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DADOS DE ODINRIGHT

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Copyright © 2020 dos Autores

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora Contexto (Editora Pinsky Ltda.)

Capa
Fabio Voinichs Imamura

Foto da capa
Bruno Melo Santiago

Diagramação
Gustavo S. Vilas Boas

Ilustrações das aberturas


Montagens a partir de fotos de arquivo pessoal dos autores

Preparação de textos
Lilian Aquino

Revisão
Bruno Rodrigues

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Os incansáveis / Sérgio Xavier Filho...[et
al]. – São Paulo : Contexto, 2020.
160 p. : il.

ISBN 978-65-5541-021-1

1. Judô 2. Lutadores marciais –


Narrativas pessoais 3. Xavier Filho,
Sérgio – Narrativas pessoais 4. Hayek,
Bahjet – Narrativas pessoais 5. Cezário,
Cristian – Narrativas pessoais 6. Motta,
Rodrigo Guimarães – Narrativas
pessoais I. Xavier Filho, Sérgio

20-1604 CDD 927.968152


Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Índice para catálogo sistemático:


1. Lutadores marciais – Narrativas pessoais
2020

EDITORA CONTEXTO
Diretor editorial: Jaime Pinsky

Rua Dr. José Elias, 520 – Alto da Lapa


05083-030 – São Paulo – SP
PABX: (11) 3832 5838

contexto@editoracontexto.com.br
www.editoracontexto.com.br
SUMÁRIO

Introdução

O acidente
Bahjet, o braço
Cristian, a voz
Rodrigo, o cérebro
O pacto de Lisboa
O resgate do Sensei
Potência mundial
Pra lá de Marrakesh
O Instituto Camaradas Incansáveis em números

Os autores
INTRODUÇÃO

A palavra não ajuda, por mais que quem a use esteja


livre de preconceitos. Falou em veterano, pensou em
cabelos brancos, um certo cansaço e talvez até uma
bengala. O dicionário Houaiss define veterano “como aquele
que exerceu durante muito tempo uma atividade, ofício,
profissão”. O verbo é pretérito, o tempo é passado. Para o
atleta, o termo é ainda mais duro. Sugere decadência e
finitude para quem sempre exibiu energia e vitalidade.
O Instituto Camaradas Incansáveis (ICI) já nasceu
rediscutindo esse conceito. O atleta que ultrapassa certa
idade não precisa parar de exercer a sua atividade. Não
deve. Já em meados da década passada, Bahjet, Cristian e
Rodrigo perceberam que havia um mundo veterano pouco
explorado no esporte. No caso do judô, um mundo que é
vizinho de porta do judô sênior. Atletas com mais de 30
anos já estão habilitados para disputarem competições
veteranas. Trinta anos, apenas 30 anos, ainda no auge físico
do atleta.
Os três fundadores do ICI descobriram já em 2007 que
milhares de atletas se reuniam anualmente para disputarem
Campeonatos Mundiais de Veteranos, em categorias
divididas por faixas de cinco em cinco anos e por peso.
Judocas que se enfrentaram em competições nacionais, e
até em Olimpíadas, voltavam a se encontrar na categoria
veterana. O ICI foi criado oficialmente em 2016, mas a
comunidade veterana já ganhava corpo desde o início da
década. O Brasil, que tinha pouca relevância no judô
veterano, se tornou uma potência internacional a partir do
surgimento do ICI. Em 2016, no Mundial de Fort Lauderdale,
nos Estados Unidos, o Brasil ficou na terceira colocação
geral turbinado com os dois ouros, uma prata e três bronzes
conquistados por atletas do ICI. Em 2018, em Cancún, no
México, os dois ouros e um bronze do ICI foram
fundamentais para que o Brasil terminasse na primeira
posição. Nos quatro primeiros anos de existência do
Instituto, o Brasil passou a figurar no mapa-múndi do judô
veterano. Mais importante do que as 14 medalhas que
vieram diretamente do Instituto, é o fato de o ICI ter virado
um centro informal de treinamento da categoria. Grande
parte dos medalhistas veteranos de todo o Brasil já passou
pelo tatame do Instituto para aprimorar a técnica e
aumentar a intensidade na luta.
O ICI não se tornou apenas referência pelas medalhas,
mas também pelo treinamento. Atletas veteranos de outros
clubes e de outros estados sabem que uma “passadinha”
pela sede no bairro da Pompeia em São Paulo sempre vale a
pena. Pela camaradagem, claro, a comunidade judoca não
abre mão de uma boa conversa. Mas também para suar
forte no quimono, os treinos intensos são famosos no judô
brasileiro. No tatame do ICI, até os incansáveis costumam
perder o fôlego.
O ACIDENTE
A rotina, ele conhecia bem demais. Semana de
competição é semana de fechar a boca. Comer menos,
comer pouco, a balança não aceita gracinhas. Rodrigo Motta
entrou na segunda-feira com 76,5 kg e, para disputar na sua
categoria na Copa São Paulo 2018, precisaria estar com 73
kg. Não bastasse a fome, a maldita dor de cabeça que o
acompanhava nos últimos meses. Os comprimidos de
novalgina eram tomados como se fossem balinhas de
hortelã, e a cada dia as doses de analgésicos ficavam mais
frequentes. A pesagem no sábado, no ginásio de São
Bernardo do Campo, transcorreu sem problemas: 73 kg
cravados, o judoca de 49 anos poderia disputar a primeira
competição do ano no calendário paulista de veteranos do
judô. Momento para compensar a semana de privações
alimentares. Com a família, partiu Barbacoa, churrascaria
tradicional de São Paulo, hora de comer carne à vontade,
recuperar o peso perdido para disputar com toda a energia
a Copa no dia seguinte.
A Copa SP começou bem. Na primeira luta, esbanjou a
agressividade de sempre. Venceu com as três advertências
tomadas pelo adversário que ficou na defensiva. Na
segunda, vitória por wazari em um contragolpe. Bobeou no
terceiro confronto e perdeu a chance de disputar a medalha
de ouro. Para um incansável como Rodrigo, em uns poucos
minutos a frustração da derrota se transforma em
combustível para a busca pelo bronze. E, de novo, partiu
para cima na briga pelo terceiro lugar. Agressivo, agarrou
com fúria a manga do adversário, arriscou golpes. A
primeira advertência do oponente o motivou mais. Veio a
segunda e logo depois a terceira. Vitória e o bronze.
A alegria de sair com uma medalha da primeira
competição do calendário oficial do ano só não foi maior
porque lá estava a maldita dorzinha de cabeça para
atrapalhar. Não havia novalgina que resolvesse. Na saída do
tatame, avistou um professor de judô que vinha na direção
contrária. Preparou o abraço, mas, de repente, o amigo
tinha desaparecido. Rodrigo estava desgovernado, saindo
pelo lado como se o pneu direito estivesse completamente
furado. Foi o professor quem o amparou e perguntou se
estava tudo bem. Não estava, só que iria piorar ainda mais.
Recebida a premiação, pegou o carro. Na volta, uma leve
vertigem se somou à dor de cabeça. Deveria ter parado,
mas seguiu dirigindo. Em casa, a vertigem aumentou. Não
aguentava mais ficar em pé, tal a ânsia de vômito. Pulou o
jantar, deitou-se no quarto, dormiu. Na segunda-feira
acordou mal. Cancelou todos os compromissos de trabalho
e ficou vendo televisão. Por volta das 18h, escutou uma
sirene insistente. E nada de a viatura aparecer no episódio 6
da série O mecanismo, que via na Netflix. Resolveu se
levantar até o banheiro e se estatelou de cara no chão. Não
havia sirene alguma, era tudo uma alucinação. Estava
completamente desequilibrado. Tentou pedir ajuda, mas as
palavras não vinham. Saiu um grito gutural de socorro.
Levado ao Hospital São Luiz, Rodrigo fez uma batelada
de exames. Tomografia, exame de sangue... e recebeu um
diagnóstico que não chegava a ser apavorante: “Você está
com labirintite”. Voltou para casa medicado e dormiu.
Quando acordou, mais problemas. Agora era a visão turva.
Trocou mensagens com seu mentor profissional e padrinho
de casamento. Um de seus primeiros chefes na vida, Manoel
Machado era mais do que um amigo, era um conselheiro de
vida. “Rodrigo, você precisa voltar ao hospital, isso pode ser
um AVC (Acidente Vascular Cerebral)”, recomendou Manoel.
Escorado pelo diagnóstico de labirintite, Rodrigo minimizou
o próprio problema. Manoel ligou então para Alfredo Motta,
o irmão de Rodrigo, com quem já havia trabalhado nos anos
1990. “A descrição do Rodrigo é de AVC, Alfredo, ele precisa
ir para o hospital.”
As horas foram passando e nada de o quadro mudar.
Rodrigo finalmente foi convencido pelo pai a procurar sua
neurologista, Gisela Tinone, no Hospital Oswaldo Cruz. Ao
final da tarde da terça-feira, mais de 48 horas após os
primeiros sintomas, Rodrigo recebia, aí sim, uma péssima
notícia. “Você teve um AVC, sua situação é grave, vai para a
UTI”. Todo monitorado e medicado, estava evidente que não
sairia tão cedo do hospital. Já conhecendo o espírito
hiperativo do marido e a paixão por leitura, Sintya levou no
dia seguinte dois livros para Rodrigo se distrair na UTI:
Batalha das Ardenas, de Antony Beevor, sobre a Segunda
Guerra Mundial, e a biografia do cineasta George Lucas. Só
que a leitura não rendia. Rodrigo se esquecia
imediatamente do que havia lido na página anterior. Havia
um problema grave na retenção da memória recente. Para
caminhar, precisava se apoiar em uma enfermeira. Não
tinha o campo visual do lado esquerdo, se bobeasse, batia
na parede.
Seis dias depois e seguia na Unidade de Tratamento
Intensivo do Hospital Oswaldo Cruz. Na tarde do domingo,
uma semana após ter ganhado a medalha de bronze em
São Bernardo do Campo, assistia à final do Campeonato
Paulista entre São Paulo e Corinthians sentado na cama. De
repente, os jogadores corintianos começaram a correr de
ponta-cabeça. Era o segundo AVC acontecendo. Rodrigo
começou e não parava mais de vomitar. A neurologista foi
chamada e a sua expressão não era das melhores. Pela
primeira vez, Rodrigo desconfiou, pelo olhar preocupado da
médica, que pudesse morrer. A tristeza se misturou ao
pragmatismo. Precisava ajeitar documentos, contas, não
deixar a família em dificuldades. Ele se deu conta de que
nunca tinha pensado nisso. Será que daria tempo?
A equipe médica não escondeu a gravidade do quadro e
considerou duas possibilidades de tratamento. Uma delas
era descomprimir a veia com uma intervenção cirúrgica,
retirando uma tampa do crânio. A outra alternativa era
tratar o AVC com medicamentos. O problema da segunda
alternativa era o risco de um novo acidente vascular e não
haver tempo da medicação agir. Nesse caso, nem a cirurgia
o salvaria mais. Depois de refletir por algumas horas, a
médica tomou a decisão menos radical.
Foram mais de 30 dias de internação. Nesse meio tempo,
Rodrigo deu um jeito de arrumar uma plaquinha para
colocar na porta do quarto: “Visitas proibidas por ordem
médicas”. Não era verdade. Ninguém havia imposto
qualquer limitação. O lutador incansável apenas não queria
ser visto em situação de fragilidade. Também não tinha
respostas naquele momento para questões importantes. O
que seria do ICI, por exemplo?
O Instituto Camaradas Incansáveis (ICI) vivia um
momento decisivo naqueles primeiros meses de 2018. A
ONG, que treinava centenas de judocas e crianças, buscava
uma nova sede e estava sem recursos para as reformas. Os
amigos judocas Bahjet Hayek e Cristian Cezário eram os
parceiros no projeto. Ambos ficaram duplamente
decepcionados com o isolamento de Rodrigo. Primeiro, por
não poder demonstrar o carinho e a solidariedade na
situação delicada. E depois pela própria situação do ICI. De
certa forma, Rodrigo, Bahjet e Cristian tinham feito um
pacto quatro anos antes. Estariam sempre juntos na luta,
fosse ela qual fosse. Qual seria o Rodrigo que sairia do
hospital? O ICI conseguiria sobreviver a tudo?
BAHJET, O BRAÇO
Traduzido ao pé da letra, o Bonenkai carrega certa carga
de negatividade: “Festa para esquecer o ano” faz supor que
o ano foi ruim e a festa seria uma forma de exorcizar os
meses anteriores. A expressão japonesa Bonenkai é a
contração de bonen (despedida do ano velho) com kai
(reunião, festa) e é muito usada no mês de dezembro em
encontros empresariais lubrificados com muito saquê e
cerveja. No judô, o Bonenkai é um momento de alívio, de
tributo. Uma pausa para a competitividade dos treinos em
competições e também a oportunidade de homenagear
quem brilhou e se esforçou naquele ano.
A Academia Mito, na Zona Leste de São Paulo, tinha
vários campeões, e o adolescente Bahjet El Hayek, de 13
anos, certamente não era um deles. Treinava duro desde os
10 anos, mas jamais havia ganhado uma medalha em
competições. Até por isso, não esperava qualquer tipo de
menção no Bonenkai de 1989. Os melhores do ranking da
academia iam sendo chamados, havia o troféu destaque, o
assiduidade, entre outros. Mas, de repente, Bahjet foi
chamado para receber o Troféu Luís Antônio Bernardo. Luís
Antônio era um dos melhores atletas da história da
academia, um exemplo para todos no esporte. Na saída do
salão, o próprio Luisão foi conversar com Bahjet: “E aí, como
é o nome do troféu que você acabou de receber?”. Ao ouvir
a resposta do jovem judoca envergonhado, Luisão deu três
tapinhas no ombro e fez a promessa. “Fica tranquilo, Bahjet,
você vai bater pra caramba. Fica frio e vai na minha”.
Não foram palavras jogadas ao vento. De fato, Luisão
“adotou” Bahjet e passou a dar uma série de dicas para o
garoto que parecia ter resultados incompatíveis com o
potencial demonstrado nos treinos. O motivo por ter
recebido o troféu era exatamente esse. De cara, o mestre
prescreveu uma trinca de orientações a serem seguidas
com devoção: “Você vai correr, você vai fazer flexões, você
vai fazer abdominais”. Com 1,71 m, Bahjet não se
destacava pela altura nem pela envergadura. Tinha garra,
técnica, mas faltava condicionamento físico e,
principalmente, força. Estava claro que apenas o
treinamento de judô na academia seria insuficiente para
turbinar a performance do garoto. E Bahjet levou tudo muito
a sério, talvez até a sério demais, tanto que empilhou lesões
no início por exagero nas corridas, flexões e abdominais.
Ao mesmo tempo, Luisão, que era apenas atleta da
academia e não um professor, passou a compartilhar com
Bahjet técnicas de pegada de manga, seus golpes prediletos
e postura no tatame. Além de Luisão, Bahjet ainda tinha
outro professor informal, Ricardo Leone, o Ricardinho, que
era sete anos mais velho e morava perto da casa de Bahjet.
Também o adotou e passou a dar carona para treinos e
torneios. Ricardinho era conhecido na academia por pegar
duro, muito duro. “Era o único cara na academia com quem
eu realmente tinha medo de lutar”, lembra Bahjet. Esse
pavor tinha nome e sobrenome: okuri ashi barai, um golpe
raro, por ser de difícil execução, que Ricardinho executava
com velocidade. De modo geral, o golpe é uma “varrida”
com a perna executada nas duas pernas do oponente ao
mesmo tempo. “Quando você toma o okuri ashi barai, você
vira um passageiro da agonia, fica sem controle algum do
seu corpo. A queda era muito forte mesmo”. Outro golpe
temido de Ricardinho era o tomoe nage, o famoso “balão”
para os leigos, que também não é dos mais executados em
competições pelo grau de dificuldade. Não por acaso, os
dois golpes foram incorporados ao repertório de Bahjet e
acabaram virando suas marcas registradas nos anos
seguintes.
Forte e agora bem condicionado, o jovem judoca faixa
verde já tinha golpes matadores para chamar de seus.
Faltava vencer lutas em campeonatos para fazer pódio. Até
que esse dia finalmente chegou. Em um torneio amistoso na
cidade de Santos, apenas alguns meses após começar a ser
orientado por Luisão e Ricardinho, veio a primeira medalha.
Era a decisão do terceiro lugar e a luta foi equilibrada. Na
época, ainda se usava o sistema de bandeiras em lutas que
acabavam empatadas. Os dois juízes laterais e o árbitro
principal levantavam a bandeira com a cor que identificava
o suposto vencedor. Bahjet quase não acreditou quando o
árbitro gritou o comando “hantei” e duas das bandeiras
decretavam a sua vitória. Após abraçar os mentores
Ricardinho e Luisão, fez menção de agradecer a arbitragem
pela decisão favorável. Quase tomou um okuri ashi barai
para deixar de ser tonto.
Difícil imaginar que aquele gordinho baixinho, filho de
mascates libaneses, pudesse virar um dia atleta de
verdade. Bahjet Rachid Kassem Said El Hayek estudava na
Escola Islâmica Brasileira, na Vila Carrão, Zona Leste
paulistana. Aos 10 anos, costumava se engalfinhar no
recreio com Saleh, um colega da escola. Até o dia que o
Saleh fez a ameaça que mudou a vida do pequeno Bahjet.
“Você vai ver, vou entrar no judô e bater em você!” Quando
chegou em casa, a primeira providência tomada foi pedir ao
pai que também o inscrevesse no judô da escola. O menino
rival aguentou uma semana de judô. Bahjet jamais passaria
uma semana sem treinar pelo resto da vida. E as brigas na
escola cessaram.
O judô entrou para valer na vida de Bahjet em 1988. Pela
televisão, viu a façanha do meio-pesado Aurélio Miguel nos
Jogos Olímpicos de Seul. Era a primeira vez que se ouvia o
Hino Nacional em uma cerimônia olímpica de entrega de
medalhas no judô. O primeiro ouro brasileiro era um sinal
para a garotada que treinava na época. Tudo era possível,
judocas brasileiros também podiam ser campeões. Era
exatamente aquilo que Bahjet pretendia ser na vida, um
atleta representando o país em uma Olimpíada. A partir daí,
passou a encarar um judô não apenas como uma atividade
esportiva, mas como uma oportunidade profissional.
O projeto olímpico, no entanto, tinha um problema de
ordem prática: a crise financeira em casa. A família El Hayek
desembarcou sem patrimônio nos anos 1960 no Brasil para
fugir dos conflitos no Oriente Médio. Quando Bahjet e seus
três irmãos nasceram, a situação já era outra. O mascate
que chegou vendendo roupas de cama de porta em porta
logo estava com quatro lojas de móveis e eletrodomésticos.
Mas o processo inflacionário de meados dos anos 1980
atrapalhou os negócios e, na beirada dos anos 1990, a
família estava praticamente quebrada.
Bahjet até foi protegido pelos irmãos maiores que
trabalhavam e incentivavam o sonho esportivo do caçula.
Mas isso também tinha limites. A família precisava dos
esforços de todos. O judoca passou a ajudar a mãe em uma
bomboniere no Tatuapé, enquanto estudava Administração
de Empresas na Faculdade São Judas. O primeiro emprego
formal foi aos 17 anos no KFC da Avenida Juscelino
Kubitschek, na Zona Sul de São Paulo. Fez de tudo. Atendeu
clientes no balcão, mas também empanou um bocado de
frango e limpou muita lixeira durante o ano e meio que ficou
na loja de fast-food. Não parava de treinar, qualquer brecha
era usada para melhorar o condicionamento físico e a
técnica.
O irmão mais velho prometeu segurar as pontas e as
contas para que Bahjet tentasse a seletiva olímpica para
Atlanta-1996 e Sidney-2000. Eram as suas duas melhores
chances, aos 20 e 24 anos. Na primeira, até teve uma
chance. Disputou uma seletiva que daria a oportunidade de
participar do Mundial Júnior e ser reserva em Atlanta. Era
um quadrangular na categoria meio-médio. Bahjet fez a
primeira luta contra Marcel Aragão. Confronto duríssimo,
decidido por 2 x 1 nas bandeiras a favor de Aragão. Depois,
Bahjet perderia para Paulo Segatele e Cristiano Spadone. O
reserva brasileiro em Atlanta seria Spadone e Aragão
representaria o país nos jogos seguintes, em Sydney. Bahjet
sabia que estava tecnicamente abaixo dos companheiros,
mas ficou a lembrança da luta equilibrada com um atleta
olímpico.
Em 2000, Bahjet tentou uma jogada mais arriscada
disputando na categoria leve. Não deu nem para a saída.
Mais fraco, sem conseguir perder peso da maneira correta,
perdeu já nas primeiras lutas e viu o sonho olímpico
desmoronar. Game over. Precisaria honrar o acordo com o
irmão e se virar por conta própria. Teria que buscar uma
colocação profissional e o judô viraria hobby, não a
atividade principal. Encarou a mesa de telemarketing na
Seguradora Sul-América, trabalhou em uma agência de
fotos. Com o curso de Administração concluído, partiu para
uma luta ainda mais pesada. Virou “concurseiro público” e
fez mais de 30 tentativas. Passou em cinco desses
concursos, assumindo como oficial legislativo em Santo
André, na Grande São Paulo.
O judô podia estar relegado a um segundo plano, mas
nunca esquecido. Seguia competindo sem resultados mais
expressivos, até pela dificuldade de conciliar horários de
treino com o trabalho. Ao completar 30 anos, veio a crise
existencial esportiva: seguiria buscando um lugar ao sol
apenas na categoria sênior ou se arriscaria também entre
os veteranos? Sob o ponto de vista prático, nem era uma
questão verdadeira, afinal qualquer um pode disputar
competições nas duas categorias. O drama era mais
psicológico. O simples fato de entrar no mundo veterano já
carregava certo ar de aposentadoria, de finitude. Mas foi só
uma impressão passageira. Ali começava uma nova e bem
mais proveitosa fase da vida.
A tranquilidade veio com o casamento, com uma maior
estabilidade financeira, com a consciência alimentar. Além
do trabalho como concursado, passou a administrar com a
mulher, a publicitária Daniela Paula, franquias de lojas de
chocolate. As orientações do nutricionista Felipe Donatto
tornaram a tarefa de manter o peso adequado muito menos
sacrificante. Saíram da rotina as esfihas, os chocolates e os
sorvetes para entrar uma dieta balanceada. O tatame
sentiria a diferença. Bahjet estava, de fato, lutando melhor,
chegando com mais frequência em finais de campeonato.
Em 2007, arriscou-se no Mundial de Veteranos, que estava
sendo disputado no Brasil. Ficou em terceiro lugar, só
perdendo na semifinal para um antigo rival dos tempos de
juvenil, chamado Denison Soldani Santos.
Bahjet estava mudando de patamar como naquele
longínquo Bonenkai nos anos 1980, quando recebeu o
Troféu Luís Antônio Bernardo na Academia Mito. E foi como
judoca veterano que reencontrou um velho amigo de
infância, de bairro, de treinos da mesma Academia Mito.
Cristian Cezário havia virado treinador e estava competindo
por Guarulhos. Ajudava a montar uma equipe forte de judô
para disputar os Jogos Abertos do Interior de São Paulo.
Lembrou-se de Bahjet. Sem saber, o convite e a lembrança
mudariam as vidas dos dois e de muito mais gente nos anos
seguintes.
CRISTIAN, A VOZ
Nada daquilo parecia fazer sentido. Nos últimos cinco
Campeonatos Mundiais de Veteranos, Cristian Cezário havia
chegado a cinco finais na categoria até 60 kg. Venceu as
cinco, tornando-se pentacampeão mundial. Em outubro de
2019, em Marrakesh, no Marrocos, a história era diferente,
bem diferente. Cristian entrou mancando no tatame para
disputar o terceiro lugar com o francês Abdelhak Bousnane.
Ainda não sabia, mas tinha um rompimento total do
ligamento colateral anterior do joelho esquerdo. Não
bastasse a seríssima lesão, tinha uma ruptura parcial do
ligamento ulnar do cotovelo esquerdo das lutas anteriores.
Além de mancar, não conseguia estender o braço esquerdo
para pegar a gola do oponente francês. A dor era
excruciante. Vários companheiros tinham sugerido que
Cristian desistisse da competição depois das lesões que
aconteceram nas lutas contra o finlandês Asser Kokkonen,
nas quartas, e contra Babak Hajiyev, do Azerbaijão, na
repescagem. “Você não precisa provar nada a ninguém,
você já é pentacampeão”, diziam. Cristian ouviu, pensou,
repensou, mas prevaleceu o espírito incansável. Marrakesh
era longe demais de São Paulo para desistir assim.
A luta contra o finlandês foi perdida após a lesão no
cotovelo. Restava uma possibilidade. Precisaria vencer
Hajiyev para disputar o bronze. Resolveu encarar a
repescagem com um braço só. O adversário não se
compadeceu e tentou minar o lado esquerdo do brasileiro.
Na primeira oportunidade, Hajiyev fez um golpe direto no
joelho esquerdo. O “crack” do joelho veio acompanhado da
dor e do berro de Cristian. Rompimento de ligamento. A
queda, porém, foi defendida pelo brasileiro, que caiu de
frente, evitando o ippon e o fim de luta. Cristian conseguiu
segurar a luta e levar para o Golden Score. Sabe-se lá como,
em um momento de distração do atleta do Azerbaijão,
Cristian conseguiu o golpe da vitória.
Faltava a decisão do bronze e Bousnane também não
aliviou, atacando apenas o joelho com o ligamento rompido.
O início foi dramático, o francês logo aplicou um wazari. Na
queda, o francês já entrou com a chave de braço e iria
vencer a luta. Só que ao ouvir o grito brasileiro, o juiz gritou
“matê” para parar a luta e dar a vitória ao francês. Cristian
mal conseguiu se levantar para protestar, ele não havia
batido com a mão no tatame, desistindo. O juiz apontava o
joelho como se estivesse dizendo “você não pode ser tão
louco e continuar sofrendo com um joelho desses”. Cristian
soltou um “go, go” sinalizando que queria seguir e a mesa
tirou a vitória francesa porque não havia mesmo um golpe
fatal nem uma desistência. O que havia, sim, eram
lágrimas, Cristian chorava de tanta dor no joelho e no
cotovelo.
Faltavam poucos segundos e conseguiu identificar de
longe uma voz conhecida em meio aos gritos. “Para de
chorar, vai pra luta que a medalha é sua”. Era o amigo
Bahjet, que iria lutar mais tarde por medalha. O incentivo
estava mais para bravata do que para verdade. A luta
estava praticamente decidida, o francês tinha um wazari de
dianteira e poucos segundos para segurar um adversário
que não conseguia firmar um pé, nem dobrar o braço para
atacar. Só que Bousnane cometeu um erro infantil tentando
se jogar para trás na tentativa de um golpe desnecessário.
Cristian jogou o corpo de lado e conseguiu imobilizá-lo.
Tinha empatado a luta com o wazari, só precisava segurar
20 segundos para ficar com o bronze. O francês escapou
com 19 segundos e eles foram para o Golden Score. Quem
fizesse o primeiro ponto levaria a medalha. E Bousnane
cometeu outro erro mais infantil tentando jogar o braço
esquerdo por cima do brasileiro. Cristian fez o único golpe
possível naquelas condições, ajoelhando-se e puxando o
francês para obter o wazari e o bronze.
O ginásio veio abaixo. Os franceses reclamando, diziam
que a luta poderia ter terminado na primeira queda de
Cristian se a arbitragem não tivesse parado a luta. Os
brasileiros festejando a vitória absolutamente improvável.
Sem se dar conta, Cristian ainda soltou um incorreto “É
campeão!” no dia em que havia conquistado apenas o
terceiro lugar. Só que nenhum dos cinco ouros vencidos nos
anos anteriores havia sido tão sofrido quanto esse. Bahjet
tinha razão, a medalha era mesmo de Cristian. Uma
conquista que simbolizava demais o espírito incansável do
grupo. Um espírito forjado muitos anos antes, na Zona Leste
paulistana.
Foi na Vila Aricanduva, no Colégio Vicente Pallotti, que a
brincadeira realmente começou. Aos 6 anos, Cristian
convivia com crises de asma e bronquite. A natação não
estava surtindo resultado, e alguém sugeriu o judô da
escola. Além do esporte para melhorar os problemas
respiratórios, não seria também má ideia o judô para
encorpar o garoto magrinho e fornecer alguma disciplina à
criança inquieta e acelerada. Todos os objetivos foram
alcançados. A bronquite e a asma desapareceram já nos
primeiros seguintes. Cristian estava crescendo mais forte e
a disciplina oriental do judô marcaria sua personalidade pelo
resto da vida. O professor Pedro Fernandes não dava mole.
Pegava pesado, inclusive. Quando percebia que a molecada
estava absorta em outros pensamentos no treino, dava com
a faixa nas costas dos distraídos. O golpe era fraco, mas
suficiente para a molecada se ligar nas aulas. Eram os
próprios alunos que arrastavam os pesados tatames de
palha antes e depois dos treinos. E até brigavam para ver
quem melhor fazia o serviço.
Vieram os campeonatinhos, os festivais, sempre ao lado
do amigo Bahjet, que também treinava com o professor
Pedro. Era uma alegria treinar. O problema estava em casa.
O pai de Cristian, Salvador Cezário, tinha uma fabriqueta de
aviões de plástico que adernava numa pane financeira. Não
deu outra. O negócio faliu, e o aperto foi geral. Cristian
precisou ir para uma escola pública, e o judô, que também
era pago à parte, seria mais um dos cortes no orçamento da
família Cezário. No entanto, o professor de judô resolveu
apostar em Cristian. Talvez por vislumbrar potencial no
menino, Pedro permitiu que ele seguisse treinando no
Vicente Pallotti, mesmo sem estar matriculado na escola.
Mais do que isso, convidou Cristian para treinar na Mito,
uma academia onde também dava aulas na Mooca, também
Zona Leste paulistana. Ali o judô era mais forte e Cristian
poderia evoluir mais rapidamente.
A intuição do professor Pedro se confirmava. Aos 11
anos, passou a se destacar na sua categoria. Era o primeiro
grande salto técnico. O pequeno faixa verde se classificou
bem no campeonato estadual e já ficou em segundo lugar
numa seletiva para a disputa do Brasileiro. Em toda a
competição de que participava ficava no mínimo entre os
três melhores. Com o crescimento técnico, apareciam o
comprometimento e a garra. A Academia Mito costumava
seguir a tradição japonesa do kangueiko, uma espécie de
provação para separar os mais fortes dos mais fracos. A
palavra é a contração de frio (kan) com treino (geiko). Em
português claro, um treino de sacrifício no inverno para ver
quem gostava mesmo de judô.
Por uma semana inteira, os voluntários que encaram o
kangueiko precisavam despertar de madrugada e com o frio
de julho para um treinamento que ia das 5h até as 7h da
manhã. Vários desistiam no primeiro ou no segundo dia, até
porque o treinamento era mais pesado do que de costume.
O professor Pedro até oferecia carona às 4h15 da matina em
seu fusquinha rebaixado para chegar na Mito. Quem
aguentasse os sete dias seguidos, ganhava um troféu no
final. Por quatro anos seguidos, Cristian encarou os
kangueikos até o final. Deixou claro que ele queria, e muito,
estar do lado dos fortes.
Um exemplo dessa determinação toda aconteceu em
1993, na primeira viagem para disputar um Campeonato
Paulista em Araçatuba, interior de São Paulo. O pai de
Cristian juntou o pouco que tinha na carteira e comprou
passagens de ônibus. Seu Salvador pouco sabia de judô,
desconhecia regras, táticas, mas entendia tudo de filho.
Havia percebido a importância do judô para Cristian e fazia
o sacrifício que precisasse ser feito pelo sonho do garoto.
Foram 10 horas de viagem de ônibus e um hotel caindo aos
pedaços em Araçatuba. Era o que o dinheiro podia pagar
naqueles tempos. A noite foi péssima na espelunca, e o dia
seguinte prometia mais dureza. A organização não primava
pelos detalhes e programou nove lutas durante um dia
inteiro para quem chegasse na disputa por medalhas. Nove
lutas em 13 horas já seria um absurdo para adultos bem
preparados. Para crianças, era um disparate. Cristian, então
com 13 anos, começou lutando às 9 horas da manhã e só foi
disputar o bronze às 22h. Venceu e até hoje não se esquece
dos gritos do pai na grade. Na viagem de volta, mais dez
horas de ônibus até São Paulo. O perrengue todo tinha
valido a pena. Aos 13 anos, se sentia como um grande
atleta.
O segundo salto técnico veio em 1997. Pedro resolveu
abrir a sua academia na Vila Carrão e sugeriu que Cristian
fosse com ele. O convite era perfeito. A Vila Carrão era o
bairro vizinho da Vila Aricanduva, onde morava, muito mais
fácil de treinar, ainda por cima. O faixa marrom Cristian,
postulante à preta, seria uma espécie de diretor técnico da
Academia Judô Fernandes. Para alguém que estava
entrando na Educação Física da Faculdade São Judas, ajudar
nos treinos e aprender com um mestre já equivaliam a um
curso paralelo. Os resultados vinham rapidamente. Vencia
tudo o que participava. Pela São Judas, foi bicampeão da
competição entre faculdades de Educação Física, além de
campeão do Paulista Universitário.
Estava lutando bem, mas, de novo, enfrentava
problemas financeiros da família. O pai tinha entrado num
ramo de negócio arriscado, de compra e venda de carros.
No primeiro ano de faculdade, até foi possível pagar as
mensalidades e permitir que Cristian conseguisse apenas
treinar e estudar na São Judas. Só que os boletos não pagos
começaram a se acumular e o jeito foi ir atrás de uma bolsa
de 50% na distante Universidade Cruzeiro do Sul, em São
Miguel Paulista, periferia extrema da capital. A vida
complicou. Para bancar a outra metade da faculdade,
conseguiu um emprego de vendedor no departamento de
eletrodomésticos do Hipermercado Extra de Guarapiranga,
na outra ponta da cidade. O triângulo casa-trabalho-
faculdade não fazia o menor sentido logístico. Eram ao
menos seis horas diárias no trânsito. Saía 6h45 de casa para
estar às 8h no Extra. Trabalhava até as 16 horas, chegava
em casa depois das 18h. Dali corria para mais uma hora e
meia de trânsito até São Miguel Paulista. No dia seguinte,
tudo de novo.
A tortura durou apenas um ano, até porque o salário do
supermercado também não dava conta de pagar a
mensalidade. Foi necessário trancar a faculdade. O judô
despencou no período. Só tinha a sexta-feira de folga e era
nesse dia que treinava forte. Só que com uma única sessão
semanal era impossível manter-se em alto nível. Foram
cinco anos e meio andando, digamos, de lado. O judoca
rápido tinha ficado lento. O judoca que disputava até 60 kg
agora mal conseguia baixar de 74 kg. Para tentar subir na
vida, chegava 10h no trabalho e saía perto de 22h. O
espírito lutador do judô havia sido transportado para a vida
profissional. Passou a estar sempre entre os melhores
vendedores, recebendo as comissões mais polpudas.
Acabou se tornando o “campeão da extensão de garantia”
nos eletrodomésticos, algo muito valorizado e bem
remunerado no mundo das vendas.
No trabalho, crescia. Batia meta com a mesma facilidade
com que derrubava oponentes no tatame anos antes. Virou
supervisor e depois gerente de setor. Duro era se olhar no
espelho. Estava com 24 anos e pesava 15 kg a mais do que
deveria. Seguia treinando e competindo, só que sem
performance. Foi para uma competição e apanhou feio.
Chega. Era a hora de mudar tudo. Implorou para que fosse
demitido. Fez as contas com o seguro-desemprego que
receberia: tinha seis meses para voltar a ser o que era.
Foram seis meses de treinos diários, aí já com 10 kg a
menos. Não era mais o campeão dos tempos de juvenil,
mas, no adulto, estava competitivo a ponto de disputar
medalhas.
Conseguiu emprego como vendedor de tubos de aço,
depois numa empresa de refrigeração e por fim numa
importadora de câmeras de segurança. Os treinos entraram
de novo na rotina semanal. Numa conversa com um amigo
judoca, ouviu uma proposta que indicaria um novo caminho
profissional. Haveria uma seletiva para definir a equipe de
Guarulhos que disputaria os Jogos Abertos do Interior. A
competição está para o esporte amador brasileiro assim
como as Olimpíadas estão para o planeta. É uma festa
grandiosa, mais de 200 cidades brasileiras se engalfinham
todo o ano para vencer o torneio disputado em uma única
sede. São mais de 20 modalidades e bons desempenhos
esportivos rendem dividendos políticos aos governantes
municipais. Vale a pena investir, reunir os melhores atletas
possíveis. Era o que estava fazendo Guarulhos, tentando
qualificar sua fraca equipe de judô.
Cristian venceu. Iria se tornar o novo representante
guarulhense na categoria até 66 kg. Só que os atletas locais
reclamaram do forasteiro, e o coordenador da prefeitura
tentou acomodar os descontentes com uma nova seletiva.
Seria mais uma chance para os reclamões locais garantirem
os seus lugares. Cristian aproveitou a nova seletiva e
chamou os velhos amigos da Academia Mito. Vieram Bahjet
El Hayek, Renato Ramos, Humberto Alonso, Robson Foriato,
Rogério Gonçalves. Não deu outra. Guarulhos tinha uma
nova e bem mais competitiva equipe. Os valores pagos para
cada atleta variavam entre 300 e 500 reais, nada que
mudasse a vida de ninguém. Só que no paupérrimo esporte
amador brasileiro, qualquer ajuda era um estímulo e tanto
para treinar mais forte. Já na edição seguinte dos Jogos
Abertos do Interior, o antes inexpressivo judô de Guarulhos
conquistou a terceira posição. Bahjet, que costumava se
destacar pela liderança, se tornava também o treinador da
equipe.
No primeiro campeonato com Bahjet como treinador,
uma zebra cruzou o caminho de Guarulhos. Cristian perdeu
sua primeira luta, seu adversário perdeu a seguinte e não
houve como seguir na competição pela repescagem. Isso
era raro, Cristian dificilmente deixava de disputar medalha
nessa época. O resto do time de Guarulhos foi bem e a
derrota de Cristian não pesou no quadro geral. Só que o
coordenador foi até Bahjet e pediu a cabeça do atleta da
categoria até 66 kg. Cristian, que tinha montado todo o time
vencedor, estava prestes a ser demitido. Bahjet, porém,
pegou pesado. “Se demitir o Cristian, vamos todos embora
daqui”. Cristian seguiu, ganhou tudo dali pra frente e os
laços de amizade ficaram ainda mais fortalecidos.
Os bons resultados da equipe pavimentaram o novo
caminho de Cristian. Guarulhos ofereceu uma bolsa integral
para retomar o curso de Educação Física na Universidade de
Guarulhos. Com o salário que recebia para lutar e ainda
morando na casa dos pais, talvez fosse possível viver de
esporte. Deixaria de vender câmeras de segurança,
ganharia menos dinheiro, mas estava investindo naquilo
que mais amava. A decisão não foi simples, mas largou o
emprego para focar tudo no judô. Teria de dar aulas para
complementar o orçamento. E assim fez. Partiu para
escolinhas de judô, academias de ginástica, colégios. Em
um determinado momento, ensinava em sete escolas ao
mesmo tempo, Colégio IED Reino do Ensino, na Vila Talarico;
Colégio Paulista, na Mooca; Mirante, Castelinho, Kinder
Garden, no Tatuapé. A rotina diária virou gincana para
chegar no horário em cada compromisso.
Os rendimentos somados bastavam para pagar as
contas, sem sobras, nem luxos. Por isso nem levou muito a
sério quando Eduardo Baradel, companheiro de treinos na
Mooca, mencionou o Mundial de Veteranos de 2011 em
Frankfurt, na Alemanha. Era a primeira vez que o evento era
organizado pela Federação Internacional de Judô (FIJ), e isso
dava mais credibilidade à categoria. Cristian tinha
completado 30 anos, já estava disputando campeonatos
como veterano. Só que uma viagem internacional estava
completamente fora de sua realidade. O paulistano da Zona
Leste tinha andado uma única vez de avião, em um passeio
para Brasília nos tempos de vendedor do Extra. Baradel
comentou sobre uma possiblidade de esquema. Tinha uma
amiga que trabalhava na TAM que poderia conseguir uma
passagem para Frankfurt, ida e volta, por 1.099 reais. Era
realmente barato, sobretudo pelo significado de tudo. A
viagem valia um Mundial de judô, apenas e tão somente
isso! Sem falar uma única palavra de alemão e umas três ou
quatro de inglês, Cristian decidiu se atirar na empreitada.
Do Brasil, alugaram um quarto no hostel mais em conta que
a internet sugeriu.
Já na chegada, a primeira grande dificuldade. Como sair
do aeroporto? Sabiam que precisavam chegar à estação
central de trem e que havia uma linha de trem do aeroporto
para o centro. Sem saber como comprar o tíquete, foram
passando na entrada sem catraca. Só depois veio a
vergonha, quando perceberam que viajaram sem pagar. Nos
dias anteriores ao Mundial, boca fechada. O amigo Eduardo,
que era rechonchudo e disputaria no peso-pesado, estava
mais solto, comia o que aparecesse pela frente. Mas Cristian
chegou na Alemanha com pouco mais de 60 kg, e o plano
era disputar na mesma categoria dos bons tempos de
sênior. De quebra, economizaria se mantivesse a boca
fechada.
Na véspera da competição, a balança não revelou
surpresas. Cristian bateu o peso, ficou abaixo dos 60 kg,
tudo certo. Seguiu na sala só observando outros atletas,
imaginando quais deles competiriam em cada categoria.
Havia um russo fortinho que estava devorando um
sanduíche enorme antes da pesagem. Cristian desconfiou
que ele talvez pudesse estar na sua categoria e ficou de
olho na sua pesagem. O controle da organização era um
tanto frouxo. Cada atleta chegava sozinho na balança,
anotava o próprio peso e informava o número em outra
mesa. O russo chegou perto da balança e deu meia volta.
Desistiu, talvez temendo más notícias que o obrigariam a
competir em uma categoria acima. No entanto, informou o
seu suposto peso na outra mesa. Cristian chegou a pensar
em denunciar a tramoia a alguém, mas a dificuldade de
comunicação era maior que seu impulso. E, de mais a mais,
não tinha certeza se o russo estaria mesmo na sua
categoria.
No dia seguinte, a competição. Mesmo sem conhecer os
adversários nem ter feito uma preparação específica para a
competição, Cristian se sentia bem. Na primeira luta,
despachou um alemão. Na segunda, um francês, as duas
por ippon. Se vencesse um outro francês na terceira já
estaria na final. E não deu outra, vitória por ippon. Cristian
faria a primeira final do dia, já que estava na categoria dos
mais jovens (M1, de 30 a 34 anos) e mais leves (até 60 kg).
Aquilo tudo era muito assustador. Nas eliminatórias, muita
gente lutava ao mesmo tempo, sons variados ecoavam pelo
ginásio. Nas finais, as lutas das outras áreas eram
interrompidas, a iluminação dirigida apenas para o tatame
principal, todos os olhares na final do M1-60 kg. E contra
quem seria a decisão do ouro? Claro, contra ele, o russo
comilão da véspera.
Cristian tinha observado as lutas anteriores do russo,
mas só depois conheceria o histórico dele. Rustam
Mukhametdinov tinha vencido todos os confrontos
anteriores por ippon, assim como o brasileiro. O brasileiro
descobriu que o russo tinha vencido os três Mundiais
anteriores, dominava totalmente a categoria. A luta mal
tinha começado e Cristian conseguiu arrancar a mão do
russo de seu quimono. Achou que estava em vantagem,
encheu-se de confiança. Inexperiente, pouco conhecia do
judô da Rússia. Não sabia que os lutadores de lá ficavam
confortáveis ao reduzir a distância e arremessar o oponente
para trás. Quando Cristian preparou o golpe,
Mukhametdinov colou no seu corpo e o arremessou para o
ippon do título. Menos de um minuto e a luta estava
resolvida.
A decepção não foi das maiores. Fazer a primeira viagem
internacional na vida e medalhar já na estreia de um
Mundial era muito mais do que o garoto da Vila Aricanduva
poderia sonhar. Além de tudo, foi logo convencido do
tamanho de sua conquista por outro atleta brasileiro que
também estreava numa competição europeia. Rodrigo
Motta, 10 anos mais velho e 13 quilos mais pesado, tinha
sido eliminado nas quartas de final e torcera furiosamente
pelo compatriota na final do M1-60 kg. Os dois brasileiros
tinham vários amigos em comum, mas estavam se
conhecendo apenas na Alemanha. Rapidamente
perceberam que compartilhavam valores semelhantes.
Pensavam o judô de forma parecida, eram incansáveis na
busca de vitórias. Mais do que uma amizade, poderiam
construir juntos algo relevante no futuro.
RODRIGO, O CÉREBRO
Fim de tarde em Curitiba. Rodrigo Motta tinha encarado
mais um dia pesado de trabalho. Havia desembarcado
meses antes na capital paranaense com a complicada
missão de reposicionar a Nutrimental. A empresa fornecia
merendas para o governo e quase quebrou quando os
pedidos sumiram. Tinha entrado no incipiente mercado de
barras de cereal que bombava entre esportistas nos Estados
Unidos, mas eram quase desconhecidas do grande público
brasileiro. O carro-chefe da empresa se chamava Chonk e
era um retumbante fracasso. O nome não ajudava. Fácil de
ser confundido com o chocolate Chokito, da Nestlé, ninguém
entendia o que diabo era aquela barrinha de nome
esquisito.
Rodrigo foi contratado para ser gerente de marketing e
para cuidar de uma área que juntava duas de suas paixões,
esporte e gestão. Precisava remontar todo o departamento
de marketing e fazer a marca Nutry, que substituiria a
Chonk, acontecer, e isso tudo com recursos escassos. A
estratégia foi preparar a alimentação de atletas radicais que
estavam ficando famosos, como o alpinista paranaense
Waldemar Niclevicz, que já havia escalado o Everest, e o
navegador solitário Amyr Klink, que se aventurava nos
mares mais inóspitos. Se aquelas barrinhas davam energia
para malucos romperem limites, imagine o que elas não
fariam auxiliando no supino da academia? Essa era a ideia
do projeto.
Para encarar a nova cidade, Rodrigo deu logo um jeito de
achar um lugar para treinar. Tornou-se sócio-atleta do Clube
Curitibano, um dos principais no esporte competitivo do
estado. Disputava os torneios que conseguia e chegou a ser
vice-campeão estadual por faixas representando o clube. Ao
final do dia 5 de outubro 1998, saiu do trabalho para um
treino despretensioso no clube. Faltava parceria, e Rodrigo
precisou treinar com quem estava disponível no tatame. No
caso, um garoto alto e obeso de 13 anos. O que sobrava em
quilos faltava em técnica e experiência. Nos primeiros
minutos de treino, o menino fez o que não se faz no judô:
pisou no pé esquerdo do oponente e jogou o imenso
corpanzil por cima. Rodrigo sofreu um arrancamento, uma
luxação de membro inferior. Uma lesão tão grave quanto
rara. Segundo os registros da literatura médica, apenas
mais uma luxação de membro inferior foi relatada no ano de
1998. Um combatente pisou numa mina na Bósnia
Herzegovina e perdeu a perna. No caso de Rodrigo, a causa
da lesão não foi uma mina terrestre, apenas um bípede sem
noção. Com o pé preso ao chão e bem mais de 100 kg
pressionando o resto do corpo na outra direção, o resultado
foi semelhante a uma bomba. Rompeu o ligamento cruzado
anterior (LCA), o ligamento cruzado posterior (LCP), o
ligamento colateral lateral (LCL) e o nervo ciático.
Tinha sobrado pouco do joelho. Rodrigo urrava de dor no
chão. Alguém foi chamar o médico do clube. Não havia, o
clube não tinha médico no período noturno. Ligaram para
uma ambulância que não chegava. Não se tratava apenas
da dor dos ligamentos rompidos, que já era poderosa.
Houve também um arrancamento de 12 centímetros do
dolorido nervo ciático. Vendo aquela cena dantesca, os
outros judocas decidiram rasgar o tatame e improvisaram
uma maca para levá-lo ao estacionamento do clube. Era
preciso transportá-lo logo a algum lugar para que fosse
atendido. A ambulância estava chegando naquele momento
e Rodrigo foi finalmente removido para uma clínica de
fraturas.
O médico Sílvio Maschke foi chamado e rapidamente
percebeu o tamanho do estrago. Os ligamentos anterior e
posterior precisariam ser reconstruídos, cirurgia trabalhosa
para os dias seguintes. E havia uma preocupação grande
com o rompimento do ciático, já que ele é responsável por
mobilidade e sensibilidade da perna. Medicado, Rodrigo
passaria a noite no hospital para que nos dias seguintes
ocorresse a cirurgia. Telefonou para contar as más notícias
ao pai e ainda tomou uma ensaboada. “Para com isso de
judô, Rodrigo, cuida do seu trabalho”. Para Ivan Martins
Motta, esporte era um complemento da vida. Já para o filho,
a essência. O incômodo da situação toda piorava com o frio.
Como Curitiba estava gelada naquela noite! Pediu um
cobertor, mas mesmo assim continuava com muito frio,
tremendo. A enfermeira estranhou, afinal era 5 de outubro,
a temperatura estava agradável. Doutor Sílvio foi chamado
e subiu correndo ao quarto. Tirou a coberta de Rodrigo e
não deu outra: a perna estava enorme, roxa. Além dos três
ligamentos e do ciático, o judoca também teve a artéria
poplítea rompida. Precisaria fazer na mesma hora uma
ponte de safena de membro inferior para evitar a perda da
perna esquerda.
Nove horas e meia depois, Rodrigo despertou da
anestesia na UTI. O primeiro rosto que veio à mente foi de
Lars Grael. Um mês antes, numa regata no Espírito Santo, o
medalhado velejador teve a perna direita arrancada pela
hélice de uma lancha. Apavorado, Rodrigo apalpou a perna
e constatou que ela ainda estava lá. Desconfiava que seria
só o início de uma maratona de cirurgias, hospitais e
intermináveis sessões de fisioterapia. Mas seguia com duas
pernas, isso era um alívio, haveria de se recuperar. Para
quem sempre respirou e sonhou com esporte, já era um
começo seguir com as duas pernas. Encarou como se fosse
uma espécie de luta de estreia num campeonato em que
não conhecia sua chave. Mas o que Rodrigo conhecia bem
era sobre sua trajetória até chegar ali. Desde a infância, sua
história de vida e profissional esteve sempre misturada com
os desafios no esporte.
E foi justamente o pai quem despertou a veia esportiva
de Rodrigo. No final dos anos 1960, associou-se à Sociedade
Harmonia de Tênis para praticar esporte. Quando os três
filhos nasceram, foram incentivados a escolherem a
modalidade que bem entendessem. O mais velho, Rodrigo,
começou pela natação, foi para o polo aquático, mas se
encantou mesmo com o judô. Não era grande, nem
musculoso. O que tinha era um espírito competitivo pra lá
de aflorado. Precisava entrar para vencer e o judô era
extremamente generoso com quem tivesse disciplina e foco
nos treinamentos. Bastava ser aplicado para entender as
técnicas e entrar com garra nas lutas que os resultados
viriam. E vieram.
Dos 10 aos 15 anos, Rodrigo competiu dentro e fora do
Harmonia. Internamente, reinou. Vencia quase sempre as
competições. Chegou a ser o melhor atleta do clube em
1985 e o melhor da década de 1980 pelo ranking interno. Só
que o clube, localizado nos Jardins, coração da elite
paulistana, não era exatamente uma potência esportiva no
judô. Quando Rodrigo perdeu vários colegas de treino que
estavam partindo para a faculdade e deixando o esporte de
lado, o Harmonia ficou pequeno e sem graça. Foi quando o
pai sugeriu que conhecesse o lugar onde fazia massagem.
Ivan frequentava a academia de Chiaki Ishii e parecia que o
judô praticado ali era até outro esporte. E não era apenas
uma impressão. Sensei Ishii era uma lenda brasileira. Havia
conquistado a primeira medalha olímpica do judô brasileiro
em Munique, em 1972. Foi quase um “pai fundador” do judô
no país
Rodrigo logo se entendeu com o mestre. Estava ávido
por aprender novos golpes. Ishii adorava alunos curiosos e
destemidos. Rodrigo sempre teve a vontade máxima e
muita disciplina; agora tinha a técnica. Foi um salto de
qualidade. Passou a disputar competições maiores, e seria
seis vezes campeão paulista universitário. O crescimento no
esporte, porém, criou um conflito em casa. Estava
empolgado para seguir na área, se imaginando fazendo o
curso de Educação Física ou mesmo entrando no Exército.
Mas não era bem o que Ivan Motta imaginava para os seus
filhos. O planejado era uma formação acadêmica mais
tradicional, de preferência em cursos como Direito,
Economia, algo assim. Rodrigo acabou fazendo um teste
vocacional e passando no vestibular de Administração
Pública na Fundação Getúlio Vargas (FGV).
No primeiro dia de aula, foi com o pai conversar com o
diretor da faculdade, que perguntou a Rodrigo o que ele
esperava do curso. “Esporte, esporte, esporte”, respondeu
sorridente antes de tomar o cutucão do pai. A expectativa
não seria frustrada. A FGV não tinha qualquer tradição
esportiva e a sua associação esportiva, a Atlética, tinha
acabado de ser fundada em 1987. Isso até a chegada de
Rodrigo... Logo se aproximou dos fundadores para se tornar
o presidente, em 1989. E, de cara, deu um jeito de
organizar um primeiro confronto com a rival FEA, a Faculdade
de Economia e Administração da Universidade de São Paulo.
Foi divertido, mas era pouco. Queria mais, queria ser
relevante nas competições universitárias, queria ir para as
cabeças no maior número possível de modalidades. Só que
percebeu que precisaria arrumar antes a casa.
A Atlética da FGV acumulava uma dívida com a Federação
Universitária Paulista de Esportes e por isso não podia
competir. A solução foi vender todos os aparelhos de sua
academia de ginástica para pagar a dívida. Criaram uma
carteirinha e passaram a cobrar mensalidade dos sócios da
Atlética. A carteirinha dava descontos para cursos e
eventos, e a principal mudança: quem quisesse competir
em algum esporte precisaria ser sócio. Criaram um jornal
para divulgar os benefícios para quem se associasse e,
assim, a Atlética saldou suas dívidas.
O passo seguinte foi fortalecer cada uma das
modalidades. Rodrigo convenceu seu pai, que tinha
trabalhado na Bolsa de Valores de São Paulo, a batalhar um
patrocínio para o judô na Bolsa de Mercadorias de São
Paulo. O presidente anterior da Atlética, Rodrigo Coube, era
um dos herdeiros da Tilibra, que fazia material escolar.
Rodrigo Coube jogava basquete. A Tilibra passou a
patrocinar o basquete da FGV. Daniel Pinsky jogava vôlei e
tinha relações com a família Mindlin, dona da Metal Leve.
Pronto, assim o vôlei da Atlética também estava
devidamente patrocinado. Com recursos dos “paitrocínios”,
os resultados vieram de imediato. Em 1989, a Atlética da
FGV, que até então era uma espécie de Íbis do esporte
universitário, terminaria em 8º lugar entre as 34 faculdades,
melhor classificação obtida até hoje. Mais importante ainda
foi o resultado no tal FGV versus FEA, o “clássico” entre as
duas faculdades de Economia e Administração. A FGV
ganhou por 14 x 13 nas modalidades, Rodrigo foi um dos
que venceu pelo judô no último dia de competição.
No embalo da rivalidade entre estudantes de áreas
simulares, Rodrigo estava entre os criadores das
Economíadas, as olimpíadas das oito principais escolas de
Economia e Administração de São Paulo. Em 1991, a FGV

pode não ter ficado com o título, mas o judô levou ao menos
o ponto da modalidade no cômputo geral. A fase técnica era
boa. Rodrigo era competitivo, a ponto de ter conseguido
algumas vitórias importantes. Na final do Paulista
Universitário de 1990, por exemplo, Rodrigo foi campeão
derrubando na final ninguém menos que Henrique
Guimarães, que, seis anos depois, conquistaria em Atlanta o
bronze olímpico para o Brasil.
A primeira oportunidade profissional veio logo na
sequência. Rodrigo estava se formando, com uma boa
experiência esportiva e, principalmente, de gestão da
Atlética da FGV. Surgiram três propostas, cada uma com seus
atrativos. Uma da construtora Camargo Corrêa, que parecia
assegurar estabilidade futura, outra do Grupo Garantia, que
vinha com o fascínio do mercado financeiro, e a outra da
Procter & Gamble (P&G), que oferecia um mundo de
possibilidades com suas mais diversas marcas. A opção foi
pela P&G. Lá, Rodrigo conheceria Manoel Machado, seu
chefe, mentor, carrasco e, anos mais tarde, padrinho de
casamento.
Manoel, com uma rígida formação militar, cercou-se de
jovens no departamento que montava na área de vendas de
São Paulo. Dois deles vieram da FGV, Rodrigo e seu irmão
Alfredo Motta, dois anos mais novo. Ele tirava o couro dos
inexperientes vendedores. No início de 1992, encomendou
aos irmãos um relatório a ser entregue na sexta-feira,
véspera do Carnaval. Já se passava das 16 horas e nada de
o relatório aterrissar em sua mesa. Manoel descobriu com a
secretária que os irmãos tinham saído mais cedo da
empresa. Telefonou e soube pela avó Laís que os netinhos já
tinham partido para a casa de praia da família em São
Sebastião, no Litoral Norte de São Paulo. Nem deu tempo de
Manoel manifestar grande desapontamento, pois a
despachada avó já tinha a solução. Ligou para a Polícia
Rodoviária de São José dos Campos, no meio do caminho, e
passou a placa do carro dos fujões. A dupla retornou à
capital e passou parte do feriado terminando o relatório,
que foi por fim entregue.
Se o Carnaval de 1992 ficou marcado como um mico
completo, o episódio se mostrou fundamental na trajetória
profissional de Rodrigo. A partir de então tornou-se
comprometido com prazos e metas. Numa outra sexta-feira,
semanas depois, o chefe chamou Rodrigo em sua sala. E o
descascou. “Você é moleque, porra-louca, faz coisas de sua
cabeça”. Rodrigo empalideceu, esperou pela demissão.
“Mas tem tudo para dar certo. Antes, precisa virar homem,
precisa amadurecer. Eu vou transferir você para Porto
Alegre na segunda-feira. Tem cinco minutos para decidir” No
susto, topou. Venderia a linha da Phebo, o xampu Pert Plus e
as fraldas Pampers. O convite era um voto de confiança
travestido de provocação. Sozinho, em um ambiente
desconhecido, Rodrigo tinha tudo para amadurecer. Ou não.
O espírito competitivo do judô e a criatividade para achar
soluções na Atlética da FGV se mostraram úteis na nova
missão em terras gaúchas. As metas de vendas na Procter
eram agressivas e estimuladas por “desafios” e
“concursos”. Não era apenas a remuneração variável que
estimulava a voracidade dos vendedores, mas o
reconhecimento entre os pares. Manoel Machado fazia
questão de premiar e destacar publicamente os melhores
vendedores. Tinha troféu, cerimônia e pompa para quem
vendesse mais Pampers e assemelhados. Rodrigo Motta
adorava tudo aquilo e entrava de cabeça em cada um dos
desafios.
Em um desses concursos, disputou pau a pau com um
representante de Minas Gerais o título de melhor vendedor
do ano. A briga estava praticamente empatada, os números
eram divulgados diariamente, e Rodrigo estava com uma
vantagem mínima até o último dia da competição. O maior
cliente da sucursal da Procter era o Atacado Macroeconomia
de Santo Ângelo, região das missões gaúchas. Naqueles
dias, no entanto, havia uma restrição de gastos na empresa,
viagens e hospedagens estavam proibidas, mas Rodrigo não
teve dúvidas. Acordou às cinco horas da manhã, pegou o
próprio carro e dirigiu seis horas para tentar fechar um
pedido. Não conseguiu convencer o comprador – que não
precisava de produto algum naquele momento –, e voltou
resignado para Porto Alegre em mais seis horas de estrada.
Para sua sorte, o vendedor mineiro também não conseguiu
nada naquele último dia e Rodrigo terminou como o melhor
vendedor.
Outra situação curiosa aconteceu no “Concurso Colônia
Seiva de Alfazema”. A chance de vitória do escritório
gaúcho era próxima de zero. Na época, o produto vendia
feito água na Bahia. Em shows, a banda Cheiro de Amor
chegava a jogar a essência no público com uma mangueira.
Ninguém vendia tanto quanto os baianos. Rodrigo sabia do
tamanho da encrenca, mas a vontade de ganhar era maior.
Precisava de uma sacada. Percebeu, caminhando pela Rua
Voluntários da Pátria, no centro de Porto Alegre, que
existiam várias lojas de produtos para religiões de matriz
africana. Lembrou-se dos despachos nas esquinas. Rodrigo
não vendia velas, nem galinha, nem farofa. Mas tinha uma
boa colônia para oferecer. Talvez o preço da Seiva de
Alfazema nem fosse competitivo nesse mercado. Só que
ninguém da área de colônias atendia às lojas de produtos
para umbanda. Rodrigo foi o primeiro, vendeu até dizer
chega e ganhou o improvável concurso.
O caso Seiva de Alfazema era a materialização do
conceito que Rodrigo mais defendia em vendas: atitude,
visão, estratégia, execução e trabalho em equipe. De nada
adiantava ter uma boa ideia se ela não fosse bem planejada
e nem fosse impecavelmente executada. A filial mexicana
da P&G havia lançado o xampu campeão de vendas Pert
Plus em versão sachê. Sucesso no México, fracasso no
Brasil. O tamanho reduzido parecia não fazer sentido para
os brasileiros. Outro concurso foi lançado entre os
vendedores para tentar solucionar o problema que o
marketing não conseguia resolver. Rodrigo, de novo, tentou
fugir do raciocínio de varejo tradicional. Quem usa shampoo
em pequenas quantidades? Motéis. E lá se foi Rodrigo
percorrer a Zona Sul da cidade batendo de porta em porta.
Acompanhado de um vendedor, ouvia buzinadas e todo o
tipo de gracinhas quando chegava com outro rapaz no
carro. Achou mais graça ao descobrir que tinha vencido o
concurso.
O entusiasmo, a criatividade e os resultados na filial
gaúcha renderam a Rodrigo um novo convite. Seu chefe
Manoel Machado estava sendo contratado para comandar a
italiana Ferrero, que montava a sua operação no Brasil.
Resolveu se cercar dos seus homens de confiança em
marketing e vendas, e Rodrigo era um deles. O convite
significava a volta para São Paulo e também a volta aos
treinos de alto nível. Antes de mudar para Porto Alegre,
Rodrigo frequentava a academia de Chiaki Ishii na Lapa,
Zona Oeste de São Paulo, e treinava diretamente com o
sensei Rioiti Uchida. Mas os negócios de Ishii não andavam
bem e ele precisou fechar quatro das cinco unidades,
ficando apenas com a sede do bairro da Pompeia. Uchida
acabou ficando com a academia da Lapa. E pela afinidade
com seu professor e pela facilidade geográfica, já que
morava perto, Rodrigo optou por continuar treinando com
Uchida na Lapa.
Na Ferrero do Brasil, a missão era tão desafiadora quanto
vender sachê para motel. Um dos produtos que a empresa
se propunha a lançar no país era um sucesso no resto do
mundo. Um ovo de chocolate chamado Kinder Ovo, com um
brinquedinho dentro. Uma novidade no Brasil. Mais inovador
ainda era tentar vender ovo de chocolate o ano todo e não
apenas no período da Páscoa. Foi complicadíssimo
convencer lojistas brasileiros a venderem um produto com
conceito tão diferente.
Outro problema era a própria resistência do produto. Na
Itália, matriz da Ferrero, as temperaturas são bem mais
baixas do que no Brasil. Era preciso fazer um teste de
campo para ver como o Kinder Ovo resistiria em um
supermercado sem refrigeração em algum grotão quente do
Brasil. Rodrigo tinha autonomia para escolher o mercado
teste e resolveu unir o desafio profissional com uma
questão pessoal. No ano anterior, quando ainda morava em
Porto Alegre, tinha passado o carnaval em Porto Seguro e
conheceu uma moça. Acabaram se desencontrando, ficou
apenas com o endereço dela. Tentou algumas cartas, a
conexão fracassou. Sintya era de Montes Claros, Minas
Gerais, um lugar indiscutivelmente quente. A cidade estava,
portanto, escolhida.
Rodrigo fez tudo ao seu estilo, sem avisar nada para a
menina que conhecera em uma única noite na Bahia.
Chegou a Montes Claros e tocou a campainha. A mãe de
Sintya deixou o desacautelado forasteiro entrar. Um ano
após a visita inesperada, Rodrigo voltava para Montes
Claros com um terno na mala. O chefe e agora padrinho
Manoel também estava no ônibus que transportou os
convidados do casamento de São Paulo para Montes Claros.
Foram morar em São Paulo e, logo depois, em Curitiba,
para dar o passo seguinte na sua caminhada profissional na
Nutrimental. A terrível lesão no Clube Curitibano, sobre a
qual contamos no início deste capítulo, marcou o período
em que trabalhou no Paraná. Foram cirurgias, dores,
limitações, uma reabilitação que parecia fazer a vida andar
em câmera lenta. Todos os médicos que analisavam o caso
davam a entender que o paciente deveria estar satisfeito
por contar ainda com duas pernas. Convencido pela mãe,
Maria Alice, Rodrigo voltou a São Paulo para se consultar
com um médico famoso no mundo do judô. Wagner
Castropil foi judoca de alto rendimento e participou da
equipe brasileira nos Jogos de Barcelona em 1992.
Apaixonado por medicina, esporte e performance, montou o
Vita Ortopedia e Fisioterapia, uma das principais referências
brasileiras em medicina e reabilitação esportiva. Rodrigo
chegou ao consultório, mais de seis meses após a lesão, de
cadeira de rodas. Ao examinar sua perna e ver os exames,
Castropil foi sincero. “A situação é feia, você ainda precisará
de várias cirurgias. Mas você quer voltar a lutar? Vamos
fazer um plano pra isso. É difícil, mas dá.”
Castropil foi o primeiro médico a mencionar o retorno ao
esporte. Era preciso, portanto, dar um jeito de voltar a
morar em São Paulo. Um ex-colega de FGV, José Vicente
Marino, tinha um convite para trabalhar nas Refinações de
Milho Brasil, que depois seria incorporada pela Unilever. A
vaga era em Curitiba, mas a matriz estava em São Paulo.
Em seis meses, Rodrigo já tinha conseguido sua
transferência para a capital paulista. Ficaria perto do Vita e
poderia fazer o tratamento. No final das contas, foi um
calvário de 12 cirurgias. Quanto ao rompimento do nervo
ciático não houve jeito. Rodrigo perdeu a sensibilidade do
joelho esquerdo para baixo. No pé, apenas a sola é sensível,
já que há ali outra terminação nervosa. Precisa ficar o resto
da vida atento a qualquer ferimento na região, sob pena de
não perceber quando uma infecção começa. Além de não
sentir dor, perdeu parte da mobilidade do pé também. Ficou
com o chamado “pé equino”, sem a capacidade de estender
e contrair.
A reabilitação foi demorada: quatro anos para estar em
condições de treinar. Tempo para voltar a estudar, ao
menos. Fez pós-graduação em marketing, MBA em varejo e
um mestrado. Tempo também para trocar mais uma vez de
emprego. Recebeu uma ótima proposta para ser gerente de
unidade de negócios da franquia da Coca-Cola, onde ficaria
pelos sete anos seguintes. Em um almoço, perto da sede da
empresa, encontrou um velho companheiro do judô que
tinha se bandeado para o jiu-jítsu. O amigo Max Trombini
conseguiu convencer Rodrigo a experimentar a modalidade.
A ideia era boa. O jiu-jítsu poderia melhorar as suas técnicas
de solo no judô. E, por um tempo, treinou simultaneamente
jiu-jítsu e judô. Apesar das tribos serem diferentes e as
regras distintas, os dois esportes se mostravam
complementares.
Em 2003, aos 34 anos, já não tinha mais condições de
competir no alto rendimento do judô sênior. Mas poderia
recomeçar na categoria master, que mudara suas regras e
passava a admitir atletas a partir de 30 anos (pela regra
antiga da Federação Internacional de Judô, era de 35 anos
para cima. E o nome da categoria mudaria também, de
Masters para Veteranos). Rodrigo já foi logo encarando o
Campeonato Brasileiro Master em Araraquara, interior de
São Paulo. A campanha foi dura. Na estreia, venceu por um
shidô, a advertência recebida pelo oponente. Na segunda
luta e na semifinal, vitórias suadas por yuko, um golpe
intermediário. Estava na final, e se viu diante de Marcos
Morita, um adversário cascudo que havia ganhado todas as
suas lutas no Brasileiro por ippon. Rodrigo não se intimidou
e partiu para cima. Foi campeão justamente por demonstrar
mais combatividade, venceu pelo placar mínimo, por uma
advertência a mais tomada pelo adversário.
O atleta incansável, definitivamente, estava de volta.
Tinha perdido quase cinco anos em mesas de cirurgia e
salas de fisioterapia, é verdade. Podia não ser mais
competitivo no judô adulto, portanto. Mas tinha uma boa
chance na categoria veterana. E agora havia também o jiu-
jítsu. A evolução no novo esporte era a jato. Trocava
sucessivamente de faixa e vencia o que aparecia pela
frente. Da azul até a faixa marrom, encarou 55 lutas em
competições, perdeu apenas uma única vez. Foi campeão
paulista nas faixas azul, roxa e marrom, campeão brasileiro
na roxa e do internacional master nas faixas azul, roxa e
marrom, além de campeão mundial na marrom.
Só que a prioridade seguia sendo o judô. Aos poucos foi
deixando o jiu-jítsu de lado e voltando a focar no judô
veterano. Em 2007, o Brasil organizaria o primeiro Mundial
da categoria. Rodrigo se empolgou e... se frustrou. Chegou
até a semifinal e perdeu. Teria mais uma chance contra
quem vinha da repescagem. Uma vitória e ficaria com o
bronze. Achou um yuko, tomou yuko. Deu um koka, levou
koka. Aí Rodrigo ficou em vantagem com uma punição do
adversário. Faltando três segundos para o fim, tomou o
wazari e perdeu. Ficou em quinto lugar na categoria até 73
kg.
As atividades paralelas iam se acumulando na época. Em
parceria com o sensei Rioiti Uchida, escreveu a trilogia O
espírito do judô, três livros com 800 páginas no total,
mostrando história, princípios, golpes e técnica. Com o
médico judoca Wagner Castropil, escreveu Esportismo,
misturando esporte e gestão. E não era só teoria.
Profissionalmente, cada vez mais usava os fundamentos do
judô na gestão. Criou o “Programa Faixa Preta” e
transformou isso em palestras, mais tarde em consultoria.
Tudo estava interligado, só faltava um detalhe: as
medalhas. Rodrigo não havia recuperado a confiança dos
tempos anteriores à lesão. O quadro só começou a mudar
quando, na Espanha, esbarrou quase por acaso com dois
sujeitos que tinham as mesmas ansiedades e vontades.
O PACTO DE LISBOA
Bahjet Rached Kassem Said El Hayek. Com esse nome, já
desconfiava, simples não seria. Pela primeira vez na vida
tentaria entrar nos Estados Unidos. Era novembro de 2012,
11 anos após terroristas explodirem as torres gêmeas em
Nova York. Bahjet queria levar a família no ano seguinte
para passar as férias na Disney, mas temia ser barrado na
imigração. A viagem para disputar o Mundial, em Miami,
funcionaria também como um teste.
Não deu outra. Bastou apresentar o passaporte no
guichê da imigração e foi levado para uma salinha. Por uma
hora e meia, contou a sua vida. Explicou que era atleta, que
estava ali para disputar o Mundial veterano de judô, que
voltaria em seguida ao Brasil. Não disse, mas pensou: por
que diabos vocês imaginam que toda a pessoa de origem
árabe é um terrorista em potencial? Recebeu, enfim, o
carimbo de entrada nos Estados Unidos e foi para o hotel.
No dia seguinte haveria pesagem, no outro competiria na
categoria até 73 kg.
Rodrigo Motta e Cristian Cezário desembarcaram em
Miami sem precisar passar pela tenebrosa “salinha” que
aborreceu Bahjet. Eles ainda não eram um trio, mas
carregavam expectativas semelhantes. Desconfiavam que
poderiam medalhar, mas não carregavam qualquer
favoritismo até pela inexperiência internacional. Rodrigo, de
fato, ganhou duas lutas, perdeu outras duas, terminou em
7º lugar e ficou em 3º na categoria Absoluto. Bahjet foi mais
longe, conseguiu um 3º lugar. Na categoria Absoluto,
quando os atletas de todos os pesos são misturados,
chegou até a final. Para seu azar, o adversário seria a carne
de pescoço dos últimos anos: Denison Santos. E o resultado
foi o costumeiro, vitória do algoz brasileiro. Decepção
pequena, afinal a categoria Absoluto nunca foi encarada
pelos judocas como algo de suma importância. Seria quase
como o torneio de duplas para os tenistas que valorizam
muito mais as simples. No judô é semelhante, o que
realmente importa acaba sendo a vitória na faixa de peso
de cada um.
Cristian era o mais confiante dos três, no ano anterior
tinha sentido o gostinho da vitória em Frankfurt. Ficou com o
russo comilão entalado na garganta. Agora teria outros
quatro adversários que competiriam no formato de “poule”,
uma espécie de pontos corridos, todos contra todos. Havia
um americano, um ucraniano, um colombiano e um outro
campeão russo, ainda melhor tecnicamente do que o seu
rival do ano anterior. A estreia seria justamente contra o
russo Ilya Kolchev. E a luta começou enroscada. Cristian
tomou um wazari logo no início, depois se recuperou e
resolveu o assunto com um ippon. Na segunda, o revés,
Cristian perdeu para o ucraniano Sergiy Morokhovets por 2 x
1 em shidôs. Nesse sistema de todos contra todos, perder
por diferença mínima é importante como critério de
desempate, caso haja empate em número de vitórias. Foi
ruim, mas não uma tragédia. Poderia haver empate.
Foi justamente o que aconteceu. Cristian venceu o
americano por ippon enquanto o russo derrotou o ucraniano
por vantagem menor. Se Cristian vencesse o colombiano
pelo golpe perfeito, seria campeão mundial veterano. A
chance era boa, o colombiano Wilson Alzate era um dos
mais fracos da chave. Se vencesse por qualquer outro
resultado, ficaria com o vice e o russo levaria o título por ter
conseguido mais ippons na campanha. Em caso de derrota
por qualquer pontuação, exceto o ippon, Cristian ficaria com
o bronze. Para sair com as mãos abanando de Miami, só
mesmo tomando um ippon do adversário mais fraco e de
um país com pouca tradição no esporte. Ao contrário da
primeira vez em Frankfurt, Cristian sabia muito mais dos
adversários. Havia estudado vídeos dos possíveis oponentes
antes de sair do Brasil. O colombiano tinha vindo do jiu-jítsu
e faria o possível para levar a luta para o chão. O início foi
promissor: um wazari para Cristian logo de cara. O
colombiano não conseguia reagir, tomou duas punições por
falta de combatividade. Era pouco, o resultado só estava
rendendo a medalha de prata.
Cristian seguia martelando pelo ippon e pelo ouro.
Derrubou o adversário, já sabendo que precisaria tomar
cuidado com o chão. O colombiano, porém, foi mais rápido e
conseguiu a chave de braço. Faltavam 23 segundos para o
final da luta. Cristian conseguiu livrar braço e o ex-lutador
de jiu-jítsu foi para o pescoço. Cristian escapou de novo,
mas tomou uma nova chave no outro braço. Dessa vez, o pé
do colombiano ficou no rosto de Cristian, que assim não
conseguia enxergar o tempo restante no placar. A dor era
enorme, e Cristian acabou batendo no tatame, perdendo a
luta. Só então viu o tempo que faltava, míseros 3 segundos.
Se soubesse, teria resistido. Se resistisse, teria vencido a
luta e ficaria com a prata. Estava saindo de mãos abanando
do Mundial de Miami, possesso. Essa luta seria um divisor
de águas na sua carreira. Nunca mais perderia de forma tão
tola. Fez questão de guardar a foto dele emburrado ao lado
dos medalhistas. Colocaria a maldita foto na tela de fundo
do seu computador para que a derrota jamais fosse
esquecida e servisse como um eterno alerta contra
bobeadas.
No ano seguinte, nenhum dos três foi ao Mundial de
Veteranos. Abu Dabi, nos Emirados Árabes Unidos, era longe
demais, cara demais. Bahjet, Rodrigo e Cristian se
encontrariam em Málaga, na Espanha, em 2014. E aí tudo
seria diferente, em todos os sentidos, a começar pela
relação entre eles. Cristian havia conhecido Rodrigo em
Frankfurt e se aproximado em Miami. Eles, então,
estreitaram para valer o contato devido à organização de
competições veteranas no Brasil. Bahjet e Cristian eram
parceiros de treino de infância e se reaproximaram também
por conta dos veteranos. Treinos, competições, palestras, as
conversas ficaram mais frequentes.
Em Málaga, Bahjet estava voando. Forte, em plena
forma, nunca se sentira tão bem. Talvez até demais,
beirando a arrogância. Aos 55 segundos da primeira luta,
perdeu por ippon. Rodrigo também bobeou e foi derrotado
logo na estreia. Restava torcer pelos amigos, em especial
por Cristian. Valeu a pena. Cristian encarou na primeira luta
um francês casca-grossa de nome quase impronunciável,
Amine Benabdelouahed. Saiu perdendo, tomou um yuko de
cara, não conseguia reverter. Faltando 32 segundos, deu um
wazari, tentou a imobilização, enrolou no tempo que faltava.
Vitória suada.
O ucraniano das quartas não foi páreo, perdeu por ippon.
O suíço da semifinal, Mael Chatagny, nem conseguiu anotar
a placa do caminhão brasileiro que o atingiu. Mais um ippon.
E quem estava esperando na final? Rustam Mukhametdinov,
o russo comilão que o havia derrotado três anos antes em
Frankfurt. Era a chance da vingança. Dessa vez tinha
acompanhado a pesagem dele, estava tudo certo. A luta foi
rápida. Uma troca de pegadas no princípio e Cristian calçou
o pé do russo. Ele caiu naquele limite entre o wazari e o
ippon. O árbitro central apontou wazari, mas Cristian
percebeu que o árbitro de vídeo estava sinalizando o ippon.
Cristian só se lembrava de Miami, aquilo o havia ensinado
muito. Uma derrota contundente também poderia ser
pedagógica. Cristian passaria quase cinco anos invicto
depois do ouro em Málaga. Era o momento de comemorar. E
não foi a única conquista naquele final de ano. Em
dezembro, mais festa. Casou-se com Amanda, sua
namorada havia oito anos.
Os atletas ainda teriam tempo antes de voltar ao Brasil e
alguém sugeriu três dias em Lisboa. Cristian convidou
Rodrigo para se juntar ao grupo. Com Bahjet, dividiram o
alojamento, comeram, beberam, passearam. E
conversaram, sem parar. Havia muito em comum entre eles.
O jeito de encarar o esporte e a vida. Os três tinham feito
sacrifícios pessoais enormes pelo judô. Os três eram
incapazes de desistir da competição, não aceitavam
pacificamente as derrotas. Os três eram gregários,
valorizavam o trabalho em equipe, eram líderes natos. Cada
um a sua maneira. Cristian era a voz, convencia os outros,
engajava os companheiros. Bahjet era mais o exemplo, a
força, o braço. E Rodrigo o mais estratégico, o planejador, o
cérebro. Mas o que os unia era o espírito incansável. A
viagem para Lisboa selou um pacto para os anos seguintes.
O Instituto Camaradas Incansáveis até tem um estatuto de
fundação com outra data, mas ele nasceu, de verdade,
naquele novembro de 2014.
O RESGATE DO SENSEI
Cristian Cezário voltou da Europa como se fosse
celebridade. Assim se sentia, ao menos. Não era um atleta
profissional, não era um campeão olímpico, mas não parava
de ganhar tapinhas nas costas. As dezenas de alunos que
acumulava nas sete escolas em que trabalhava podiam não
entender exatamente o peso de sua conquista, mas sabiam
que o feito em Málaga havia sido pra lá de importante. E
rendia homenagens. Os parceiros de treino e competição no
Brasil celebravam a vitória de um sujeito muito querido no
meio. E Cristian olhava a vida em retrospectiva. Fez de tudo
para ser um atleta. Abriu mão de boas oportunidades
profissionais, venceu as dificuldades financeiras da família,
apostou tudo na vida do tatame. O ouro simbolizava um
pouco de tudo aquilo.
Os parceiros Bahjet e Rodrigo experimentavam uma
situação diferente. Conheciam o próprio potencial e tinham
certeza de que poderiam obter melhores resultados. Logo
após o retorno do Mundial, tinham o Brasileiro veterano
para disputar em Mauá, na Grande São Paulo. Bahjet passou
por cima dos adversários e ficou com o ouro. Rodrigo
chegou bem até a semifinal, quando disputou contra o
amigo Carlos Salto. Luta dura, Rodrigo tentou encaixar um
golpe com a perna direita e sentiu a torção de joelho. Dor
miserável e abandono. Não bastasse o resultado ruim do
Mundial, mais isso agora, na beiradinha de mais uma final.
Tetracampeão sul-americano, tetracampeão brasileiro,
em vários momentos primeiro do ranking nacional, Rodrigo
não queria saber de abandonar uma competição sem
medalha. Foi ao departamento médico e o diagnóstico foi
categórico. “Seu ligamento cruzado anterior (LCA) está
rompido, talvez o colateral. Vai precisar de cirurgia”. No
acidente de Curitiba, o problema fora na perna esquerda,
agora era a direita. Ao menos isso. Mas mesmo com um
diagnóstico tão eloquente, Rodrigo ficou na dúvida.
Resolveu se aconselhar com Bahjet, que tinha virado quase
um treinador informal depois de Lisboa. Rodrigo havia
perdido a semifinal e, se vencesse quem viesse da
repescagem, ficaria com o bronze. Tudo muito simples se...
não estivesse com ligamentos rompidos. “Bahjet, já ferrou
tudo mesmo, quero tentar lutar pela medalha”. O amigo
apenas sorriu, não tentou dissuadi-lo, entendia
perfeitamente aquele espírito indomável.
Bahjet o ajudou a trocar o quimono, pois a regra agora
era o azul, não o branco. O adversário vinha da Vila Sônia e
tinha toda a torcida do ginásio. Amílcar Key, que nunca
tinha medalhado em Brasileiro, gelou quando percebeu que
Rodrigo não faria o óbvio, que seria desistir. Situação
desagradável, ainda mais pela camaradagem entre os
adversários. Derrubar um adversário machucado ganha
certo ar de covardia, por mais que não seja nada disso.
Perder para um adversário machucado é a suprema
incompetência. Não há final feliz para essa história, olhando
pelo ponto de vista do atleta que não está lesionado.
Rodrigo entrou no tatame mancando e com o rosto
crispado de dor. Na primeira tentativa de pegar no quimono,
Rodrigo caiu sozinho no tatame. Tempo médico. O doutor
recomendou a desistência. Rodrigo tentou de novo. Caiu de
novo sozinho. Paralisação do confronto. Ouviu mais uma vez
do médico que não havia a menor condição. Rodrigo
levantou chorando para continuar. Da arquibancada, alguém
da Vila Sônia gritou: “Porra, quebra esse cara logo”.
A luta não acontecia, Rodrigo não conseguia. Tomou a
primeira advertência. Passou um tempo, veio a segunda
advertência. Mais uma e seria fim de luta para Rodrigo.
Hora do tudo ou nada. Tentou dar um balão, uma técnica de
sacrifício que saiu desengonçada, nenhuma pontuação. Só
que Amílcar foi parar na guarda de Rodrigo, ao seu alcance.
A única chance que apareceu na luta inteira. Ele aproveitou
sua técnica desenvolvida no jiu-jítsu e agarrou o adversário
para uma chave de braço. Faltavam 30 segundos para o
final. Amílcar não suportou a dor e bateu no tatame. Perdeu
a medalha de bronze para Rodrigo. Bahjet estava perto da
torcida da Vila Sônia e ouviu os gritos: “Não acredito, você
perdeu para esse saci, você é um bosta!”
Amílcar caiu aos prantos diante da mulher e filhos que
assistiam à luta. Rodrigo pegou a medalha e foi para o
hospital ser operado de novo por Wagner Castropil. Assim
que se restabeleceu, organizou um evento na academia que
treinava na Lapa e convidou Amílcar e família. Comprou
uma elegante caneta e o presenteou. Naquela situação em
Mauá, Amílcar poderia ter castigado Rodrigo só com
pancadas e golpes no joelho dos ligamentos rompidos. Não
fez isso, lutou com dignidade. Merecia também um
tratamento digno na frente dos filhos, para eles se
orgulharem do pai que tinham.
O ano de 2015 foi de reconstrução de ligamentos e de
ligações importantes. Rodrigo estava comandando a Grand
Masters Judô Brasil (GMJB), uma associação de atletas com
mais de 30 anos que buscava colocar o Brasil em um lugar
de destaque no mapa-múndi do judô. A associação fazia
treinões e pequenos eventos para tentar conectar uma
turma muito próxima do judô sênior que tinha se
dispersado, devido aos compromissos profissionais de cada
um. Em uma conversa com outro amigo, Bahjet lembrava os
grandes mestres da modalidade que não recebiam a devida
atenção. “E o sensei Ishii? Onde anda? Como está agora?”
Bahjet foi até Rodrigo sugerir um treino da GMJB comandado
por Ishii. Sugestão aceita na hora, com entusiasmo. E o
treino foi um sucesso absoluto. O evento na academia do
veterano judoca na Pompeia lotou. Muitos só o conheciam
de nome. Seria impossível não tirar nada de bom de uma
lenda como ele.
Chiaki Ishii, de fato, abriu caminho para o judô brasileiro.
Japonês de Ashikaga e filho de um professor de judô que
preparou os sete filhos no esporte, Ishii se empolgou no
início dos anos 1960, quando descobriu que o judô se
tornaria modalidade olímpica nos Jogos de Tóquio em 1964.
Foi para a seletiva japonesa e perdeu para Isao Okano. A
decepção foi tanta que decidiu deixar o judô para lá e
abandonar o Japão. Pegou carona na onda migratória e
embarcou de navio no Brasil com planos de fazer a vida
como fazendeiro. Não conseguiu se desvencilhar do judô e
estranhou o fato de se treinar tão pouco no Brasil. Duas ou
três vezes por semana era insuficiente para quem queria
realmente vencer uma competição.
Com treinos duríssimos todo o dia, mostrou outra
maneira de encarar o esporte. E destacou-se pela disciplina,
pelo conhecimento, a ponto de cogitar a naturalização para
representar o Brasil em competições internacionais. A
polêmica foi grande. A própria colônia japonesa rejeitou a
ideia, mas Ishii queria muito. Lutando nos meio pesados, foi
bronze em 1971, no Mundial da Alemanha. Era o
representante olímpico brasileiro em um esporte dominado
pelos japoneses e europeus.
Nas Olimpíadas de Munique, em 1972, disputou o bronze
contra Paul Barth, da Alemanha Oriental. Luta dura, torcida
totalmente contra, mas venceu com um ippon. Não
comemorou, mal sorriu. Chiaki Ishii sempre achou que
tatame não era lugar de festa. As emoções mais fortes das
Olimpíadas para ele foram outras. Estava no prédio vizinho
ao da delegação israelense quando terroristas palestinos
fizeram a invasão em 11 se setembro de 1972. Ishii chegou
a ver um amigo saltando do prédio e quebrando a perna na
tentativa de escapar. Extremamente contido, é um dos raros
momentos que Ishii se emociona quando relembra o
passado. O atentado custou a vida de 18 pessoas em uma
tentativa atrapalhada de resgate. Os Jogos continuaram, o
terrorismo não venceu o esporte.
De volta ao Brasil, Ishii conseguiu comprar seu sítio,
criou vaca, ovelha, cavalo. Plantou verduras, frutas e
chegou a ter mais de 3 mil orquídeas. Mas o que mais
semeou foram judocas. Dezenas de faixas pretas brasileiros
passaram pelas suas academias, absorveram seus
conhecimentos e entenderam o valor da disciplina. Suas
três filhas, Luíza, Tânia e Vânia, principalmente. Tânia foi
atleta olímpica e bronze nos Jogos Pan-Americanos de 1983.
Vânia representou o Brasil em duas Olimpíadas, cinco
Mundiais e foi ouro nos Jogos Pan-Americanos de Winnipeg,
em 1999.
O tempo tinha passado. Ishii, que chegou a ser dono de
cinco academias, só havia ficado com a sede da Pompeia.
Não estava fácil tocá-la. Ele estava com diabetes, poucos
alunos. Precisava de ajuda. O treinão da GMJB, sugerido por
Bahjet e organizado pelo seu antigo discípulo Rodrigo,
mostrou o poder de mobilização daqueles judocas. Ishii
necessitava de gente de confiança e competente ao seu
lado para levantar a academia. Pensou em dois ex-alunos
seus com capacidade gerencial, Sérgio Lex e Rodrigo Motta.
Sérgio estava se mudando para o Canadá, teve de declinar
da missão. Rodrigo andava bem ocupado na época, era um
dos sócios da indústria Sucos do bem. Em nome da
gratidão, claro, faria o que fosse possível pelo mestre,
mesmo com o tempo escasso. Só precisava de mais gente
nisso. Lembrou-se de Málaga, das conversas de Lisboa e
sugeriu os amigos Bahjet e Cristian. Ishii não os conhecia,
não sabia se tinham conhecimento, disciplina e princípios.
Antes de mais nada, queria testá-los. E assim Cristian e
Bahjet começaram uma espécie de “estágio informal” de
seis meses treinando e dando aulas na academia.
Deu liga. Ishii gostou dos “garotos”, que também eram
seus fãs. Assim como o japonês, adoravam treinar pesado.
Quando foi pela primeira vez ao tatame com Cristian
Cezário, se impressionou ao saber que ele era faixa preta
primeiro dan. “Não pode ser, está errado, você já é quarto
dan”. No judô, o dan (“nível”, em japonês) determina o grau
de maestria dos faixas pretas. Ishii, bem mais pesado que
Cristian, reparou na maneira como o ele pegava a sua
manga. Esse controle de manga sempre foi uma das bases
do que o sensei apregoava. Ali estava a vitória na maioria
das lutas. Segurar a manga do quimono com força,
limitando os movimentos de braço do adversário, era meio
caminho andado. E se Cristian já fazia isso com maestria, no
futuro aprimoraria ainda mais a técnica com Ishii. Com
Bahjet não foi diferente. Aí, além da técnica, havia força
física e muita mobilidade. Naquele momento estava claro
que, sim, os “meninos” reuniam as condições técnicas para
tocar a academia.
Enquanto isso, Rodrigo foi tomando pé das questões
administrativas da academia. Havia muito a fazer. Um novo
nome nasceu nessas conversas do quarteto: Instituto Chiaki
Ishii, o ICI. Os primeiros meses foram dedicados mais às
instalações. Reforma dos tatames, pintura geral, conserto
de telhado, um tapa nos banheiros. Rodrigo e Bahjet
estavam se afastando do Grand Master Judô Brasil, mas os
masters não se afastavam deles. Pelo contrário. O judô
veterano brasileiro passava a ter um ponto de encontro,
agora na Zona Oeste de São Paulo.
A academia da Pompeia passou a ficar repleta de gente
em muitos horários. Além de crianças, atletas amadores e a
turma do veterano, um povo diferente também passou a
frequentar o pedaço. Rodrigo havia desenvolvido anos antes
um programa chamado “Faixa Preta”, que utilizava a lógica
do judô como ferramenta de aprimoramento gerencial. A
metáfora da passagem de faixas era aplicada em vendas; a
cada meta alcançada, uma troca de faixa. E, em um
determinado momento desse programa, a metáfora ia parar
no tatame. Gente que nunca tinha antes colocado um
quimono na vida passava a treinar animadamente no ICI.
Em outubro de 2015, houve uma pequena pausa no
processo de reestruturação da academia. Os Mundiais de
Veteranos tinham definitivamente entrado no calendário
anual de cada um. Dessa vez, a caravana partiu para
Amsterdã. Bahjet bobeou na estreia e perdeu para um
português. Cristian estava em outro patamar,
transbordando confiança. Vencia toda competição de que
participava, Brasileiro, Sul-Americano, o que viesse pela
frente. Tudo certo, quer dizer, não exatamente... Na véspera
do embarque para a Holanda, recebeu a notícia de que seu
pai estava sendo internado no hospital com um quadro de
broncopneumonia. Pensou em cancelar tudo, seu pai não
deixou. “O que você vai fazer por mim aqui? Não, você
precisa ir. Vai e ganha. Precisa ganhar”. Seu Salvador
parecia entender Cristian melhor do que o próprio. Competir
e dar tudo pela vitória no tatame era a razão de viver do
filho.
Quando desembarcou em Amsterdã, o quadro do pai se
agravou. Foram achados tumores no fígado, mas, antes de
tudo, era preciso vencer a broncopneumonia. Já na UTI,

respirando por aparelhos, a situação se complicava. Cristian


cogitou voltar, até porque estava péssimo, deprimido, sem
nenhuma condição de competir. Só que havia o pedido do
pai. O “vai e ganha, precisa ganhar” não saía da sua
cabeça. No dia da estreia, conseguiu esvaziar a mente e
focou na competição. A primeira luta foi contra o alemão
Ulrich Dietze e não apresentou dificuldade: ippon. A partir
dali, uma legião francesa dominou a categoria em razão da
proximidade geográfica da Holanda. Dos 23 atletas da
chave do M1-60 (categoria de 30 a 34 anos e até 60 kg), 17
eram franceses.
Cristian ligou o “modo fúria” em sequência. Ippon na
segunda luta contra o francês Christopher Grillon, ippon na
terceira luta contra mais um francês, Cristophe Pacino. A
final foi contra Sylvain Brugirard, também representando a
França. O combate foi até o fim, mas não teve grande
dificuldade. Cristian conseguiu um wazari logo de cara e
administrou. Assim que o juiz determinou o fim da luta, com
mais uma medalha de ouro, Cristian desabou no choro. Era
uma vitória diferente, alegre como todas, só que também
doída, como nunca havia sido. A passagem de volta era por
Roma, com uma parada já programada. E, quando estava
no Vaticano, pensando na situação toda, veio a notícia triste
e já esperada do Brasil. Aquela medalha de ouro,
encomendada pelo pai dias antes, passou a ter um
significado especial na sua coleção.
Na volta, a tristeza da perda foi suavizada por um gesto
simbólico. Ishii convidou toda a turma do ICI para um
churrasco em seu sítio em Ibiúna. Geralmente contido,
pediu a palavra e fez um pequeno discurso para exaltar o
Mundial conquistado dias antes por Cristian. Pegou um
troféu antigo que estava guardado há anos e entregou como
se fosse a Copa do Mundo. Junto com o pedaço de metal,
vinha uma chancela: o mestre não só confiava, como se
orgulhava profundamente do discípulo.
POTÊNCIA MUNDIAL
O ano de 2016 começou diferente para Chiaki Ishii. O
homem abatido que pedira ajuda para tocar uma academia
com problemas havia dado lugar a um mestre altivo e ativo.
Ele parecia outro com o movimento do ICI, com as dicas
solicitadas pelos muitos novos alunos. A saúde estava
melhor, sorria mais, estava animado. Rodrigo percebeu a
animação e criou o Seminário Chiaki Ishii, que rodaria o
Brasil nos meses seguintes. De Porto Alegre a Macapá,
foram 10 estados percorridos, cerca de 20 eventos
realizados. Em dois dias, Ishii apresentava suas principais
técnicas, contava a sua experiência olímpica. Bahjet e
Cristian puxavam os treinos, falavam também de suas
experiências. Rodrigo fazia ainda uma palestra sobre
Esportismo, ou seja, como os valores do esporte podem ser
aplicados no aperfeiçoamento profissional.
Em São Paulo, o ICI passou também a ser frequentado por
veteranos de outros lugares. A fama do “treino forte”
ganhou o Brasil. Um treinamento corriqueiro do ICI dura uma
hora e meia. E, nesse espaço de tempo, sempre com
intensidade máxima. São ao menos 5 randoris por sessão,
sendo que cada randori equivale a uma luta de 3 minutos
levada muito a sério. Nas proximidades de grandes
competições como Mundiais, a turma do ICI chega a fazer 10
randoris por dia, algo nada habitual em academias e clubes
pelo Brasil.
Levado por um amigo, o médico cearense Ítalo Rachid foi
treinar no ICI em uma de suas passagens pela capital
paulista. Faixa preta, Ítalo havia competido no alto
rendimento, mas, cansado por conta de uma série de
lesões, fraturas e rompimentos de ligamentos, largou tudo
em 1997. Em 2014, passou a atender judocas que o
convenceram a fazer “uns treininhos”. Pronto. Foi
novamente picado pelo vírus da competitividade. Quando se
deu conta, estava vencendo o Brasil Open Veterano na
categoria M6-90 (de 55 a 59 anos e até 90 kg).
Gostou do clima do ICI, se encantou com a mistura de
alta intensidade e camaradagem do lugar. E logo se
enturmou com Rodrigo, Bahjet e Cristian. O médico ficou
tocado com o trabalho realizado ali. “Achei sensacional o
resgate que eles fizeram do sensei Ishii como a lenda do
judô do brasileiro que ele é. Algo que só grandes espíritos
são capazes de fazer”. Ítalo era um dos principais nomes
brasileiros da Longevidade Saudável, uma corrente da
medicina que prega ser possível “envelhecer sem ficar
velho”. Para o médico, cuidados com a dieta, atenção ao
sono, controle hormonal, de estresse e de inflamações são
fatores que não apenas aumentam a longevidade como
melhoram a qualidade de vida. E poderiam melhorar a
performance esportiva.
A troca era perfeita. Ítalo tinha muito a ouvir sobre judô.
O trio tinha muito a aprender com o doutor judoca sobre os
pilares da Longevidade Saudável. Estava claro que o médico
lidava com atletas fora da curva. Cristian era um vencedor
nato, ganhava praticamente todas as competições das
quais participava, de alguma forma o corpo dava as
respostas exatas para cada demanda. Bahjet era o cavalo, o
sujeito que depois de um campeonato era capaz de correr
10 km sem sofrer. E Rodrigo, mesmo com múltiplas lesões,
era capaz de desempenhar no alto rendimento. As consultas
se davam praticamente no tatame. Ali o médico pediu uma
bateria de exames aos três a fim de entender qual era a
situação exata de cada um deles. Segundo o médico, o
ponto crítico dos três eram déficits hormonais que jamais
tinham sido identificados.
Rodrigo estava com o déficit maior de testosterona.
Cristian nem percebia, mas sua recuperação pós-treino era
lenta. Bahjet, que treinava acima da média geral e
precisava disso para lutar mais confiante, penava também
com a recuperação. Ítalo conversou sobre alimentação,
sono, estresse, analisou os treinos, os resultados dos
exames. Receitou reposição hormonal. Mais importante,
convenceu o trio que ser veterano não significava estar
ladeira abaixo. E os resultados esportivos dos três já
começariam a aparecer em 2016 mesmo.
A entidade ICI também ganhava corpo. A academia, antes
quase deserta, andava cheia. Os seminários espalhavam
Brasil afora a mensagem de que técnica não é nada se não
for escorada pela disciplina e por treinos de alta
intensidade. O próximo Mundial Veterano seria na Flórida,
em Fort Lauderdale. Rodrigo, Bahjet e Cristian fizeram a
provocação e convidaram Ishii para a competição.
“Impossível, estou muito velho, não posso mais competir”.
Foi só uma primeira reação. Aos poucos, o primeiro
medalhista olímpico do judô brasileiro foi se dando conta de
que seguia forte, continuava subindo no tatame e
executando seus golpes. Quando cedeu e disse “sim” foi
uma festa. Virou notícia. Após décadas sem competir, Chiaki
Ishii, 75 anos, voltaria a uma competição oficial.
O sensei resolveu levar tudo muito a sério. Entrou em
forma a ponto de participar do Kangueiko de Bastos, interior
de São Paulo, que carrega a fama de ser um dos
treinamentos mais duros do país. O judô jamais foi
brincadeira para ele, então se preparou para o Mundial
Veterano da mesma forma que nos ciclos olímpicos do
século anterior. A família se preocupou em um primeiro
momento, mas logo o apoiou na iniciativa. Sua mulher,
Keiko, e a filha, Luisa, embarcaram juntas para Fort
Lauderdale. Tânia havia se casado com o judoca campeão
mundial Michael Swain e morava nos Estados Unidos. O
casal voou até Fort Lauderdale para presenciar o
acontecimento. Apenas a terceira filha, Vânia, que tinha
compromissos profissionais no Brasil, não esteve no evento.
A chave de Ishii na categoria M10-100 (de 70 a 79 anos,
até 100 kg) era composta por um americano e um sérvio.
Seria disputada no sistema de “poule”, todos contra todos.
Era o primeiro dos quatro dias de competição. Ishii foi para
a área de competição acompanhado de seu “técnico”
Cristian Cezário. Aquilo era uma honra indescritível, poder
ajudar de alguma forma quem tanto ajudou o esporte
brasileiro. Sempre que não lutava, Cristian fazia a função de
treinador nas lutas dos companheiros. Exercia bem esse
papel, observava os detalhes, falava quando a luta parava.
Mas com alguém que já havia formado uma geração de
atletas, medalhado em Olimpíadas e Mundial, a dica técnica
era desnecessária. A preocupação era outra. Fazia 40 anos
que Ishii não competia, as regras tinham mudado bastante.
A primeira luta era contra o americano Robert Byrd. O
ginásio parou para acompanhar. Com menos de um minuto,
Ishii soltou um de seus golpes preferidos, o ouchi gari, e
derrubou Byrd, calçando a sua perna esquerda. Ippon.
Decidiria então o título contra o sérvio.
Mais baixo e parrudo, Vuk Rasovic entrou apavorado no
tatame. Sabia quem estava à sua frente, e tentou... não
lutar. Dificultou a pegada, fugiu do confronto. Nessa
categoria, por causa da idade, o tempo de luta é menor,
apenas 2 minutos e meio. Ishii queria encaixar um golpe,
chegou a dar um empurrão em Rasovic em uma de suas
esquivas. Cristian tentava acalmá-lo, até porque a falta de
combatividade havia gerado duas punições para o sérvio.
Quando o juiz encerrou a luta, Ishii fechou a cara, possesso.
Ele queria o ippon, o lema do ICI era “a busca incessante
pelo ippon”. O resultado não o satisfez, ganhar uma luta que
não tinha acontecido, na prática, o aborrecia.
Só que ele havia se tornado campeão mundial aos 75
anos. Pareceu se dar conta do feito ao ver a emoção de
quem torcia por ele. Normalmente gelado, até deu um
sorrisinho para Cristian, que chorava à beira do tatame. Ver
Ishii na ativa, feliz e campeão mundial era um prêmio para
Rodrigo, Bahjet e Cristian. Quem entregou a medalha foi
ninguém menos que Yasuhiro Yamashita, campeão olímpico
em Los Angeles-1984, uma das maiores lendas do judô
japonês e amigo de Ishii. A vitória representava muito para
o ICI. Era o primeiro dia de competição e a primeira medalha
brasileira já era dourada. Nem houve tempo para
comemoração, todos os outros ainda iriam lutar. No
segundo dia, Bahjet começou vencendo o inglês Alan
Macaulay na categoria M3-73 (40 a 44 anos e até 73 kg).
Até que lutou bem na sequência, mas perdeu para o
campeão, o russo Valério Merenkov.
O terceiro dia tinha o batalhador Rodrigo Motta no
tatame. Sua obsessão era conquistar uma medalha em
Mundial. O clima parecia conspirar a favor. A primeira luta
foi contra um francês e ex-integrante da Legião Estrangeira,
duas vezes medalhista em Mundial. Philippe Oculi era muito
mais forte do que Rodrigo. Bahjet fazia o papel de treinador
e berrava “manga, não deixa, pega a gola, vai!”. O mantra
do ICI, o controle da pegada, estava sendo acionado. Empate
e a luta foi para o Golden Score. O francês tomou uma
punição, fim de luta. O adversário seguinte era o italiano
Roberto Mascherucci. Rodrigo foi pra cima, provocou duas
advertências, estava com a vantagem. Tentou finalizar com
mais um golpe e tomou o contragolpe, yuko. Não conseguiu
reverter e perdeu. Como o italiano seguiu na chave e foi
para a semifinal, Rodrigo tinha a chance na repescagem.
Um alemão grandão apareceu na frente, Guido Baar.
Grande, só que desatento. Tomou o ippon. Com garra de
quem vislumbrou uma luzinha no fim do túnel, partiu para
cima na luta seguinte contra o americano Ney Hernandez.
Mais um ippon e, aí sim, a disputa contra o ucraniano Lev
Lutsenko já valia o bronze. Era a segunda vez que Rodrigo
efetivamente fazia uma luta por medalha em Mundiais. Em
2007, deu errado. Agora, ao ver o ucraniano, medalhista no
último europeu e bem mais forte à sua frente, sabia que
precisaria fazer algo diferente. Era a chance, alguns
minutinhos apenas para a tão sonhada medalha. Logo de
cara, tomou uma advertência. Bahjet seguia dando as
orientações e pedindo agressividade. Deu certo.
Advertência para o ucraniano. Luta empatada, tempo
escoando. Rodrigo sentiu uma oportunidade e se lembrou
do sassai-tsurikomi-ashi, um golpe que havia aprendido com
Ishii meses antes. Calçou a perna da frente do ucraniano,
que desabou no tatame. Geralmente contido, Rodrigo vibrou
como nunca. O fotógrafo do evento capturou o momento. O
sonho da medalha em Mundial se materializou nessa foto,
que virou quadro e foi parar na parede da casa de Rodrigo.
O quarto dia do Mundial de Fort Lauderdale coroou a
melhor campanha brasileira até então em Mundiais de
Veteranos. O Brasil terminaria na terceira colocação com 40
medalhas, atrás apenas dos anfitriões americanos e da
potente França, o país com mais atletas na modalidade.
Cristian colaborou muito nessa conta. Chegou ao quarto dia
da competição pronto para brigar pela sua terceira medalha
de ouro. Jamais havia se preparado tão bem. Estudou
possíveis adversários, imprimiu a foto de cada um, anotou
se eram destros ou canhotos, tipos preferidos de golpes,
tudo. Só que o primeiro oponente era um atleta do
Cazaquistão que tinha se inscrito na véspera, um completo
desconhecido. Alexander Katz era uma pedreira e quase
surpreendeu. Forte, não baixou a guarda, e Cristian só o
venceu com um apertado 2 x 1 em advertências.
A semifinal foi curiosamente mais fácil, ippon no francês
Sofiane Ouargui. Estava na final, uma final diferente das
anteriores, contra o compatriota e amigo Argeu Cardoso. Na
realidade, mais do que amigo, um verdadeiro parceiro na
batalha pela organização da categoria dos veteranos no
Brasil. Era a primeira medalha em Mundiais de Argeu, a
“final caseira” fortaleceria ainda mais a camaradagem dos
judocas. Cristian conseguiu um wazari e completou o
serviço com o ippon da imobilização. Assim, Cristian se
tornou tricampeão mundial, Ishii levou o ouro após 40 anos
longe de competições e Rodrigo conquistou seu primeiro
bronze em Mundiais. A turma do ICI não tinha do que se
queixar de Fort Lauderdale.
O Mundial seguinte, de 2017, foi na Itália, mais
precisamente em Ólbia, no norte da ilha da Sardenha. A
dificuldade logística era considerável. Voo até Roma, mais
um voo para Sardenha, o que elevava um tanto o preço
para chegar à competição. Por isso, o número de brasileiros
participantes encolheu. Bahjet e Rodrigo ficaram no Brasil.
Cristian não queria perder a chance de brigar pelo
tetracampeonato na M2-60 (35 a 39 anos e até 60 kg).
Juntou as economias, conseguiu apoios das escolas em que
trabalhava e partiu para a Itália. Forte e cheio de confiança,
Cristian estreou contra um alemão. Vitória sobre Robert
Engehard por ippon. Depois foi direto para a semifinal
contra o russo Danil Biktimirov. Aí sim, a coisa ficou feia.
Biktimirov deu um wazari e ficou em boa vantagem. Talvez
por excesso de confiança, o russo achou que poderia
liquidar rápido o confronto e arriscou. Tomou o contra-
ataque e perdeu por ippon. Já a final foi
surpreendentemente fácil. O médico canadense Justin
Rashade tinha técnica, mas era um novato em Mundiais.
Gente boníssima, era médico de família e ficaria amigo de
Cristian. No tatame, porém, o brasileiro foi pouquíssimo
cordial: vitória rápida por ippon para conquistar o seu
quarto título mundial consecutivo. De quebra, ainda ganhou
em 2017 uma medalha mais dourada com o nascimento do
filho Bernardo.
Os bons resultados nas competições animavam, mas há
um tempo estavam sentindo que faltava algo no Instituto,
faltava mais foco na formação, faltava um projeto social. A
solução veio por um advogado carismático que havia
conhecido os incansáveis em dezembro de 2015. O então
faixa marrom Carlos Henrique Bevilacqua treinava numa
pequena academia de Guarulhos. Já no primeiro treino do
ICI, tomou um choque de realidade. Ele sequer conseguia
firmar a mão no quimono dos adversários. Adorou a
intensidade, foi logo provocado por Cristian: “Você precisa ir
atrás da faixa preta, tem condições pra isso”. Conseguiu.
Carlão, que não costumava participar de competições,
passou a disputar e a medalhar. O nível era realmente
outro, tinha muito que aprender. Perceberia que tinha muito
a ensinar também.
Carlão já dividia com o irmão um trabalho social no
Guarujá, litoral paulista. A vontade de fazer algo semelhante
em Guarulhos foi despertada em uma conversa com
Cristian. O ICI também buscava uma forma de viabilizar um
projeto social. Conexão instantânea. Ao perceber a filosofia
do ICI, com o foco total no respeito e na disciplina, Carlão
imaginou o judô auxiliando na formação de crianças
carentes na região de Guarulhos. Era a ponta que faltava no
ICI. Em qualquer projeto social esportivo, as medalhas e os
pódios funcionam como iscas. As vitórias dos mestres
estimulam os discípulos a treinarem forte para chegarem lá.
No ICI, eram mais mestres que discípulos, e ampliar essa
base com uma pegada social fecharia a lógica do ciclo.
Enquanto Rodrigo tratava de montar uma Organização
Não Governamental (ONG) para captar recursos, Carlão
partiu para o campo de batalha. Foi atrás de um lugar para
instalar a base do ICI em Guarulhos. Conheceu por meio do
judô alguns sócios da União Cultural Esportiva Guarulhense
(UCEG). Tratava-se de um clube da colônia japonesa que
tinha um amplo ginásio, perfeito para treinar a garotada
carente da cidade. Levou quase um ano para convencer os
dirigentes do clube que o ICI não brincava em serviço, que a
iniciativa não iria morrer na casca. Deu certo. Na metade de
2017, já tinha a primeira turma. Atuante na comunidade,
Carlão conseguiu rapidamente espalhar a notícia e foi um
festival de inscrições. Ele não era professor de judô, mas
aprendeu os fundamentos com Bahjet e, principalmente,
com Cristian. A ONG engrenou e captou recursos para a
compra de quimonos, camisetas e contratação de mais um
professor da região. As turmas foram crescendo e
chegariam a 140 alunos, com uma fila de espera de 80
crianças. Nos moldes de Guarulhos, outro projeto social
seria também implementado mais adiante na sede da
Pompeia, o Sempre Ippon. O judô auxilia a formar cidadãos
melhores, mas quem sabe não sairia dali, algum dia, um
atleta olímpico? O objetivo não é exatamente esse, mas não
deixa de ser um sonho para os líderes do ICI. O sucesso
esportivo de uma criança que despontou do projeto social
poderia ajudar a retroalimentar o próprio projeto.
Apesar das boas vibrações do projeto social, o ano de
2017 terminou com más notícias. Chiaki Ishii teve uma piora
considerável no seu quadro de saúde, a diabetes avançou, e
ele passou a conviver com uma renitente ferida na perna.
Houve até o risco de amputação. Para piorar, teve um AVC e
foi hospitalizado, para preocupação geral da turma toda. A
família Ishii decidiu que era a hora de dar um tempo, fechar
a academia, parar com o judô. O imóvel na Pompeia foi
primeiro oferecido aos três administradores do ICI.

Infelizmente, não havia recursos para comprar o lugar. As


filhas pediram, então, para que a academia fosse
desocupada até que se achasse um comprador. Bahjet,
Rodrigo e Cristian entraram em parafuso. E as dezenas de
atletas adultos e crianças que treinavam diariamente? E os
veteranos, a filosofia do Instituto, a camaradagem toda? A
decisão foi não parar. Compreendiam o problema de saúde
do mestre, aceitavam a decisão da família, mas iriam seguir
em frente. Mudariam o nome, a razão social, achariam um
outro lugar. O ICI não se chamaria mais Instituto Chiaki Ishii,
mas Instituto Camaradas Incansáveis. O novo nome, com a
velha sigla ICI, era, de certa forma, também um resumo da
situação. O ICI já tinha o incansável na alma, agora passaria
a ter no nome.
Faltava achar o imóvel, e não seria fácil encontrar um
lugar de bom tamanho e bom preço para sediar o novo ICI. E
de preferência na Pompeia, para não complicar a rotina dos
50 alunos que então treinavam no Instituto. O espírito
incansável do tatame precisaria ser transportado também
para a garimpagem da nova sede. Um personagem
fundamental nesse momento complicado foi Sérgio Caldas
Júnior. Caldas não era judoca, tinha sido vice-campeão
brasileiro de jiu-jítsu, só que compartilhava totalmente os
valores do ICI. Ele havia sido estagiário de Rodrigo Motta na
franquia da Coca-Cola, trabalharam juntos em consultorias.
A relação se estreitou quando Caldas assumiu uma gerência
da Flora – indústria do ramo de higiene e limpeza – e adotou
o “Programa Faixa Preta”, que misturava judô e gestão.
Quando soube que o ICI poderia acabar, botou pilha na
turma. “Não, sem chance. Vamos em busca das medalhas”.
Caldas não botou apenas “pilha”, colocou recursos próprios
nesses primeiros tempos. Enquanto isso, o amigo e
professor de judô Vinícius Rodrigues Erchov emprestou sua
academia no Alto da Lapa, também na Zona Oeste de São
Paulo, para que os treinos do ICI seguissem acontecendo.
Nos últimos dias de 2017, Bahjet varreu o bairro à
procura de alguma possibilidade. Quando já estava
desanimando, encontrou um curioso imóvel na pacata rua
Barão do Bananal. O lugar parecia estreito demais,
precisaria de uma reforma. E de uma reforma com recursos
que o trio não dispunha... O contrato foi assinado e o novo
ICI seguiu funcionando na academia de Vinícius Erchov.
Rodrigo, Bahjet e Cristian dariam um jeito de levantar
dinheiro para as reformas que começariam no início do ano,
com previsão de inauguração para maio de 2018. O que já
seria difícil ficou complicadíssimo a partir de março. Os dois
AVCs de Rodrigo o tiraram de combate. Estava primeiro
lutando pela vida, depois pela recuperação dos
movimentos, da memória. O ICI passou a ser tocado pela
dupla Bahjet e Cristian. Com Rodrigo fora do ar, não podiam
contar com a parte dele das reformas. Bahjet nem cogitou
postergar. Pediu um empréstimo no banco para não deixar
parar a obra. Uma semana após o AVC, os atletas do ICI iriam
para Fortaleza disputar o Campeonato Brasileiro. Para não
atrapalhar o desempenho dos nove judocas, só contaram
que Rodrigo estava na UTI do Hospital Oswaldo Cruz quando
todos já tinham recebido suas medalhas. O ICI contribuiu
fortemente para que o estado de São Paulo terminasse em
primeiro lugar na competição com três ouros, quatro pratas
e um bronze.
Para Rodrigo, foram seis meses de uma maratona com
distância e tempo indefinidos. O estrago dos AVCs era
extenso. Rodrigo passou por psiquiatra, fonoaudióloga,
oculista, terapia ocupacional, ortopedista, clínico geral,
neurologista. A memória estava afetada, a visão tinha
problemas, era comum caminhar e esbarrar em alguém.
Disfarçando, tomando cuidado para falar menos e não expor
seus lapsos de memória, caminhando pouco para não bater
em ninguém, Rodrigo conseguiu comparecer à inauguração
do ICI em maio. A nova sede ganhou um nome e uma
plaquinha: Sérgio Caldas Júnior – o amigo que ajudou o ICI

financeiramente em um momento difícil. O Dojô, o tatame,


uma área sagrada para o judô, também foi batizado: Dojô
Erchov, o outro amigo que emprestou sua academia quando
o ICI mais precisava.
Em meados de 2018, o tema dos treinos na Pompeia não
podia ser outro: a nova edição do Mundial Veterano. Rodrigo
se recuperava do AVC, estava obviamente fora de combate
para o Mundial de Cancún em outubro. A tarefa de
representar o ICI ficou a cargo de Cristian, Bahjet, Silvinho e
Fabio Imamura. Pela facilidade e preços de passagens para
o México, o Brasil mandou 131 atletas no total. Os franceses
levaram 137, mas nunca o Brasil teve tantos
representantes. Tetracampeão mundial no M2-60, Cristian
era um dos grandes favoritos. E, com uma chave curta, foi
um atropelo. Ippon na estreia contra o russo Alexandr
Samofal, vitória na semifinal contra o francês Sofiane
Ouargui com três punições.
A final foi de novo brasileira e contra um velho
conhecido. Cristian já havia vencido uma vez o mato-
grossense Wellington Oliveira. Dono de um estúdio de
crossfit, ele tinha voltado a competir pouco tempo antes. Foi
o próprio Cristian quem incentivou o adversário a ir para o
Mundial. Cristian venceu por ippon também, mas a prata
valeu muito para Wellington que foi recebido em Cuiabá
com carro de bombeiros e homenagem na Câmara de
Vereadores. O ICI ainda levaria o ouro com Sílvio Tardelli
Uehara. No geral, o Brasil terminou em primeiro lugar no
quadro de medalhas de Mundiais Veteranos, com 20 ouros,
13 pratas e 18 bronzes. O ICI teve participação direta nesse
desempenho com os dois ouros de Cristian e Silvinho.
Faltava uma medalha para a festa brasileira ser completa
em Cancún. A torcida por Bahjet era gigante. Amigo de
todos, era o responsável pelo treinamento dos veteranos do
ICI. Cristian ficava mais com as crianças e a parte
administrativa do Instituto. Com suas dicas, Bahjet já
ajudara muito nas conquistas dos amigos e meros
conhecidos. Era o quinto Mundial de que participava. Em
todas as edições, chegara voando fisicamente. Vencia
competições no Brasil e na América do Sul, mas no Mundial
tinha apenas dois bronzes, no Brasil e em Fort Lauderdale.
Não fazia o menor sentido um sujeito como aquele não levar
o ouro. Ninguém entendia.
Antes da competição, estudou detalhadamente os
adversários da chave. Sabia tudo sobre todos. Passou pelo
sueco Jimmy Decker na estreia e pelo polonês Sebastian
Laskowski na segunda luta. A pedreira vinha a seguir, contra
o francês Jimmy Guillou. Não conseguiu lutar. Perdeu por
três punições. Nem teve tempo para esmorecer. O francês
seguiu vivo na chave e terminou com a prata, o que
possibilitou o caminho da repescagem para Bahjet. O
brasileiro buscou a disputa de terceiro vencendo o amigo e
colega de treino no ICI Fabio Imamura. O bronze veio na
vitória contra o argentino Luis Pablo Corulo. Uma medalha,
de qualquer metal, é sempre motivo de alegria. Com Bahjet,
não foi diferente, só que bronze não era ouro. Talvez
houvesse um sapo enterrado debaixo do tatame. Não era
possível que o homem que facilitava os ouros dos outros
não conseguisse ficar com o seu. Não era justo, será que a
maldição sobre Bahjet em Mundiais algum dia iria acabar?
Em dezembro de 2018, nove meses após o AVC, Rodrigo
esteve no Vita e montou com o amigo e médico Wagner
Castropil um plano para voltar a praticar atividade física.
Além da fisioterapia, iniciou a musculação e um mês depois
arriscou os primeiros treinos de judô. A vontade de voltar à
vida normal contrastava com o medo. Medo de cair no chão,
medo de um novo AVC, da UTI.

A neurologista Gisela Tinone vetou a volta ao judô. Era


quase um diagnóstico de morte para quem a razão de viver
sempre foi competir. Rodrigo procurou, então, o também
judoca Ítalo Rachid. A visão era outra. Sim, seria possível
voltar a treinar com reposição hormonal, ele poderia ter
uma vida normal. A dúvida dos dois diagnósticos opostos foi
torturante, mas Rodrigo resolveu apostar na volta. Em abril,
já se sentia bem, forte. Queria voltar a competir, ao menos
uma vez. Bahjet e Cristian sugeriram uma competição
amistosa que tivesse uma chave não tão forte. Algo mais
“light”, se é que algo no judô competitivo pode ser leve. A
alternativa foi um torneio tradicional do calendário
brasileiro, a Copa Paulo Leite, em São Luís, no Maranhão.
Rodrigo tinha ido a todas as edições da Copa, com exceção
do ano anterior por causa do AVC. O ICI iria levar 15 atletas,
Rodrigo estaria bem acompanhado.
Cristian estudou as chaves, analisou quem seriam os
potenciais adversários de Rodrigo. Quem ofereceria uma
luta mais dura e, portanto, com mais risco? Aí sugeriu que
ele fizesse na véspera da pesagem o contrário do habitual:
almoçasse com gosto para sair da categoria até 73 kg e
passasse para a categoria até 81 kg. Ali, em tese, estaria
melhor, até porque era uma chave com apenas um
adversário. Na véspera da competição, nem dormiu. Tensão
maior do que quando disputou Mundiais. Não era uma luta
qualquer, a questão agora não era medalhar ou não. O que
estava em jogo era o futuro, o tipo de vida que poderia
levar dali para frente. A tensão se espalhava por todos que
sabiam da história, mas alguns estavam especialmente
nervosos. Sílvio Tardelli Uehara era o lado mais prudente do
ICI. Campeão mundial, mais experiente do que todos,
Silvinho ainda tentou convencê-lo a não competir. Bahjet e
Cristian, que sabiam que era impossível demovê-lo da ideia,
tentavam apenas acalmá-lo. Um dos que mais disfarçavam
a tensão era o doutor Ítalo Rachid, que estava ao lado do
tatame. Foi o médico quem encorajou Rodrigo a seguir
lutando, foi ele quem assinou o atestado médico o liberando
para competir. “Foi uma das decisões mais corajosas que
tomei na minha vida. O mundo todo dizendo que ele não
pode praticar esporte, muito menos judô, e eu o libero? E se
acontecesse algo?”.
Rodrigo faria uma melhor de três contra o cearense
Valdenir Souza. A primeira luta entre eles foi nervosismo
puro. Há um ano sem entrar no tatame, Rodrigo não
conseguia encaixar golpes. Mas tentava, ao menos. Seu
adversário tomou a primeira advertência. Para virar a luta,
tentou um golpe de sacrifício e tomou uma chave de braço
de Rodrigo. Desistência e vitória por ippon. A segunda luta
poderia ser a última, se Rodrigo vencesse de novo. Ele
precisava tentar liquidar logo a fatura, arrastar o confronto
para um terceiro ato seria péssima ideia para quem estava
voltando, afinal.
A adrenalina da estreia tinha baixado, mas o cansaço
aumentado muito nos 40 graus do ginásio em São Luís. Era
quase uma briga de rua. Rodrigo sabia que precisava
terminar logo com aquilo, pois se fosse para o Golden Score
talvez não aguentasse. Faltando cinco segundos para o fim,
já sentindo o esgotamento de Rodrigo, Souza partiu para o
ataque e tomou o revés: wazari e ouro na volta de Rodrigo
aos tatames. Não sabia por onde começar nos abraços e
agradecimentos. Os responsáveis pela sua volta estavam
todos lá. Bahjet, Cristian, Silvinho, mas a gratidão era
especial ao médico que o liberou. Jantar de comemoração: o
ICI ainda havia sido decisivo para que o estado de São Paulo
vencesse a Copa Paulo Leite 2019 por equipes. Rodrigo
tinha prometido a si mesmo que só disputaria essa Paulo
Leite e não abusaria da sorte. Não sabia, porém, que
voltaria do Maranhão com algo bem mais pesado na
bagagem do que o troféu de campeão: a autoconfiança.
Rodrigo estava voltando a se sentir vivo, forte, seguro.
“Quero lutar mais uma”, avisou aos companheiros Bahjet e
Cristian. A ideia não era um Mundial nem uma competição
das mais duras. Surgiu a ideia de ir para as Economíadas, a
competição entre as faculdades de economia. O ICI treinava
a equipe da FGV desde 2016 por indicação de Eduardo
Quilici, fundador da Atlética. Rodrigo, na categoria de
criador da competição e ex-presidente da Atlética da FGV,

seguia tendo a carteirinha de sócio. Poderia, portanto,


também lutar. Ele havia lutado a primeira Economíadas em
1991 e agora, 28 anos mais tarde, teria a chance de voltar a
participar da competição. Iria, a princípio, como treinador,
com a possibilidade de lutar, se fosse necessário. Foi Bahjet
quem botou pilha. “Eles precisam de você, Rodrigo, eles
estão sem confiança, são muito crianças. Vai lá e faz a
primeira luta”. A provocação foi quase uma ordem.
O confronto era contra o Insper, cinco atletas de cada
lado. Quem vencesse mais levava. Luta dura contra um
garoto mais alto e 30 anos mais novo. Mais uma vez, o
pavor de um novo AVC. Daí, a afobação. O menino do Insper
tinha tomado duas advertências, mas Rodrigo tomou outras
duas. Quem tomasse a próxima perdia a luta. Era
fundamental abrir o confronto com uma vitória. Rodrigo foi
pra cima e terminou forçando a terceira advertência. A
vitória abriu o caminho para que a FGV vencesse o Insper. A
final foi contra o Mackenzie. De novo, melhor de cinco lutas,
com Rodrigo abrindo. Dessa vez o medo foi escondido
debaixo do tatame. Um minuto de luta e ippon. No
desfecho, a FGV perdeu o confronto final por 3 x 2 com uma
advertência polêmica no último minuto da última luta. Na
cerimônia de premiação, a medalha de prata tinha um valor
especial pela epopeia toda da volta de Rodrigo, que ainda
receberia o prêmio de melhor atleta das Economíadas 2019,
um ano após o AVC. Ele estava mais vivo do que nunca.
PRA LÁ DE MARRAKESH
Rabat é capital, Casablanca é cidade mais populosa, mas
Marrakesh é um dos destinos mais charmosos do Marrocos.
Hotéis suntuosos, palácios, um comércio colorido, passeio
de balão, há muito que fazer na cidade situada no centro do
país de 40 milhões de habitantes. Quem chega à cidade não
costuma perder tempo e rapidamente sai para conferir as
dezenas de dicas turísticas. Quer dizer, quase todo mundo.
Mal desembarcou no aeroporto numa tarde quente de
outubro de 2019 e o brasileiro Bahjet El Hayek logo foi para
o seu hotel. Deixou as malas no quarto e procurou o fitness
center do hotel para uma corrida na esteira. No dia
seguinte, o programa da manhã foi um treino com outros
nove atletas no hall do hotel. Enquanto seus companheiros
voltavam para os quartos, Bahjet partiu de novo para a
esteira para correr mais alguns quilômetros. Não havia visto
nada de Marrakesh, mas estava satisfeito com a informação
da balança da academia. Estava quase no peso desejado, só
um pouco acima de 73 kg, o limite para a sua categoria no
Campeonato Mundial que começaria na sexta-feira.
Repetiu a rotina na quarta e na quinta-feira, treino de
judô, corrida e saladinhas. Relaxou quando viu os 72,4 kg na
tarde da quinta-feira no momento da pesagem oficial do
torneio. A primeira batalha estava vencida, sem sofrimento.
Bahjet sempre teve problema com a balança, mas suar e
correr jamais foram um sacrifício para ele. Pelo contrário,
desde criança aprendeu que sua excepcional forma física
era um de seus diferenciais no tatame. No início, corria
entre 5 e 10 km como forma de preparação. O preparador
Renato Fiori, faixa preta do ICI, mudou sua preparação física.
Convenceu Bahjet de que os intervalados, os treinos de tiro,
eram muito mais adequados para quem praticava judô. No
tatame, não se percorre muitos quilômetros, mas é exigido
fazer força extrema por uns cinco minutos. E passou a
encaixar tiros extenuantes de até 21 km/h na esteira.
Em paralelo, Bahjet estava se recuperando mais rápido
dos treinamentos intensos depois que conheceu a
“Longevidade Saudável” de Ítalo Rachid. Periodicamente,
fazia exames para detectar seus níveis hormonais. Já era
naturalmente forte, só que agora estava mais resistente. O
mesmo apuro se dava na parte técnica. Havia estudado e
assistido aos vídeos da maioria dos 30 possíveis adversários
da chave, anotando os tipos de pegadas, pontos fortes e
fracos de cada um deles.
A competição no Marrocos não guardaria boas
recordações para o pentacampeão mundial Cristian Cezário.
Cristian até levou para casa a medalha de bronze,
conquistada com garra absurda. Mas trouxe na bagagem
um rompimento total de ligamento colateral anterior do
joelho esquerdo, uma ruptura parcial do ligamento ulnar do
cotovelo esquerdo e uma longa inatividade. Um bronze caro
demais. Sílvio Tardelli Uehara, o Silvinho, conquistaria a
medalha de ouro na categoria M6-66 kg, mas era Bahjet a
esperança de ouro do “núcleo duro” do ICI com a derrota de
Cristian na semifinal e a ausência de Rodrigo no Marrocos.
Bahjet caiu na mesma chave do ótimo campeão europeu
Laurent Verges. Poderia cruzar com ele nas quartas de final.
Antes, precisaria passar por um outro francês, esse de
ascendência portuguesa, Christopher Gusmão. O brasileiro
começou a vencer a luta no controle da manga. Faltando um
minuto para o fim, um wazari, mais 10 segundos de
imobilização e a vitória por ippon. No segundo combate,
contra Orazio Privitera, um italiano longilíneo de braços
compridos, valeu toda a dedicação ao aeróbico. Luta
complicada, arrastada, sem pontuação. Só que enquanto
Bahjet se mexia intensamente, buscando o golpe, o italiano
pregou e tomou a terceira punição no Golden Score. Bahjet
estava nas quartas, momento de encarar o campeão
europeu.
Só que quem apareceu na chave foi o espanhol Federico
Muniz Estrada, que havia lutado bem e derrotado o favorito
com um belíssimo ippon. Mais uma vez, o preparo físico foi
decisivo. O espanhol estava solto, tentando golpes, mas não
aguentou o ritmo intenso de Bahjet. Mais uma vitória por
punições para Muniz Estrada. Bahjet já estava na zona da
medalha, faria a semifinal com o sérvio Marko Mijalkovic.
Uma vitória e estaria pela primeira vez na final de um
Mundial. Mijalkovic não era um desconhecido, havia vencido
o brasileiro na repescagem no Mundial de Fort Lauderdale
em 2016 por punição. Além do sérvio, Bahjet precisou lutar
contra os nervos. A luta estava empatada em punições, e
Bahjet tomou uma segunda advertência que julgou injusta.
Não podia se irritar com a arbitragem marroquina, precisava
focar na virada da luta, e tinha poucos segundos para isso.
A marcação estranha da arbitragem talvez tenha
desconcentrado mais quem estava em vantagem. O sérvio
ensaiou alguma agressividade, para não tomar punição e
entrou com um golpe desequilibrado. Bahjet, que estava
com a pegada controlada e ligado, achou um contra-ataque,
enganchou a perna do adversário e ippon. Com a manga
completamente dominada pelo brasileiro, o sérvio não
conseguiu evitar a queda chapada de costas. O juiz
marroquino, porém, viu wazari, ainda haveria mais luta.
Nem deu tempo de se irritar de novo com a arbitragem. O
juiz de vídeo que estava na mesa logo avisou que tinha
ippon na telinha. Uma breve conversa e decisão tomada.
Vitória suada, conseguida pela boa condição física e,
principalmente, pela serenidade. Silvinho, que estava como
técnico ao lado do tatame, abriu um sorriso enorme. Da
arquibancada, gritos brasileiros. Bahjet era querido demais
entre os veteranos, merecia muito o ouro. Mas ainda
haveria um francês desconhecido pela frente.
Não é comum, mas Bahjet teve um bom tempo entre a
semifinal e a final. A luta contra o sérvio terminou às 14h, e
a final só aconteceria às 17h. Tempo de sobra para voltar ao
hotel na frente do ginásio. Bahjet descansou, comeu e,
principalmente, reviu a luta anterior de seu próximo
adversário, Gregory Bouklouche. Hora da luta. Canhoto, o
francês tentava fazer uma pegada cruzada para o seu
melhor golpe, que era feito de joelhos. Bahjet sabia que a
luta poderia ser vencida matando essa pegada cruzada, não
deixando ele à vontade. Bahjet “matou” a pegada de gola
de Bouklouche e ele não conseguia encaixar golpe algum. E,
sem golpes, foi tomando punições. Veio a primeira a
advertência, veio a segunda, Bahjet tomou uma e a luta
ganhou uma tensão. Se tomasse a terceira, era fim de linha
para o francês.
Do tatame, só ouvia Cristian berrando “Não perde a
manga, não perde a manga”. Faltando um segundo para o
fim, o francês tentou um golpe com apenas uma mão em
Bahjet. O árbitro principal estava com a visão encoberta e
puniu apenas Bahjet. Não fazia sentido. Era um golpe sem
pretensão real, apenas para tentar provocar uma
advertência ao brasileiro. A luta ficaria empatada e iria para
o Golden Score. Mas a mesa corrigiu, duas advertências
foram assinaladas e o Placar fechou em 3 x 2. Bahjet era
finalmente campeão mundial. Da arquibancada, uma
gritaria infernal.
Bahjet tinha uma força descomunal, esbanjava técnica,
transbordava determinação, o espírito incansável estava no
seu sangue. Era difícil entender como um atleta com essas
características ainda não havia sido campeão mundial. A
única explicação possível seria certa “falta de confiança”,
provocada pela pressão que ele mesmo se impunha. Bahjet
não era apenas um atleta veterano querendo vencer, mas o
principal líder e inspiração para um grupo de campeões.
Como ele ainda não tinha uma medalha de ouro no peito?
Agora tinha um troféu na mala e um tremendo peso a
menos nas costas. Talvez nenhuma medalha de ouro tenha
sido tão comemorada pelo grupo do ICI. O mais camarada
dos incansáveis estava devidamente condecorado.
O INSTITUTO CAMARADAS
INCANSÁVEIS EM NÚMEROS
QUADRO DE MEDALHAS
Desempenho dos atletas do ICI nos principais campeonatos.

COMPETIÇÕES 2016 2017 2018 2019

4 ouros 4 ouros
6 ouros 5
4 3
Campeonato Paulista de 1 prata ouros
pratas pratas
Veteranos 1 1
2 7
bronze bronze
bronzes bronzes

3
4 ouros ouros
3 ouros 3 ouros
Campeonato Brasileiro de 1 prata 4
3 1
Veteranos 1 pratas
pratas bronze
bronze 1
bronze

2
Campeonato Sul-americano de ouros 3 ouros
Veteranos 1 1 prata
bronze

2
4 ouros
Campeonato Panamericano de ouros
1 prata 2
Veteranos 1
pratas
bronze

2 ouros 2
1 ouro 2 ouros
Campeonato Mundial de 1 prata ouros
1 1
Veteranos 3 1
bronze bronze
bronzes bronze
O BRASIL NOS MUNDIAIS DE VETERANOS
O país chegou ao top 5 com o surgimento
do ICI.

ANO CLASSIFICAÇÃO

2016 3

2017 5

2018 1

2019 3

O CRESCIMENTO DO ICI DESDE SUA


FUNDAÇÃO

ANO ALUNOS

2015 10

2016 30

2017 50

2018 100

2019 250
ESQUADRÃO FAIXA PRETA
Os 43 atletas faixas pretas do ICI.
Silvio Tardelli Uehara Vermelha e branca 6° dan

Rodrigo Guimarães Motta Vermelha e branca 6° dan

Paulo Fernando Augusto Vermelha e branca 6° dan

Bahjet Rached Kassem Said El Hayek Preta 5° dan

Marco Aurelio Macedo de Almeida Preta 4° dan

Marinho Esteves Moreira Júnior Preta 4° dan

Wagner Castropil Preta 3° dan

Cristian Cezario Preta 2° dan

Italo Emanuel Valeriano Rachid Preta 2° dan

Jonas Umeoka Yamauchi Preta 2° dan

Luiz Carlos Okino de Almeida Preta 2° dan

Adriano Tomás de Almeida Paim Preta 1° dan

Alexandre Barros Pereira Barbosa Preta 1° dan

Ana Lúcia Coutinho de Faria Alvim Preta 1° dan

Antonio Martins Preta 1° dan

Arnaldo Calazans S. Júnior Preta 1° dan

Bruno Mendonça Bento Preta 1° dan

Caio Costa e Paula Preta 1° dan

Carlos Henrique Bevilacqua Preta 1° dan

Claudio Aparecido Cardoso Preta 1° dan

David Siqueira de Almeida Preta 1° dan


Fabio Adauto A. Silva Preta 1° dan

Fábio Alfaia Bonomi Preta 1° dan

Fabio Voinichs Imamura Preta 1° dan

Felipe Fedrizzi Donatto Preta 1° dan

Gustavo Matinata Beber Preta 1° dan

Gustavo do Nascimento Uchôa Preta 1° dan

Humberto Alonso Preta 1° dan

Italo Rodrigues Barboza Alves Preta 1° dan

Letícia Bandeira Spedo de Avelar Preta 1° dan

Lindomar Rodrigues Preta 1° dan

Mario Jose Camelo Gomes Preta 1° dan

Olivia Cristina da Silva Preta 1° dan

Pedro de Moraes Achcar Preta 1° dan

Rafael Matinata Beber Preta 1° dan

Renan de Meneses Preta 1° dan

Renato Fiori Ramos Preta 1° dan

Renatta Molina Porfirio Preta 1° dan

Roberto Geraldo Junior Preta 1° dan

Rodrigo Reis Pereira Preta 1° dan

Rogerio Gonçalves Batista Preta 1° dan

Sílvio Previde Neto Preta 1° dan


Thiago Benador de Faria Preta 1° dan
OS AUTORES

Sérgio Xavier Filho, formado em Jornalismo, é


comentarista do SporTV e escreveu Operação portuga,
Vidas corridas e Edmundo Instinto Animal. Faixa laranja
quando criança, supostamente foi campeão de algum
torneio de judô. Não há provas disso.

Rodrigo Guimarães Motta, graduado em


Administração Pública e doutorando em Administração,
atualmente é consultor de empresas. Faixa vermelho e
branca 6° dan, tem uma medalha de bronze em Mundial de
Veteranos. Um dos três fundadores do ICI.

Bahjet Hayek, graduado em Administração de


Empresas e pós-graduando em Gestão da Qualidade, é
funcionário público. Faixa preta 5° dan, tem uma medalha
de ouro e três de bronze em Mundial de Veteranos. Um dos
três fundadores do ICI.

Cristian Cezário, formado em Educação Física e pós-


graduando em Gestão da Qualidade, é professor. Faixa preta
2° dan, tem cinco medalhas de ouro, uma de prata e uma
de bronze em Mundial de Veteranos. Um dos três
fundadores do ICI.

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