto com organização própria, este que é concebido a partir do anseio do artista por uma
forma organizada (SALLES, 1998, p.33).
Neste trabalho não será discutido o ensaio com a flauta transversal e a performance
expert. Há de ressaltar que num futuro ensaio com a flauta, poderão haver novas descobertas e
aprimoramentos de gestos, assim como gestos que podem ser descartados. Mas isto já é
assunto de outro trabalho.
87

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo realizado sobre a obra Chronos X trouxe para mim experiências


significativas relacionadas ao processo de construção da performance musical da mesma.
Através deste estudo, eu aprendi e descobri novos caminhos de interpretação que
possibilitaram a utilização de novas ferramentas para a leitura de partitura e execução da
bateria. Estas experiências e descobertas podem servir de referências a futuros trabalhos e/ou
interpretação além de ampliar as discussões sobre esta e outras obras.
Posso afirmar que Chronos X é uma obra complexa e exige bastante empenho do
intérprete nos ensaios individuais, mas sua beleza estética e o meu afeto adquirido pela
mesma, fizeram com que todo o sacrifício fosse válido a fim de elaborar a melhor construção
performativa possível. Vale ressaltar também que, de fato, ela exige muita concentração, onde
qualquer distração pode fazer perder o fluxo e o controle da sequência da performance.
Na minha interpretação desta obra durante os ensaios foi possível trazer o meu tempo
ou percepção individual de tempo, juntamente com as minhas possibilidades de interpretação
singular, além de ter a sensação de des-percepção do tempo real em meio à execução. Esta
experiência me fez pensar também em outras obras que já executei e ainda executo e aprecio
nos dias de hoje, uma vez que quando as interpreto também trago a minha percepção
individual de tempo e interpretação específica, fazendo com que a execução tenha um caráter
performativo único e original. Chronos X, assim como a maioria ou todas as obras, é uma
obra aberta para várias interpretações singulares de diferentes intérpretes.
Nesta obra, tem-se planos simultâneos e ocorrências de tempos heterogêneos que
permitem a existência de várias possibilidades de acontecimentos sonoros, assim como de
realizações gestuais por parte do intérprete. Neste sentido, testando várias possibilidades foi
possível elaborar e executar gestos durante os ensaios individuais que outorgaram a esta obra
um caráter performativo expressivo e, de certa forma, ritualístico. Há de se atribuir tamanha
importância ao gesto musical na interpretação e execução de uma obra, pois é um fenômeno
que realça o conteúdo musical a ser apresentado e atrai a percepção de muitos espectadores
através de estímulos visuais. Em Chronos X este realce é necessário em se tratando do ritual
de celebração do tempo enquanto gesto simbólico desta obra. A elaboração dos gestos
musicais não se limita apenas a obediência ao texto musical, mas também, está ligada à
análise prévia e aos afetos adquiridos com o conteúdo musical da obra que se dão no instante
em que é possível entender e compreender o significado de cada parte.
88

Neste trabalho ficou mais claro e evidente que o gesto não se restringe a um simples
movimento do corpo, mas possui uma intenção expressiva que apresenta significado. Na
construção performativa de Chronos X, verifiquei durante os ensaios que as sonoridades
escritas em forma de partitura requeriam muito mais do que simplesmente movimentos
corporais para a extração sonora do instrumento. Faziam-se necessários esforços intelectuais
para tornar tais sonoridades dotadas de significado, que seria possível através da criação de
gestos a serem realizados de forma pensada pelo intérprete. Em se tratando especificamente
do gesto musical do baterista, apesar dos meus anos de estudo do instrumento, percebo que a
cada obra estudada eu me reinvento enquanto intérprete-baterista e descubro novas fontes
gestuais para atender as necessidades de cada obra individualmente. Estas que com suas
características específicas requerem estudos intensivos para tornar um gesto inicialmente
rudimentar em um gesto expressivo dentro de seus contextos musicais-composicionais. É
válido também atribuir tamanha importância e atenção à montagem da bateria para o
desenvolvimento da gestualidade. Dependendo do plano de espaço do instrumento, que
consiste na altura, distância e disposição das peças em relação ao corpo do baterista, haverá a
obtenção de distintas projeções no espaço em função do tempo dos movimentos gestuais a
serem executados.
A cada momento, estou mais convicto que a música é mais do que simplesmente
cantar ou tocar um instrumento com técnicas apuradas, ou seja, ela ultrapassa os limites
técnico-musicais. Inclusive, ela transcende o mundo material e/ou tridimensional em que
vivemos e percebemos através dos nossos sentidos, sendo ela muito mais do que som, pois há
sempre uma construção invisível por trás de cada obra que alicerça as ocorrências sonoras,
algo que é incompreensível para nós enquanto seres humanos.
Para mim, a escrita aleatória (ou relativa) que ocorre nesta obra não interferiu
significantemente na dificuldade de leitura inicial, pois já tive anteriormente contato e
experiência com outras peças do mesmo compositor (Roberto Victorio) como a Mandala, KA,
Tetragrammaton IV, Codex Troano, dentre outras. Estas possuem o mesmo ou parecido tipo
de escrita e foram estudadas e executadas no período em que participei do Grupo de
Percussão do Departamento de Artes da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
Porém, mesmo tendo contato com este tipo de escrita anteriormente, a leitura desta obra
poderia não ser exatamente fluente na primeira leitura. Desta forma, leva-se em conta a
diferença de sentido ou sequência (proveniente de uma análise prévia) dos eventos sonoros de
Chronos X em detrimento das outras obras que eu já havia executado, além da gama de
89

informações presentes na partitura. Em qualquer partitura, com grafia tradicional ou não, pode
ocorrer essa dificuldade de absorção de várias informações simultâneas.
Com este trabalho espero contribuir para o campo da performance musical, deixando
aqui um material que oferece uma possibilidade de interpretação e construção performativa da
obra Chronos X, a qual venha abrir possibilidades de novas leituras futuras. Acredito que esta
pesquisa também sirva como referência sobre o compositor brasileiro Roberto Victorio e sua
vertente Música Ritual, uma vez que este é reconhecido nacionalmente e internacionalmente
pela sua genialidade na construção do arcabouço sonoro de suas composições.
Devido ao curto espaço de tempo, infelizmente vários assuntos ainda poderiam ser
expostos neste percurso, principalmente, de poder discutir a respeito do diálogo da bateria
com a flauta transversal e a performance expert de Chronos X, a ser apresentada e apreciada
pelos espectadores. Estas abordagens ficarão para próximos trabalhos. A interpretação desta
obra pode me servir também de ponto de partida para os estudos de outras obras
contemporâneas para bateria como as que foram citadas nesta pesquisa.
90

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, Jorge de Freitas. Notação na Música Contemporânea. Brasília: Editora Sistrum,


1989.

ASSIS, Ana Cláudia; AMORIM, Felipe. O gesto musical e a expressividade. Disponível em:
<http://performa.web.ua.pt/pdf/actas2009/03_Assis_e_Amorim.pdf>. Acesso em: 05 dez.
2015.

BARROS, B. G. N. G. de. Escrito com o Corpo: investigações sobre a escuta e o gesto


musical. 141 f. Dissertação de Mestrado – Curso de Pós-Graduação em Música, Universidade
de São Paulo-SP, 2010.

BRITO, Teca Alencar de. Música na Educação Infantil. 2.ed. São Paulo: Peirópolis, 2003.
211 p.

BOULEZ, Pierre. A música hoje. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.

CAMURRI, Antonio; MAZZARINO, Bárbara; RICCHETTI, Matteo; TIMMERS, Renee;


VOLPE, Gualtiero. Multimodal analysis of expressive gesture in music and dance
performances. Disponível em: <http://www.nici.kun.nl/mmm/papers/Camurrietal04.pdf>.
Acesso em: 11 ago. 2016.

CARINCI, Enrico Joseph. Técnica estendida na performance de bateristas brasileiros.


Disponível em: <https://mestrado.emac.ufg.br/up/270/o/ENRICO_JOSEPH_CARINCI.pdf>.
Acesso em: 11 nov. 2015.

CHAIB, Fernando; CATALÃO, João. A influência do gesto na performance percussiva –


apresentação de uma metodologia. Disponível em:
<http://performa.web.ua.pt/pdf/actas2011/FernandoChaib.pdf > Acesso em: 02 jan. 2016.

CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo
Horizonte, n.27, 2012, p.159-181.

GRIFFITHS, Paul. História Concisa da Música Moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.

HARTWIG, Nathalia Lange. Música contemporânea: uma experiência desafiadora.


Disponível em: <http://www.jam.mus.br/musica-contemporanea-uma-experiencia-
desafiadora/> Acesso em: 18 abr. 2016.

IAZZETTA, Fernando. A música, o corpo e as máquinas. Disponível em:


<http://www.eca.usp.br/iazzetta/papers/opus.pdf>. Acesso em: 25 fev. 2016.

LANGER, S. 1953. Sentimento e Forma. São Paulo: Perspectiva.


91

MATSCHULAT, Josias. Gestos musicais no Ponteio nº 49 de Camargo Guarnieri: Análise e


Comparação de Gravação. 100 f. Dissertação (Pós Graduação em Música) – Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2011.

MENDES, Maria Isabel Brandão de Souza e; NÓBREGA, Terezinha Petrucia da. Corpo,
natureza e cultura: contribuições para a educação. Revista Brasileira de Educação. Set-out-
nov-dez, N. 27, p. 2004, p. 125-137.

MENEZES, Flo; ZAMPRONHA, Edson. Música Contemporânea Brasileira. São Paulo:


Centro Cultural São Paulo, 2008.

MONTEIRO, Humberto. Análise Interpretativa do Tetragrammaton IV de Roberto Victorio.


Disponível em: <http://www.robertovictorio.com.br/artigo/arquivos/analise-interpretativa-do-
tetragrammaton-iv-de-roberto-victorio/> Acesso em: 29 set. 2016.

MORAIS, Ronan Gil de; STASI, Carlos. Múltiplas faces: surgimento, contextualização
histórica e características da percussão múltipla. Opus, Goiânia, v. 16, n. 2, p. 61-79, dez.
2010.

REIMER, Benjamin N. Defining the Role of Drumset Performance in Contemporary Music.


2013. 108p. Tese (Doutorado em Música, Performance) - Universidade McGil, Quebec,
Montreal, 2013.

RODRIGUES, Vanessa. Timbre, Tempo e espaço na música de Victorio. Disponível em:


<http://www.robertovictorio.com.br/artigo/arquivos/timbre-tempo-e-espaco-na-musica-de-
victorio-2/> Acesso em: 28 ago. 2016.

SALLES, Cecília de Almeida. Gesto Inacabado – Processo de criação artística. São Paulo:
FAPESP: Annablume, 1998.

SANTIAGO, P.; MEYEREWICZ, A. B. Considerações peircinanas sobre o gesto na


peformance do Grupo UAKTI. Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.83-91.

SILVA, Danilo Kuhn. O gesto musical gauchesco na composição de música contemporânea.


376 f. Dissertação de Mestrado – Curso de Pós-Graduação em Música, Universidade Federal
do Paraná, 2010.

SLOBODA, J. A. Science and Music: The ear of the beholder. Nature, 2008 Jul
3;454(7200):32-3. doi: 10.1038/454032a.

STEUERNAGEL, Marcell Silva. O gesto musical através do MA: uma abordagem alternativa
da forma na composição musical. 218 f. Dissertação (Pós Graduação em Música) –
Universidade Federal do Paraná, Curitiba. 2008.

TRALDI, Cesar; CAMPOS, Cleber; MANZOLLI, Jônatas. Os Gestos Incidentais e Cênicos


na Interação entre Percussão e Recursos Visuais. Disponível em:
<http://www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2007/praticas_interpretativas/pra
tint_CTraldi_CCampos_JManzolli.pdf>. Acesso em: 25 mar. 2016.
92

TRALDI, Cesar; TULLIO, Eduardo. Percussão e Performance. Disponível em:


<http://performa.web.ua.pt/pdf/actas2009/13_Traldi_e_Tullio.pdf>. Acesso em: 21 fev. 2016

ROBERTO VICTORIO. Chronos: série de 10 obras para diversas formações instrumentais.


Rio de Janeiro, São Paulo e Mato Grosso: Roberto Victorio, [2009]. 2 CDs.

VICTORIO, Roberto. CHRONOS: Música ritual e as possibilidades interpolativas da


performance. Disponível em: <https://www.google.com.br/search?q=CHRONOS%3A+M%
C3%BAsica+ritual+e+as+possibilidades+interpolativas+da+performance&oq=CHRONOS%
3A+M%C3%BAsica+ritual+e+as+possibilidades+interpolativas+da+performance&aqs=chro
me 69i57j69i58.1153j0j9&sourceid=chrome&ie=UTF-8>. Acesso em: 07 fev. 2017.

VICTORIO, Roberto. Ouspensky e o espaço-tempo (musical). Disponível em:


<http://www.robertovictorio.com.br/artigo/arquivos/ouspensky-e-o-espaco-tempo-musical/>
Acesso em: 22 nov. 2016.

VICTORIO, Roberto. Tempo e Despercepção: Triologia e Música Ritual Bororo. Centro


de Letras e Artes, UNI-RIO, Rio de Janeiro, 2003. Tese de Doutoramento.
Disponível em: <www.robertovictorio.com.br/artigos/ArtigoTeseTimbre.pdf> Acesso em: 23
out. 2016.

VIEIRA, Maria de Lourdes R. Memória Auditiva. Disponível em: <http://www.fonoaudiolu.


com.br/memoria_auditiva.htm> Acesso em: 08 nov. 2016.

ZAGONEL, Bernadete. O que é gesto musical. 1.ed. São Paulo: Brasiliense, 1992. 63p.

ZAGONEL, Bernadete. Descobrindo a música contemporânea. Disponível em:


<http://www.bernadetezagonel.com.br/ASSETS/pdf/Descobrindo-a-Musica-
Contemporanea.pdf>. Acesso em: 03 set. 2016.

ZAMPRONHA. Edson. Música contemporânea ... a música clássica de nosso tempo?


Disponível em: <http://concertino.com.br/cms2/files/MUSICA%20CONTEMPORANEA_E
Zampronha(1).pdf> Acesso em: 24 jul. 2016.

ZAVALA, Irene Porzio. As inter-relações entre os gestos musicais e os gestos corporais na


construção da interpretação da peça para piano solo “Sul Re” de Héctor Tosar. 127 f.
Dissertação (Pós Graduação em Música) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre. 2012.
93

ANEXOS
94
95
96
97
98
99
100
101
102
103
104

Você também pode gostar