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Culturas, corpos e linguagens híbridas:

perspectivas decoloniais
VOLUME 2
Ana Carla Barros Sobreira
Fabiane Lemes
(Orgs).

Culturas, corpos e linguagens híbridas:


perspectivas decoloniais
VOLUME 2

TUTÓIA-MA, 2021
EDITOR-CHEFE
Geison Araujo Silva

CONSELHO EDITORIAL
Bárbara Olímpia Ramos de Melo (UESPI)
Diógenes Cândido de Lima (UESB)
Jailson Almeida Conceição (UESPI)
José Roberto Alves Barbosa (UFERSA)
Joseane dos Santos do Espirito Santo (UFAL)
Julio Neves Pereira (UFBA)
Juscelino Nascimento (UFPI)
Lauro Gomes (UPF)
Letícia Carolina Pereira do Nascimento (UFPI)
Lucélia de Sousa Almeida (UFMA)
Maria Luisa Ortiz Alvarez (UnB)
Marcel Álvaro de Amorim (UFRJ)
Meire Oliveira Silva (UNIOESTE)
Rosangela Nunes de Lima (IFAL)
Rosivaldo Gomes (UNIFAP/UFMS)
Silvio Nunes da Silva Júnior (UFAL)
Socorro Cláudia Tavares de Sousa (UFPB)
2021 - Editora Diálogos
Copyrights do texto - Autores e Autoras

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Diagramação: Geison Araujo Silva.
Revisão: Editora Diálogos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)

C968
Culturas, corpos e linguagens híbridas [livro eletrônico] : perspectivas
decoloniais: vol.2 / Organizadoras Ana Carla Barros Sobreira, Fabiane
Lemes. – Tutóia, MA: Dialogos, 2021.
192 p.

Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-65-89932-19-2

1. Linguagem e cultura. 2. Linguística. 3. Análise do discurso. I. Sobreira,
Ana Carla Barros. II. Lemes, Fabiane.
CDD 410

Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422

https://doi.org/10.52788/9786589932192

Editora Diálogos
contato@editoradialogos.com
www.editoradialogos.com
Sumário

Prefácio....................................................................................................... 8
Elaine Pereira Andreatta

Apresentação..........................................................................................10

A língua capital: poder ou aprisionamento...................................14


Eliana Ladeira
Fabiene de Oliveira Santos
Rogério de Castro Ângelo

“Diva”: o corpo em linguagem..........................................................29


Fabiene de Oliveira Santos

Happy Brexit day?..................................................................................41


Isabella Zaiden Zara Fagundes
Giselly Tiago Ribeiro Amado

Diversidade étnico-racial na educação infantil: vozes


docentes...................................................................................................56
Yone Alves de Souza
Romário Pereira Carvalho
Odair Ledo Neves

Colonialidade e a língua inglesa em “Hibisco Roxo” de


Chimamanda Adichie...........................................................................66
Mariana Ruiz Nascimento
Rogério de Castro Ângelo
Luana Inês Alves Santo

A utopia da demodiversidade em um contexto de discurso de


ódio perante a comunidade LGBTQ+.............................................84
Micaela Tavares Sampaio
Camila Maria Amorim Galvão de Magalhães
Thiago Allisson Cardoso de Jesus
Retalhos de um Paraná (de)colonial? Percepções acerca da
geada negra sob a ótica do Sul Global...........................................99
Carlos Elias Barros Sobreira Rodrigues

Representações metafóricas acerca do contexto educacional


em tempos de pandemia: uma análise discursiva crítica......111
Conceição Maria Alves de Araújo Guisardi
André Moura Ribeiro

Ética e desconstrução do direito como possibilidade de justiça:


identidade e diferença na formação do discurso jurídico.....128
Priscilla Gershon

Justiça e Democracia em Jacques Derrida................................148


Priscilla Gershon

Sobre as organizadoras....................................................................163

Sobre as autoras e autores...............................................................164

Índice remissivo..................................................................................168
Prefácio

No poema “Fábula”, Jarid Arraes anuncia: “desistir é coragem difícil/


somos programados/ para tentar”. É tentando, resistindo, reexistindo que
vamos sobrevivendo a esse tempo em que as lutas se intensificam pelo
mundo, e vamos “deslizando aos barrancos/ a pele das pernas/ esfolada/ os
pulsos marcados”. Em um tempo pandêmico , em que a batalha pela vida
se impõe sem que possamos ter um segundo para mobilizar alguns nossos
desejos antigos e agora tão estranhamente vagos, usamos também a ciência
como bandeira legítima para a sobrevivência, porque apesar de sabermos
que “a morte brinca com balas nos dedos gatilhos dos meninos”, como no
conto de Conceição Evaristo, “a gente combinamos de não morrer ”.
É no ato de existir e resistir que o livro que se apresenta em seu segundo
volume, Culturas, corpos e linguagens híbridas: perspectivas decoloniais,
reafirma, como no primeiro da série, que “desistir/ essa é uma coragem/ que
todos/ não temos” (ARRAES, 2018). Esta coletânea de artigos apresenta
uma potente crítica à colonialidade, ao capitalismo, às práticas de violência
e de opressão que evidenciam a necessidade de pensar em demandas que
clamam por justiça, fazendo política a partir da diferença, e desarticulando
o que nos paralisa pelo mutismo e pela fixidez de ideias, conceitos, práticas
e políticas. Esse movimento, portanto, emerge das experiências fronteiriças,
transpassando os conhecimentos estabelecidos pela racionalidade (pós)
moderna (MIGNOLO, 2003) , no âmbito dos encontros culturais.
Ana Carla Barros Sobreira e Fabiane Lemes, as organizadoras desses
dois volumes, reúnem neste, pela força da ciência que se embrenha
no pensamento multidisciplinar, as áreas de Linguagem, Educação e
Direito e abrem espaço aos pesquisadores para refletir sobre experiências
educacionais, como nos capítulos quatro e oito, ao analisar as práticas
pedagógicas antirracistas de professores da Educação Infantil de Cristalina-
GO e; ao refletir sobre representações metafóricas no contexto da educação
remota em tempos de pandemia. O debate ainda mostra a sua diversidade
nesta coletânea no campo da linguagem e do discurso nos capítulos um,

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três e cinco, ao mobilizar uma discussão profícua em torno do poder ou
aprisionamento da língua a partir dos comerciais de centros de idiomas, ou
pela análise discursiva do cartaz “Happy Brexit Day” para (des)construir
sentidos estabilizados, ou, ainda, pela análise das relações de colonialidade
materializadas por meio da língua, no caso a língua inglesa, a partir do
livro de “Hibisco Roxo”, de Adichie. É também a linguagem e o discurso
que se problematiza nos capítulos dois e seis, mas já voltados ao corpo e
à sexualidade, um por meio da análise da fotografia da obra artística de
Juliana Notari, a escultura de uma “vulva”, e outro ao pautar a gravidade
dos discursos de ódio e a violência de gênero às comunidades LGBTQ+.
Já o capítulo sete visibiliza vozes de sujeitos discriminados a partir de
mudanças sociais em decorrência do fenômeno da geada negra ao recuperar
as narrativas de agricultores e sujeitos do campo em um contexto ambiental
no Paraná. Por fim, os capítulos nove e dez, inseridos no campo do Direito,
discutem identidade e diferença na produção do discurso jurídico e a justiça
e a democracia em Derrida.
Os textos são inspiradores e marcados pelo constante diálogo com o
pensamento decolonial. Assumem para si debates tão necessários às ciências
humanas, com pautas sociais que mobilizam a lógica da sobrevivência
não só dos sujeitos que fizeram parte das análises pelos seus discursos
ou experiências, mas também pela força da voz dos pesquisadores e dos
organizadores deste livro. Neste movimento, eles se negam ao retrocesso
que vem com a interrupção de políticas públicas afirmativas acompanhados
de discursos conservadores. Suas vozes e ressonâncias são inscritas na
necessidade de vida e de luta, pois “é preferível morrer/ sorrateiramente/
em gorduras/ açúcares/ refluxos/ pedras nos órgãos/ no peito”, mas não
porque tivemos a ousadia de desistir. Então, participem conosco deste ato
e tragam seus saberes carregados de diversidade.

Elaine Pereira Andreatta


Professora na Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e
Doutoranda em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP).

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Apresentação

Esta segunda coletânea de artigos que compõe a serie Culturas, Corpos


e Linguagens Híbridas, está constituída de textos na área de Linguística,
Educação e Direito. E uma forma de contribuir para a construção de
um pensamento multidisciplinar, despolarizar o poder, fazer com que a
dinâmica de reflexões inclua novos sujeitos subalternos ou não, mas que sem
duvida tenham sido silenciados por um poder colonizador. Visualizamos
na seleção dos textos que constam neste segundo volume, o potencial de
sujeitos transformadores, que oferecem ferramentas de superação e que
acreditam em um mundo mais livre e igualitário,
No capítulo de abertura deste segundo livro A língua capital: poder
ou aprisionamento? Ladeira, Santos e Ângelo destacam que a língua inglesa
(LI) tem sido adotada como uma língua universal e unificadora, o que,
sob um sistema capitalista, parece ter incorporado forças de modo a
desterritorializar sujeitos desejosos dessa língua, a qual reflete discursos de
autopoder e empoderamento. A partir da análise de comerciais de centros
de idiomas, os autores tecem discussões acerca dos meios de legitimação
da língua “capital” política e economicamente, a qual se configura nessa
injunção, como “potência” colonial. Ao fim, os autores apontam para a
adoção de uma politica linguística que preza o hibridismo, a heterogeneidade
e a singularidade aprendizes de LI.
No capítulo “Diva”: o corpo em linguagem, Fabiene de Oliveira Santos
recupera a linguagem visual como ponto de afeto e de discursividade.
Tomando como materialidade discursiva a fotografia da obra de arte
criada por Juliana Notari, a escultura de uma “vulva” ampliada, a autora
mobiliza questões que envolvem linguagem, corpo e gênero, calcadas pelo
sistema patriarcal e pela colonização. Com base no pensamento decolonial,
em um movimento de análise e interpretação pela estética e pela ética, a
autora aproxima a performance à performatividade politica e intenta afetar
e impulsionar, e transformar sentidos para a reflexão e a conscientização
sobre corpos oprimidos, preconceitos sociolinguísticos, de gênero, ao Ser
para o Ser ser.

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Em Happy Brexit day? Fagundes e Amado objetivam, compreender
como as práticas discursivas (re)produzem a intolerância e o apagamento
do Outro em uma relação entre as posições-sujeito de dominância e de
subalternidade, e como a naturalização desses discursos contribuem para
a manutenção desses sentidos. Para tanto é erigida uma analise discursiva
do cartaz “Happy Brexit Day”, afixado às portas de Winchester Tower no
dia em que o reino Unido oficializou sua saída da União Europeia. As
autoras pontuam regularidades enunciativas das quais ressoam relações
dicotômicas de dominação e subalternidade, de forma a naturalizar sentidos
de intolerância e apagamento àqueles posicionados como estrangeiros na/
pela materialidade mobilizada.
No quarto capítulo, Diversidade étnico-racial na educação infantil:
vozes docentes, Souza, Carvalho e Neves analisam as práticas pedagógicas
antirracistas de professores da Educação Infantil no município de
Cristalina-GO e refletem sobre a educação e diversidade étnico-racial
numa perspectiva emancipatória para além das datas comemorativas. Os
autores apontam para os desafios do fazer pedagógico, pois, apesar das
políticas afirmativas, o currículo deixa de contemplar a multiplicidade e a
diversidade, confluindo na perpetuação do racismo estrutural a partir do
ódio e da rejeição das crianças negras ao seu corpo e suas origens, apagados
e silenciados cultural e historicamente. Nesse sentido, tornam-se urgentes
um maior envolvimento dos atores sociais desse processo, além de uma
formação continuada com vistas a promover a diversidade étnico-racial
nos ambientes de ensino-aprendizagem.
Em Colonialidade e a língua inglesa em “Hibisco Roxo” de Chimamanda
Adichie, Mariana Ruiz Nascimento, Rogério de Castro Ângelo e Luana
Inês Alves Santos propõem reflexões sobre as relações de colonialidade que
são materializadas por meio da língua inglesa (LI) no livro “Hibisco Roxo”,
da escritora nigeriana Chimamanda Adichie. A partir da análise, os autores
pontuam, o status de relevância social da LI, dado pelas necessidades
colonizadoras e abrangentes à pós-colonização. Nesse contexto, a LI se
tornou ferramenta balizadora da capacidade e superioridade do sujeito,
justificada pelas ações coloniais, assim diminuindo o valor das línguas
locais e servindo como instrumento de dominação também na Nigéria
pós-colonial. Para além do imperialismo e da colonialidade como efeitos

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provocados pela LI nos sujeitos, por último, arrola-se acerca das politicas
linguísticas e das relações de poder envolvidas no processo de ensino de
línguas.
No capítulo A utopia da demodiversidade em um contexto de discurso
de ódio perante a comunidade LGBTQ+, Micaela Tavares Sampaio, Camila
Maria Amorim Galvão de Magalhães e Thiago Allisson Cardoso de Jesus
analisam os tipos de violência de gênero calcados em discursos de ódio, os
quais se dao nas comunidades LGBTQ+ frente à diligencia por direitos
básicos de proteção para o alcance de uma demodiversidade concreta.
Nessa mirada, são levados em consideração o contexto histórico e as
desigualdades e deslegitimações vivenciadas pelas comunidades vitimadas
no país, as quais são marginalizadas mediante o padrão colonial.
Em Retalhos de um Paraná (de)colonial? Percepções acerca da geada negra
sob a ótica do Sul Global, Carlos Elias Barros Sobreira Rodrigues aborda a
geada negra, ocorrida no norte paranaense em 1975, a qual impactou e
modificou vivencias dos sujeitos do campo. Sob o pensamento decolonial, o
fenômeno e suas consequências desnudaram um modelo neoliberal vigente
que buscava o lucro nas grandes plantações de café da região. Tendo em
vistas as formas de discriminação instituídas por um capitalismo fechado
e repleto de discriminações raciais, institucionais e sexuais, evidenciadas a
partir da catástrofe, o autor aponta para a imprescindibilidade de uma virada
epistemológica, cultural e ideológica capaz de sustentar soluções políticas,
econômicas e sociais que garantam a continuidade da vida humana e a
dignidade dos sujeitos do campo.
Em seu texto Representações Metafóricas acerca do contexto educacional
em tempo de pandemia: uma analise discursiva critica, Conceição Maria
Alves de Araújo Guisardi e André Moura Ribeiro, nos trazem reflexões
efervescentes acerca dos entraves que ocorrem para que a educação
remota seja efetiva. Os autores apontam para os problemas enfrentados
pelos professores, a falta de equipamentos tecnológicos e as fragilidades
do sistema de ensino que ficaram visíveis no contexto da pandemia do
COVID-19. Assim, segundo os autores, se pode observar como a pandemia
veio intensificar problemas sociais, desigualdades e os efeitos negativos para
as populações minoritárias.

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O penúltimo capítulo deste livro Ética e Desconstrução do direito como
possibilidade de justiça: identidade e diferença na formação do discurso jurídico,
Priscilla Gershon, sob a perspectiva da desconstrução derridiana do direito,
investiga de que forma se cristaliza, nos textos jurídicos, o resultado dos
entrecruzamentos entre identidade e diferença na produção do discurso
jurídico formulado em demandas por justiça. Considerando que, para
Derrida, é no paradoxo da indesconstrutibilidade da justiça que reside a
possibilidade de desconstrução do direito, a autora visa a compreender o
modo pelo qual distintas diferenças operam e são operacionalizadas nas
reivindicações por justiça, bem como as implicações éticas-politicas da
metafisica da presença na questão do singular e da alteridade.
Fechando esta coletânea, novamente a autora Priscilla Gershon
apresenta seu artigo Justiça e Democracia em Jacques Derrida onde a
autora discorre sobre o pensamento de Derrida e Levinas acerca da ética
e da alteridade. A autora provoca tensões entre os conceitos de justiça
e democracia, proporcionando reflexões acerca da vida politica como
construto de um ideal mais elevado.
O sonho de independência, de uma sociedade mais justa, que respeite
as diferenças e que seja emancipada intelectualmente, só pode ser alcançada
através da desconstrução dos conceitos cristalizados que ainda carregamos e
que se apresentam em nossos fascismos diários. A proposta desta coletânea
foi contribuir, para que novos sujeitos surjam em nossa sociedade, como
cidadãos críticos, capazes de não se conformarem com as injustiças sociais
e com o silenciamento dos menos favorecidos. Convidamos os leitores e
leitoras dos artigos que fizeram parte dessa coletânea, a conhecer e exercitar
nossa criatividade como seres humanos, nesse universo que deve ser
indissociável de ações receptivas, inclusivas e transformadoras.

Ana Carla Barros Sobreira-Doutoranda em Linguística Aplicada-IEL-


UNICAMP
Fabiane Lemes-Doutoranda em Estudos Linguísticos-PPGEL-UFU

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https://doi.org/10.52788/9786589932192.1-1

A língua capital: poder ou


aprisionamento

Eliana Ladeira
Fabiene de Oliveira Santos
Rogério de Castro Ângelo

Introdução

Os comerciais de TV das escolas de idiomas têm se tornado cada


vez mais criativos, apostando no carisma e na versatilidade de atores para
garantir o sucesso de seus comerciais e vender uma imagem de sucesso,
autoconfiança e empregabilidade. A missão destas escolas vai desde garantir
o fortalecimento intelectual e emocional a seus alunos, por meio de um
método próprio, original e inovador que garanta a comunicação deles
com pessoas do mundo inteiro, até ensinar as habilidades básicas como
desenvolvimento de aplicativos e websites, marketing digital, design digital,
empreendedorismo entre outros.
Pensando nisso e nos discursos que circulam, mormente pela
globalização, enaltecendo a língua inglesa como a língua régia, de poder,
e subjetivando não nativos a essa língua, ao empoderamento e “ofertas”
que ela carrega, a conclamamos como a língua “capital”, aludindo ou
metaforizando significâncias aos valores sócio-políticos e econômicos
que abraça. Nessa ótica, este trabalho tem como corpus de análise dois
comerciais de escolas de idiomas que foram veiculados na TV nos anos
de 2013 e 2014, que vendem uma imagem de sucesso, autoconfiança e
a garantia de status social. Nosso objetivo é analisar e verificar como os
discursos destas campanhas têm se legitimado, como as pessoas são afetadas

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por estes comerciais, e discutir o sentido de empoderamento da Língua
Inglesa (doravante LI), o hibridismo da língua e o espírito de colonialidade
que influencia o ensino-aprendizagem. 
As questões abordadas precisam ser discutidas e analisadas, permitindo
desvelar práticas enunciativas que estão implícitas e que não são perceptíveis
nestes comerciais, como práticas excludentes, sexistas e colonialistas.
Este trabalho está estruturado da seguinte forma: primeiramente,
lançaremos mão de reflexões e noções acerca da língua capital empregada
aqui, do mecanismo de empoderamento da/na LI, do hibridismo da
língua como efeito resultante do contato entre diferentes línguas e da
colonialidade entre falantes não nativos e nativos. E passaremos então à
análise dos comerciais para chegarmos em algumas considerações finais,
que não se esgotam, pois deixam pensamentos que podem se desdobrar. 

Fundamentação teórica

Iniciaremos nossas reflexões trazendo Pêcheux (2009), que entende


que a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos. A língua é a forma-material
da ideologia. Ela carrega forças e abstrações como ato concretizante.
Pensamos a língua capital como a língua que impregna, metaforicamente
e na metalinguagem, diferentes vertentes do termo capital. Como uma
cidade capital, a língua de destaque, que está como proeminente, e,
particularmente, pela globalização, a língua inglesa, considerada, por uns,
unificadora, a metrópole linguística.
A referência capital se enreda à malha do colonialismo e se alça ao plano
econômico, ao empoderamento mercadológico dessa língua que a história
erigiu. Da potência europeia à americana, concentrando no Inglês o fulcro
da nação. Uma força pelo capitalismo estruturante e homogeneizante
que dicotomiza e distingue dois polos homogêneos em sua formação,
pela natureza corpórea do sistema (re)produtor-produto. Justapõe aí o
produtor como a classe de produção dominante do produto e o produto
como duas esferas: a matéria-objeto do serviço e o sujeito-objeto da classe

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operária, serviçal objetificado e assujeitado. Mas, não menos assujeitado do
que o produtor envolvido na teia do capitalismo. Ambos, servo e senhor,
vassalo e suserano, alimentam um mesmo regime imperial de engorda e de
escravidão.
Porém, paira a ilusão de que o produtor, senhor da dominação,
em diferente posição social não ocupe um lugar de submissão. Ora, se
ele constitui parte de um processo só de sujeição ao capital, é peça do
mesmo jogo, visto que está na mesma formação discursiva, a capitalista.
Para Pêcheux (2009, p. 147), a formação discursiva (FD) é o que, a partir
de uma determinada posição, em certa conjuntura, pode e deve se dizer.
Assim, na língua capital, os dois polos, as duas posições se territorializam
pela língua homogeneizante que opera circunscrevendo o laço ou ranço
capital. Fato que possibilita fazer alusão a Pêcheux (2014, pp. 309-310) e
o retorno à “máquina” discursiva da primeira época da análise de discurso
com Pêcheux, a AD-1, no que tange ao outro estar subordinado à primazia
do mesmo. “O outro da alteridade discursiva “empírica” é reduzido seja ao
mesmo, seja ao resíduo, pois ele é o fundamento combinatório da identidade
de um mesmo processo discursivo”. (PÊCHEUX, 2014, p. 309). Isto é, o
sujeito que negocia nos termos capitalistas e que não vacila na língua, a
língua capital, o inglês imperial americano, contemporaneamente. 
Nesse estrato, funciona uma forma-sujeito-capitalista-imperialista,
efeito do assujeitamento à volta ao capitalismo monopolista, pré-
determinando um monolinguismo favorável à maquinaria linguística. O
que concorre para uma “robotização”, uma monocultura se valendo de
uma formação, uma FD, e pode evocar a “ilusão subjetiva” de Spinoza
dada à “ignorância das causas que nos determinam”, lembrada por Pêcheux
(2014, p. 310).
O que assistimos é o regresso cíclico, remodelado, mas contínuo, de
uma era imperialista capital ao império capitalista que se consolida e reina
com o discurso legitimado estadunidense como potência mundial e que
capta os sujeitos na esperança do poder projetado e discursivizado. Há um
desejo que se torna latente pela imagem de ser e estar nessa pátria. Mas,
se somos sujeitos de incompletudes, heterogêneos, híbridos, constituídos

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 16


pelo outro, na alteridade, como fragmentar e delinear o sujeito a uma
língua totalizadora que incute o poder, a plenitude? Que política linguística
responde?
Plenos a essa forma-sujeito-capitalista-imperialista, os americanos,
mesmos sob o teto da submissão para a operacionalização do capitalismo,
são os autorizados a gozarem da “voz” e da “vez”, do que “pode ser dito”,
posto que a homogeneidade prevaleça. Os demais estão escalonados nos
degraus, ou círculos representativos, como o de Kachru, e são representados
ou “falados por” estes.
Este ensaio, timidamente, não profere a elevação de um sistema a um
sujeito de si, mesmo que o espelho reflita essa cara ou coroa. Ademais, trata
não somente de refletir sobre o sujeito do “Terceiro Mundo”, o lugar do
subalterno, como, de mais a mais, do “Primeiro Mundo”, em uma extensão
como uma aldeia global, de distâncias encurtadas pela (1) interconexão –
em uma acepção pela tecnologia de informação e comunicação, que pode
pulverizar um discurso dominante – e pela (2) intraconexão – pelo vínculo
efetivo do sistema capital(ista). Soa paradoxal um sistema de conexão não
fluir para expansão global, um multiculturalismo, e, ao invés, confinar em
um(a) “capital”, de modo que a micropolítica acaba por asseverar o poder
da macropolítica.
A discussão de Spivak (2010, pp. 31-33) engajada sobre os sentidos do
termo representação, envolvendo o teórico e o oprimido, pode (re)significar
um olhar a esses “mundos” demarcados como primeiro e terceiro, ainda que
abaixo do mesmo “céu capital”. Destacando a bipartição mundial teórica-
prática, os sujeitos do “primeiro” escalão ocupam a posição que assegura
a representação aos do “terceiro” no ato político de “falar por”, e que, na
concepção visada aqui, não aparelha, não funda uma ação, pois os sujeitos
do primeiro mundo desconhecem as causas, os atos e os efeitos das práticas
vivenciadas no terceiro mundo. Desse modo, não podem nem serem “re-
presentados”. As diferenciações são “cobradas” pela língua capital. Uma
língua “pátria” que não acolhe, pois colhe o mesmo fruto separado, num
tom de normalizar, mas em prol de classificar. 

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 17


Na verdade, se mesmo o sistema capitalista necessita dos dois lados da
moeda, da força de trabalho engrenando-o, deveria uma língua “capital”,
o Inglês, que tenta, impulsiona o desejo e conduz os sujeitos ser a língua
universal, a cultura de poder? Ação ou dominação? “Ilusão subjetiva”,
desejo capital que aprisiona, língua-mãe de uma minoria que não pode
mais colonizar, frear ou clonar a produção multicultural, multilingual
com discursos de empoderamento da mais-valia. É preciso desvencilhar de
amarras coloniais e lutar pela genuína constituição do sujeito e da língua
híbrida com políticas linguísticas que primam pela heterogeneidade e
singularidade dos sujeitos.
Ao abordarmos a colonialidade, encontramos em Jordão e Martinez
(2015) subsídios para tratarmos sobre esta questão. Os métodos de ensino
que as escolas de idiomas empregam mascaram uma forma de colonizar
que não fica perceptível: a dicotomia entre falantes e não falantes de
LI, entre “nós” e “eles” (JORDÃO; MARTINEZ, 2015). Conseguimos
visualizar essa colonialidade na proposta de Kachru (1985) na qual fica
clara a hegemonia dos países do inner circle sobre os demais países do outer
circle e expanding circle.

Imagem 1: Representação sobre inner, outer e expanding circle.

Fonte: Adaptado de Kachru (1985).

No centro inner circle estão os países do Reino Unido, Estados Unidos


da América, Canadá, Austrália e Nova Zelândia onde o inglês é a base

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 18


tradicional. No outer circle estão os países onde a língua se tornou parte das
principais instituições de um país e desempenha um importante papel de
segunda língua em um ambiente multilíngue. No expanding circle estão os
países que reconhecem o inglês como World English, uma língua estrangeira,
veículo da comunicação internacional. Sobre os países do expanding circle,
Rajagopalan (2011) assinala que

Sobretudo em países do 'círculo em expansão', a língua inglesa se apresenta,


por um lado, como uma commodity muito valorizada num mundo que está
globalizando com uma rapidez assustadora (Phillipson, 1992; Krishnaswamy &
Burde, 2004). Por outro lado, ela também traz memórias, em especial em países
da América Latina, de um passado de ingerências, sobretudo dos Estados Unidos,
que sempre se acharam no direito de agir como os guardiões do seu 'fundo de
quintal' (RAJAGOPALAN, 2006b, 2005d).

Os três círculos chamam a atenção por trazer à superfície importantes


questões que precisam ser debatidas como o silenciamento de nós diante
deles (nas relações políticas de ensino no Brasil), o sexismo em que os
estereótipos são perpetuados através da memória discursiva (dos comerciais,
por exemplo), os problemas da colonialidade (o sentido de submissão aos
países do inner circle). 
De acordo com Pennycook (2007 apud JORDÃO; MARTINEZ,
2015, p. 77), há uma tradição que não problematiza as próprias concepções
do que venha a ser língua, perpetuando a relação de colonialidade entre
falantes não nativos e nativos, entre os “sem saber” e os “com saber”.
Segundo o autor, alimentamos a ilusão de um conceito de língua como se
fosse um objeto concreto material que não depende do sujeito, mantendo
em nossa memória o mito do inglês como uma língua internacional, objeto
que sempre ocupará essa posição.
É nesse ínterim da língua como discurso e das relações de colonialidade
entre falantes que o conceito de translinguajar de Canagarajah (2013)
possibilita problematizar as políticas de ensino, que alimentam as relações
hierarquizadas entre saberes e sujeitos, e colocam em perigo nossas
construções identitárias em relação ao outro como elemento desafiador da
estabilidade do eu.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 19


Jordão e Martinez (2015) discutem a complexidade das relações
políticas de ensino por um viés das teorias pós-coloniais que configuram
um espaço onde as formações discursivas recebem grande destaque e
informam as narrativas que constituem nossas realidades, posicionando-
nos como sujeitos (JORDÃO, MARTINEZ, 2015, p. 67), uma zona
discursiva propícia para analisar estas relações.
Encontramos, ainda, em Hashiguti (2013) elementos para
discorrermos sobre o sexismo por meio da imagem dos corpos que aparecem
nos comerciais de TV, pensando sobre os efeitos identitários e as relações do
sujeito com os sentidos em e sobre a língua estrangeira em uma perspectiva
pecheutiana (1975, 1983, 1990). Partindo dessa premissa, os comerciais de
TV são materialidades opacas em que vemos a abrangência dos processos
de produção de sentidos sobre e na língua estrangeira que podem ser
analisados com o intuito de compreender os discursos de marginalidade
e submissão ao “outro”. Com base nessas reflexões, passaremos agora à
análise do corpus que selecionamos para este trabalho.

Análise e reflexão acerca dos comerciais

Nosso corpus de análise é constituído de dois vídeos, de duas escolas de


idiomas que veicularam nos principais canais de TV, nos quais buscamos
compreender os aspectos da colonialidade e seus entroncamentos, as
relações entre não-falante e falantes, os processos de produção de sentido,
a materialidade dos discursos, a imagem dos corpos (os estereótipos) as
relações hierarquizadas entre saberes e sujeitos e o conceito de língua como
um objeto concreto, material que não depende do sujeito.
Os dois vídeos têm como público-alvo pessoas não-falantes de inglês
e o comercial é uma tentativa de vender um curso de inglês para esses não-
falantes, ressaltando as vantagens de se escolher aquela escola abordada
no comercial e não as outras. Buscaremos descrever, brevemente, os dois
comerciais e apontar para possíveis aproximações e distanciamentos entre
os discursos subjacentes à produção deles. 

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 20


O primeiro é o comercial de uma escola que oferece cursos de inglês
online. O comercial inicia com um rapaz jovem (o qual chamaremos de
J1), branco, de cabelo preto, sentado no sofá com um laptop no colo,
utilizando um fone de ouvido. Em seguida, entra um outro jovem
(doravante J2) na sala e há um movimento da câmera que passa a mostrar a
tela do computador. Nela, podemos ver uma garota jovem (doravante J4),
loira, branca, sorridente, fazendo um “tchau” com a mão. Nesse momento,
entra um outro jovem na cena, e começam um diálogo, o qual tentarei
transcrever/descrever abaixo:
• J1: Tá no seu cursinho de inglês online?
• J2: Na (nome da escola) eu tenho inglês com professores americanos.
(com o semblante sorridente)
• J1: Agora eu também tenho inglês com um professor super
americano.
• J2: Então fala alguma coisa em inglês.
• J1: I love rock and roll. (levantando do sofá e fazendo o símbolo
do rock com as mãos)
Entra em cena, da esquerda para a direita, um outro jovem (doravante
J3), negro, forte, trajando uma roupa que aparenta ser um uniforme de
futebol americano e derruba o J2 no chão, fazendo um movimento parecido
com um tackle do futebol americano. Em seguida, esse terceiro jovem que
entrou na cena diz:
• J3: It’s rock and roll man! (gritando e apontando o dedo para o
centro da câmera, dando a impressão de ser para o rosto do outro
jovem, que havia sido derrubado)
• J2: Esse é o meu teacher! (levantando-se do chão para sentar-se,
novamente, no sofá ao lado do J1, dando uma risada)
J3, que estava fora do plano de visão, aparece novamente, agora vindo
correndo da direita para a esquerda, arranca J2 do sofá e joga-o no
chão, e grita:
• J3: Teacher! Practice your pronunciation! (novamente gritando e
apontando o dedo para o rosto do J2)

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 21


Então, J2 responde, ainda deitado no chão:
• J2: Pronunciation? Hospitalization! (fazendo um sinal com a mão
em direção ao pescoço).
Em seguida, desaparecem os personagens e vemos a logo da empresa
e um voice over (VO) que diz o nome da escola. Em seguida, aparece
um computador, semelhante ao que o J1 estava utilizando no início
do comercial, e nele há a mesma jovem (J4) que estava sendo exibida
no computador, que diz:
• J4: Professores americanos, 24 horas por dia.

Podemos perceber neste comercial alguns elementos que contribuem


para formar o que estamos chamando neste trabalho de memória discursiva
dos potenciais estudantes de LI, público-alvo deste comercial. Um dos
fatores que nos chama a atenção é a questão da tentativa constante do
comercial em marcar a presença de um suposto falante nativo americano.
Alguns fatores concorrem para essa valorização. 
Primeiramente, o fato de o jovem 1 (J1), que representa neste
comercial o aluno da escola que fez o anúncio, desde sua primeira fala
verbalizar, em resposta ao colega que iniciou o diálogo, que na escola (x)
ele tem inglês com professores americanos. O peso de a escola oferecer aulas
com professores americanos é ainda mais forte no contexto em que foi
utilizada essa fala, pois o colega havia tentado desqualificar o curso que o
colega está fazendo, uma vez que a pergunta inicial havia sido: Tá fazendo
seu cursinho de inglês online? O fato de o curso ser referido no diminutivo
“cursinho de inglês” revela uma tentativa de desqualificação do curso.
Portanto, na resposta do colega, o fato de responder afirmando que tinha
aulas com professores americanos mostra uma valorização como positiva
em relação a esse contato com professores nativos. 
Além disso, no diálogo inicial, fica subentendido que J2 não faz um
“cursinho de inglês online”, portanto, podemos supor que ele estuda inglês
em um curso presencial (“não-online”). Uma das vantagens que ele coloca
para seu curso (não-cursinho) de inglês presencial é que agora (antigamente

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 22


não era assim, mas a escola trouxe uma inovação) ele também tem aulas com
um professor super americano. Ou seja, nesse diálogo em que está sendo
representada uma espécie de disputa entre qual escola/tipo de escola de
inglês seria melhor (a online, do comercial, ou a escola presencial), ambas
estariam com o “diferencial” de contar com um falante nativo, ou seja,
apesar da questão do meio, a natividade permanece, é peça fundamental
para eles.
Consideramos relevante ressaltar, neste trabalho, que além do fato
de esse discurso do falante nativo apontar para uma colonialidade, uma
posição de inferioridade do brasileiro (não-falante nativo de LI) em relação
aos professores nativos, há estudos que apontam para um questionamento
até mesmo de o que seria o conceito de falante nativo. Nas palavras de
Kubota (2004):

Na teoria linguística, falante nativo é uma pessoa qualificada para julgar a


gramaticalidade de frases (CHOMSKY, 1965). Em estudos de ASL (Aquisição
de Segunda Língua), o falante nativo provê modelos para a aprendizagem. Porém,
o termo não foi definido claramente em nenhum desses campos, apesar de ser
usado como se fosse um termo autoexplicativo. Em resposta a essa situação, alguns
pesquisadores (por exemplo Kachru e Nelson, 1996; Paikeday, 1985; Rampton,
1990) afirmaram que o uso casual de 'falante nativo' deve ser questionado e
problematizado. (KUBOTA, 2004).

Levando isso em consideração, vale notar que, no caso do comercial


que estamos analisando, numa tentativa de diferenciar o falante nativo
da escola online e da escola presencial, a forma como esse falante nativo
interage com os alunos (não-falantes nativos) se dá de forma bastante
diferenciada nas duas propostas de escola. A representação da falante nativa
da escola online é de uma professora que estava interagindo com o aluno,
por meio da plataforma online, de forma descontraída, o que pode ser
percebido por sua expressão facial descontraída/simpática. Já o professor
“super” americano do J2, da escola presencial, age com violência física em
relação às falas proferidas pelo aluno, jogando-o no chão, gritando com
ele e apontando o dedo para seu rosto para corrigir os “problemas” de
pronúncia.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 23


Passemos agora à descrição/análise do segundo comercial. Trata-se de
um comercial de uma escola que oferece ensino de inglês e espanhol na
modalidade presencial e que possui franquias espalhadas pelo Brasil. 
Nesse comercial, veiculado em 2014, inicialmente vemos uma vista
panorâmica da cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos. No centro da
tela podemos ver o topo de um arranha-céu. Em seguida, nos é apresentada
uma situação bastante inusitada/inverossímil. A sequência do vídeo mostra
a parte de dentro de um elevador que já tinha algumas pessoas dentro, a
porta do elevador se abre e quem entra é uma atriz hollywoodiana: Jessica
Alba. Uma das pessoas que está no elevador portando uma câmera no
pescoço é um jovem moreno que começa falando em português: “Não
acredito!”. Em seguida ele começa a falar com a atriz, em inglês, dizendo
ser fã dela. 
Consideramos relevante o fato de o comercial já iniciar colocando
como plano de fundo uma paisagem de uma cidade norte-americana,
novamente trazendo um país do inner circle. Além disso, é mobilizado
neste comercial a figura do brasileiro que aprende inglês para fazer turismo
no exterior. Entendemos que uma das motivações que levam as pessoas a
aprender uma língua estrangeira é, de fato, para se comunicar com outras
pessoas, de diferentes nacionalidades, sobretudo em situações de turismo.
Todavia, acreditamos que a repetição dessa figura do turista brasileiro (não
nativo de um país que tem o inglês como língua oficial) que precisa sair do
país para falar inglês com o “nativo” (sobretudo um americano) remonta
à ideia de colonialidade e de discriminação/separação entre aqueles que
sabem falar inglês e os que não sabem falar inglês. Nesse paradigma, o
sucesso linguístico é associado ao sucesso financeiro e à possibilidade de
desfrutar de viagens internacionais, o que pode ser lido também como
a dificuldade/impossibilidade de os não-falantes do inglês de terem essas
possibilidades - novamente temos a figura da língua como capital.
Na sequência do comercial, várias situações do universo de filmes de
terror passam a acontecer com os personagens no interior do elevador, aí
incluso o turista brasileiro (que teve o prazer/privilégio de conversar com a
“nativa” atriz hollywoodiana): uma cobra sai de dentro de uma cesta, uma
garota de cabelo escuro gira o pescoço em 180 graus para conversar com
o garoto, um zumbi tenta entrar no elevador, mas a porta fecha quando

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 24


apenas o braço havia entrado. Contudo, o jovem age com naturalidade e
continua a conversar em inglês com a atriz, que se mostra apavorada com
as situações. 
Ao final do comercial, há uma mensagem em voice over: “Quando você
estuda ‘na escola Y’, nada abala sua confiança!”. Essa fala final do comercial
pode ser lida como uma espécie de afirmação de que é possível que um(a)
brasileiro(a) fale inglês com confiança, ou seja, que é possível ter acesso a
esse capital linguístico a ser usado para “desbravar o mundo” - desde que
você estude “na escola Y”. Em outras palavras, coloca-se a língua inglesa
como uma língua do outro, quase inatingível, porém inscrevendo-se numa
lógica da língua como commodity, como mercadoria a ser consumida por um
público que futuramente - quando atingir a “fluência” do “falante nativo” -
poderá utilizar essa língua/mercadoria em viagens e para (potencialmente)
conversarem com confiança com os americanos.

Reflexões e considerações finais para o momento

O inglês, não raro tomado como uma língua global/língua franca,


desperta o interesse das pessoas que vão em busca de escolas de idiomas
(tanto presenciais quanto online) para suprir suas necessidades, sejam elas
de estudo, trabalho, turismo, negócios, entretenimento, por afeto, entre
outros. 
De acordo como Santos (2017), Rajagopalan pontua esse efeito do
World English como resultante do contato entre diferentes línguas pelo
colonialismo, e, particularmente, pelo contexto de globalização que facilita
o multilinguismo, e aponta para o fenômeno do “World English”, um inglês
mundial, como uma língua que se transforma constantemente, nutrindo-
se da comunicação e da influência entre línguas distintas (RAJAGOPLAN,
2009 apud SANTOS, 2017, p. 24). Além disso, Rajagopalan (2011)
declara que a língua inglesa toma o formato de uma língua proteiforme,
onde falares e sotaques diferentes convivem e, por vezes se digladiam entre
si. 

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 25


Percebemos na discussão dos dois comerciais analisados neste trabalho
que o discurso que está subjacente é um discurso da valorização do outro,
de subordinação do brasileiro (não nativo) em relação ao norte-americano
(representante da metrópole, do colonizador). No primeiro comercial
isso fica mais evidente, uma vez que se valoriza o fato de o aluno ter aula
com professores americanos - como se apenas por ser americanos eles já
tivessem um conhecimento sobre o todo da língua e deixando à margem
qualquer discussão sobre questões pedagógicas/didáticas na preparação
desses professores - basta que sejam americanos. Mesmo na situação em
que o brasileiro (não mais o americano) é representado como alguém que
fala inglês “com confiança”, isso é marcado como um diferencial da “escola
Y”, em que o aluno é representado como alguém que vai em busca do
inglês para poder viajar, explorar o mundo, como se isso só fosse outorgado
àqueles que passam a possuir esse capital linguístico, a língua enquanto
commodity. 
Nesse sentido, defendemos que as pessoas não precisam perder seu
sotaque brasileiro de falante de inglês em detrimento de um sotaque nativo
perfeito, pois não há mais um sotaque nativo de referência para todos
aqueles que aprendem e ensinam o inglês como língua estrangeira, assim
eles são e continuarão sendo falantes brasileiros de inglês. 
Ainda sobre essa questão, Canagarajah fala da importância de uma
não entrega de corpo e alma a supremacia e aos encantos da LI, dizendo
que

muitas coisas podem ser feitas a fim de negociar, modificar e até mesmo
contrabalancear o poder imperial [da língua inglesa] – pelo menos em domínios
limitados – criando no processo relações mais igualitárias (CANAGARAJAH,
1999, p. 211).

As relações políticas de ensino precisam ser (re)pensadas e (re)


construídas a fim de que evitarmos a subordinação aos países do inner
circle. Uma saída possível seria lançar mão das teorias pós-coloniais no
sentido de questionar a narrativa ocidental modernidade, que favorecem
aos países falantes da LI em detrimento dos países em expansão. 

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 26


Um dos caminhos possíveis para se evitar esse assujeitamento seria
adotar o translinguajar sugerido por Canagarajah (2013). Segundo autor,
por meio deste conceito podemos fugir do binarismo linguístico adotando o
translinguajar “que assume a heterogeneidade dos sujeitos, das comunidades
linguísticas e dos processos de comunicação... as práticas translinguais
pautam-se em uma orientação diferente da monolíngue dominante,
desfazendo as posições fixas entre “nós” e “eles” (CANAGARAJAH, 2013,
p. 09, apud JORDÃO; MARTINEZ, 2015 p. 79). 
Consoante ao autor, a translinguagem ressalta a transcendência da
comunicação em relação às “línguas individuais” e às palavras, pois envolve
o uso de diversos recursos semióticos. Práticas translinguais exigem, desta
forma, um olhar sensível às similiaridades-na-diferença e às diferenças-na-
simililaridade. 
É nesse rumo que pensamos esse trabalho, não aclamando uma
“língua capital” que domine, busque homogeneizar nos caminhos do
capitalismo e aprisione, e prezando por uma política linguística que prime
pelo hibridismo, pela heterogeneidade e pela singularidade dos sujeitos.

Referências

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CANAGARAJAH, S. Theorizing a Competence for translingual practice at the contact
zone. In: MAY, Stephen (ed.). The multilingual turn: implications for SLA, TESOL and
Bilingual education. New York: Routledge. p. 78-102, 2014.
HASHIGUTI, S. T. O corpo nas imagens em livros didáticos de língua inglesa: repetição
e regularização de sentidos. In HASHIGUTI, S. T. (org.) Linguística Aplicada e ensino de
línguas estrangeiras: práticas e questões sobre e para a formação docente. Curitiba: Ed. CRV,
2013. pp. 35-58.
JORDÃO, C. M; MARTINEZ, J. Z. Entre as aspas das fronteiras: internacionalização
como prática agonística. In: ROCHA, C. H.; BRAGA, D. B.; CALDAS, R. R. (Orgs.)
Políticas Linguísticas, ensino de línguas e formação docente. Campinas: Pontes, 2015. pp. 61-
87.
KUBOTA, M. Native speaker: a unitary fantasy of a diverse reality. JALT Publications. V.
28. Issue 1. jan. 2004. Disponível em: https://jalt-publications.org/tlt/articles/1906-native-
speaker-unitary-fantasy-diverse-reality. Acesso em: 20 ago. 2020.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 27


PÊCHEUX, M. A análise de discurso: três épocas (1983). In: GADET, F.; HAK, T
(Orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux.
Tradutores Bethania S. Mariani... [et al.]. 5. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP,
2014. p. 307-315.
 PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Pulcinelli
Orlandi et al. 4. ed. Campinas: EDUNICAMP, 2009. 
RAJAGOPALAN, K. Vencer barreiras e emergir das adversidades com pleno êxito, sempre
com o pé no chão. In: LIMA, D. C. de. (Org.) Inglês em escolas públicas não funciona? Uma
questão, múltiplos olhares. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. pp. 55-65.
SANTOS, F. de O. Corpo visível na formação do professor de língua inglesa na educação
a distância: um estudo discursivo. 2017. 114f. Dissertação (Mestrado em Estudos
Linguísticos) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2017.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty (1942). Pode o subalterno falar? Tradução de Can the
Subaltern Speak? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa,
André Pereira Feitosa. Belo Horizonte, BH: Editora UFiviG, 2010.

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https://doi.org/10.52788/9786589932192.1-2

“Diva”: o corpo em linguagem

Fabiene de Oliveira Santos

Introdução

A linguagem visual, funcionando pela estética e pela “ação-reflexão”, é


signo de afeto1, ponto de afeto e de “discursividade”. Por assim, sobretudo
na contemporaneidade com os avanços da comunicação em rede, as
linguagens se fundem, hibridizam-se e, cada vez mais, torna-se necessária
a pesquisa sobre as diferentes formas de enunciação e de produção de
sentidos. É nessa ótica que a escultura é tomada como objeto de análise
posto à interpretação, particularmente, a Escultura da artista de Recife,
Juliana Notari, de 2020, como materialidade linguística e histórica para
este texto.
Como obra experenciada por uma mirada discursivo-interpretativa -
em meio a outros processos de leitura, olhares, afetos e efeitos que possam
surgir mediante as construções de sentidos e circulações, e identificações
- não se pensa as interpretações consideradas, portanto, como verdades
universais, mas como um recorte dentre e/ou como “o possível do dizer”,
isto é, um recorte em determinado momento e que pode ser um “ponto” a
outros momentos; recorte este que ora é lançado “com” uma “Mulher”2 do
Sul global, e é dessa posição/visão que esse estudo busca um “divar3” – corpo,
língua, voz – e um devir de um Ser “com” – humanidade e singularidade.

1 O afeto aqui é pensado pela perspectiva spinozana. Assim, relaciona-se o afeto ao que move as pessoas, ao que as afeta,
aumentando ou diminuindo a potências delas de agir.
2 As aspas aqui são para sinalizar outros corpos em reconhecimento, e como se diz da posição de um corpo marcado no
quadro colonial como tal, a letra “M” maiúscula, busca afirmar um corpo vivido, sem, portanto, deixar de reconhecer a
história das mulheres e a luta feminista; posicionando-se, sobretudo, em prol da igualdade e libertação dos corpos/órgãos
oprimidos, reprimidos, marginalizados.
3 Inspiração, reconhecimento de e em igualdade, equiparação, respeitando as singularidades.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 29


A obra, em uma conjuntura sociopolítica e estética, localizada no
município de Água Preta, na Zona da Mata Sul de Pernambuco, integra
a Usina da Arte, e é um convite, a “céu aberto”, à apreciação da arte e da
beleza “ocultada” de parte do corpo reconhecido como feminino. Apesar
do tamanho gigantesco (com 33 m de comprimento, 16 m de largura e
6 m de profundidade), a escultura remete à vagina, à vulva, órgão sexual,
marcadamente no quadro colonial, como do corpo conhecido como
feminino. O trabalho artístico intitulado “Diva” também pode ser percebido
como uma “ferida” ensanguentada, aberta, como a não cicatrização de um
passado-presente de subjugação feminina. É o retrato da hiper-realidade
geometrizada na cadeia do visível que se integra ao dizível, historicamente.
Traduz, portanto, efeitos e afetos de uma cultura ocidental, de uma visão
antropocêntrica, falocêntrica, como de uma colonialidade de poder, do ser.
(MALDONADO-TORRES, 2009).
Desse modo, mediante a circulação de dizeres sobre essa
materialidade, é que se propõe pensar essa escultura, ainda em meio
ao quadro colonial, por uma perspectiva de(s)colonial, que lança
à visibilidade a potência feminina, como uma (re)ação de uma
performatividade de gênero.

Di-va: uma discursividade de gênero no passado-


presente à decolonialidade

Ao tratar o corpo e a imagem significando como visibilidades em suas relações


com o discurso, queremos indicar que nossas reflexões sobre linguagem partem
de uma postura problematizadora, isto é, aquela que se refere a um estado de
permanente de criticidade do pesquisador em relação ao tema, às teorias, aos
métodos de análise [...]. Tratamos, assim, de objetos de estudo que funcionam
em processos de produção de sentidos pela inseparabilidade da língua e das
visualidades, seja porque os corpos e as imagens que olhamos são também
descritos, e discutidos pela língua já ordenada pelo discurso, seja porque
perscrutamos essas materialidades da forma como aparecem em meio ao verbal,
seja porque nossos corpos estão sempre lá, no momento da interpretação, sendo
afetados pelas diferentes materialidades ou afetando-as por sua visibilidade.
(HASHIGUTI; TAGATA (2016, p. 10).

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 30


É por essa entrada que a materialidade manifesta é a escultura. Esta,
não como obra passiva em inércia, mas como “ponto”, metaforicamente,
“de entrada” – ao visível e “de saída” ao dizível. Posto que é ponto de
ação, de “afeto”, que desperta e conecta os sentidos e mobiliza os signos
e “encadeamentos discursivos” – memórias, sentimentos, imaginação –
corpo(s) em movimento(s), ou, que seja, ela é materialidade linguística e
histórica.
Em sua materialidade visual-interpretativa, a imagem plástica de
concreto armado, pintada em resina, vislumbra a cor vermelha em tom
forte e, em composição com as ondulações modeladas em textura de
emissão ótica acetinada, parece dar uma sensação de/para vibrar. A cor
vermelha intensa chama à carne, à vida e, em meio ao verde, que remete à
esperança, envolta à natureza, pode significar o ser em seu natural, “como
veio ao mundo”, ou mesmo a própria vida, a proveniência divina e maternal
(o expelir) da vida/do ser, especialmente em virtude de a Escultura estar
voltada para o céu. Nesse sentido, remetendo ao discurso religioso, poderia
simbolizar a “mulher no paraíso”, mas isso em contraste com o discurso da
sexualidade, e com discursos sobre o corpo especificado como feminino,
como: “a mulher com direito ao prazer; e não como mera reprodutora”.
Isto pois, a materialidade significante da escultura convoca à relação sócio-
histórica imbricada ao significado materializado.
Afinal, quando se pode falar a respeito dos órgãos femininos, explorar
“sem pudor”, em abertura ao que permaneceu reservado ao discurso
médico e, principalmente, o que se fechou e calou ou se “guiou” (se disse,
mas dentro de um regime de poder, sob vigia e controle) em razão do
sistema patriarcal e do machismo. Antigamente, falar sobre o corpo e
suas partes “intimas”, sobre o sexo, era uma forma de pecado ou falta de
respeito ou de decência; uma técnica de sujeição dos corpos e censura dos
corpos e do prazer. Pode-se pensar aqui no que Foucault (1988) aponta
como “tecnologia do sexo” e os acontecimentos na história do Ocidente
cristão, aos que sucederam nos séculos XVIII e XIX, como, em analogia,
deslizar para “tecnologia do corpo”, em face de “dispositivos de poder”
(FOUCAULT, 1988, p. 45-47). Por dispositivo, entende-se aqui o que

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 31


Foucault (2012, p. 364-367) indica como um conjunto heterogêneo que
engloba várias instâncias, como discursos, instituições, leis e outras; como
o dito e não dito, o discursivo e o não discursivo. Logo, relaciona-se a
dispositivos, como o do machismo, que se instala(ra)m em uma política
e economia sexual, marcadamente, binária de poder masculino, em um
sistema heteronormativo, de/para controle dos corpos.
Nessa vertente, essa expressão artística pode emergir como um modo
de incitar um “contradiscurso” e expor o prazer de “ser”, bem como aguçar
o corpo, o feminino ou outro, (para) a “vontade de saber” (FOUCAULT,
1988, p. 17). Ela pode ser um movimento que vem contradizer/desafiar
esse tempo de colonialidade. Esta, como define Quijano:

A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial


do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica
da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e
opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjectivos, da
existência social quotidiana e da escala societal. Origina-se e mundializa-se a
partir da América. (QUIJANO, 2009, p. 73).

Desse modo, emana a possibilidade que a obra concebe de irromper


e ensejar o sentido de decolonialidade (ou descolonialidade), ou seja, de
um possível projeto de enfrentamento dessa construção colonizatória de
poder, da colonialidade de poder4 que opera com o padrão eurocêntrico,
controlando as subjetividades e subjugando os “inferiores”, inferiorizados,
de forma a prevalecer a dominação, as discriminações e um regime de
servilidade ou de negação de subalternizados. Trata-se, então, de um
processo de luta contra a opressão, a fim de se ter a equiparação dos corpos
no espaço e no tempo, no intuito da realização da igualdade racial, social,
de gênero, de sexo e de outras mais desigualdades existentes. Portanto, a
decolonialidade se refere à mudança de uma mentalidade instaurada pela
imposição e permanência do sistema patriarcal e da colonialidade de poder,
que se somam à operacionalidade capitalista nesse enredo da modernidade.
A decolonialidade é a consciência e conscientização disso.

4 A esse respeito ver QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do Poder e Classificação Social, 2009, p. 73-117.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 32


A partir dessa compreensão, a escultura também pode ser relacionada
com outra obra de arte que foi exposta na cidade de Johannesburgo na
África do Sul, trazendo, através de outro material, a materialidade de
uma “vagina ampliada aos berros”, como é possível observar no vídeo da
“AFP”5, postado em 2013, em que a responsável pela exibição “Reshma
Chhiba” comenta que a arte representa um símbolo de revolta e poder
sobre “como fomos educados a pensar em nossos corpos”. Isto traz à tona
como esse órgão foi desenhado, no regime patriarcal e colonial, como uma
“coisa secreta”, algo que deveria ficar “escondido”, retraído em um corpo
objetificado, “coisificado”, pois era reservado à utilização do sexo - para o
prazer do outro - e à reprodução. Para esse órgão, como para quem o abriga/
abrigava, o visível e o dizível a respeito dele parecem/pareciam “guardados”,
como forma de controle, ou escondidos como modo de esquecimento ou
apagamento, emergindo sentidos que se filiam a uma história de um corpo
marcado pela opressão. De modo diferente, o órgão reconhecido como
masculino é/era significado como o símbolo da virilidade, da potência,
logo, pode/poderia ser exposto como o “belo-poder”. “Diva”, ainda,
pode ser associada com a pintura “A Origem do Mundo” de Gustave
Courbet,18666. Essa escultura e obras de arte como essas evocam afetos
e ressoam, geralmente nesse estrato histórico marcado pela colonialidade
e pelo sistema do patriarcado - em suas faces de insistência contínua -,
expressões, exemplificando, de espanto por uns (como um “choque” às
próprias inscrições, atitudes e visões), de vergonha por outros (como por
mulheres e cristãos formados na tradição colonial e patriarcal de poder),
de admiração por alguns (admiração como visualizar coragem e um ânimo
desafiador desse quadro colonial, mas aqui cabendo duas visões opostas,
uma, por alguns, como sendo “positiva”, no sentido de vibrar uma força
e de acreditar no propósito da obra; e diferentemente, por outros, uma
admiração como sendo “pejorativa”, com ironia, como deboche por uma
admiração que possui um sentido revestido de poder de quem acusa, como
com a seguinte declaração que já soa como natural para uns: “isso foi longe
demais”).
5 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RAaVrWAkHHg>. Aceso em 25 abr. 2021.
6 Como aponta a matéria disponível em: <https://dasartes.com.br/colunas/noticias-da-franca/a-origem-do-
mundo/>. Acesso em: 25 abr. 2021.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 33


Enfim, essas formas de expressar revelam reações, visto que, se
aproximam ou distanciam, se misturam ou divergem, sensibilizam e
causam impacto. Tais expressões (artísticas, humanas) são um reflexo desse
tempo de embate entre o passado e uma pretensa mudança histórica. É
nesse sentido que podemos perceber essa obra como uma “presença”, como
um sentir/pensar de uma luta social, conforme aponta Santos (2019, p.
153), ao trazer a ideia proposta pelo sociólogo colombiano Fals Borba do
“sentipensar”, com um significado político que se refere ao encontro do
conhecimento com o sentimento, ou, ampliando, da razão com a emoção.
Por essa linha, pode-se visualizar uma perspectiva de decolonialidade, de
afetar e, pela experiência ao olhar, de atravessar o corpo (corpo e alma)
e fazer emergir, pela sensibilidade, a emoção e o sentimento e sentido
de/da razão, a consciência da prática discursiva incutida e das ideologias
operantes.
A escultura é uma potência de afeto, isto é, ela causa reações em meio
às relações de poder, pois. Ela não é neutra pela língua e pelos sujeitos
a partir da visualidade/visibilidade e discursividade que também não
o é. Aqui, também, cabe a noção do termo de Bellour, sinalizado por
Hashiguti (2016, p. 203), “pontos de visibilidade” como incorporação de
imagem. A “Diva” foi incorporada à natureza pernambucana, como obra
à leitura ao mundo, como o visível funcionando ao dizível, ao já dito e
ao devir. Destarte, pensando na projeção e dizeres com o acontecimento
dessa escultura, é possível abordar a noção proposta por Hashiguti (2016,
p. 190) de “pontos de discursividade”, uma vez que a obra possibilita o
funcionamento e hibridização de “ver” e “dizer”, ainda que não expressa
na materialidade, mas que se desprende dela, por vezes, em simultâneo, ao
“atravessar o corpo”, ao ver se diz com o olhar, com o corpo, bem como
pode trazer a oralidade como outro modo de exprimir o dizer sobre. Com
efeito, a admiração, um sentimento outro diz pela expressão facial, pelo
olhar/corpo/gesto, e as palavras verbalizadas também podem vir à tona
para reforçar esse dizer/ver do “eu” ao “outro”.
Logo, como “ponto de e para” a escultura incomodou. O sexo,
nomeadamente, feminino “atiçou”, perturbou a ordem. Diante disso,

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 34


observa-se a crítica acirrada da obra artística7, de repercussão internacional,
viralizando pelas diversas redes sociais, encerrando, na dicotomia colonial,
pontos de vistas opostos. Se, por um lado, convida à luta feminina,
feminista, e/ou outras, por outro lado, a outros olhares, traz à tona
uma provocação que é tida, de certo modo, em um cenário de domínio
conservador, como uma “aberração”, ou afronta ao poder masculino ou
de representação de outros (a)gêneros, sexos, assexuados. Como indica
Notari, em vídeo publicado no youtube por “Art1”8, o trabalho artístico de
repercussão internacional, também, sofreu “ataques” de vários lugares, uma
vez que a misoginia, como lembra a autora, é uma questão sócio-histórica
milenar, que parece estar enraizada no mundo. Ela ainda relata que outra
crítica recebida foi sobre a “transfobia”, e esclarece que cada corpo tem
suas questões, investigações que são peculiares; dessarte, não seria anular
um gênero/sexo ou outro, pois “as sexualidades, elas são múltiplas, elas são
trans, o tempo todo”, as pessoas, o mundo, o tempo, não são fixos, está
tudo em constante movimento.
De qualquer forma, é certo que o olhar do sujeito-observador, o
enquadramento visual da escultura que realiza, pode revelar, discursivamente,
suas inscrições em determinadas formações discursivas e constituições,
repetindo um quadro colonial com um olhar/dizer e enquadramento
pelo masculino colonial-patriarcal dessa parte do corpo nomeado como
feminino retratada. Esse olhar do colonial também pode ser visto a partir
da explanação de Hashiguti (2016, p. 199) ao trazer De Lauretis com
as “tecnologias de gênero” e o enquadramento de filmes, câmeras, que
constroem lugares sociais, posicionando, por exemplo, os homens como
protagonistas, no controle, e enquadrando as mulheres, pelo olhar de um
homem, como o diretor, em oposição ou em posição inferior ao lugar do
masculino. E, mediante isso, discursos machistas e desdobramentos desses
discursos podem aflorar e reverberar, bem como a “violência” (verbal, física,
moral) contra a mulher, o que não deixa de manifestar “o medo”, ocultado
por detrás da outra face.

7 Sobre isso ver também, por exemplo, a matéria disponível em: <https://umbigomagazine.com/pt/
blog/2021/01/22/juliana-notari-revoluciona-a-usina-de-arte-com-diva/>. Acesso em: 25 abr. 2021
e a matéria disponível em: <https://br.noticias.yahoo.com/artista-pl%C3%A1stica-recebe-ataques-
ap%C3%B3s-122131232.html>. Acesso em: 25 abr. 2021.
8 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=lrJfDP5dQSA>. Acesso em 25 abr.2021.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 35


Determinadas críticas podem até assentar a criação da obra como em
um “processo de histerização da mulher”, revelando um desdobramento
de uma estratégia que Foucault (1988) denominou de “dispositivo da
sexualidade”. No entanto, talvez, seria isso, ou seja, uma “virada sobre
isso”, um “basta” impactante à normatização e segregação dos corpos, às
desigualdades incutidas, em especial neste estudo, ao corpo reconhecido
como feminino ou identificado com esse, reprimido, abusado e violentado
historicamente por tanto tempo. Não uma naturalização ou um consumismo,
em meio à natureza, contudo uma sensibilização, uma experiência de ação
e posicionamento frente à devastação do ser e da natureza. Assim, talvez,
a escultura possa ser vista como o retrato do que Foucault (2012, p. 236)
aponta como o corpo/órgão em representação/interpretação em “jogo” em
uma luta entre instâncias socias e institucionais. “A revolta do corpo sexual
é o contraefeito dessa ofensiva”. (FOUCAULT, 2012, p. 236).
“Diva”, nessa via, trata-se de uma expressão performática, de uma
reação e ação à performatividade de gênero que o sistema binário, patriarcal,
colonial insiste em demarcar. E, como indica Butler (2016, p. 242) o
gênero é uma identidade construída no tempo, em um espaço exterior
pela “repetição estilizada de atos”. Assim, novas performances podem
possibilitar outras construções discursivas e performatividades. É nesse
sentido que se pode perceber essa obra como um modo de “rompimento”
com as barreiras de gênero e de sexo, pois “escancara” construtos sociais –
coloniais e patriarcais - a respeito do gênero e do sexo como, por exemplo,
realidades e verdades construídas sob a moral, a estilização do corpo, a
naturalização da heterossexualidade, da heteronormatividade e da função
reprodutora, referida nesse quadro colonial, da mulher em relação a um
desejo e conhecimento próprio ou singular. É uma performance que “foge”
das “convenções sociais” e se soma a outras (que não se enquadram/filiam
ao consenso social da hegemonia patriarcal) e encadeia dizeres que propõem
esse sentido, como, no caso, a respeito dos direitos da mulher, da luta
feminina e feminista e de outras historicidades oprimidas e desautorizadas,
minorias marginalizadas, reiterando outras práticas discursivas. Ela pode
ser pensada como um ressoar, um “eco” a referenciar; o que é aquilo

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 36


que propicia sua força performativa. Vale ressaltar que a performance de
gênero que pode expressar uma performatividade de gênero não se trata
especificamente de uma expressão artística, um ato performático em si,
como essa escultura se pensada isoladamente e de forma passiva, mas da
repetição estilizada de signos que dela provém ou que a ela se articula,
como de pontos de discursividade em reiteração – como para subversão ou
movimento de resistência em realização, como para a transformação.
Por outra perspectiva (não em oposição), a arte pode ser percebida sob
o atuar de forças centrífuga e centrípeta. A força centrífuga estaria a agir nas
profundezas da brecha ao meio, pela gravidade, pelo mundo, mas como
modo de uma “essência”/existência do ser, da língua, não unificação, mas
“unidade” no sentido de integração e conexão com e para a coletividade.
De outra maneira, a força centrípeta, esta, poderia ser pensada como a
dispersão dos sentidos que faz romper ao mundo, irradiar, criar e motivar
outras “singularidades”, “multiplicidades”. Assim, uma espécie de reflexão-
analítica caberia a respeito dessa mobilidade que (trans)forma, ou seja,
sobre a visão do que se poderia lançar ao interior da “vagina” e o quê dela
ou de dentro dela se ligaria ou sairia para o exterior. No tocante à Escultura,
metaforicamente, podemos pensar nos conceitos de desterritorialização
e reterritorialização de Deleuze e Guattari (1995), como na abordagem
relacional sobre o livro e o mundo:

É a mesma coisa quanto ao livro e ao mundo: o livro não é a imagem do mundo


segundo uma crença enraizada. Ele faz rizoma com o mundo, há evolução
a-paralela do livro e do mundo, o livro assegura a desterritorialização do mundo,
mas o mundo opera uma reterritorialização do livro, que se desterritorializa por
sua vez em si mesmo no mundo (se ele é disto capaz e se ele pode) (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p. 19).

Ademais, a horizontalidade em que a escultura pode ser percebida


não deve ser entendida como inércia, mas com o sentido que chama para
a igualdade, lembrando que ela está para ser contemplada no horizonte,
voltada para o céu; assim, livre, liberta a possibilidades, a desprender
de olhares “aprisionadores”, “ela” (em representação) se depara com a
liberdade/possibilidades.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 37


A obra de arte, desde sua criação, constitui a cena da problemática
colonialidade de poder, de gênero, de raça, social – e estas em
interseccionalidade -, instaurada no Brasil. De acordo com as matérias
difundidas9, Juliana Notari ao divulgar em sua rede social uma foto em que
se encontra dentro da obra em processo de escultura, estando ela, mulher
branca, à frente e, ao fundo, homens negros como trabalhadores contratados
em desempenho da obra, faz emergir a questão das desigualdades sociais, de
raça, gênero, da divisão racial do trabalho, de um Brasil que foi colonizado
e ainda arrasta traços coloniais de injustiças, preconceitos e segregações.
Afinal, conforme nota da autora em publicação:

'Diva’ é muito mais ferida que vulva. Como essa já é uma imagem que eu trabalho
há um tempo, tive a ideia de colocar naquela grande ferida histórica, geográfica e
social do local, que passa desde a escravidão à monocultura da cana. São muitas
feridas. Isso abriu uma caixa de Pandora de discussões sobre gênero, classe social
e raça. São feridas que o Brasil não curou10

É isso, o desvelar de discursos sobre e sob uma ferida colonial em um


Brasil em que a colonialidade de poder se assenta na discursividade.
Se essa Escultura é tomada como tradicional (SILVA, p. 40) pela escala
díspar, em ampliação de 33 metros (o 33 pode evocar, no discurso cristão,
a idade de Cristo; ou o “peso disso”), e pela nudez da carne apresentada,
ela está em uma transição ou revolução paradigmática, pois pode carregar
o pós-moderno, pensado a partir do olhar da proposta decolonial a um
outro significar.
“Diva”, nesse espaço-tempo, é visualizada como uma estética da
existência feminina. Ela pode evocar a teoria Queer como “uma fuga à
norma e abertura ao inesperado”, na acepção que Butler empregou em um
seminário11, em 2015. Pois, pode ser tomada como uma reversão a essa
historicidade constitutiva de submissão sobre o que conhecemos como o

9 A esse respeito ver em: <https://revistacasaejardim.globo.com/Casa-e-Jardim/Arte/noticia/2021/01/diva-


escultura-de-juliana-notari-que-retrata-natureza-feminina.html>. Acesso em 25 abr. 2021, e mais em: <https://
www.brasildefators.com.br/2021/01/04/artigo-diva-de-juliana-notari-e-uma-ferida>. Acesso em 25 abr. 2021.
10 Dizer este disponível em: <https://www.crio.art/juliana-notari-trata-da-violencia-no-corpo-da-mulher-
com-a-escultura-diva/>. Acesso em 26 abr. 2021.
11 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=TyIAeedhKgc>. Acesso em 25 abr. 2021.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 38


corpo feminino e a repressão dos corpos. Nessa lógica, trata de uma oposição
à “ordem social”, uma “quebra de tabu”, uma “cisão” ou “transgressão” da
censura (ainda que velada), pela reinvenção do espaço e questionamento
da normatividade social, espacial, temporal, corporal, bem como uma
aliança a gêneros e sexos em desigualdades, como minorias, ou a maiorias
por conscientização, em um gesto de interpretação.

Considerações finais

A materialidade da escultura é ponto de visão, dizer, ponto de afeto, ou


seja, signo de afeto. Ela, pela dimensão sociopolítica e estética que acolhe
e dissipa sentidos, é discursividade que ressoa a história do corpo/órgão
reconhecido como do sexo feminino em tratamento no quadro colonial,
patriarcal, capitalista, e que pode se associar a outros corpos e identificações
que (se) virem em posições de subjugação e repressão.
A obra de arte, em gesto de interpretação ora empreitado, é pensada
como uma possibilidade que se articula nessa visão à perspectiva decolonial,
a uma ação-reação à ação-reação sobre e sob a história de desigualdades
sociais, raciais, de gênero e outras mais enraizadas/encarnadas no mundo,
no e sob o Sul global. É vislumbrada como uma performance que adquire o
poder e que se faz na discursividade contra e em uma performatividade de
gênero - à transformação; e em uma proposta política de defesa e resgaste
do “Ser”, do corpo, do dizer, em oposição a preconceitos e interdições/
controles sobre os corpos, os seres.
“Diva” é a visualização por um “sentir/pensar” de uma compreensão e
consciência, de um divar” (luzir, inspiração e respiração, e transformação de
sentidos) – corpo, língua, voz – e um devir de um Ser “com” – humanidade
e singularidade.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 39


Referências

BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato


Aguiar, 11ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad.
Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. v. 1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1988.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de
Roberto Machado. 25. ed São Paulo: Graal, 2012.
HAHIGUTI, Simone Tiemi; TAGATA, William Mineo (Orgs.). Corpos, Imagens e Discursos
Híbridos. Campinas, SP: Pontes Editores, 2016, p. 9-17.
HAHIGUTI, Simone Tiemi. Selfies e processos de produção de sentidos na formação
discursiva digital. In: HAHIGUTI, Simone Tiemi; TAGATA, William Mineo (Orgs.).
Corpos, Imagens e Discursos Híbridos. Campinas, SP: Pontes Editores, 2016, p. 189-211.
MALDONADO-TORRES, Nelson. A topologia do ser e a geopolítica do conhecimento.
Modernidade, império e colonialidade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES,
Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, p. 337- 382.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do Poder e Classificação Social. In: SANTOS,
Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra:
Almedina, 2009, p. 73-117.
SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias
do Sul. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
SILVA, Cláudia Maria França. Nu impotente à espreita: sobre uma figura da melancolia
na arte contemporânea. In: HASHIGUTI, Simone Tiemi (Org.). O corpo e a imagem no
discurso (recurso eletrônico): gêneros híbridos. Uberlândia: EDUFU, 2019, p. 31-45

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 40


Happy Brexit day?

Isabella Zaiden Zara Fagundes


Giselly Tiago Ribeiro Amado

Introdução

A política passa incessantemente


pelo conflito entre realismo e utopia.

- Edgar Morin

A União Europeia foi criada a partir de tratados que estabelecem


os objetivos, as regras de funcionamento das instituições e o processo de
tomada de decisões, principalmente nos âmbitos político e econômico que
visam favorecer os seus Estados-Membros. Dispõe ainda de uma proposta
de política monetária comum para favorecer o crescimento econômico e
social de seus participantes e de uma moeda única, o euro. Todavia, alguns
países nunca abdicaram da sua moeda oficial, que é o caso do Reino Unido
com a libra esterlina, cuja imagem da rainha é estampada.
Os tratados que instituíram a União Europeia também garantem
o multilinguismo como um dos princípios fundadores dessa unificação,
o que ocasiona uma abordagem sem precedentes que colabora com a
comunicação, estimula a aprendizagem de línguas e busca assegurar a
manutenção das diversidades linguística e cultural. Essa proposta tem como
objetivo propiciar uma interação respeitosa entre os povos que compõem
a comunidade europeia.
A princípio, não houve uma adesão simultânea de todos os países
participantes e a afiliação máxima de Estados-Membros chegou a vinte e
oito:

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 41


Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Croácia, Dinamarca, Eslováquia,
Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria,
Irlanda, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Polônia, Portugal, Reino
Unido, República Tcheca, Romênia e Suécia1.

Porém, no ano de 2017, o Reino Unido demonstrou a intenção de


sair da União Europeia, iniciando uma campanha em favor do Brexit, que
tem referência à junção das palavras British e exit, sendo oficializado em 31
de janeiro de 2020, ocasião em que o cartaz, Figura 1, foi afixado às portas
corta-fogo dos quinze andares do edifício Winchester Tower:

Figura 1- Cartaz Happy Brexit Day

Fonte: https://diaadia.jp/wp-content/uploads/2020/02/1400.jpg

A afixação do cartaz provocou uma investigação policial e teve


repercussão nos noticiários, assim como nas redes sociais, o que nos
interpelou a buscar os sentidos que nele ressoam. Compreendemos o cartaz
como um acontecimento discursivo, pressuposto por Michel Pêcheux
1 Site oficial da União Europeia: https://europa.eu/european-union/about-eu/countries/member-countries_pt. Acessado
em: 29/04/2021.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 42


(2006) como o confronto discursivo que está “no ponto de encontro de
uma atualidade e uma memória” (PÊCHEUX, 2006, p. 17), à medida
em que mobilizamos construções anteriores que emergem no discurso
produzindo efeitos de sentido.
Propomos neste artigo uma análise discursiva a qual lidamos com
os aspectos estruturais do cartaz bem como da língua, num batimento
entre a descrição e a interpretação. Inicialmente, trazemos a questão do
gênero discursivo para colaborar com o entendimento da escolha pela
publicização de um cartaz, em seguida tratamos na materialidade linguística
dois posicionamentos discursivos que vigoram no mesmo. Por meio da
Linguística Aplicada Crítica, abordamos também a língua como o lugar de
significações e as projeções imaginárias que fixam posições de dominância
e de subalternidade, a fim de entendermos como as práticas discursivas
(re)produzem a intolerância e o apagamento do outro em uma relação de
dominância por we e de subalternidade de you, além de compreendermos
como a naturalização desses discursos contribuem para a manutenção
desses sentidos.
As relações de dominância e de subalternidade têm sido discutidas
em vários trabalhos da área da Linguística Aplicada Crítica, abarcando
em especial estudos culturais, etnográficos, psicanalíticos (SAID, 1990;
QUIJANO, 2005; SPIVAK, 2010; RIBEIRO, 2017; DERRIDA;
DUFOURMANTELLE, 2003; REVUZ, 1998; PENNYCOOK, 2001,
2004, 2006), sendo assim, neste artigo fazemos uma análise discursiva
em que levamos em conta as posições-sujeito estabelecidas no cartaz pela
relação de dominação em contraponto com os aspectos sociais emergentes.
Este artigo se faz relevante para a área da Linguística Aplicada Crítica,
a qual é “responsiva à vida social” (MOITA LOPES, 2006, 96) e que
por sua característica híbrida/mestiça envolve os estudos discursivos, em
uma tentativa de compreender o acontecimento discursivo instaurado
pelo cartaz Happy Brexit Day, o qual concebe aos ingleses uma posição de
superioridade, enquanto aos não-ingleses recai a de inferioridade, as quais
são constituídas na/pela relação das posições-sujeito we e you.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 43


O título deste artigo é, portanto, uma provocação que nos levou a
problematizar a disputa de sentidos, a partir da posição-sujeito ocupada por
we ao se manter como patriota que tem a posse e o direito sobre a nação.
Apesar das palavras não carregarem o sentido fixo há um funcionamento
na língua(gem) que permite a estabilização de sentidos, no caso do cartaz
Happy Brexit Day a regularidade discursiva (FOUCAULT, 2008) é uma
categoria que articula o sentido estável para we e projeta you em um lugar
de não pertencimento e inferioridade.

A divulgação de um acontecimento

"O gênero do discurso não é uma forma da língua,


mas uma forma do enunciado"
(Mikhail Bakhtin)

O cartaz analisado configura-se como um gênero discursivo


que, na concepção de Bakhtin, são “tipos relativamente estáveis de
enunciados” (2003, p. 262), isto significa que estão ligados à noção de
língua em movimento, já que em toda atividade humana há a utilização
da língua. Geralmente a característica de um cartaz está vinculada à
função informativa, apelativa, educativa, a fim de divulgar, notificar e/
ou comunicar de maneira direta, por meio de linguagem informal ou
técnica uma mensagem cotidiana focada em um público-alvo.
É muito comum em cartazes a utilização de imagens e a diversificação
de cores, que dão destaque ao objeto publicitário. Entretanto, no caso
específico do Happy Brexit Day não houve a utilização de tais recursos, mas
isso não descaracteriza o gênero em questão, pois permanece cumprindo a
função de propagar a saída do Reino Unido da União Europeia estabelecendo
as notificações a serem cumpridas a partir desse dia celebrado.
O cartaz possui uma diagramação que contempla as dimensões
verbal e semiótica, uma vez que esse material está organizado de maneira

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 44


a identificarmos o título em negrito, centralizado e com o tamanho da
fonte maior que a do corpo do texto. Os recursos multimodais utilizados,
também marcam a separação de parágrafos com recuo na primeira linha.
O destaque no corpo do texto não se dá pela variação do tamanho ou tipo
de fonte, mas pelas linhas que são saltadas entre alguns parágrafos.
Além dos destaques visuais presentes no modo de formatação,
localizamos a repetição de alguns termos, como um artifício linguístico que
corrobora para enfatizar a ideia que é divulgada, como no caso de return
que aparece na 10ª linha, por duas vezes, e novamente na 12ª linha, assim
como or leave, nas 15ª e 18ª linhas. A repetição produz uma significação que
“pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os interlocutores,
isto é, ela [a significação] só se realiza no processo de compreensão ativa e
responsiva” (BAKHTIN, 1999, p. 132).
Essa compreensão se dá, quando o outro por uma atitude responsiva
interage, pois ainda segundo o autor

a compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada


de uma atitude responsiva ativa [...]; toda compreensão é prenhe de resposta e,
de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: [...] o ouvinte que recebe e
compreende a significação de um discurso adota simultaneamente, para com
esse discurso, uma atitude responsiva ativa: ele concorda ou discorda (total ou
parcialmente), completa, adapta, apronta-se para executar (BAKHTIN, 2003,
p. 271).

Em termos do cartaz, we espera de you a atitude responsiva de acatar as


diretrizes expressas pela linguagem simples, direta e objetiva desse gênero
primário, porém, mesmo que you não se pronuncie, já se caracteriza uma
atitude responsiva.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 45


Relação de confronto (em) (im)posição de obediência

"Aquele que sabe mandar encontra sempre


quem deva obedecer."
(Friedrich Nietzsche)

O título do cartaz Happy Brexit Day rememora a maneira usual que


exaltamos datas comemorativas, já tradicionalmente celebradas, como por
exemplo, o modo como felicitamos um aniversariante Happy Birthday,
ou quando ao iniciar um novo ano desejamos Happy New Year, entre
outros. A escolha das palavras em Happy Brexit Day não é fortuita, a
princípio nos remete a um evento de celebração pelo dia em que marca
a saída do Reino Unido da União Europeia, entretanto após a leitura do
cartaz compreendemos que há um deslocamento de sentido na forma da
interjeição.
Tal formulação pode ser compreendida como uma felicitação para o
grupo representado por we no cartaz, isto é, aquele que concorda com a
saída do Reino Unido. O sentido requerido pelo uso do pronome pessoal
na primeira pessoa do plural durante todo o texto, não permite a existência
de um cidadão naquele país que esteja fora da celebração, ou seja, é vedado
a qualquer um considerar a comemoração desnecessária, ou pensar em
prejuízos advindos da saída do Reino Unido da União Europeia.
Por outro lado, há uma outra possível interpretação do grupo
representado por you, ou seja, os não-ingleses, que são aludidos pela ironia
deste cumprimento, uma vez que o dia feliz para os ingleses está associado à
necessidade dos não-ingleses de obedecerem a determinadas regras para que
tenham a permissão de continuarem vivendo em Winchester Tower. Logo,
we apesar de morfologicamente denotar o plural e indicar no colóquio
o orador na primeira pessoa do singular e outro(s), funciona de maneira
excludente para tais moradores.
Na formulação we are now our own country again há a requisição
pela homogeneização da nação, pois com o Brexit we retoma o sentido
de pertencimento do país aos ingleses. Linguisticamente, os termos now,

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 46


our, own e again reforçam o acontecimento e marcam a impossibilidade de
participação de you objetivado pela imagem projetada por we que ressoa
em discursos estabilizados pelas relações de poder.
“A objetivação do sujeito [...] [acontece por meio de] “práticas
divisoras”. O sujeito é dividido no seu interior e em relação aos outros.
Este processo o objetiva” (FOUCAULT, 1995, p. 231, grifos do autor). A
forma de objetivação em nosso corpus é estabelecida por we em uma relação
de contraponto com you, na qual funciona o dominante e o dominado; o
superior e o inferior; o pertencente e o excluído.
A relação de contraponto estabelece uma violência simbólica, pois

os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de instrumentos de


imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a
dominação de uma classe sobre outra [...] dando o reforço da sua própria força
às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, [...] para a
‘domesticação dos dominados’ (BOURDIEU, 1989, p. 11).

Portanto, we exerce a violência simbólica na relação com you, uma vez


que o sistema simbólico, como meio de dominação, funciona na prática
discursiva por imposições que naturalizam as posições-sujeito em nosso
corpus.
Mesmo quando you está no lugar de sujeito, em termos sintáticos,
ele não está em posição agentiva, como observamos em you infected this
once great island, pois you também é objetivado, nesse caso em termos
linguísticos, como doença. Ao se dirigirem a you, em uma mensagem
direta de we, isto é, dos ingleses para os não-ingleses, há uma sugestão que
condiciona you a se adequar às normas impostas por we, como visto em we
suggest you return to that place and return your flat to the council.
Apesar de versar como uma simples escolha, essa frase remete à
questão da obediência à regra em oposição à condição de se deixar o país, o
que recai no paradoxo sugerir versus obedecer, pois sugerir é da ordem do
aconselhamento e não da imposição, indo de encontro com o enunciado
it’s a simple choice obey the rule of the majority or leave, o verbo no imperativo
não deixa margem para uma escolha própria, somente há a imposição, o
ditame de se obedecer ou abandonar o país.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 47


O tom impositivo que incuta os moradores de Winchester Tower
a aceitarem a regra, mais uma vez os exclui do país e conclama o saber
institucional. Em you won’t have long till our government will implement
rules that will put British first, you é advertido sobre não ter muito tempo
até que our government implemente regras que favoreçam a we: that will
put British first. British com a primeira letra maiúscula remete o sentido de
substantivo próprio, desta maneira, we enfatiza que os britânicos terão a
própria nação excluindo novamente you da possibilidade de não acatar a
exigência.

Língua: lugar de significações

"Uma luta diretamente linguística pela unificação


fonológica, morfológica, sintática e lexical da língua
inscrita na forma-nação."
(Michel Pêcheux)

O we requer na/pela língua a retomada do sentido nacionalista,


observados nos enunciados all true patriots e em we are now our own country
again, há um deslocamento de sentido como se durante o período em que o
Reino Unido fazia parte da União Europeia, o país não estivesse significado
como nação, pois a presença do advérbio de tempo now define que o Brexit
inaugura o estabelecimento das regras que permitem reconquistar our own
country again.
Compreendemos, na construção do cartaz, que we ressoa
discursivamente no pronome indefinido all, incluindo-se na totalidade
numérica qualificada como verdadeiros patriotas, que não vão tolerar outras
línguas e nem variações da língua inglesa. O nacionalismo conclamado no
texto estabelece o Reino Unido como o lugar da língua inglesa da rainha,
símbolo que evidencia a organização social, cultural e econômica do país,
desnaturalizando outras línguas e destituindo o lugar de fala de you. O
lugar de fala “refere-se ao fato de a fala do subalterno e do colonizado [não]
ser [...] intermediada pela voz de outrem” (SPIVAK, 2010, p. 14).

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 48


Assim percebemos, pelo corpus, que ao não-inglês não cabe a própria
língua, mas apenas a língua do outro, podendo restar ao não-inglês um
embate com essa língua outra, uma vez que

[...] o estrangeiro é, antes de tudo, estranho à língua do direito na qual está


formulado o dever de hospitalidade, o direito ao asilo, seus limites, suas normas,
sua polícia, etc. Ele deve pedir a hospitalidade numa língua que, por definição
não é a sua, aquela imposta pelo dono da casa, o hospedeiro, o rei, o senhor, o
poder, a nação, o Estado, o pai, etc. Estes lhe impõem a tradução em sua própria
língua, e esta é a primeira violência (DERRIDA; DUFOURMANTELLE, 2003,
p. 15).

Para além dessa primeira violência, as regras impostas por we fazem


com que ocorra um apagamento da língua do outro we do not tolerate
people speaking other languages than English, sendo vedado ao you falar em
sua língua materna dentro do país. Na construção da frase, o fato de não
utilizarem a contração do verbo auxiliar com a negação, do + not = don’t,
faz com que o sentido de intolerância seja ainda maior, pois, não arrefece
o efeito de sentido que recai em um posicionamento severo, autoritário de
we diante de tal determinação, o que restringe you e não lhe deixa margem
à negociação.
O verbo auxiliar do é ainda utilizado com a função enfática no
momento em que aparece o período hipotético if you do want to speak
whatever is the mother tongue you came from than we suggest you return to
that place. Porém, a função enfática não recai na questão hipotética, mas
ressoa novamente no apagamento da língua de you, pois a este lhe é vetado
o uso da língua mãe.
Também é bastante violenta a tentativa de minimizar a imposição
da língua ao estabelecer a regra como uma simples escolha, it’s a simple
choice obey the rule of the majority or leave, visto que “a língua estrangeira
vem questionar a relação que está instaurada entre o sujeito e sua língua”
(REVUZ, 1998, p. 220), sendo assim, para you o que ocorre é uma
desestabilização de sentidos, o que é distante de qualquer ato simplista ou
da possibilidade de escolha.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 49


A violência marcada na língua tem a função de instaurar o sentido de
nação, que para we está separada de you. Assim, em we finally have our great
country back, o uso do advérbio finally sustenta a ideia de que havia uma
expectativa para que o acontecimento ocorresse e, desta forma produz o
sentido de alívio, o que marca, mais uma vez, o resgate da nação, como se
houvesse um país antes da União Europeia e outro menor com ela. Logo, a
saída da União Europeia permite que esse we tenha de volta o grande país,
aquele mais tradicional e conservador, fechado em si mesmo. O adjetivo
great intensifica o sentido dessa nação soberana que exclui you ao mesmo
tempo em que o posiciona como aquele que não tem o direito de estar no
país e nem de utilizar outra(s) língua(s) que não a inglesa.
Esse posicionamento é um efeito produzido pelas regularidades
discursivas que são marcadas pela repetição de sentidos que ressoam e
estabilizam you como inferior e subalterno, cabendo a obediência às regras
impostas por we. O que compreendemos por uma tentativa de retrocesso
temporal que tende a recair na dispersão da história em forma de dissipação,
com consequente desaparecimento do período em que o Reino Unido fez
parte da União Europeia, o que leva ao apagamento de you. Inicialmente,
o apagamento de you é marcado pelo não pertencimento à nação, o que o
destitui do seu lugar de fala dissimulando um projeto de exclusão sócio-
histórico-cultural, uma vez que não existe o espaço para a diversidade
linguística e cultural.
Há, ainda, uma valorização do inglês falado por we, significando uma
língua perfeita, cristalizada nos moldes da língua da rainha, porém também
está presente no cartaz as contradições, os lapsos gramaticais, uma vez que
em Queens English is the spoken tongue here, o apóstrofo deveria ter sido
grafado, isto é, Queen’s English, para que a frase fosse considerada adequada
às estruturas gramaticais da norma culta.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 50


We e you: projeções imaginárias

"Passo a língua nas coisas que vejo


e passo as coisas que vejo pra língua."
(Viviane Mosé)

No cartaz há a presença de uma forma-sujeito we que é interpelado por


uma formação discursiva nacionalista que ressoa ao reivindicar o retorno
do grande país we finally have our great country back. Esta “formação
discursiva que veicula a forma-sujeito é a formação discursiva dominante”
(PÊCHEUX, 1995, p. 164, grifos do autor), que requer dos equipolentes
a retomada da homogeneidade da nação formada por ingleses, o que exclui
you.
Para ter de volta o grande país we exige regras que impõe obediência a
you, mostrando a dominação que we pretende ter sobre you, posicionando-o
a um imaginário de subalternidade. Compreendemos que o imaginário
funciona no discurso pelas imagens projetadas acerca de si mesmo e do
outro e nos processos discursivos o que “funciona [...] é uma série de
formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada
um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do
lugar do outro” (PÊCHEUX, 1997, p. 82, grifos do autor).
As projeções de you feitas por we o fixam em um lugar de não
pertencimento e de inferioridade, pois não há um ponto de equilíbrio ou
imparcialidade tentando englobar you a um projeto de igualdade e unidade
da nação. Em it’s a simple choice obey the rule of the majority or leave, não foi
concedido o diálogo, a imposição foi feita com a condição de ser obedecida,
momento em que o sentido de colonialidade desliza, corroborando para a
legitimação e a naturalização das posições assimétricas entre we e you.
Essa legitimação remonta ao período em que

a expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram à elaboração


da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à elaboração teórica da
idéia de raça como naturalização dessas relações coloniais de dominação entre
europeus e não-europeus. Historicamente, isso significou uma nova maneira de

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 51


legitimar as já antigas idéias e práticas de relações de superioridade/inferioridade
entre dominantes e dominados (QUIJANO, 2005, p. 118).

O nacionalismo aclamado por we garante a manutenção da


subalternidade e a consolidação da inferioridade de you, visto que we não
só exige as regras, mas prevê a institucionalização das mesmas you won’t
have long till our government will implement rules that will put British first.
O nacionalismo idealizado por we é ancorado na ciência e na
religião, duas instâncias tidas como verdade (FOUCAULT, 1979). Tais
campos possuem suas forças incontestáveis e inabaláveis, uma vez que sua
perenidade inalterável reforça o ponto de vista de quem fala desse lugar
discursivo. Por isso, quando we acusa que a presença de you infectou a
grande ilha we can return to what was normality before you infected this once
great island, há um deslizamento de sentido em que you é objetivado como
doença. Do mesmo modo, o uso do substantivo normality também ressoa
no sentido de que you é uma doença, pois ao retornar à normalidade we
imagina o estado padrão normal do país em que não há you.
A instância da ciência foi representada pela área médica, como visto
anteriormente, e em um momento posterior, outra área foi requerida
quando we utiliza o termo evolve da evolução biológica (DARWIN, 2001),
em best evolve or leave. Há um deslocamento que sugere uma evolução
imediata, a fim de que you seja igualado a we. A evolução é uma condição
imposta por we, logo a única opção a ser acatada por you é a de deixar o
país.
Já em God Save the Queen, her government and all true patriots, we
finaliza o cartaz com o entrelaçamento da formação discursiva religiosa
que recai sobre a rainha, o governo dela e os verdadeiros patriotas. Estes
verdadeiros patriotas, novamente, ressoam em we, que são chancelados por
esse clamor reforçando o imaginário de um modelo societário hegemônico
ao qual you não se enquadra. Portanto, we recorre às formações discursivas
do campo científico e religioso como um pressuposto para articular na
língua os saberes já estabelecidos e institucionalizados por esses campos,
pois tais regularidades funcionam e ressoam nas práticas discursivas, o que
produz o efeito de invisibilidade de you.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 52


Considerações finais

“'Não importa quem fala',


mas o que ele diz não é dito de qualquer lugar."
(Michel Foucault)

As posições-sujeito we e you funcionam no cartaz em uma relação


de contraponto, pela adoção de três mecanismos que estabelecem a
hierarquização por we, isto é, mecanismos de imposição, de interdição e de
expulsão. Tais mecanismos estão imbricados no discurso, em um primeiro
momento we determina regras que proíbem o uso de outras línguas que
não a inglesa, momento em que atuam os mecanismos de imposição e de
interdição. Já em um segundo momento, há o funcionamento simultâneo
dos três mecanismos de hierarquização, pois a regra determinada está
condicionada à expulsão de you, que deve falar apenas a língua da rainha
para ter o direito a permanecer no Reino Unido.
Ao estabelecer uma hierarquização we se coloca em posição de
dominação, enquanto posiciona you na subalternidade. A partir dessas
posições há um funcionamento pelas regularidades discursivas que
fazem com que esses sentidos ressoem de forma dicotômica nas relações
de superioridade-inferioridade; pertencente-estrangeiro; normalidade-
doença; nacionalista-expatriado; lugar de fala-sem lugar de fala; visível-
apagado; intolerante-tolerante; autoritário-obediente; língua mãe-língua
mãe proibida; evoluído-involuído.
Independente de qual seja a relação dicotômica, o sentido de dominação
e subalternidade está em funcionamento, garantindo a permanência de we
no topo da hierarquia, enquanto you é naturalizado como subalterno. Nesta
relação há a violência simbólica instaurada pelas práticas de linguagem que
institucionaliza o sistema de dominação subjugando you, o que legitima
uma cultura de aceitação e condiciona you a um papel de subalternidade.
Em virtude da análise compreendemos a naturalização dos sentidos
de intolerância e apagamento de you por we, posições que funcionam
socialmente e que podem ser (re)produzidas, todavia não esgotamos todas

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 53


as possibilidades de análise, uma vez que nos detemos a tais posições-sujeito.
A contribuição desse artigo está na tentativa de (des)construir sentidos
estabilizados, permitindo formas de transformações sociais mobilizadas
pela Linguística Aplicada Crítica como uma área responsiva às questões
sociais emergentes.

Referências

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BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999.
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2001
DERRIDA, J.; DUFOURMANTELLE, A. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a
falar Da Hospitalidade. Tradução: A. Romane. São Paulo: Escuta, 2003.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7ªed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio
de Janeiro: Edições Graal, 1979.
FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.; DREYFUS, H. Michel Foucault,
uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro:
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conhecimento e pluri-versalidade epistémica. In: SOUZA SANTOS, B. (Ed.) Conhecimento
prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ‘ciências’ revistado (p. 631-671).
Lisboa: Edições Afrontamento. 2003.
MOITA LOPES, L. P. Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola
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QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In:

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 54


LANDER, Edgardo. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas
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CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 55


https://doi.org/10.52788/9786589932192.1-4

Diversidade étnico-racial na
educação infantil: vozes docentes1

Yone Alves de Souza


Romário Pereira Carvalho
Odair Ledo Neves

Introdução

O presente artigo “Diversidade étnico-racial na Educação Infantil:


Vozes docentes” tem como objetivo, analisar as práticas pedagógicas
antirracistas de professores da Educação Infantil no município de
Cristalina-Go, bem como refletir sobre a educação e diversidade étnico-
racial numa perspectiva que seja de fato emancipatória e para além das
datas comemorativas; Compreender a percepção dos docentes acerca da
temática; e reconhecer a importância da representatividade negra infantil
no cotidiano da instituição.
Discutir o pertencimento racial no espaço escolar tem sido um desafio,
mesmo diante dos avanços com politicas afirmativas, na prática o currículo
não contempla a multiplicidade e diversidade, as leis são desrespeitadas.
As crianças negras estão aprendendo desde cedo a odiarem o seu corpo
e sua identidade, pois o racismo estruturado e velado reforça a ideia do
negro como algo ruim, fazendo com que essas crianças não se reconheçam
em suas origens. É urgente dialogar sobre essas questões para além das
datas comemorativas, pois o racismo existe diariamente na vida dos
negros, bem como o silenciamento e apagamento histórico da sua cultura

1Um recorte deste estudo foi apresentado no evento VII Seminários de Educação para as Relações
Étnico-raciais IFG 2021.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 56


e ancestralidade nos espaços de diálogos.
Dessa maneira surge a problemática da pesquisa: Como as professoras
da Educação Infantil do município de Cristalina-Go percebem a questão
étnico-racial em seu fazer pedagógico? E quais práticas antirracistas são
efetivadas no cotidiano escolar para a valorização da identidade racial, ou
se acontece apenas em datas comemorativas?

Metodologia

A presente pesquisa foi realizada na cidade de Cristalina- GO,


um município brasileiro do estado de Goiás localizado na Região Leste do
Estado de Goiás, com distância de 288 km da capital Goiânia. O município
faz parte da  Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal
e Entorno. Sua população estimada em 2020 é de 60.210 habitantes,
segundo o IBGE.
Participaram da pesquisa 03 professoras da Educação Infantil da
rede municipal de ensino, as docentes têm a faixa etária entre 30 e 40
anos e atuam com crianças na faixa etária entre 03 e 04 anos de idade. A
metodologia adotada foi de abordagem qualitativa, e teve como técnicas de
coleta de evidências o levantamento bibliográfico e a entrevista.
Em virtude da pandemia impossibilitando a entrevista no formato
presencial, utilizei as tecnologias digitais a favor da pesquisa acadêmica.
Segundo Mota (2019. p. 372) “Por intermédio dos novos recursos
tecnológicos, é possível realizar atividades das mais diversas formas,
facilitando, flexibilizando, aprimorando e dinamizando o processo de
ensino e aprendizagem.”
A elaboração da entrevista foi pensada com perguntas abertas e
fechadas com o objetivo de fazer levantamentos gráficos e descritivos sobre
a pesquisa. A entrevista segundo Marconi; Lakatos é um, “Encontro entre
duas pessoas, a fim de que uma delas obtenha informações a respeito de
um determinado assunto” ( 1999, p. 94).

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 57


As perguntas foram elaboradas via Google forms que são umas das
diversas ferramentas disponibilizadas pelo Google. A utilização do Google
forms em pesquisa é bem vantajosa, Segundo Mota (2019, p. 373) “seja
ela acadêmica ou de opinião é a praticidade no processo de coleta das
informações. O autor pode enviar para os respondentes via e-mail, ou
através de um link, assim todos poderão responder de qualquer lugar.”
Vale ressaltar que os nomes dos sujeitos não serão revelados com o
objetivo de preservar a sua identidade.

Fundamentação teórica

A cultura afro-brasileira na educação é lei e precisa ser cumprida,


mediante a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) no Art. 26-A,
alterada pela lei 10.639/2003 torna-se obrigatório a inclusão da História e
Cultura Afro-Brasileira no currículo oficial da rede de ensino. Embora a lei
enfatize que a obrigatoriedade da temática é apenas no Ensino Fundamental
e Médio, alguns marcos legais como a Constituição Federal (CF), o Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA) , e as Diretrizes Curriculares Nacionais
para Educação Infantil (DCNEI,2010) enfatizam sobre a importância das
propostas pedagógicas para a diversidade.

O reconhecimento, a valorização, o respeito e a interação das crianças com as


histórias e as culturas africanas, afro-brasileiras, bem como o combate ao racismo
e à discriminação; A dignidade da criança como pessoa humana e a proteção
contra qualquer forma de violência – física ou simbólica – e negligência no
interior da instituição ou praticadas pela família, prevendo os encaminhamentos
de violações para instâncias competentes. (BRASIL, 2010,p. 21)

Compreendendo a importância da efetivação da diversidade étnico-


racial na Educação Infantil com práticas que contemplem as crianças
negras em sua totalidade e não apenas em datas comemorativas, foram
questionadas as professoras sobre a frequência em que seu planejamento
escolar abordava a questão antirracista. O gráfico abaixo demonstra a
frequência com que cada professora aborda o assunto.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 58


Gráfico 1- Resposta das docentes

Fonte: Questionário elaborado pelos autores

O gráfico mostra que a temática é inserida na educação infantil


pelas professoras diariamente, mensalmente e em datas comemorativas,
é um grande avanço para a questão da diversidade que por muito tempo,
foi apagada das práticas educacionais, e vêm sendo inserida de forma
significativa no planejamento docente.
Trinidad (2012,p. 135) ressalta que,

Iniciar a mudança de cultura pedagógica nos espaços infantis deve ser um


compromisso inadiável de todos os responsáveis pela formação de crianças
pequenas. As práticas pedagógicas que resultam em um currículo é um dos
principais aspectos para que todas as crianças tenham educação de qualidade.
Educar os pequenos para a construção de interações igualitárias é o primeiro passo
para que possam ter uma vida digna e identidades positivas. Seguir o caminho
da criança e identificar seus sinais no cotidiano infantil tem se demonstrado
estratégia eficaz para trabalhar a diversidade étnico-racial na educação infantil.

Porém é de fundamental importância que a diversidade seja trabalhada


com uma maior frequência na primeira infância, pois a criança negra inicia
a sua relação entre pares, e passar a compreender regras para convivência
em coletivo, bem como a formação da sua identidade, que em muitas
realidades são negligenciadas e menosprezadas.
A inclusão da cultura afro-brasileira nos currículos oficiais é um grande
avanço, dessa maneira possibilita que as instituições valorizem e respeitem
a identidade do negro por meio de práticas contextualizadas. Tais práticas
visam contemplar a criança como um ser histórico, social e cultural, garantir

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 59


uma formação integral em seus aspectos afetivos, cognitivos, emocionais
e psicomotores, assim como defende a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC, 2017).
A professora C quando questionada sobre quais estratégias adota para
trabalhar práticas antirracistas na Educação Infantil relatou que,

É preciso mostrar na sala de aula que o Brasil é um país formado por misturas de
raças, crenças e costumes e independente disso, devemos respeitar e valorizar a cultura
que cada pessoa traz, Já que somos todos iguais e temos os mesmos direitos e deveres.
(Professora C)

Júnior, Bento e Carvalho, no manual Educação infantil e práticas


promotoras de igualdade racial, relatam que,

Existe a crença de que a discriminação e o preconceito não fazem parte do


cotidiano da Educação Infantil, de que não há conflitos entre as crianças por
conta de seus pertencimentos raciais, de que os professores nessa etapa não fazem
escolhas com base no fenótipo das crianças. Em suma, nesse território sempre
houve a ideia de felicidade, de cordialidade e, na verdade, não é isso o que ocorre
( JÚNIOR; BENTO; CARVALHO, 2012, p. 09).

Historicamente a construção do imaginário do negro foi de forma


negativa, estereotipada, como um sujeito inferior, pobre, incompetente e
com a sua cultura silenciada.
Bento (2012, p. 99) enfatiza que:

A complexidade do ser negro em uma sociedade em que essa condição aparece


associada a pobreza, inferioridade, incompetência, feiúra, atraso cultural tornam
a construção da identidade racial dos negros e negras um grande desafio.

Tal violência simbólica acarreta vários problemas, como: baixa


autoestima, problemas de saúde mentais e emocionais, reforçando para
a criança negra que para ser socialmente aceita ela precisa negar a sua
identidade e se encaixar no padrão de beleza socialmente aceito, o do
branco. Desta maneira a professora B foi questionada sobre a importância
de abordar práticas antirracistas para além das datas comemorativas,

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 60


A criança por si só não nasce racista ou intolerante, é a falta de conhecimento e
informações enganosas, equivocadas e errôneas que as tornam intolerante; portanto
se desde cedo elas puderem ter conhecimento da história valorizarão e respeitarão a
todos. É na educação infantil que podemos estruturar a criança para uma formação
de caráter e pessoas íntegras e respeitosas. (Professora B)

O Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil, ( RCNEI,


1998) afirma que,

O trabalho com a diversidade e o convívio com a diferença possibilitam a ampliação


de horizontes tanto para o professor quanto para a criança. Isto porque permite
a conscientização de que a realidade de cada um é apenas parte de um universo
maior que oferece múltiplas escolhas. Assumir um trabalho de acolhimento às
diferentes expressões e manifestações das crianças e suas famílias significa valorizar
e respeitar a diversidade, não implicando a adesão incondicional aos valores do
outro. Cada família e suas crianças são portadoras de um vasto repertório que se
constitui em material rico e farto para o exercício do diálogo aprendizagem com a
diferença, a não discriminação e as atitudes não preconceituosas ( RCNEI, 1998
volume 1, p. 77).

Bento (2012) corrobora enfatizando que.

As noções de diferença e de hierarquia raciais em nossa sociedade são adquiridas


na família, no espaço da rua, nas organizações religiosas e, posteriormente, nas
creches e nas escolas. Crianças brancas e negras aprendem que ser branco é uma
vantagem e ser preto, uma desvantagem (2012, p. 102).

Este resgaste histórico é de fundamental importância para a


contextualização e valorização da diversidade racial em casa, na escola, nos
espaços públicos e privados e na sociedade como um todo, bem como a
efetivação de politicas afirmativas para reforçar a identidade racial desde a
primeira infância.
O propósito é valorizar sem hierarquizar, ou seja, valorizar a história e
a cultura Afro-brasileira e africana com o objetivo de afastar o preconceito
racial, deixar claro que as diferenças não são motivos para negar o próximo
valorizar uma cultura em detrimento de outra.
O fazer pedagógico na educação infantil reflete diretamente na
formação da criança negra, é o primeiro espaço de socialização e de relação

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 61


com seus pares fora de casa, dessa maneira, o docente precisa compreender
quem é essa criança, sua história de vida, seu grupo social, e buscar envolver
práticas representativas e identitárias que inclua a criança e faça com que
ela se sinta parte da escola e seja valorizada em suas especificidades e modo
de ser.
As docentes foram questionadas, sobre a importância e contribuição
das práticas antirracistas na educação infantil para além das datas
comemorativas. A professora A respondeu que,

Acredito que a escola é um dos espaços mais determinantes de formação da criança.


E na educação infantil que inicia o processo de formação do indivíduo entre eles o
respeito, a tolerância, o pensamento crítico. Logo seria de extrema importância e
necessidade ir além de datas comemorativas as práticas deveria ser rotineira uma
vez que cada dia vemos tantos casos de racismo, preconceitos. E muitas delas dentro
da nossa sala de aula. Algo que deve ser levado a sério e não podemos fechar os
olhos e lembrar como uma data simbólica apenas como “obrigação” de debater em
determinada data. (Professora A).

Trinidad ( 2012) defende que,

Para aprender, as crianças devem ter seus desejos, suas vidas, suas histórias e suas
culturas consideradas. Para que isso ocorra, o currículo, necessariamente, precisa
estar articulado às práticas culturais dos grupos sociais dos quais são membros as
diferentes crianças que frequentam o espaço de educação infantil (TRINIDAD,
2012, p. 121).

A efetivação de ações antirracistas, compreende a criança negra em sua


etnia e ancestralidade, adotam práticas docentes na perspectiva da inclusão,
construindo uma visão positiva do negro, e reafirmando a identidade das
crianças para que sintam-se orgulhosas do seu pertencimento racial.
O ambiente escolar é por excelência o local que acolhe, inclui ou
segrega. É pertinente que a instituição e o docente reflitam sobre qual
mensagem estão passando ao pensar a organização do seu espaço escolar.
A criança precisa sentir-se parte do processo, enxergar-se em murais,
histórias, brincadeiras, e nas atividades como um todo. As professoras
relataram que trabalham a temática com frequência diárias, mensais e em

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 62


datas comemorativas, com isso foi pertinente questionar como as suas
práticas contemplavam o reconhecimento da diversidade étnico-racial, elas
relataram que,

Valorizar a identidade africana, afro-brasileira e indígena; Valorizar sua história,


sua potência colocando-os como protagonista; Inclusão de forma concreta de todas as
diversidades. (Professora A)

Mostrar às crianças a importância de valorizar as diferentes culturas, trazer as


culturas afro-brasileira e africana para dentro da sala de aula. (Professora B)

Promover o respeito e a valorização da diversidade, com tirinhas infantis, livros


infantis de meninas negras como protagonistas. (Professora C)

Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das


Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana, é de fundamental importância o reconhecimento da
cultura afro-brasileira e africana na educação, pois,

Reconhecer exige a valorização e respeito às pessoas negras, à sua descendência


africana, sua cultura e história. Significa buscar, compreender seus valores e lutas,
ser sensível ao sofrimento causado por tantas formas de desqualificação: apelidos
depreciativos, brincadeiras, piadas de mau gosto sugerindo incapacidade,
ridicularizando seus traços físicos, a textura de seus cabelos, fazendo pouco
das religiões de raiz africana. Implica criar condições para que os estudantes
negros não sejam rejeitados em virtude da cor da sua pele, menosprezados em
virtude de seus antepassados terem sido explorados como escravos, não sejam
desencorajados de prosseguir estudos, de estudar questões que dizem respeito à
comunidade negra.

É urgente e necessária a desconstrução sobre a hierarquia de uma só


cultura, e do poder de superioridade que ela detém sobre as demais, e por
meio da avaliação da organização do ambiente é possível fazer e levantar
questionamentos sobre a diversidade étnico-racial, qual imagem de
representatividade o espaço está passando para suas crianças, se ela inclui
ou segrega.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 63


Dias (2014, p. 208) ressalta que:

Não é possível o Brasil construir uma política educacional igualitária, que eduque
crianças e jovens para valorizarem a diversidade e construírem uma sociedade em
que a democracia racial seja um fato e não um mito, sem a participação efetiva
dos profissionais da educação.

Considerações finais

Diante de tudo que foi dialogado vale ratificar, que é primordial a


efetivação de práticas antirracistas cotidianamente, pois nossas crianças
estão cada dia a mais negando a sua identidade. A falta de representação
nos espaços que frequentam, e suas relações com seus pares, são uns dos
vários fatores que influenciam a negação identitária.
A inserção da cultura e história afro-brasileira nos currículos oficiais
tornou-se obrigatória com a lei 10639/2003, porém na prática a temática
se resume em ações eventuais por meio das datas comemorativas. Mesmo
com a lei obrigando apenas o ensino fundamental e médio a inserir a
cultura e História Afro-brasileira e da África nos currículos oficiais, alguns
Marcos Legais como a CF, o ECA, as DCNEIs, dentre outros, abordam a
questão da diversidade. Posto isso, é compreensível e necessário, trabalhar
e contextualizar a questão na educação infantil, lembrando que a temática
precisa ser abordada de forma significativa na vida da criança e da sua
família.
As datas precisam ser comemoradas, e lembradas, com o intuito de
valorizar e reforçar a luta dos heróis negros que lutaram e morreram para a
conquista de muitos direitos. Porém precisamos ir além, inserir esses heróis
durante o ano todo, trabalhando a representatividade negra de forma
significativa no chão da escola. É necessário pensar na criança como um
ser integral, histórico, social e cultural que precisa ser valorizado em sua
identidade, e não apenas em uma data eventual.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 64


A formação docente é um fator decisivo para a efetivação de práticas
antirracistas, ter um olhar crítico sobre as suas ações é primordial para
que não reforce a desigualdade e o preconceito. As instituições e os
docentes precisam pensar em ações e práticas antirracistas, que não
reforce a desigualdade e o preconceito. É necessária uma reflexão crítica e
questionadora das suas ações, observando se elas incluem ou segrega.
Para que a diversidade étnico-racial na educação infantil realmente
aconteça, é preciso o envolvimento de fato desses atores incluindo a família
no processo, é urgente pensar uma formação continuada para que os
professores tenha um norte para a efetivação de tais práticas.

Referências

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC).Ministério da Educação.. Brasília :2017


BRASIL. Lei nº 9394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da
Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 de dezembro de 1996.
BRASIL. Referencial curricular nacional para a educação infantil / Ministério da Educação e
do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. — Brasília: MEC/SEF, 1998. 3v.: il.
BRASIL. Resolução Nº 1º de 17 de Junho de 2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana.
BENTO, M. A. S. A identidade racial em crianças pequenas. In: BENTO, Maria Aparecida
Silva. (Org). Educação infantil, igualdade racial e diversidade: aspectos políticos, jurídicos,
conceituais. 2012. São Paulo.
DIAS,L. R. Educação infantil e a diversidade étnico-racial: experiências de formação e seus
desafios. Olh@res, Guarulhos, v. 2, n. 2, p. 203-226. Dezembro, 2014.
MOTA, J. S. Utilização do google forms na pesquisa acadêmica. Revista Humanidades e
Inovação, v. 6, n. 12 – 2019
TRINIDAD, C. T. Diversidade étnico-racial: por uma prática pedagógica na educação
infantil. In: BENTO, Maria Aparecida Silva. (Org). Educação infantil, igualdade racial e
diversidade: aspectos políticos, jurídicos, conceituais.2012. São Paulo.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 65


https://doi.org/10.52788/9786589932192.1-5

Colonialidade e a língua inglesa em


“Hibisco Roxo” de Chimamanda
Adichie

Mariana Ruiz Nascimento


Rogério de Castro Ângelo
Luana Inês Alves Santos

Introdução

“Hibisco Roxo” (Purple Hibiscus), publicado em 2003, foi a primeira


obra literária publicada pela escritora e feminista nigeriana Chimamanda
Adichie. O livro se passa na Nigéria, no período pós-colonial, e tem como
principal personagem Kambili, uma adolescente que pertence a uma família
nigeriana de classe alta, composta principalmente por Eugene, Beatrice, e
Jaja. Seu pai, Eugene, é o diretor de um jornal e muito respeitado pela
comunidade e pela igreja cristã, porém, extremamente violento com sua
família. Jaja é o irmão mais velho de Kambili, e junto com sua mãe Beatrice,
é vítima de vários acontecimentos marcados por episódios de violência
doméstica.
Papa-Nnugwu e tia Ifeoma também são figuras importantes na
estória. Papa-Nnugwu, avô paterno de Kambili, é tradicionalista, e por
isso Eugene não o considera parte da família. Ele só é aceito pela família
de sua filha Ifeoma, professora universitária e defensora da liberdade de
expressão – representando uma realidade oposta daquela vivenciada por

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 66


Kambili em casa. A narrativa da garota nos mostra muito mais do que as
relações familiares e a toxicidade da fé de Eugene, mas ilustra também os
conflitos políticos da época e as consequências da colonização da Nigéria
no que se refere à esfera doméstica, social, econômica e linguística.
O nosso objetivo é propor uma análise acerca das relações de
colonialidade que são materializadas por meio da língua, no caso a língua
inglesa, tendo o livro de Adichie como objeto de estudo. A escolha por
refletir sobre essa temática por meio da obra literária se justifica pelo
fato de a literatura ser um poderoso meio de expressão que propõe
reflexões unindo questões históricas, políticas e sociais relevantes para a
atualidade, sendo possível utilizá-la como uma ferramenta para pensarmos
a língua(gem) por meio de uma perspectiva crítica. Dito isso, para realizar
essa análise, propomos um olhar interdisciplinar, situado nos estudos
da Linguística Aplicada indisciplinar/transdisciplinar e crítica (MOITA
LOPES, 2006; PENNYCOOK, 1990, 2006; RAJAGOPALAN, 2003) e
em uma perspectiva decolonial (BALLESTRIN, 2013; DUSSEL, 2000;
LANDER, 2000; MALDONADO-TORRES, 2007; MIGNOLO, 2000)
voltado a alguns trechos retirados do livro que fazem referência à língua
inglesa.
Este capítulo está dividido em seis partes: após a introdução, trataremos
um pouco sobre como se deu a colonização da Nigéria; em seguida, sobre
a estreita relação entre a língua inglesa e a colonização; no quarto tópico,
faremos uma análise dos trechos da estória que remetem à língua inglesa;
e, por fim, trazemos algumas considerações finais e as referências utilizadas
no trabalho.

A colonização da Nigéria

Para uma melhor compreensão da relação colonial da língua inglesa


na Nigéria, abordaremos brevemente aqui sobre como esse processo
desenrolou-se. Apesar do flerte britânico nas trocas de mercadorias e
escravos desde o século XVII, de acordo com Ezeogidi (2020), a primeira

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 67


clara demonstração do interesse imperial no território nativo Yorubá
nigeriano ocorreu em 1851, através de um bombardeio em Lagos,
comandado pelo então cônsul britânico John BeeCroft. O ataque, que se
justificaria motivado para encerrar o mercado escravo local, viria também a
ser favorável aos interesses políticos e econômicos britânicos do momento.
King Akintoye, comandante de Lagos, foi restaurado ao poder
após acordos com John BeeCroft, acordos estes que buscavam o melhor
entendimento e favorecimento mútuo para as nações (pesando sempre
um pouco mais para o lado britânico, especialmente após o acordo de
1852). Após sua morte, King Dosumu assumiu o poder, e foi acusado
pelos britânicos de retomar o mercado escravo. Pressionado pela nação
imperialista, optou por submeter-se aos interesses desta, por receio de ser
derrotado e de que King Kosoko, seu antecessor, aproveitasse sua queda
para retornar ao trono, se submetendo este aos interesses imperialistas,
mesmo sendo contrário (EZEOGIDI, 2020).
Como consequência desses acontecimentos, em 1861, o território de
Lagos, o qual estava sob forte influência mercantil e escravista portuguesa,
foi anexado como território britânico. O discurso empregado à época pelos
britânicos era cheio de boas intenções e reiterava: havia de se extinguir
a escravatura local. Nesse discurso, se escondia também seus interesses
econômicos na região. Entre 1862 e 1893, entre batalhas das tribos Yorubá,
ao sul, a intervenção britânica se mostrou eficaz, tomando quase todas as
terras (EZEOGIDI, 2020).
Ainda segundo Ezeogidi (2020), até 1900, o protetorado norte da
Nigéria, economicamente menos atrativo para os colonizadores britânicos
e com comandantes também mais resistente às suas investidas, já estava
sendo indiretamente administrada pelo império, através da Royal Niger
Company, uma companhia pública. Por medo da intervenção e dos interesses
de outras nações europeias no território, os britânicos reivindicaram o
controle das terras para si. E assim, em 1914, o protetorado do norte da
Nigéria uniu-se ao protetorado do sul, tornando-se um território único, a
Nigéria, sendo comandado pelo Sir Frederick Lugard, oficial britânico que
já administrava o protetorado norte.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 68


A independência foi obtida em 1960. No entanto, as tribos
precisavam decidir qual voz prevaleceria e representaria a nação. A unificação
territorial não exprimia a unificação de ideias, costumes e crenças entre os
protetorados norte e sul, o que criou um ambiente de tensão. Em 1967,
o protetorado do sul declarou independência, reivindicando seu território
– lucrativo pela exploração de petróleo – e se denominando República
de Biafra. O acontecimento resultou em conflitos e uma guerra civil no
mesmo ano; o país atravessou ditaduras militares até 1999, quando se
tornou uma democracia, e as divergências norte-sul ainda resistem no
período pós-colonização.
Como resultado do processo colonizatório, o império britânico
conseguiu não apenas aumentar o seu poderio econômico, como também
disseminar sua cultura, religião e ideais. Consequência desse plano, a
língua inglesa foi ensinada e tornou-se língua franca no país, como aponta
Osasona (2012):

To serve their colonizing interests in Nigeria, it was expedient for the British to register
more than a fleeting presence. They needed to be able to verbally communicate with
their subjects; to be manifestly in control (administratively and politically); to be able
to exploit, process up to a point and store raw materials; to be able to move with ease
around their colony, and to be physically resident to superintend all these (and other)
activities. As such, the English language was taught and became the lingua franca.
Schools were instituted to disseminate Western education and, hand-in-hand with
this, the Christian religion was propagated (as, invariably, missionaries constituted
the teaching staff and ensured the curriculum was Bible-based). Part of the ‘education’
that came with colonization was grooming in ‘court manners’, covering dress, table
manners, and general etiquette. A common feature of the colonial occupation was
the conferment of English names on the indigenes – either to replace local ones that
were found ‘unpronounceable’, or in the wake of actual christening ceremonies,
after conversion to Christianity. Missionaries used not only the platform of formal
education (as distinct from the informal, oral-tradition-based indigenous approaches
hitherto in place) to spread the gospel; their healthcare delivery missions of mercy were
also a popular vehicle for evangelization (OSASONA, 2012, p. 81)1.

1 Para servir aos seus interesses colonizadores na Nigéria, foi conveniente para os britânicos registrar mais do que uma
presença passageira. Eles precisavam ser capazes de se comunicar verbalmente com seus sujeitos; estar manifestamente
no controle (administrativa e politicamente); ser capaz de explorar, processar até certo ponto e armazenar matérias-
primas; poder mover-se com facilidade pela colônia e ser residente fisicamente para supervisionar todas essas (e outras)
atividades. Como tal, a língua inglesa foi ensinada e tornou-se a língua franca. As escolas foram instituídas para disseminar
a educação ocidental e, junto com isso, a religião cristã foi propagada (já que, invariavelmente, os missionários constituíam
o corpo docente e garantiam que o currículo fosse baseado na Bíblia). Parte da ‘educação’ que veio com a colonização
foi a preparação de ‘modos da corte’, incluindo roupas, modos à mesa e etiqueta geral. Uma característica comum da

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 69


Como apresenta o excerto acima, além dos interesses mercantis, os
britânicos desejavam firmar sua presença no território nigeriano, deixar
sua marca. A língua era uma via mais que necessária para este fim, para que
pudessem inculcar valores, ideias, e transitar livremente sem impedimentos
na comunicação. Assim ocorreu a disseminação da língua inglesa, além do
ideal de educação ocidental, e da crença cristã, esta sendo facilitada pelas
missões de evangelização.
Embora, à primeira compreensão, seja possível pensar na economia
como a maior propulsora de exploração na Nigéria, deve-se reconhecer que
a língua inglesa também ocupou um lugar de dominação. Teilanyo (2011)
esclarece que o conhecimento da língua é considerado instrumento de
status social entre os nigerianos, especialmente entre o povo Igbo – e aqui
lembremo-nos que os Igbo fizeram parte do protetorado do sul da Nigéria,
o qual os britânicos comandaram diretamente desde o século XIX.
Para ilustrar a relevância social da língua inglesa, o autor trouxe um
exemplo sobre como o uso da língua inglesa está intimamente relacionado
às relações de poder no território nigeriano, – similar ao que acontece em
“Hibisco Roxo”:

[...] those who knew the additional African value of English exploited their knowledge
for selfish ends: it was often used as an instrument of invective and intimidation.
Thus, where two persons had any disagreement (and quarreled), the candidate with
much or more competence in English had an advantage over his rival as he could
readily invoke his mastery of English to intimidate the rival. He could speak English,
sometimes challenge the rival to speak English in return, and win the applause of the
audience, regardless of how ungrammatical the English would be, especially as few, if
any, in the environs would know better2 (TEILANYO, 2011, p. 149).

ocupação colonial foi a atribuição de nomes ingleses aos indígenas - seja para substituir os locais que foram considerados
“impronunciáveis”, ou na sequência de cerimônias de batismo reais, após a conversão ao cristianismo. Os missionários não
usaram apenas a plataforma de educação formal (diferente das abordagens indígenas informais baseadas na tradição oral até
então em vigor) para espalhar o evangelho; suas missões de misericórdia de prestação de cuidados de saúde também foram
um veículo popular para a evangelização. (tradução nossa)

2 Aqueles que conheciam o valor africano adicional do inglês exploravam seu conhecimento para fins egoístas: era
frequentemente usado como um instrumento de injúria e intimidação. Assim, quando duas pessoas tinham qualquer
desacordo (e brigavam), o candidato com maior competência em inglês tinha uma vantagem sobre seu rival, pois ele podia
invocar prontamente seu domínio do inglês para intimidar o rival. Ele falava inglês, às vezes desafiava o rival a falar inglês
em troca e ganhava os aplausos do público, independentemente de quão não gramatical fosse o inglês, especialmente porque
poucos, se é que algum, nos arredores sabiam mais (tradução nossa).

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 70


O conhecimento da língua inglesa, mesmo que insuficiente, dá
ao falante vantagens e poder perante os que não falam. No contexto
explorador do período colonial, essa relação já era presenciada nas melhores
oportunidades de ganhos financeiros daqueles que soubessem inglês, já
que as negociações ocorriam na língua:

It was the colonial service that offered good pay more than the indigenous occupations,
and some competence in English was a sine qua non to such employment. Thus,
Herbert Igboanusi considers it pertinent for us to note that the Igbo and Africans in
general “were eager to learn the English language primarily because it guaranteed a
paid employment for them, which was far preferred to the less rewarding but more
tasking farm-work” (Igboanusi, 2002: 19). Even today some mastery of English –
through certified formal education – is necessary for one to engage in the white- collar
jobs that could place one in the middle class3 (TEILANYO, 2011, p. 149).

É justamente a partir desse contexto de imposição da língua inglesa,


por meio do ensino e do status que a língua foi adquirindo na sociedade
nigeriana, que refletimos sobre as relações coloniais e seus reflexos nos
sujeitos.

A língua inglesa e a colonização

Após tratar sobre a colonização da Nigéria, falaremos sobre como


a prática do colonialismo, atrelada à língua inglesa, produziu práticas e
formas de pensar que retornam às culturas e discursos das nações coloniais,
e como essas construções culturais do colonialismo perduram até hoje.
Para Pennycook (2018), o ensino da língua inglesa desempenhou um
papel importante nesse processo porque levou à atual difusão massiva do
inglês em todo o mundo, já que estava no cerne do colonialismo, ou seja,
profundamente entrelaçado com os discursos do colonialismo. Logo, a

3 Era o serviço colonial que oferecia bons salários, mais do que as ocupações indígenas, e alguma competência em inglês
era condição sine qua non para esse emprego. Assim, Herbert Igboanusi considera pertinente notar que os igbo e os africanos
em geral “estavam ansiosos por aprender a língua inglesa principalmente porque lhes garantia um emprego remunerado, o
que era preferível ao menos gratificante, mas mais exigente trabalho agrícola” (Igboanusi, 2002: 19). Mesmo hoje, algum
domínio do inglês - por meio de educação formal certificada – é necessário para que alguém se engaje em empregos de
colarinho branco que poderiam colocá-lo na classe média (tradução nossa).

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 71


compreensão do ensino da língua inglesa e do colonialismo pode nos ajudar
a entender como o colonialismo operava e qual o legado dessa empreitada
numa matriz colonial de poder que estrutura as sociedades ainda hoje.
As políticas sobre o oferecimento de uma educação em inglês não
se relacionavam simplesmente com o meio de instrução, mas estavam
preocupadas com diferentes visões de como melhor administrar uma
colônia. O fornecimento de inglês limitado poderia ser uma política
pragmática para facilitar o domínio colonial; para outros, a provisão do
inglês poderia ser uma parte essencial da difusão messiânica da língua e da
cultura britânicas. Já em outros casos, a provisão de educação vernácula
era uma obrigação colonial; enquanto para outros, foi uma ferramenta
crucial no desenvolvimento de uma força de trabalho capaz de participar
do capitalismo colonial; e até mesmo poderia ser um meio importante de
manter o status quo (PENNYCOOK, 1998).
Um dos casos citados por Pennycook (1998) refere-se às políticas
linguísticas adotadas pela coroa britânica em relação ao período de ocupação
colonial da Índia. O autor problematiza, por exemplo, um Relatório da
Comissão de Educação Indiana de 1882, segundo o qual

The English language is to be the medium of instruction in the higher branches,


and the vernacular in the lower. English is to be taught wherever there is a demand
for it, but it is not to be substituted for the vernacular languages of the country4
(PENNYCOOK, 1998, p. 70).
[I]t can be seen that education was seen as a means to enlighten the Indian population
and to make them aware of the system and benefits of colonial rule. It was a means
to produce a well-ordered, docile and co-operative population, but it was also a
moral and imperial duty to bring to the Indian population the benefits of European
knowledge5 (PENNYCOOK, 1998, p. 75).

Primeiramente, cabe discutir a questão de como na empreitada


4 A língua inglesa deve ser o meio de instrução nas camadas superiores, e a vernacular nas baixas. O inglês deve ser ensinado
onde quer que haja demanda para isso, mas não deve ser substituído pelas línguas vernaculares do país (tradução nossa).
5 Pode-se notar que a educação era vista como um meio de esclarecer a população indiana e torná-la ciente do sistema
e dos benefícios do domínio colonial. Era um meio de produzir uma população bem ordenada, dócil e cooperativa, mas
também era um dever moral e imperial de levar à população indiana os benefícios do conhecimento europeu (tradução
nossa).

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 72


colonial há uma imposição da língua da metrópole em detrimento das
línguas-culturas da colônia. Interessante notar que, no contexto indiano, a
implementação da língua inglesa enquanto meio de instrução foi destinada
apenas às classes altas da sociedade da colônia, de forma que a um só
tempo se impõe a língua hegemônica (o inglês) no território colonizado,
porém mantendo uma estrutura hierarquizada entre as populações que ali
viviam. Dessa forma, as classes menos abastadas eram educadas na língua
vernácula, o que acabava por impossibilitar uma ascensão social para essa
população (uma vez que o ensino superior, quando implementado, era feito
exclusivamente em língua inglesa). Por sua vez, as classes mais abastadas,
para manterem seus privilégios dentro da estrutura social local, precisavam
submeter-se à língua do colonizador.
Além disso, é possível perceber que o próprio sistema educacional
se inscreve numa matriz colonial de poder6 (MIGNOLO, 2017), uma
vez que o modelo de educação inglês (europeu) é discursivizado como
um “benefício” para a colônia, ou seja, as formas locais de existência, suas
epistemologias e formas de socialização de conhecimentos são tidas como
atrasadas, inferiores.
Os benefícios elencados são, sintomaticamente: produzir uma
população organizada, dócil e cooperativa – de forma que resistir à
colonização e manter suas formas de organização social são vistos como
indesejáveis. Ademais, os ingleses se veem com uma “obrigação moral” de
trazer (impor!) para os indianos os “benefícios” do conhecimento europeu,
que, nesse padrão colonial, é o único visto como relevante, correto, científico
– o que autores como Maldonado-Torres (2007) e Mignolo (2003) vão
nomear como uma colonialidade de poder/saber/ser, processo que ocorre
também no território nigeriano, tal como discutido na seção anterior.

Nesse quadro colonial, Pennycook (1998) faz uma consideração

6 Mignolo (2017) retoma uma discussão iniciada pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano, do final da década de 1980
início da década de 1990, sobre a colonialidade, que é um padrão/matriz de poder que persiste nas colônias mesmo após o
fim da relação de dominação colonial. Essa matriz colonial de poder teve início na invasão das Américas no século XV/
XVI e estabeleceu um padrão de poder mundial no qual os europeus (e seus modos de ser/estar no mundo) são tidos
como o padrão “natural”/neutro, enquanto as outras populações mundiais e suas formas de ser/estar são racializadas e
discursivizadas como inferiores.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 73


interessante sobre a contradição em relação ao ensino-aprendizagem de
língua inglesa nas colônias britânicas: “English is both the language that
will apparently bestow civilization, knowledge and wealth on people and
at the same time is the language in which they are racially defined.”7 (p.
4). Nesse sentido, ao mesmo tempo em que a língua inglesa é aquela tida
como a língua da civilização, a língua na qual os colonizados poderão ter
acesso (consumir, nunca produzir!) aos “legítimos” conhecimentos, é a
mesma língua na qual os colonizadores vão nomear a suposta inferioridade
dos povos racializados/colonizados.
Ainda discutindo sobre como a colonialidade tem rebatimentos em
discursos sobre a língua inglesa, Pennycook (1998) traz como exemplo
algumas das “vantagens” do inglês. Uma das características que são tidas
como superioridade dessa língua seria o extenso vocabulário (sendo
registradas mais de 600.000 palavras no dicionário Oxford). Nesse sentido
os falantes de inglês são discursivizados como pensadores mais aptos,
uma vez que teriam “à sua disposição” um vocabulário mais complexo que
permitiria uma maior precisão, nuances de significação.
Por outro lado, também circula um discurso sobre a língua inglesa
de que ela teria uma gramática mais simples do que outras línguas, o
que facilitaria uma adoção global, para ser utilizada como língua franca.
Concordamos com Pennycook (1998), na medida em que ele situa essa
contradição em colocar como vantagens ora o fato de a língua ter um
vocabulário mais extenso e complexo, ora a suposta simplicidade de sua
gramática, numa matriz colonial que já parte do pressuposto de uma
suposta superioridade dos ingleses e, por extensão, da língua inglesa,
de forma que essa matriz colonial é a lente através da qual são feitas
as comparações entre línguas diferentes, no sentido de “provar” a
superioridade da língua inglesa, não de investigar as diferenças.
Outro autor que problematiza a relação entre língua(s) e colonialidade
é o psicanalista martinicano Frantz Fanon. Ao longo de sua obra Pele Negra,
Máscaras Brancas, o autor discute os rebatimentos sociais da colonialidade

7 O inglês é a língua que aparentemente conferirá civilização, conhecimento e riqueza às pessoas e, ao mesmo
tempo, é a língua na qual elas são definidas racialmente (tradução nossa).

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 74


e em que medida ela vai condicionando as subjetividades dos negros na
Martinica, “departamento ultramarino”8 francês. Ele tece suas considerações
discutindo sobretudo em que medida a colonialidade atua no sentido de
alienar o negro antilhano. Segundo Fanon (2020, p. 34), “a burguesia nas
antilhas não faz uso do crioulo, exceto no contato com os domésticos.
Na escola, o jovem martinicano aprende a desprezar o patoá. Fala-se de
crioulismos. Algumas famílias chegam a proibir o uso do crioulo e as mães
tratam seus filhos de “tibandes”9 quando dele se utilizam.
Retomando a discussão sobre colonialidade do saber/poder/
ser mencionada anteriormente, podemos perceber como isso vai se
materializando em relação à língua utilizada pela burguesia martinicana.
Essa resistência em se comunicar em crioulo, descrita por Fanon (2020),
inscreve-se numa matriz colonial que racializa as formas de saber e ser
características da colônia – adjetivando-as como crioulismos – dando
prioridade à língua da metrópole (no caso em questão, o francês). Mais
à frente o autor continua: “Sim, é preciso que eu me policie em minha
elocução, pois é em parte por ela que serei julgado… com grande desdém,
dirão de mim: nem sequer sabe falar francês.” (FANON, 2020, p. 35).
Na seção seguinte veremos como situações semelhantes a essas ressoam
no contexto da Nigéria, na medida em que a língua inglesa vai sendo
discursivizada como a língua adequada para os espaços públicos, a língua
símbolo da civilização, em detrimento das línguas locais.
Finalizamos esta seção trazendo uma vez mais as colocações de Fanon
(2020):

Falar uma língua é assumir um mundo, uma cultura. O antilhano que quiser ser
branco tanto mais o será quanto mais tiver assumido como seu o instrumento
cultural que é a linguagem. [...] Historicamente, é preciso entender que o negro
quer falar o francês porque é a chave capaz de abrir as portas, que, para ele, há
meros cinquenta anos estavam interditadas (FANON, 2020, p. 52).

8 Departamento ultramarino é um departamento da França que está fora da França Metropolitana. Entendemos essa
denominação como uma espécie de atualização do termo colônia, tendo em vista que o território, que se situa na América
Central, é subordinado à França.
9 Conforme consta em nota do tradutor, tibandes refere-se às crianças que trabalhavam nos canaviais recolhendo os
pedaços menores de cana que escapavam dos fardos atados pelas canavieiras. Trata-se de uma nomeação, também colonial,
que posiciona essas crianças como seres inferiores, “menos humanos”.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 75


Apesar das críticas feitas por Fanon em relação aos processos de
alienação dos negros antilhanos, entendemos que essa busca por assumir
a língua do colonizador pode ser lida também como uma estratégia de
resistência, na medida em que a língua pode servir como uma fronteira em
relação aos espaços de poder na sociedade, fronteira essa que ora é lida como
barreira – mantendo assimetrias em relação aos que não se apropriam da
variedade “padrão” – ora como porta de entrada, dando acesso à educação
universitária, postos de trabalho mais bem remunerados, entre outros.
Essa perspectiva sobre a apropriação da língua do dominador como
uma forma de resistência é também retomada por bell hooks (2017), na
medida em que ela problematiza a relação dos povos africanos com a língua
inglesa:

sei que não é a língua inglesa que me machuca, mas o que os opressores fazem
com ela, como eles a moldam para transformá-la num território que limita e
define, como a tornam uma arma capaz de envergonhar, humilhar, colonizar
(HOOKS, 2017, p. 224).
Aprender o inglês, aprender a falar a língua estrangeira, foi o modo pelo qual os
africanos escravizados começaram a recuperar seu poder pessoal dentro de um
contexto de dominação. De posse de uma língua comum, os negros puderam
encontrar de novo um modo para construir a comunidade e um meio para criar
a solidariedade política necessária para resistir (HOOKS, 2017, p. 226).


Em alguns dos trechos do livro analisado no escopo deste capítulo,
veremos como os personagens se inscrevem em discursividades que ora
apontam para a sujeição à colonialidade ora para resistência a essa matriz
colonial de poder.

A língua inglesa em “Hibisco Roxo”

Como discutido anteriormente, a experiência na pós-independência


da Nigéria é marcada por tentativas de integração no campo político,
especialmente ao tentar transferir a lealdade de tribos e grupos étnicos para
o centro, e de sanar a falta de uma língua em comum (OGUNWALE,

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 76


2013). Logo, houve a necessidade de se desenvolver um símbolo nacional
voltado para a união dos povos, e a crescente influência que o inglês foi
desempenhando no mundo veio ao encontro da necessidade de se ter um
símbolo nacional na Nigéria.
Apesar de o país ter entre 250 e 400 línguas indígenas, o inglês
atualmente é considerado a sua língua oficial. Ela é usada na educação
formal, no campo administrativo, legislativo e governamental, e é preferida
até mesmo em reuniões familiares e casuais. Em “Hibisco Roxo”, a partir
da narrativa de Kambili, percebemos que o inglês era a língua tida como
“ideal” e “correta” nos ambientes públicos, cabendo até mesmo punição
caso falassem outra língua. No trecho 01, ao dizer “precisávamos ser
civilizados”, podemos observar que o igbo é colocado como o que é oposto
à civilização, em um tom negativo.

Trecho 01: 'Aquilo era um mau sinal. Papa quase nunca falava em igbo e, embora
Jaja e eu usássemos a língua com Mama quando estávamos em casa, ele não
gostava que o fizéssemos em público. Precisávamos ser civilizados em público, ele
nos dizia; precisávamos falar inglês. A irmã de Papa, tia Ifeoma, disse um dia que
Papa era muito colonizado.' (p. 20).

Mesmo o igbo sendo uma das línguas mais populares na Nigéria (com
cerca de 24 milhões de falantes), ela é colocada por várias instâncias como
uma língua indesejada e inadequada. De acordo com Ogunwale (2013), a
negação ao uso das línguas indígenas é uma forma de as pessoas se tornarem
colonizadas linguísticamente e de perderem sua cultura independente.
Vamos perceber como essa “perda” da cultura independente acontece por
meio da língua, no livro, mais à frente.
Em vários momentos no decorrer da estória, os personagens se utilizam
do code-switching – ou seja, a alternância de códigos linguísticos entre
línguas ou variedades de uma língua – de acordo com o seu interlocutor
e do contexto. No momento da estória destacado no trecho 02, Eugene
altera o seu sotaque para conversar com o padre, autoridade religiosa na
cidade:

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 77


Trecho 02: Papa mudou de sotaque quando respondeu, adotando uma pronúncia
britânica, como fazia quando falava com o padre Benedict. Ele se mostrou gracioso
e ansioso por agradar, como sempre era com os religiosos, principalmente os
religiosos brancos (p. 52).

A escolha por tentar mudar o seu sotaque para que ele pudesse soar mais
britânico reforça a representação de que i) o inglês é uma língua superior
e ii) o inglês “correto” e ideal é o britânico, em detrimento do inglês com
sotaque local. O desejo por agradar – e não somente os religiosos, mas
especialmente os religiosos brancos – também pode ser considerado uma
influência do período colonial, apontando para uma materialização na
língua dessa relação de hierarquização. Além disso, identifica-se a tentativa
de performar uma identidade outra, menos estigmatizada.
Em outro momento, quando um morador da cidade visita Eugene,
Kambili descreve o esforço realizado por ele para falar inglês perto do pai:

Trecho 03: Ele falava inglês com um sotaque igbo tão forte que até as palavras
mais curtas vinham decoradas com vogais extras. Papa gostava que o povo de Abba
se esforçasse para falar inglês perto dele. Dizia que mostrava que tinham bom senso.
(p. 67).

A necessidade de falar inglês, e não igbo, nessa situação, nos mostra


que a língua é mais do que um instrumento de comunicação, mas um
instrumento de poder e de status, conforme apontado por Pennycook
(1998). O visitante o usa para ser aceito e reconhecido por aquele que
mantém o poder econômico na cidade. Além disso, o fato de que falar
inglês demonstra que alguém possui bom senso confirma que existe uma
regra, construída socialmente naquela comunidade, de como se portar, e de
qual língua usar para se direcionar às autoridades. Nesse caso, novamente,
falar inglês é o esperado, e falar outras línguas é errado. Entretanto, esse
“protocolo” a ser seguido, a determinação de qual língua utilizar, foi
instituído no período colonial, portanto, pode ser considerado um traço
da colonialidade.
Mais à frente, Kambili descreve o seu avô materno, como pode ser
visto no trecho 04:

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 78


Trecho 04: Vovô tinha a pele muito clara, era quase albino, e diziam que esse fora
um dos motivos pelos quais os missionários haviam gostado dele. Insistia em falar
inglês, sempre, com um forte sotaque igbo. [...] Insistira para que o chamássemos
de Vovô em vez de Papa-Nnukwu ou Nna-Ochie. Papa ainda falava muito
dele, os olhos cheios de orgulho, como se Vovô fosse seu pai. Ele abriu os olhos
antes da maioria do nosso povo, dizia Papa; foi um dos poucos que acolheram os
missionários. Vocês sabem a rapidez com que ele aprendeu inglês? Quando se tornou
um intérprete, sabem quantas pessoas ajudou a converter? Ora, ele converteu
pessoalmente quase toda a população de Abba! Fazia as coisas do jeito certo, do
jeito que os brancos fazem, não como nosso povo faz agora! (p. 75).

Em primeiro lugar, chama-nos a atenção as características que fizeram


os missionários se simpatizarem com ele: falar inglês, ter a pele clara, e
ter acolhido bem os missionários. Certamente perceberam, nele, uma
disposição a difundir e pregar as ideias e os valores da Igreja Católica. Como
consequência, o fato de ele não gostar de ser chamado de Papa-Nnukwu
demonstra um afastamento da cultura local e de suas raízes, e a valorização
da cultura do outro. É possível que o avô e Eugene, assim como outros
nigerianos, considerem a colonização um processo que trouxe benefícios
para a Nigéria, logo, eles se inscrevem no discurso da modernização. Eugene
claramente toma o lado dos colonizadores ao dizer: “Fazia as coisas do jeito
certo, do jeito que os brancos fazem, não como nosso povo faz agora”, o
que aponta para um encantamento com a língua-cultura do colonizador
ao mesmo tempo que condena as tradições e as escolhas de seu povo. Isso
pode ser percebido na maneira que trata o seu sogro e despreza o próprio
pai, que não apoia as tradições católicas impostas.
Como o livro traz a perspectiva de Kambili e só temos acesso a
sua narração, é por meio da perspectiva dela que identificamos a fala e
o posicionamento de seu pai em diferentes momentos. E, no trecho 05,
percebemos, mais uma vez, como ele renega as outras línguas:

Trecho 05: Quando contei isso a Jaja, ele deu de ombros e disse que Papa devia
estar falando em línguas, embora nós dois soubéssemos que Papa não gostava
que as pessoas falassem em línguas, porque era isso que os pastores falsos das igrejas-
cogumelo pentecostais faziam. (p. 220)

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 79


Nesse caso, associar as outras línguas a pastores falsos seria uma
maneira de diminuir o seu valor e legitimidade perante a comunidade.
Isso é dito não apenas por Eugene, mas é reproduzido também por outras
pessoas de seu círculo.
Com o passar do tempo, Kambili começa a ter mais contato com
tia Ifeoma e passa a vivenciar um conflito interno. Ela, que desde então
tinha orgulho de seu pai e do que ele construiu, percebe que a sua criação
(extremamente rígida) é muito diferente do estilo de vida de sua tia e primos,
e passa, então, a questionar os rituais da igreja. Uma das responsáveis por
incentivar Kambili a fazer isso é sua prima Amaka. Por ter crescido em um
ambiente mais crítico e com mais liberdade de expressão, Amaka adota
uma postura subversiva e transgressiva em vários momentos. Um deles
está destacado no trecho 06 e refere-se a uma situação que retoma o que
comentamos na segunda seção deste texto, a saber: a escolha do nome de
crisma (que deveria ser em inglês):

Trecho 06: Entregou um pedaço de papel a Amaka e disse a ela que escrevera ali
alguns nomes adequados mas sem graça para sua crisma, e que tudo o que ela
precisava fazer era escolher um para que ele pudesse ir embora. Depois de o bispo
usar o nome na crisma, Amaka jamais precisaria mencioná-lo de novo. O padre
Amadi revirou os olhos, falando de forma bem lenta e deliberada. Amaka riu,
mas não pegou o papel.
- Já disse que não vou escolher um nome inglês, padre - insistiu ela.
- E eu já lhe perguntei por que não?
- Por que eu preciso fazer isso?
- Por que é assim que as coisas são feitas. Vamos esquecer se é certo ou errado
por enquanto - disse o padre Amadi, e percebi que havia sombras sob seus olhos.
- Quando os missionários chegaram aqui, eles achavam que os nomes do povo igbo
não eram bons o suficiente. Insistiam para que as pessoas escolhessem um nome inglês
antes de serem batizadas. Nós não devíamos ter progredido? - Hoje é diferente,
Amaka, não transforme isso em alguma coisa que não é - disse o padre Amadi
calmamente. - Ninguém precisa usar o nome. Veja o meu caso. Eu sempre usei
meu nome igbo, mas fui batizado como Michael e crismado como Victor.
Tia Ifeoma ergueu os olhos dos formulários que estava lendo. - Amaka, ngwa,
escolha um nome e deixe o padre Amadi ir trabalhar. - Mas então qual é o
objetivo? - perguntou Amaka a padre Amadi, como se não houvesse escutado o
que sua mãe dissera. - O que a Igreja está dizendo é que só um nome inglês torna
válida a nossa crisma. O nome “Chiamaka” diz que Deus é belo. “Chima” diz que

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 80


Deus sabe mais, “Chiebuka” diz que Deus é o melhor. Por acaso eles não glorificam
Deus da mesma forma que “Paul”, “Peter” e “Simon”? (p. 285-286).

O questionamento de Amaka aponta para a incoerência dos costumes


impostos pelo colonizador, e a maneira na qual eles apagam a identidade
e a cultura local. Com a pergunta “Nós não devíamos ter progredido?”
Amaka indica que considera essa exigência de nomes ingleses um costume
ultrapassado e que já deveria ter sido mudado. Essa colonialidade, que ocorre
por meio da língua, e na imposição da língua inglesa, tem implicações na
maneira que ela enxerga sua própria identidade.
De forma similar, tia Ifeoma comenta sobre como os nigerianos
são tratados quando migram para a Inglaterra ou Estados Unidos: seu
conhecimento cultural e intelectual não é considerado e a eles são dados
somente trabalhos braçais e precários. Considerando o que foi discutido
anteriormente, em uma perspectiva dos Estudos Decoloniais10, entendemos
que a invisibilidade, a deslegitimação das línguas e de sua cultura são
resultados de práticas de colonização que ainda ressoam na atualidade,
sendo a Nigéria apenas um dos exemplos.
Portanto, por meio dos trechos selecionados, foi possível observar o
papel que a língua inglesa desempenhou nas relações de colonialidade e
como ela opera na vida dos personagens de “Hibisco Roxo”, mesmo depois
de a Nigéria ter ficado “livre” da colonização britânica.

Considerações finais

Por meio de uma perspectiva decolonial, nos propusemos a discutir


as relações de colonialidade que foram materializadas por meio da língua
inglesa no livro “Hibisco Roxo”. Apesar de ser uma estória fictícia, os
personagens criados por Adichie se inscrevem em memórias discursivas
que são recorrentes e atuais. Além disso, os impactos da colonização da

10 Sugerimos a leitura do texto de Ballestrin (2013), no qual a autora faz um panorama sobre o giro decolonial,
a constituição, a trajetória e o pensamento do grupo Modernidade/Colonialidade.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 81


Nigéria que oficialmente ocorreu entre 1851 e 1960 não deixam de ser
reais e de ainda afetarem, por meio do discurso, o país no século XXI.
E é através da literatura que podemos observar como os efeitos da
colonização ainda afetam a vida doméstica de sujeitos colonizados.
Acreditamos que uma obra literária tem a capacidade de atingir um
domínio mais pessoal e introspectivo ao desenvolver a empatia, uma relação
mais íntima do leitor com os personagens e, com isso, sensibilizá-lo para
essas questões. Dito isso, as produções literárias se tornam importantes
para discutir temáticas relevantes na contemporaneidade. Elas são também
uma forma de expressão e uma maneira de dar mais visibilidade no cenário
artístico àqueles que sofreram com os processos de colonização, ao valorizar
a cultura desses povos.
Em relação à língua inglesa, fica evidente o seu status de relevância
social, que foi dado por necessidades colonizadoras, e se estendeu ainda após
o processo de colonização. “Todo povo colonizado – isto é, todo povo no
seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento
de sua originalidade cultural – toma posição diante da linguagem da
nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana” (FANON, 2020,
p. 32). A língua inglesa tornou-se ferramenta balizadora da capacidade
e superioridade do indivíduo, justificada pelas ações coloniais, e, assim,
diminuindo o valor das línguas locais e servindo como instrumento de
dominação também na Nigéria pós-colonial.
Por fim, destacamos que essas ponderações podem nos instigar a refletir
não apenas sobre o imperialismo e a colonialidade da língua inglesa e seus
efeitos na vida dos sujeitos, mas também sobre as políticas linguísticas e as
relações de poder envolvidas no processo de ensino de línguas.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 82


Referências

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CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 83


https://doi.org/10.52788/9786589932192.1-6

A utopia da demodiversidade em um
contexto de discurso de ódio perante
a comunidade LGBTQ+

Micaela Tavares Sampaio


Camila Maria Amorim Galvão de Magalhães
Thiago Allisson Cardoso de Jesus

Introdução

O desenvolvimento deste artigo é produto da iniciação científica


financiada pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), a partir
de custeio de bolsa pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado do
Maranhão/FAPEMA.
O objetivo do presente texto é analisar o discurso de ódio reverberado
contra comunidades LGBTQ+, frente a um contexto de diligência por
direitos básicos de proteção, para, assim, alcançar uma demodiversidade
concreta, sendo essa violência, que aniquila diuturnamente indivíduos
e grupos, um fenômeno complexo e tratado de forma naturalizada pela
sociedade contemporânea; traça-se ainda investigações acerca de seus
fundamentos, dilemas e debates, bem como a ineficácia do sistema de
garantias existente no ordenamento jurídico.
Tal problemática tem sua análise embasada no paradigma de uma
previsão legal já em voga para crimes de violência de gênero no sistema
jurisdicional, com contrapontos no que se refere ao sentimento coletivo de
insegurança e impunidade, que se manifestam principalmente pelas vítimas,
visto que há um aumento constante e significativo dos casos de violências

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 84


– das mais diversas naturezas e tipicidades – na contemporaneidade
brasileira.
Ademais, na perspectiva social, com intensificações culturais e
jurídicas tangentes ao fenômeno que - embora possua um histórico de luta,
militância e conquistas relativas a direitos e garantias - ainda é perpetuado
com traços claros de impunidade e, em muitos casos, com uma inversão de
valores frente à sociedade, vide a cultura do estupro – que culpa a vítima
em detrimento da real responsabilidade do agressor que, por sua vez, tem
o intuito de puni-las a fim de “curar” tal ato considerado desafiador dos
padrões das normas de gênero aprovados pela sociedade.
Surgem, portanto, reflexões acerca de qual seria o papel do Poder
Público perante a degradação do sistema de direitos e garantias referentes às
vítimas de crimes de violência de gênero voltadas à comunidade LGBTQ+,
bem como à corrupção do sistema de punições e responsabilização dos
agressores. Fomenta-se ainda a necessidade de categorizar os tipos de
violência, até mesmo para que possa haver o entendimento completo de
crimes hediondos como o feminicídio – que na grande maioria das vezes é
precedido de outras formas de violência, como a patrimonial e a psicológica.
No que se refere aos objetivos, em um plano geral, busca-se a
compreensão da violência de gênero como uma espécie de fenômeno de
altíssima complexidade e, por vezes, naturalizado na sociedade vigente, com
o intuito de investigar seus paradigmas em uma ambiência de desamparo
humanitário. No viés específico, interessa compreender as diversas faces
e tipicidades da violência de gênero nas comunidades LGBTQ+ a partir
do entendimento da manifestação do discurso ódio e da destituição das
subjetividades asseguradas pelo ordenamento jurídico, contrabalanceando
a óptica de afirmação da demodiversidade e de proteção humanitária.
Ademais, leva-se em conta todo o contexto histórico de desigualdades e
deslegitimações vivenciadas pelas comunidades vitimadas dia após dia no
país.
A pesquisa tem natureza exploratória, abordagem qualitativa, faz uso de
técnicas de pesquisa bibliográfica e documental para a coleta e sistematização
de dados. O plano de investigação do presente artigo subdivide-se em

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 85


seções. A primeira analisa as premissas da prática das violências de gênero,
a classificação do fenômeno, seus sujeitos e comparações e o modo como
este ocorre no Brasil. Posteriormente, os aspectos sociais, uma investigação
das categorias e subespécies, estudando as particularidades que dão sentido
a uma prática por muitas vezes tratada com uniformidade e irracionalidade
por muitos noticiários e pelo entendimento popular, que naturaliza o
discurso de ódio contra a comunidade LGBTQ+. Por último, passa-se a
crítica das divergências encontradas no âmbito jurídico em contrapartida
ao sentido de demodiversidade e a busca pela sua concretização.

Classificações e manifestações da violência:


sujeitos e comparações

É perfeitamente observável que o termo “violência” representa um


fenômeno amplo e diversificado, abarcando os mais diversos tipos e
categorias. A violência é apresentada como sistema, cujas peculiaridades
são objeto de apreensão no cotidiano, haja vista o temor causado pelas
diversas expectativas de vitimização.
Entretanto, para abordar a violência contra grupos vulneráveis como
as mulheres e a comunidade LGBTQ+, é necessário o entendimento de
gênero como parte das relações sociais, com base nas diferenças entre os
sexos e como forma principal das relações de poder. “Gênero”, portanto, é
compreendido como um conceito cultural vinculado à maneira como são
construídas pela sociedade as diferenças sexuais. É tangente à construção
social de sexo, isto é, o termo sexo refere-se apenas à fisiologia dos seres,
enquanto gênero caracteriza a dimensão social da sexualidade das pessoas
(Butler, 2006).
Violência de gênero refere-se a qualquer ato que causa ou possa causar
dano ou sofrimento físico, sexual, psicológico, patrimonial, institucional,
dentre outras formas, a esses grupos vulneráveis. Adentram também nesse
viés ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária de liberdade, bem
como castigos, maus tratos, pornografia, agressão sexual e incesto. Nessa

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 86


lógica, há uma tensão paradoxal no sentido de compreender que nem
sempre os ideais de dominação masculina e heteronormatividade serão
obedecidos. Dessa forma, cabe a alegação de Butler:

O gênero é o mecanismo pelo qual as noções de masculino e feminino são


produzidas e naturalizadas, mas ele poderia ser muito bem o dispositivo pelo
qual estes termos são descontruídos e desnaturalizados (BUTLER, 2006).

Em seus estudos, a professora Dra. Miriam Pillar Grossi (1993) avoca


essa perspectiva ao se questionar se a sociedade brasileira “[...] já mudou
o suficiente para que a punição do(s) seu(s) assassino(s) não tenha como
condição necessária a construção de uma imagem beatificada de Daniela
[...]”, visto que a autora traz o caso da atriz Daniela Perez (morta pelo
companheiro de trabalho), de grande repercussão nos anos 1990, para
criticar essa cultura que tira a responsabilidade do agressor se a vítima não
for “boa moça”. De maneira análoga, tomando por base também o discurso
de Butler acerca da violência de gênero, entende-se que essa espécie de
violência se diferenciadas outras primordialmente por sua ideologia moral,
que para as mulheres um julgamento digno somente será realizado se
forem “boas moças” e para os LGBTQIA+ ocorre uma punição por não se
adequarem aos padrões heteronormativos.
Paralelo a isso, referente a tais padrões, há ainda a temática tangente
às singularidades da transexualidade. Transgênero, portanto, seria uma
categoria de representação das pessoas que não se identificam com o gênero
que lhes é atribuído conforme seu sexo biológico. Em contrapartida,
as pessoas que não têm esse dissídio de identidade estão na categoria
“cisgênero” (JESUS, 2012).
Assim, conforme Saleiro (2012), “a transexualidade expressa um
processo de migração de gênero e não uma oscilação ou transgressão,
como em outras expressões trans”, traçando um contra ponto relativo
às travestilidades. Ainda sob esse viés, similarmente ao preconizado por
Butler (2015), as identidades trans questionam os discursos embasados no
essencialismo e determinismo biológico. Para tratar da homoafetividade,
Rogério da Silva Martins da Costa, docente da pós-graduação em
Sexualidade Humana no Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitação

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 87


- Uni IBM questiona o conceito que, para ele, se limita ao tempo em que
é analisado. Afirma ele que o importante a ser destacado é “a historicidade
da condição da homossexualidade, a transitoriedade de um conceito
ligado a uma determinada ação/representação”. Assim, essa designação será
formulada conforme a cultura que a criou e os seus significados simbólicos
serão diversos, podendo variar de mera contraposição ao que é hétero
até uma identidade do sexual aplicada a fatos diversos, sem que haja a
afirmação da necessidade homogênea empírica ou metafísica dos fatos ou
o isomorfismo da palavra com aquilo que nomeia (COSTA, 1996).
Nesse sentido, entende-se homofobia como sendo o conjunto de
emoções e/ou atitudes negativas - aversão, desprezo, ódio ou medo – em
relação às homoafetividades (BORRILLO, 2010). Há questionamentos
e ressignificações constantes acerca dessa conceituação, visto que a
sexualidade e a identidade de gênero cada vez mais estão sendo entendidas
como fluidas e diversas. Preconceito, discriminação e violência marcam a
homofobia, tanto nas esferas individuais como na coletividade, assim como
também permeiam âmbitos psicológicos, sociais, jurídicos, institucionais
e políticos. É necessário ressaltar que, no ordenamento jurídico vigente
no Brasil, não há uma distinção entre transfobia e homofobia. Aquela
encontra-se incluída no fenômeno desta, ambas enquadradas na legislação
de intolerância e discriminação, conforme PLS 515/2017 de autoria da
Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa: “Altera a Lei
nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, e o § 3º do art. 140 do Decreto-
Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para punir a
discriminação ou preconceito de origem, condição de pessoa idosa ou com
deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero.”

O discurso de ódio perante a comunidade LGBTQ+ e a


naturalização da violência

O discurso de ódio pode ser compreendido como “um fenômeno social


que está ligado à ideia de desprezo ou intolerância contra determinados
grupos, menosprezando-os pelo simples fato de pertencerem àquele
determinado grupo” (MORA, 2016). Já a LGBTQ+fobia, poderia ser

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 88


descrita como tal – desprezo ou intolerância contra a comunidade LGBTQ+
pelo simples fato de pertencerem a tal comunidade, porém “mesmo que
seu componente primordial seja, efetivamente, a rejeição irracional e, até
mesmo, o ódio em relação a comunidade, a LGBTQ+fobia não pode ser
reduzida a esse aspecto” (BORRILLO, p. 13, 2010).
A compreensão do ódio voltado à comunidade LGBTQ+, segundo
Daniel Borrillo (p.13, 2010), pode ser análoga ao que ocorre no
xenofobismo, racismo ou antissemitismo, sendo uma “manifestação
arbitrária que consiste em designar o outro como contrário, inferior
ou anormal”. Dentro da norma jurídica, inclusive a brasileira, fomenta
Borrillo (2010), houve diversas designações opressoras que, durante vários
séculos, serviram para desqualificar o desejo e as relações sexuais ou afetivas
entre pessoas do mesmo sexo, sendo também uma realidade às identidades
de gênero variantes ao padrão imposto dentro da sociedade binária que se
perpetuam nos veículos de dominação.
O professor da Universidade Federal da Paraíba, Roberto Efrem
Filho, em seu artigo Corpos Brutalizados (2016), faz um levantamento
de casos de violência contra a comunidade LGBTQ+, onde se atenta às
injustificáveis crueldades cometidas pelos agressores.

Sobre o corpo de José Renato dos Santos, os peritos contaram 26 facadas. Sobre
o de Sandro Almeida Lúcio, 30. Jurandir Leite foi estrangulado. Seu cadáver
trazia marcas de luta corporal. Laís Martins sofreu violências sexuais antes de
ser assassinada. Seu rosto foi completamente desfigurado por pedradas. Severino
Antônio, esfaqueado e estuprado antes da morte, levou um golpe de faca peixeira
no ânus. Djalma Matos morreu por espancamento. Teve a face deformada.
Carlos de Lima recebeu diversos tiros, antes ou depois da morte. A cabeça de
Jeová Albino foi esmagada por uma pedra; disparos de arma de fogo, contudo,
causaram o homicídio. Assassinado, Ronaldo Carvalho teve seu pênis decepado.
(FILHO, 2016).

Nesse sentido, é possível observar uma subcategoria dentro da violência


de gênero, visto que, conforme relata o autor, há uma peculiaridade nos
“crimes de ódio”, quando comparados aos crimes comuns, e mesmo dos
passionais. As brutalidades, portanto, exemplificam a crueldade presente
na LGBTQ+fobia, sendo assim o autor cita:   “a história do crime é
costurada às malhas dos conflitos sociais’’ essa fala do autor é cirúrgica ao

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 89


exprimir a naturalização, por parte da sociedade, desses crimes (FILHO,
2016). Todo esse preconceito enraizado se manifesta, primeiramente, no
discurso de ódio que do arbitrário cultural, transforma-se em natural e é
constantemente ratificado pelos indivíduos que conglutinados formam a
sociedade (BOURDIEU, 2012).
A poeta anglofônica lésbica Eileen Myles compôs o seguinte verso:

Eu não sei
por que o universo
me escolheu
para ser fêmea
tanta beleza
& dor,
tanta coisa
acontecendo
por dentro
de toda essa
mudança
(MYLES, 2019).

É possível relacionar a poesia de Myles ao que Joan Scott (1991)


evidencia em sua obra “Gênero: uma categoria útil para a análise histórica”,
em que os papéis de poder se organizaram ao passar do tempo com um
dominador e um dominado, em que este dominado não seria apenas
diferente ou “o outro” – como explica De Beauvoir (1990) – mas também
inferior. Chimamanda Adichie diz que

o problema da questão de gênero é que ela prescreve como devemos ser, em vez


de reconhecer como somos. Seríamos bem mais felizes, mais livres para sermos
quem realmente somos, se não tivéssemos o peso das expectativas do gênero
(ADICHIE, 2012).

Opostamente ao homem, cisgênero e hétero, o estereótipo exigido da


mulher, seja ela trans ou cis, ou daquele que seria aceito na identificação de
performance feminina deve ser em um padrão específico do que a mídia
diz ser belo e, como descrito pela poeta (2019), esta exigência promove

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 90


dor por ser, de certo, inalcançável. Ao questionar-se pelo motivo do
universo defini-la como fêmea, ao exigir essa performance violenta que a
encaixa em um perfil superficial do que ela própria seria antes mesmo de
definir-se como tal – foco do problema como descrito em Adichie (2012)
-, em que o universo a descreveria dentro deste padrão e a exigisse tal
comportamento, é possível encontrar a violência, visto que, caso contrário,
ocorre a marginalização do indivíduo considerado “desviante”, sendo este
alvo de represálias constantes e a busca por uma aceitação ilusória.
Em “A dominação masculina”, Bourdieu (2012) explica que essa
dominação perpassa por entre as épocas por apresentar características
intrínsecas em um sistema complexo, ou seja, ações suaves a perpetuam,
as próprias vítimas empoderam seus opressores e fazem a reprodução
espontânea desta hierarquia ocorrer, pois desconhecem este lugar de vítima,
naturalizado pelas mídias, publicidades, tradições e costumes dentro de
uma visão binária de gênero, onde são “os gêneros que produzem o sexo”
(BOURCIER, 2020). Esta dominação produz uma violência que se amplia
ao individual ou à própria violência direta (JESUS, 2018), sendo esta
estrutural, para o Centro de Investigação e Informação para a Paz (2002),
“a violência estrutural ocorre quando por motivos alheios a nossa vontade
não somos o que poderíamos ser ou não temos o que deveríamos ter”, ou
em Jesus (2018), “a violência estrutural manifesta-se dentro das estruturas
sociais quando há repartição desigual de poder e, consequentemente,
possibilidades diferentes de vida e desenvolvimento humano”. Sendo assim,
compreender esta violência presente contra a comunidade LGBTQ+ se
torna primordial para combatê-la.
Em Butler (2003), o gênero como performativo sinaliza que não há
“essência” ou “identidade” nos signos corporais. A filósofa estadunidense
sugere três dimensões da corporeidade: sexo anatômico, aquele dado pela
biologia; identidade de  gênero, aquela que Beauvoir tratou como uma
construção social – diferentemente do que Butler induz; e performance
de gênero – que sugere a necessidade de repetição que, ao mesmo tempo
em que é a reencenação de um conjunto de significados já estabelecidos
socialmente, é também, a cada vez, uma nova experiência de performance ou

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 91


o que a autora chama de “repetição estilizada de atos”, logo o gênero é a
“estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior
de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo
para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser”
(BUTLER, 2003, p. 59).
Ao trazer a desconstrução deste símbolo, é possível questionar-se em
que âmbito se ascendeu o poder dominador masculino sobre o estereótipo
de frágil e dominado atribuído àquele que é diverso deste. Ao deformarmos
um padrão repetido e utilizarmos a técnica defendida e nomeada por
Durkheim (2001) de “classificação das formas” ou como descrito por
Bourdieu (2012) explorar as “categorias de entendimento”, é perceptível
quão infundado é esta dominação. Enquanto a comunidade LGBTQ+ é
considerada diversidade e busca por aceitação, o homem, hétero, cisgênero,
branco é petrificado como padrão e é detentor do poder de aceitar, legitimar
e marginalizar esses “desviantes”. Enquanto houver essa necessidade de
aceitação, não há como haver igualdade (CAZELATTO, 2016).
Jesus (2018) ao citar Barrata (2002, p. 63) entende que a origem
dos comportamentos reconhecidos como “desviantes” está na afirmação
contínua de um grupo declarado legítimo e afirmativamente consolidado
perante a sociedade e o próprio estado. Sendo assim, “a violência não pode
ser entendida apenas em sede de comportamento agressivo; mas como
fenômeno que decorre das relações desiguais em sociedade” (JESUS, 2018).
O desprezo exposto em discursos de ódio e reforçado por representações
políticas atuais perante a comunidade LGBTQ+ pode ser explicada como
uma dominação intrínseca legitimada nessas classes de poder dentro desse
grupo de dominadores - que apresenta-se como homens, cis, héteros e
brancos (BOURDIEU, 2012)- ou uma certa ignorância advinda de uma
sociedade heterormativa compulsória - em que os parâmetros impostos
objetificam os sujeitos e os inserem em caixas organizadoras antes mesmo
deles perceberem-se, seja na sexualidade, gênero ou nos demais aspectos
culturais (BUTLER, 2010). Qualquer realidade que diverge desta massa
que se identifica-se como congruente, necessita de solicitar aceitação e sofre
as violências punitivas que os impõem.

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Os ataques causados pela identificação de gênero ou orientação sexual
de um indivíduo estão enquadrados dentro de uma marguem extensa
de agressões identificadas como “violência de gênero”, visto que a causa
dessa violência está diretamente ligada com a objetificação do sujeito
enquanto identitário naquele gênero, o que gera ódio são as reverberações
de estereótipos que oprimem o sujeito que se identifica ou é identificado
externamente dentro daquela “caixa organizadora”, mas desta vez ela não
encaixa nos padrões, mas nos estereótipos (CAZELATTO, 2016).
Sendo assim, entende-se que a racionalização desta violência - a de
gênero que se identifica dentro de uma subclassificação das violências
estruturais – apresenta-se como um meio de resistência dentro das categorias
de base e, assim, de desconstrução de um padrão. Com isso, é possível
vislumbrar uma sociedade menos desigual. Porém, ainda distante do que
entenderemos como “demodiversidade”.

Demodiversidade e Proteção humanitária: crítica ao


sistema jurídico

O poder reconhecido nas mãos deste padrão é legitimado na conjuntura


política que deveria, em teoria, incluir. A democracia se torna oligárquica na
prática, o poder é oferecido eleição por eleição a uma minoria insignificante
que perpetua no Legislativo e se beneficia ciclicamente, não representando
a comunidade marginalizada. Com a reprodução constante dessa violência
pela sociedade, o Poder Judiciário se torna refém de tais características sem
que haja um elemento classificatório divergindo daquilo que se tornou
natural: a violência estrutural.
Boaventura de Souza Santos e José Manuel Mendes (2018),
“Demodiversidade:   imaginar  novas  possibilidades  democráticas”,
apresentam uma crítica ao modelo atual, propondo “democratizar
a democracia”, ou seja, buscar uma democracia de alta intensidade,
combinando o que seria a democracia participativa e deliberativa à
representativa. Sendo assim, a “demodiversidade” - neologismo de Santos
(2006), seria um conceito posto em prática na sociedade, a partir do qual

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 93


a valorização da diversidade cultural, étnica e religiosa poderiam aliar-se
aos padrões pré-estabelecidos e tornarem-se naturalizados com objetivo de
findar a violência presente na intolerância em meio a diversidade. O autor
então explica o objetivo deste modelo:

Em síntese, o que está em jogo é a transformação radical da política – dos seus


processos, atores, métodos, espaços, tempos e escalas, mas sobretudo dos seus
estilos e formas de fazer –, em busca de novos modos de intercâmbio a partir
de formas reticulares de articulação que permitam experimentar formatos
pós-liberais de participação política e façam emergir à superfície “políticas
subterrâneas” que excedam os enquadramentos teóricos e as práticas vigentes da
democracia fundada na colonialidade (SANTOS, 2018).

Como exposto anteriormente, a violência de gênero voltada à


comunidade LGBTQ+ tem fundamento em um desconhecimento e
posterior marginalização do outro, esse outro seria alguém diferente
daquele que é considerado padrão (BEAUVOIR, 2014). Sendo assim, a
ideia da demodiversidade (SANTOS, 2006) seria uma desmistificação do
que seria identificado como o “outro”, buscando construir uma sociedade
amplamente representativa, o que incluiria proporcionalidade LGBTQIA+
também nos espaços políticos (MELLO, 2014).
A Constituição de 1988 estabelece a segurança como um dos direitos
individuais fundamentais (art. 5°, caput) e também como direito social
(art. 6°, caput), definindo-a, no artigo 144, como dever do Estado, direito
e responsabilidade de todos, visando à “[...] preservação da ordem pública
e da incolumidade das pessoas e do patrimônio [...]”. Conforme Mello
(2014), “Houve registro de 1.159 denúncias, relativas a 6.809 violações
de direitos humanos contra LGBTQ+ denunciadas ao Governo Federal
em 2011, envolvendo 1.713 vítimas.”. Em 2012, os números aumentaram
de mais de 100%. Com base na realidade material, o sistema de garantias
tem se distanciado de maneira abissal à prática. No ano de 2013, foram
registradas 358 denúncias de casos de violência contra grupos LGBTQ+
na cidade de São Luís, figurando o estado como o 4º com o maior índice
nesse campo.
Os números possibilitam uma clareza ao tratar-se desta constante
violência e naturalização pelas mídias sociais, canais de comunicação e da

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 94


própria tradição familiar. O Brasil encontra-se em uma situação inusitada
enquanto cultura relacionada à comunidade LGBTQ+, trazendo um
preconceito implícito, enraizado em seus costumes e valores éticos ainda
muito entrelaçados à religião cristã. Este fato possibilita uma exclusão
moral e necessária deste grupo que ocasiona muitas vezes nos dados brutais
expostos acima (RESENDE, 2016).
Nesse contexto, entende-se que deve haver projetos com espaços para
programas de iniciativas públicas na área da segurança para LGBTQ+,
a inclusão no mercado de trabalho pode ser eficaz na proporcionalidade
de atuação em diversificadas áreas, além dessa proporção também ser
visualizada nos cargos políticos e no próprio âmbito jurídico, espaço
este que ocorrerá apenas se a base – a educação - estiver sustentada por
profissionais que cultivem e entendam a diversidade.
Além disso, com enfoque na violência, entende-se que a criação de
delegacias com especialização e treinamento adequado para receber e
acolher os relatos das vítimas seria um modelo eficiente de tratamento
e diminuição de descasos com a comunidade, assim como já posto em
prática em projetos como A Casa da Mulher brasileira e o corpo policial
que movimenta um atendimento mais humanizado às vítimas, sendo de
extrema importância a atuação da Defensoria Pública e a adequação das
condições de vivência no sistema carcerário com regulamentação de visitas
íntimas para casais de pessoas do mesmo sexo e a gestão humanizada dessas
particularidades nesse ambiente.
Aliado a estas práticas, estão as normas jurídicas a serem regulamentadas
em busca da proteção desses indivíduos: as leis e atos administrativos,
que poderiam ser mais eficazes se tipificados, como ocorre com a lei de
feminicídio (Lei 13.104/15), que se mostra um ponto de apoio forte para
a diminuição de casos de violência contra a mulher. Sendo também de
grande importância pensar-se em planos e programas de governo voltados
à população LGBT com o intuito de informar sobre a violência, entender-
se como ela pode ser combatida e incentivar a assistência da comunidade
em geral para que estes números não sejam naturalizados, mas combatidos
(MELLO, 2014).

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 95


Considerações finais

Conclui-se, portanto, que a violência de gênero – entendida e


classificada como uma espécie de violência embasada em discursos de ódio
– funciona como um mecanismo pelo qual o agressor se vale do intuito
de punir a vítima. Os padrões de heteronormatividade encontram-se cada
vez mais ameaçados e, com isso, debatidos quando se busca um ideal de
demodiversidade, na qual as singularidades de cada indivíduo devem ser
respeitadas e inseridas no contexto democrático.
Tendo em vista o exposto, entende-se que há subtipos de violência,
inclusive direcionados a grupos vulneráveis como a comunidade LGBTQ+,
como a homofobia e a transfobia, as quais são caracterizadas primordialmente
por ser parte de um sistema complexo, sendo posicionamentos, ditos como
inofensivos, as perpetuam, e as próprias vítimas empoderam seus opressores
e repetem e reproduzem essa hierarquia, visto que desconhecem este lugar
– de vítima – que é naturalizado pelas mídias, publicidades, tradições e
costumes dentro de uma visão binária de gênero, onde são os gêneros que
produzem o sexo (BOURCIER, 2020).
Depreendeu-se, ainda dessa pesquisa, qual é o papel do Poder Público
perante a degradação do sistema de direitos e garantias referentes às vítimas
de crimes de violência de gênero voltadas à comunidade LGBTQIA+,
como também à corrupção do sistema de punições e responsabilização
dos agressores. Para tanto, constata-se a necessidade de categorizar os
tipos de violência proporcionando o entendimento completo de crimes de
LGBTQ+fobia.
A crítica utilizada, baseada na ideia utópica da demodiversidade,
instigou o motivo desta distante concretização de uma democracia que
inclua as complexas particularidades de um indivíduo. Analisou-se o
discurso de ódio, perpetuado de maneira intrínseca, elencando as formas
de violência e deduzindo aquela que provoca a ratificação de sua existência
no sistema, nomeada como violência estrutural.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 96


Ao entender a violência voltada à comunidade nos diversos setores
sociais – assim como fortemente reproduzida pelos três poderes – foi
possível identificar sua constância no que tange a repetição de suas ações. Ao
propor, em um último momento, soluções que desestruturem as formas de
rejeição sistemáticas, compõe-se um objetivo geral pelo fim dessa violência
estrutural e um caminho verossímil de proporcionalidade no âmbito social
que torne a diversidade parte e não “desviante”.

Referências

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2014.
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CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 98


https://doi.org/10.52788/9786589932192.1-7

Retalhos de um Paraná (de)colonial?


Percepções acerca da geada negra
sob a ótica do Sul Global

Carlos Elias Barros Sobreira Rodrigues

Introdução

Este artigo objetiva tecer algumas considerações acerca do fenômeno


da geada negra, que ocorreu no norte paranaense no período de 1975,
sob a ótica do pensamento decolonial, expresso na obra Histórias Locais,
Projetos Globais, de Walter Mignolo, propondo, assim, uma leitura crítica
a partir de um lócus de enunciação oriundo do Sul Global. No corpo do
texto, apresentaremos alguns dados da geada negra e aspectos do impacto
na sociedade paranaense que modificou, consideravelmente, as vivências
dos sujeitos que estiveram envolvidos no fenômeno.
A título de introdução, vale observar aqui, que os diversos discursos
que surgiram acerca de como se desenvolve uma catástrofe, são importantes
pois, esses desastres incutem nas pessoas memórias de acontecimentos
que fazem com que esses fenômenos estejam sempre prontos a serem
despertados nas mentes dos sujeitos. Os diversos discursos injungidos nos
grupos sociais, não deixam de ser uma construção política e para Makoni;
Pennycook (2007), além de ser uma construção política, é também, um
instrumento de construção para o controle das variedades e das diferenças.
Nesse contexto, o imaginário coletivo, compartilha ideias e opiniões,
que coabitam na memória afetiva e social das culturas, como podemos
observar na citação de Baczo (1954) que destacamos a seguir,

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 99


O imaginário social é composto por um conjunto de relações imagéticas que
atuam como memoria afetivo-social de uma cultura, um substrato ideológico
mantido pela comunidade. Trata-se de uma produção coletiva, já que é o
depositário da memória que a família e os grupos recolhem de seus contatos com
o cotidiano. Nessa dimensão, identificamos as diferentes percepções dos atores
em relação a si mesmos e de uns em relação aos outros, ou seja, como eles se
visualizam como parte de uma coletividade (p. 54)

Vale observar, também, que um desastre como a geada negra desperta


nos sujeitos suas memórias de acontecimentos anteriores, e cada sociedade
apresenta na construção de seus enunciados suas vivências de grandes
catástrofes. As sociedades, porém, são construções heterogêneas e uma
mesma catástrofe ou epidemia como o COVID-19, por exemplo, são
mais difíceis para uns grupos sociais do que para outros, ou seja, nem as
catástrofes nem as epidemias são homogêneas.
Neste artigo, observamos outros grupos sociais para os quais a geada
negra foi particularmente difícil. São os grupos que compartilhavam uma
vulnerabilidade precedente a geada, e tais grupos são compostos pelos
sujeitos oriundos do Sul Global. Destacamos que quando usamos o termo
Sul Global, não designamos um espaço geográfico, mas um espaço-tempo
político, social e cultural.
Nos propomos aqui a dar visibilidade às vozes daqueles e daquelas
que têm sofrido formas de discriminação, tentando imaginar também suas
percepções, as mudanças sociais que se impuseram durante o fenômeno
da geada negra. Observamos aqui que esses coletivos sociais foram muitos,
mas destacamos alguns como: os agricultores e os sujeitos do campo.

O pensamento decolonial: algumas ressignificações

As Teorias Decoloniais surgem a partir de um movimento de


resistência político, epistemológico, prático e teórico contra a lógica da
colonialidade e são formados por estudiosos oriundos do Hemisfério Sul,
entres eles, Torres (2007), Mignolo (2007), Dussel (2006), Quijano (2005)
e outros, que mesmo não oriundos do Sul Global, se juntaram ao mesmo
movimento, como por exemplo, Santos (2008).

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 100


O pensamento decolonial não busca apenas retirar o véu imposto
pelo pensamento colonial, mas também retomar os saberes do Sul dentro
de uma legitimidade e autenticidade epistêmica. O pensamento decolonial
reflete sobre a colonização como um grande evento prolongado, de muitas
rupturas, e não como uma etapa histórica já superada. Deste modo quero
salientar que a intenção não é desfazer o colonial ou revertê-lo, ou seja,
superar o momento colonial pelo momento pós-colonial. A intenção é
provocar um posicionamento contínuo de transgredir e insurgir. O
decolonial implica, portanto, uma luta contínua (COLAÇO, 2012, p. 8).
Segundo Ballestrin (2013), o pensamento decolonial foi uma
elaboração posterior ao que Mignolo cunhou de “pensamento fronteiriço”
e que se caracterizou por resistir às cinco ideologias da modernidade, que
são: o cristianismo, o liberalismo, o marxismo, o conservadorismo e o
colonialismo. Trata-se, portanto, além de outros aspectos, de reconduzir os
saberes apagados e calados pela modernidade, propiciando, para além da
denúncia dos antagonismos, o reconhecimento da validade epistêmica dos
saberes inerentes às sociedades colonizadas. Portanto, faz-se imprescindível
um pensamento decolonial como “resposta epistêmica dos subalternos
ao projeto eurocêntrico da modernidade” (BERNARDINOCOSTA;
GROSFOGUEL, 2016, p. 19).
Trata-se de alterar uma cosmovisão sedimentada e centrada no eixo
“norte-sul”, desarticulando a noção de uma divisão epistemológica entre o
centro e a periferia, reconhecendo a existência de outros universos que vão
além de uma hierarquização rígida, reconhecendo os diversos fascismos
sociais que se encontram intrínsecos nos discursos, nas práticas diárias, nas
nossas vivências sociais. Dessa forma, ao pensarmos que a diversidade do
mundo é inesgotável, podemos refletir também em um pensamento pós-
abissal, que, assevera que a diversidade epistemológica do mundo ainda
está sendo construída e sempre estará em construção.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 101


A Geada negra no Paraná: relatos históricos

A geada é um fenômeno meteorológico que se forma quando a


temperatura do ar é menor ou igual a 0ºC, permitindo que o vapor d’água
sublime, formando cristais de gelo sobre as superfícies de contato com o
ar (BISCARO, 2007). Tais congelamentos podem vir a causar lesões nas
plantas e até mesmo a sua morte pelo frio.
Em relação aos aspectos visuais, temos duas tipificações para as
geadas que merecem destaque: as geadas brancas, que se caracterizam pela
formação de gelo sobre as superfícies e ocorrem em noites frias e sem vento;
E as geadas negras, que se caracterizam pelo congelamento da água no
interior das células das plantas, devido às fortes ventanias que ocasionam a
“queima” das mesmas, ocasionando a necrose dos tecidos vegetais (MELO
- ABREU, 2010; SNYDER e MELO - ABREU, 2005).
Portanto, a conceituação acerca da geada nos permite compreender o
quão danoso este processo é para as culturas agrícolas nas regiões às quais
ela ocorre, e porque ela afetou tão grandemente a economia paranaense.
A Geada Negra, ocorrida em 1975, no Norte do Paraná, foi o ocaso
final da chamada “Era do Café”. Especificamente em 18 de julho de 1975,
os cafezais do Norte do Paraná amanheceram queimados e os frutos do café
completamente inutilizados, gerando um prejuízo incalculável às culturas
cafeeiras da região. Uma conjunção de fatores muito específica, ocorrida
na madrugada anterior (frio de -9º C e uma forte ventania), possibilitou
que ocorressem queimaduras nos troncos dos cafezais, matando as plantas
e inutilizando os frutos, que, queimados, não tinham mais nenhum valor
comercial. Entretanto, não se pode especificamente apontar a geada como
única causa para as mudanças ocorridas após ela no campo paranaense,
mas sim ela tendo sido o ponto de mudança que alterou decisivamente a
economia do Paraná.
Segundo Roberto Bondarik (2010), “em 18 de julho de 1975, ocorria a
Geada Negra, que erradicou a cafeicultura no Estado do Paraná”. Bondarik
(2010) explica que “naquela ocasião muitos não tiveram discernimento

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 102


da amplitude dos problemas causados e das consequências que seriam
geradas por esta geada, talvez ainda hoje muitos ainda não tenham essa
compreensão”. De acordo com Bondarik (2010),
Revistas e jornais da época mostram o frio europeu que atingiu o
sul do Brasil. Em Curitiba ainda se relembra e comemora a neve daquela
ocasião. No Norte, onde o café era a principal atividade econômica, o
frio intenso assumiu ares de tragédia [...]. Haviam ocorrido geadas fortes
em 1963, 1964 e 1966, prenúncios da maior de todas. No dia seguinte,
a Folha afirmava que os cafeicultores estavam de luto, mas os órfãos, a
história mostra isso, eram a população do Norte, em especial os colonos,
os pequenos proprietários, os comerciantes, as cidades, todos aqueles que
se relacionavam direta ou indiretamente com a cafeicultura. Foram todos
atingidos em seu modo e no seu estilo de vida, tivemos de reaprender a
viver (BONDARIK, 2010).
Contudo, a geada não foi a única causa pela qual a
cafeicultura paranaense encontrou seu ocaso. Parigot de Souza (1996, p.
66) aponta que “as geadas de 1953 e 1955 provocaram reduções nas safras
de café dos anos subsequentes respectivamente de 40% e 66%, quando o
valor da produção cafeeira já ascendia a mais da metade do valor total da
produção agrícola do Estado”. Além disso, também comenta que as geadas
de 1969 reduziram a safra cafeeira esperada do ano de dez milhões de sacas
para menos de três milhões. (Gráfico 1)

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 103


Para além dos fatores climáticos naturais, temos também políticas
governamentais e também econômicas, ao longo dos anos 1970, que visavam
modernizar e dinamizar a economia paranaense, no intuito de aumentar
a importância da indústria e comércio e assim relegar a agricultura não
mais ao posto de carro-chefe da economia estadual, mas sim em um plano
secundário. Podemos citar como marcos desta política de industrialização:
A criação da Cidade Industrial de Curitiba, a implantação da primeira
refinaria de petróleo do Paraná, em Araucária, e, sobretudo, pela construção
da Usina Hidrelétrica de Itaipu, em consórcio com o Paraguai. Estas
políticas de industrialização iam de encontro com o II Plano Nacional
de Desenvolvimento (II PND), do governo do então presidente Ernesto
Geisel, que objetivava estimular a produção nacional de insumos básicos,
alimentos, bens de capital e energia.
Portanto, o declínio da produção cafeeira não se deu exclusivamente
por causas naturais e climáticas, mas também por uma política de Estado
que visava industrializar e urbanizar o Paraná, no intuito de aumentar a
capacidade produtiva nacional e a autossuficiência em energia elétrica.
Assim, a Geada Negra definitivamente encerrou este ciclo áureo da
agricultura paranaense e a partir dela, intensificou-se o processo de
urbanização e industrialização do Paraná.
Vale observar que a geada negra ocasionou no território do norte
paranaense, um impacto social, econômico e ambiental importante e
fundamental na composição das forças produtivas do estado. Não obstante
a agricultura cafeeira já estivesse em um processo de declínio por fatores
externos à mesma, tais mudanças não se referem exclusivamente à vida do
homem do campo, mas sim, de todo um sistema que já estava consolidado.
A ruptura e quebra do mesmo em apenas uma noite ocasionou uma crise
sem precedentes nas três esferas que compõem ao chamado “tripé da
sustentabilidade”: economia, meio ambiente e sociedade. (MARTINE &
ALVES; 2015).Assim, podemos inferir três grandes impactos e problemas
diretamente relacionados com o evento climático: econômico, ambiental
e social.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 104


O aspecto econômico

De acordo com dados do IBC (Instituto Brasileiro do Café), na década


de 1960, o estado do Paraná correspondia a mais de 50% da produção
nacional de café (gráfico 1), superando todo o restante da produção
nacional. Contudo, a introdução de novas culturas, como o trigo e a soja,
bem como o surgimento de poderosos centros industriais no interior do
estado (Londrina, Maringá, dentre outras) (HESS, 2015), foram reduzindo
o poder e a importância da produção cafeeira, a ponto de causar uma
redução de um milhão de hectares de produção entre 1960 e 1975.
Com isso, analisando as informações obtidas no gráfico 1, é possível
inferir que a produção cafeeira paranaense já estava tendo reduções
significativas em sua área de extensão, bem como na quantidade de toneladas
do produto ano após ano, e que, após os eventos registrados na geada, esta
tendência já registrada apenas se acentuou muito mais rapidamente.
Assim, também podemos salientar a influência do Estado no fim da
predominância da agricultura cafeeira do Estado, atendendo a uma agenda
nacional-desenvolvimentista de Brasília, e, buscando alinhar o Paraná a
um plano nacional de desenvolvimento, o governo estadual cria a chamada
CODEPAR, em 1962. Esta entidade (Companhia de Desenvolvimento
Econômico do Paraná), foi responsável pela diversificação e ampliação da
matriz industrial e também agrícola do estado, com a introdução de outras
culturas agrícolas, tais como o milho e a soja (esta última tendo sido a
sucessora do café, e até os dias atuais é a principal atividade econômica de
todo o Estado) e da sua urbanização, eliminando cada vez mais traços de
uma agricultura do século XIX e implementando a industrialização cada
vez mais crescente no estado.

O Aspecto Social

Além do impacto econômico que a destruição dos cafezais


proporcionou ao Estado, temos também os impactos sociais e demográficos
ocasionados pela geada. Devido aos impactos ocasionados pela diminuição

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 105


drástica dos cafezais, somado aos incentivos que o governo do Paraná deu à
industrialização do Estado, com a criação da Cidade Industrial de Curitiba,
bem como do Polo Petrolífero de Araucária, houve uma intensa migração
da população rural para as cidades do Estado do Paraná, como se pode
inferir no gráfico 2. A rápida ascensão do fenômeno urbano a partir da
década de 1970 também se relaciona diretamente com a estrutura nacional-
desenvolvimentista apoiada pelo regime dos militares, que visavam ampliar
a base industrial do país para que o mesmo se constituísse autossuficiente
em produção de bens de consumo, energia e produção industrial.

Assim, esse fenômeno histórico não foi apenas um evento climático,


mas o ponto de partida para uma mudança total na sociedade paranaense
e, sobretudo, na economia e agricultura local. A partir deste momento,
a monocultura cafeeira passa a ter seu declínio estabelecido em prol não
apenas de outras culturas agrícolas, mas de uma crescente industrialização
e urbanização das regiões mais interioranas do estado do Paraná.

O aspecto ambiental

Para além dos aspectos que já citamos até aqui, o impacto ambiental
causado pela geada também foi bastante significativo no sentido em que
modificou de maneira drástica toda a paisagem das fazendas do Estado do

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 106


Paraná. O homem do campo, tradicionalmente muito ligado à terra e sua
produção, acordou naquele fatídico dia e se deparou com o que mais temia:
seu sustento simplesmente havia se transformado em absolutamente nada.
A era do café paranaense chegara ao fim. A imagem abaixo, do governador
Jaime Canet, sintetiza bem o sentimento do homem do campo paranaense,
e da sua tristeza e impotência ante as forças naturais que lhe tiraram o
sustento.

Certamente, este foi o impacto mais visível do fim de um período


marcado pela forte ligação do homem com a terra, para além do fator
econômico e social, pois de acordo com os produtores, não houve outra
solução senão remover por completo as plantas, pois as mesmas já não
possuíam em si vida. O fim da era do “ouro verde” mudou completamente
a história do estado do Paraná. Utilizando-se de recortes da Folha de
Londrina e de outros jornais da região, procuraremos aprofundar mais
estes três impactos na vida das pessoas do Estado, procurando salientar
como estes problemas até os dias atuais influenciam diretamente a vida do
campo paranaense. O temor de outras grandes geadas ainda permanece,
mas as tecnologias atuais impedem que as geadas sejam tão avassaladoras e
destrutivas como a de 1975.
Vale questionar aqui o que foi realmente a geada negra para os sujeitos
do campo. Seguramente, como catástrofe histórica que ocorreu no norte do

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 107


Paraná em 1975, não foi apenas um evento climático, mas um fenômeno
que desencadeou mudanças consideráveis tanto na economia como na
agricultura local. A partir do fenômeno da geada, surge o declínio da
monocultura cafeeira e uma crescente industrialização e urbanização nas
regiões do interior do Paraná, bem como o surgimento de um agronegócio
cada vez mais tecnológico e com menos emprego de mão-de obra humana.
Nesse contexto, o impacto ambiental causado pela geada tem
fortes consequências, principalmente para os grupos mais vulneráveis da
sociedade, como o homem do campo, que muito ligado à sua terra e à sua
produção, se vê destituído de seu único sustento: o café. O fim da era do
“ouro verde”, termo utilizado para as grandes plantações do café no Paraná,
traz consigo a maior tragédia para os agricultores paranaenses, porque além
de destituir o agricultor de seusustento, observou-se, nesse período, uma
forte agressão a dignidade dos sujeitos do campo.
Mesmo com as mobilizações dos poderes públicos e políticos que
levaram a tomar medidas tentando resolver as consequências da geada
negra, observou-se mudanças demográficas acentuadas como por exemplo,
nas regiões de Londrina e Cascavel, e que até os dias atuais sofrem com
os reflexos desse forte impacto social. O capitalismo que predominava na
região do Paraná, com suas grandes plantações de café e colocando o estado
em uma posição privilegiada entre os mercados europeus e estadunidenses,
desnuda um modelo neoliberal de negócio do capital, ou seja, áreas de
investimento privado que deixam gerar o máximo de lucro dos investidores.
Esse modelo, sem dúvida, põe de lado qualquer lógica de serviço público,
ignorando os princípios da cidadania e dos direitos humanos.
O colonialismo descobriu nas regiões do Paraná uma classe que
se tornou vulnerável pelas condições de vida que lhes foram impostas
socialmente pela necessidade de sobrevivência, mas ao se deparar com uma
catástrofe de tão grande porte, essa vulnerabilidade aumentou e induziu os
sujeitos a uma migração crescente para as cidades, onde se viram distante
de seus costumes e habitats, e expostos a novas formas de discriminação.
Começaram a realizar tarefas que envolviam mais riscos, ou trabalhos que
as classes dominantes não faziam. Foram afastados das grandes metrópoles

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 108


para viverem nos guetos do século XXI, com ilusões de uma vida melhor ou
mais moderna. Surgiram cidades como Sarandi, Cambé, Rolândia, lugares
assim que agregam os corpos socialmente menos valorizados, os menos
aptos a conviver com a elite, mas os mais necessários para a construção
neoliberal capitalista das metrópoles.

Considerações finais

Este texto objetivou observar sob a ótica do Sul os impactos da geada


negra sobre as classes menos valorizadas no Paraná, mais especificamente,
os sujeitos do campo. As consequências da geada desnudam um modelo
neoliberal constituído no estado do Paraná, que buscava o lucro nas
grandes plantações de café. Sem dúvida, a migração dos camponeses para
a cidade, a formação de comunidades vulneráveis em cidades afastadas
das metrópoles, pressupõem a necessidade de uma virada epistemológica,
cultural e ideológica que sustente as soluções políticas, econômicas e sociais
que garantam a continuidade da vida humana e a dignidade dos sujeitos
do campo.
Essa virada epistemológica, sem dúvida, tem múltiplas implicações.
Primeiro porque continuamos, desde a geada, vivenciando formas de
discriminação política, cultural e ideológica, construída por um capitalismo
fechado sobre si próprio, repleto de discriminações raciais, institucionais e
sexuais, sem as quais ele não poderia subsistir. Segundo que, necessitamos
imaginar nosso estado e porque não o planeta, como a nossa casa comum,
a quem devemos amor e respeito. Ela não nos pertence, nós fazemos parte
dela.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 109


Referências

BISCARO, G. A. Meteorologia Agrícola Básica. 1 ed. Cassilândia: Ed. UNIGRAF, 2007.


BONDARICK, R. A Geada Negra de 1975. In: Folha de Londrina, 2005.
HESS, J. O café no Paraná 40 anos depois da geada de 1975. Sistema FAEP. Disponível em:
https://sistemafaep.org.br/wp-content/uploads/2015/06/CafeParana40anosDepois.pdf
MARTINE, G.; ALVES, J.E.D. Economia, sociedade e meio ambiente no século 21: tripé
ou trilema da sustentabilidade? In: R. bras. Est. Pop., Rio de Janeiro, v.32, n.3, p.433-460,
set./dez. 2015.
MARTINS, M.L. História e Meio Ambiente. São Paulo: Annablume; Faculdades Pedro
Leopoldo, 2007.
MELO-ABREU, J. P. M. As Geadas. Conceitos, Génese, Danos e Métodos de Protecção.
In: FIGUEIREDO, T.; RIBEIRO, L. F.; RIBEIRO, A. C.; FERNANDES, L. F (Ed.).
Clima e Recursos Naturais: Conferências de Homenagem ao Prof. Doutor Dionísio
Gonçalves. Bragança, Portugal: Instituto Politécnico de Bragança, 2010, cap. 5, 141-165
MONTEIRO, RICARDO RODIGUES. A cartografia do fenômeno urbano e econômico
no Paraná: uma leitura com auxílio da semiótica. In. Revista Franco-Brasileira de Geografia,
Nº 27, 2016.
PANOBIANCO, D. ESPECIAL - 35 ANOS DA GEADA DE 1975 - Entenda o que foi a
Geada Negra que dizimou todas as plantações de café do Paraná. Revista Cafeicultura, Rio
Paranaíba, 2010.
SOUZA, P.V.P. DE. A Energia Elétrica e o Desenvolvimento do Paraná. In: Revista
Paranaense de Desenvolvimento, nº 87., jan-abr 1996, p.65-87.
SNYDER, R.L.; MELO-ABREU, J.P de. Frost protection: fundamentals, practice and
economics. Roma: FAO – Environment and Natural Resources Series, 2005.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 110


https://doi.org/10.52788/9786589932192.1-8

Representações metafóricas acerca


do contexto educacional em tempos
de pandemia: uma análise discursiva
crítica

Conceição Maria Alves de Araújo Guisardi


André Moura Ribeiro

Sabemos que as aulas presenciais foram suspensas devido à pandemia


do Novo Coronavírus e várias consequências têm sido efervescidas no
contexto de ensino e aprendizagem, devido ao fechamento das escolas.
Pensando nisso, o presente capítulo tem por objetivo jogar luz em metáforas
materializadas em um artigo de opinião, publicado na Folha de S. Paulo, em
abril de 2021, que versa sobre esse tema. É preciso explicar que as metáforas
não são um mero enfeite do discurso, mas uma forma de representar o
mundo, de pensar e de agir. Quanto à educação, e especialmente quanto
à educação remota, muitos são os entraves para que ela aconteça de forma
efetiva.
A pandemia trouxe consigo uma necessidade de reconfiguração de
práticas. Vários atores sociais tiveram de se reinventar e, com o professor,
isso não foi diferente. No entanto, não basta o professor ter acesso a um
computador e à internet para garantir o ensino; é preciso que o governo
invista em formação e em políticas de valorização da prática docente.
Além disso, muitos estudantes, especialmente aqueles das escolas públicas,
já sofrem por viverem em lares em que há, muitas vezes, apenas o básico
para a sobrevivência; esses estudantes não tiveram acesso a equipamentos
tecnológicos antes e nem durante o período em que as aulas continuam
acontecendo de forma remota1. Essas questões revelam a falta de
preocupação dos governos em transformar a educação brasileira.
1 Até a produção deste capítulo, em maio de 2021, em mais de um ano de pandemia, a maioria das escolas ainda não está
funcionando de forma presencial.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 111


No contexto atual, mais fragilidades no sistema de ensino têm sido
escancaradas, tal como a impossibilidade de acesso das minorias aos
equipamentos para acompanharem as aulas remotas, o que revela a força da
desigualdade social, das relações de dominação, dos sistemas que oprimem
aqueles que mais precisam estar dentro de um contexto escolar. Esses temas
supracitados interessam muito para analistas de/do discurso. Por isso, para
sustentar esse estudo, recorremos à Análise de Discurso Crítica (ADC)
(FAIRCLOUGH, 2003, VAN DIJK, 2015). Para van Dijk (2017, p. 19),
a ADC está centrada em desvelar “como o abuso de poder social, como
a dominação e as desigualdades são colocados em prática, e igualmente
como são reproduzidos e o modo como se resiste a eles, por meio do
texto e da fala”. E como categoria de Análise, utilizamos o que o corpus
guiou: uma quantidade significativa de metáforas. De acordo com Berber-
Sardinha (2007, p. 14), “as metáforas são os instrumentos que possuímos
para criar novo conhecimento ou para dar conta de algo novo na ciência
ou no cotidiano”.
Por fim, pensando na importância do tema e na potencialidade das
metáforas para representar aspectos do mundo, é que nos dedicamos a
esta produção. Esperamos poder contribuir para uma reflexão acerca da
necessidade de perceber a gravidade da pandemia e dos efeitos sociais dela,
especialmente na educação, com o intuito de transformar ou ao menos
minimizar o problema social apresentado neste estudo: as consequências
do fechamento das escolas no processo de ensino e aprendizagem.

A Análise de Discurso Crítica (ADC)

A ADC surgiu a partir da publicação de um artigo escrito por Norman


Fairclough, em 1985, no periódico Journal of Pragmatics. Em 1990, após
a realização de um Simpósio, em Amsterdã, ela é consolidada como um
campo do saber, de caráter transdisciplinar. Nesse Simpósio, estiveram
reunidos teóricos que seguem diferentes abordagens da ADC, embora todas
com o mesmo objetivo, analisar o abuso de poder de grupos dominantes ou
a resistência de grupos dominados. Vejamos algumas dessas abordagens e

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 112


respectivos teóricos: Sociocognitiva (Teun van Dijk); Atores Sociais (Theo
van Leeuwen); Histórica (Ruth Wodak), Linguística de Corpus (Mautner)
e Dialético-relacional (Norman Fairclough). Nossos estudos têm sido
centrados nas abordagens sociocognitiva e dialético-relacional.
A ADC está preocupada com pesquisas que estabelecem uma relação
do uso da linguagem em contextos de situação que evidenciem o poder.
Para van Dijk (2018b, p. 44) “o poder é exercido e expresso diretamente
por meio do acesso diferenciado aos vários gêneros, conteúdos e estilos do
discurso.”. O poder não é adquirido simplesmente por meio da imposição
de uma estrutura social (considerando aspectos hierárquicos); ele acontece
mediante concessões, formação de alianças, com o intuito de ganhar apoio
dos indivíduos (FAIRCLOUGH, 1989).
Magalhães (2005, p. 3) defende a ADC como sendo uma “criação
de um método para estudo do discurso e seu esforço extraordinário para
explicar por que cientistas sociais estudiosos da mídia precisam dos (as)
linguistas”. E, para Ottoni (2014, p. 28), a “ADC constitui um modelo
teórico-metodológico que estabelece um diálogo entre a Ciência Social
Crítica e a Linguística, especialmente a Linguística Sistêmico-funcional”.
Ainda segundo essa pesquisadora, “na ADC, o diálogo é tanto parte do
método quanto da teoria. Como a natureza da perspectiva é dialógica, ela
é também dinâmica. A cada trabalho realizado, o problema investigado
é o que vai demandar quais teorias entrarão nesse campo de diálogo”
(OTTONI, 2014, p. 28).
Para o empreendimento de análises das materialidades linguísticas, a
ADC oferece uma série de categorias, sejam elas sugeridas, por exemplo, na
abordagem dialético-relacional de Norman Fairclough ou na abordagem
sociocognitiva de van Dijk, tais como intertextualidade, avaliação,
modalidade, argumentos, relações semânticas (parataxe, hipotaxe e orações
encaixadas), metáforas, dentre outras. A metáfora é uma categoria comum
a essas duas abordagens e está muito presente no corpus selecionado para
análise. É sobre essa categoria que discorremos na próxima seção.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 113


As metáforas: uma forma de pensar e agir no mundo

As metáforas não podem ser consideradas apenas como meras figuras


de linguagem ou usadas para enfeitar a fala ou a escrita. Foram realizados
estudos com o objetivo de mudar o tratamento dado à metáfora; a
publicação da obra Metaphors we live by, por Lakoff e Johnson, em 1980,
é um exemplo disso. Esses autores passaram a defender a metáfora como
um modelo cognitivo que direciona para a forma como compreendemos
o mundo e como agimos nele. Koch (2003, p. 37) explica que “o homem
representa mentalmente o mundo que o cerca de uma maneira específica
e que nessas estruturas da mente se desenrolam determinados processos de
tratamento”. Para essa pesquisadora, são esses processos que possibilitam
atividades cognitivas bastante complexas, “porque o conhecimento não
consiste apenas em uma coleção estática de conteúdos de experiência, mas
em habilidades para operá-los e utilizá-los na interação social” (KOCH,
2003, p. 37).
De acordo com Berber Sardinha (2007, p. 14), a metáfora é importante
porque permite

entender melhor como conceitualizamos o mundo, as pessoas, os sentimentos, os


conceitos mais profundos e duradouros da humanidade; Enxergar criticamente
como grupos sociais e ideologias enquadram o mundo e que tipos de mensagens
que querem passar; Perceber como conceitualizamos o mundo, historicamente
(individual e socialmente); Detectar o estilo de escritores, políticos e outros
profissionais; Dar-nos conta de que tudo isso é feito pela linguagem.

É inegável também sua importância para a referência semântica, para o


uso da língua e para a representação mental que fazemos dos eventos. Nosso
sistema conceptual ordinário, em termos do qual não só pensamos, mas
também agimos, é fundamentalmente metafórico por natureza. Estruturam
o que percebemos, a maneira como nos comportamos no mundo e o modo
como nos relacionamos com outras pessoas. Se para Lakoff e Johnson
(2002 [1980]), o modo como pensamos, o que experienciamos e o que
fazemos todos os dias são uma questão de metáfora, e se considerarmos

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 114


que por metáfora estamos nos referindo a um modo de significação, logo,
podemos entender que a maior parte do nosso pensamento relacionado
com o mundo é uma questão de semântica.
Segundo Lakoff e Johnson (2002 [1980]), a essência da metáfora é
compreender e experienciar uma coisa em termos de outra. A respeito das
metáforas estruturais, eles afirmam que apesar dos termos serem diferentes,
um deles é parcialmente estruturado, compreendido, realizado e tratado
em termos de outro. Tanto o conceito e a atividade quanto à linguagem
são metaforicamente estruturados. Para esses teóricos, “o conceito é
estruturado metaforicamente, a atividade é estruturada metaforicamente e,
consequentemente, a linguagem é estruturada metaforicamente” (LAKOFF;
JOHNSON, 2002 [1980], p. 5). Por isso, as expressões metafóricas na
linguagem cotidiana podem jogar luz à natureza metafórica dos conceitos
que estruturam nossas atividades cotidianas.
As metáforas trabalhadas neste estudo serão tomadas com base em
três tipos de metáforas conceptuais: metáforas estruturais (construções
que estruturam metaforicamente um conceito abstrato por meio de outro
conceito concreto), metáforas orientacionais (referentes à orientação
espacial) e metáforas ontológicas (referentes às nossas experiências com
substâncias e com objetos físicos).
Sobre as metáforas estruturais, Lakoff e Turner, 1989, p. 135)
asseveram que:

As metáforas nos permitem entender um domínio de experiência em termos de


outro. Para existir essa função, devem existir alguns tipos de conceitos básicos,
alguns tipos de conceitos que não são entendidos de uma maneira totalmente
metafórica, para servirem de domínio de fonte.

Em relação ao domínio fonte, ele é aquele do qual são retiradas as


informações para compreender o domínio alvo, geralmente um conceito
abstrato (LAKOFF; JOHNSON, 2002 [1980]). E para Cançado (2008,
p.97), “o ponto de chegada ou o conceito descrito é conhecido, geralmente,
como o domínio alvo e o conceito comparado, ou a analogia, é conhecida

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 115


como o domínio fonte. Por exemplo, TEMPO É DINHEIRO2. O
domínio fonte é dinheiro e o domínio alvo é tempo.
De acordo com Talmy (1988) citado por Mittelberg (2008, p. 143,
tradução nossa), “as metáforas conceptuais tornam-se viáveis na linguagem
porque elas existem no sistema conceptual3, ou seja, através de esquemas
imagéticos, abstrações elaboradas a partir de nossas experiências sensório-
motoras”. Nessa visão de metáfora, reconhecida como uma representação
mental, ela existe na mente e atua no pensamento.
Lakoff e Johnson (1980) elaboraram uma proposta de tipologia de
metáforas orientacionais, observando sua pervasividade na vida cotidiana,
por meio da linguagem, conforme os exemplos do quadro a seguir:
Quadro 1: Metáforas Orientacionais
Você é uma pessoa para cima, ao contrário de
sua irmã.
ALEGRIA É PARA CIMA
Depois do nascimento das gêmeas, ela parece
estar nas nuvens.
Ela é um tremendo baixo astral
TRISTEZA É PARA BAIXO
Depois da morte do pai, ela caiu em depressão
CONSCIENTE É PARA CIMA Calma, eu já tô de pé.
INCONSCIENTE É PARA BAIXO Ele mergulhou num estado de coma.
O poder dele na empresa está subindo feito um
FORÇA É PARA CIMA
foguete.
ESTAR SUJEITO À FORÇA É PARA O poder de fogo deles era claramente inferior
BAIXO ao do colonizador.
O número de livros impressos continua
MAIS É PARA CIMA
subindo.
MENOS É PARA BAIXO Sua renda caiu no ano passado.
Fonte: Traduzido de Lakoff e Johnson (2002[1980]).

2 As metáforas conceptuais são sempre grafadas em caixa alta.


3 Conceptualizar’«1. acção/ação de formar conceitos; 2. acção/ação de organizar em conceitos» (in Dicionário da Língua
Portuguesa 2003, da Porto Editora).Neste trabalho, ao se tratar de metáfora, utilizamos a palavra “conceptualizar”, levando
em conta que são processos que não somente trabalha com conceitos, mas com a concepção de informações cognitivamente.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 116


Essas metáforas orientacionais não são arbitrárias, elas têm uma
base na nossa experiência física e cultural. Assim, ao dizermos “BOLA
PRA FRENTE”, partindo do conceito metafórico “O FUTURO É PARA
FRENTE”, estamos não somente levando em conta a espacialização
“frente”, mas que ela se estabelece culturalmente, visto que em algumas
culturas o futuro não é para frente, logo, metáforas do tipo “BOLA PRA
FRENTE” não faria sentido (LAKOFF; JOHNSON (2002[1980]).
As metáforas orientacionais existem em todas as culturas, mas
a predominância de uma sobre a outra depende dos valores individuais
de cada cultura sob a perspectiva de relevância que certo grupo dá sobre
os termos. Essas metáforas são assim denominadas devido ao fato de
que a maioria delas está relacionada a orientações espaciais, tais como
nas oposições para cima - para baixo, dentro - fora, frente - trás. Como
exemplo, apresentam o conceito de “FELIZ É PARA CIMA e TRISTE É
PARA BAIXO”. Sentenças como “EU ESTOU ME SENTINDO PARA
CIMA”, “AQUILO LEVANTOU MEU MORAL”, “MEU ASTRAL
SUBIU”, “EU CAÍ EM DEPRESSÃO”, “ESTOU NO FUNDO DO
POÇO” (LAKOFF; JOHNSON, 2002 [1980]) servem para exemplificar
a oposição.
Já as metáforas ontológicas permitem que possamos compreender
nossas experiências em termos de objetos e substâncias. Essas metáforas
projetam características de uma entidade ou substância sobre outra
entidade ou substância que a priori não possui essas características. As
personificações são metáforas desse tipo. Sendo assim, quando dizemos
“A INFLAÇÃO ME DEIXA DOENTE”, concebemos a inflação como
uma entidade, o que “permite referirmo-nos a ela, quantificá-la, identificar
um aspecto particular dela, vê-la como uma causa, agir em relação a ela,
e, talvez, até mesmo, acreditar que nós a compreendemos” (LAKOFF;
JOHNSSON, 2002, p. 77). Enfim, apresentados os tipos de metáforas, a
próxima seção é dedicada à análise empreendida.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 117


A análise do corpus

O corpus está constituído de um artigo de opinião, publicado no dia


16 de abril de 2021, pelo Jornal Folha de S. Paulo e assinado por Priscila
Cruz, conforme percebemos na Captura de tela a seguir.
FIGURA 1: Captura de tela do artigo de opinião

Fonte: Captura de tela da página do Jornal Folha de S. Paulo.

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Algumas considerações iniciais sobre o contexto comunicativo
precisam ser feitas, haja vista que isso influencia na nossa interpretação e
compreensão do texto. O artigo de opinião apresenta como tópico4 (ou
manchete): Agravado por pandemia, desastre na educação exige mobilização já.
É urgente focar ensino público e combater retrocesso, diz Priscila Cruz. Quanto
ao papel social da produtora do texto, ela é Mestre em administração
pública pela Harvard Kennedy School (EUA) e é presidente-executiva
e cofundadora do movimento Todos Pela Educação. Na abordagem
sociocognitiva da ADC, é aconselhado fazermos uma sumarização,
quando analisamos textos tal como o artigo de opinião aqui apresentado,
para termos uma ideia global do que estamos investigando. Assim, ele foi
sumarizado em onze macroproposições5:
M1: Vivemos em um desastre silencioso, a morte lenta de uma geração.
M2: Já passamos de um ano de escolas fechadas em razão do descontrole da
pandemia
M3: A estimativa é de um retrocesso de 4 anos na aprendizagem.
M4: Para aprofundar o fosso, temos um Ministério da Educação liderado por
oportunistas de visão curta.
M5: Devemos agir e corrigir estruturalmente os rumos da educação.
M6: A educação une porque não compete com nenhuma outra área.
M7: O conhecimento do que precisa ser feito para assegurar uma educação de
qualidade, democrática, antirracista, acolhedora e integral se baseia na evidência
consolidada das experiências exitosas efetuadas tanto no Brasil como em outros
países.
M8: Os dois pilares juntos, o engajamento de todos e o compromisso de
seguirmos as evidências, constituem a saída para um país próspero para todos e
construído pelas e para as pessoas.

4 Seguindo a abordagem sociocognitiva da ADC, é preciso explicar que os tópicos desempenham um papel fundamental
na situação de comunicação. São macroestruturas semânticas derivadas de estruturas locais. Eles representam aquilo “sobre
o que versa” o discurso. São expressos frequentemente pelos títulos, manchetes de notícias, sumários, resumos, orações
temáticas (VAN DIJK, 2017, grifos nossos).
5 “A noção de macroproposição é relativa, definida em relação a uma sequência de proposições (locais ou globais) da
qual é derivada’ (VAN DIJK & KINTSCH, 1983, p. 190). Para se construírem macroproposições, aplicam-se às proposições
transformações semânticas chamadas de macrorregras (VAN DIJK, 1977, grifo nosso), que têm a função de transformar as
proposições de um texto num conjunto de macroproposições que o representem.

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M9: Não há a mais remota chance de crescermos, distribuirmos renda, criarmos
mais empregos qualificados, combatermos afrontas democráticas, reduzirmos a
violência e a intolerância, desenvolvermos ciência, cuidarmos da natureza e de
uns aos outros sem priorizar a educação básica pública.
M10: A pandemia e esse governo federal um dia vão passar. Deixarão muita
destruição, e precisamos nos preparar para a reconstrução.
M11: Que a educação de qualidade para todos ainda tenha seu merecido lugar
na história.

Nessas macroproposições não temos materializadas todas as metáforas


encontradas no corpus completo e nem temos dimensão espacial para
analisar todas, mas elas nos trazem uma ideia geral do tema discutido no
artigo de opinião.
Há de se destacar aqui as três principais metáforas que servirão como
base para compreendermos nossas análises para um âmbito discursivo, são
elas: “VIDA É CONSTRUÇÃO”, “VIDA É GUERRA”, “BOM É PARA
CIMA E MAU É PARA BAIXO”.
Em VIDA É CONSTRUÇÃO, utilizamos certas representações
retiradas do corpus que representam CONSTRUÇÕES como “solidez;
construção/constituição; reconstrução; desenho (planta); renovação;
pilares; estrutura; alicerce; projeto; base; aprofundar; fortalecimento;
profundidade; centralidade; formação; vetor; crescimento; espiral; máquina;
preparação etc.” para compreendermos certos domínio-alvos relacionados
à VIDA. Já em VIDA É GUERRA traz consigo, contextualmente,
algumas representações dos conceitos de GUERRA retirados do corpus,
tais como “desastre; morte; cenário; explosão; evasão; impacto; acuado;
intervenção; enfraquecimento; expansão; apoio; militarização; perseguição;
enfrentamento; agir; base; união; competir; fortalecimento; seguir; saída;
reverter; desenho (plano); debates; retomada; prevenção; promoção;
centralidade; formação; resistência; destruição; rompimento; coragem;
firmeza; máquinas; preparação; etc.” são representados para a compreensão
do domínio-fonte VIDA.
Além disso, destaca-se alguns domínios-fontes que possuem relações
entre uma metáfora e outra. Dividimos em três conceitos gerais que

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agregam esses domínios, sendo: 1- estratégia, 2- posicionamentos e 3-
território. Dessa forma, ao tratarmos de GUERRA e CONSTRUÇÃO,
podemos estabelecer que os domínios que se relacionam com “estratégia”
se encontram no mesmo âmbito lexical previamente acionado por frames6
e estabelecidos conceptualmente no texto.
Na metáfora CONSTRUÇÃO/GUERRA É ESTRATÉGIA, podemos
notar que os conceitos se estruturam cognitivamente, ao relacionarmos um
planejamento de uma construção e o planejamento de uma guerra.
Ao tratarmos de “posicionamentos”, estamos nos referindo à posição
em que os sujeitos e materiais se encontram nesses dois âmbitos (GUERRA
e CONSTRUÇÃO). Para compreender o “território” como um referente
dessas metáforas, é necessário a noção de que, em uma construção, há o
local onde é preparado toda a obra e que alguns domínios se relacionam
tanto quanto às ações para com a obra quanto com o local em si. Assim
como na guerra, que possui verbetes relacionados às ações dos guerreiros
quanto ao local de confronto.

Quadro 2: Análise do corpus

CONSTRUÇÃO/GUERRA É CONSTRUÇÃO/GUER-
CONSTRUÇÃO/GUERRA É
POSICIONAMENTO RA É TERRITÓRIO
ESTRATÉGIA:
(de sujeitos e materiais)

ESTRUTU-
ESTRUTU- ESTRUTURAS
CON- RAS DIS-
CONCEITO RAS DIS- CONCEITO DISCURSIVAS
CEITO CURSIVAS
METAFÓRI- CURSIVAS METAFÓRI- (Retiradas do
METAFÓ- (Retiradas
CO (Retiradas do CO corpus)
RICO do corpus)
corpus)

6 Frames são estruturas mentais que moldam a maneira com que vemos o mundo. Como resultado, eles moldam os
objetivos que traçamos, os planos que fazemos, a maneira que agimos e o que conta como resultados bons ou ruins de
nossas ações. Na política, nossos frames moldam nossas políticas sociais e as instituições que formamos para implementar
nossas decisões. Mudar nossos frames é mudar tudo isso. Reframing é mudança social. (LAKOFF, 2004, p.15, tradução nossa,
grifos nossos).

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Nenhuma
instituição,
Creio que a difi-
desenho por melhores Retomada
culdade em dar
(planta/pla- que sejam seu centralidade retomada do cresci-
centralidade à
no) desenho e mento.
educação [...]
seus propósi-
tos [...]
Essa base será A capacidade As evidên-
reforçada por da educação de cias— cons-
solidez união saída
dois pilares unir os demo- tituem a
muito sólidos. cratas deste país. saída[...]
Acrescento
Deixarão
ao cenário a Formação das
cenário formação destruição muita des-
explosão da pessoas.
truição.
evasão.
Essa base será
reforçada por
[...] dar passos
dois pilares Vivemos
alicerce/ firmes na di-
muito sólidos; firmeza desastre um desastre
base/pilar reção da escola
Alicerces de silencioso.
pública.
um projeto
para o Brasil.
Elas são
Acrescento
essencialmente Intervenção
ao cenário a
constituição constituídas intervenção ideológica em explosão
explosão da
pelas suas livros didáticos.
evasão.
pessoas.
Os impactos
[...] fortalecer
Renovação perversos
fortalecimen- o trabalho dos
renovação da educação impacto no desen-
to professores e da
brasileira. volvimento
gestão.
cognitivo.
[...] corrigir
estrutural-
Promoção de Prevenção
estrutura mente os promoção prevenção
maior equidade. de doenças.
rumos da
educação.
A baixa prio-
ridade dada à
Os alicerces de Proteção
educação como
projeto um projeto resistência proteção do meio
vetor de trans-
para o Brasil. ambiente.
formação do
país resiste.
A máquina
que prepara Precisamos nos
preparação as democra- preparação preparar para a
cias é a escola reconstrução.
pública.

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[...] formular
um projeto de
rompimento nação que rom-
pa de vez com
esse passado.
A máquina
que prepara as
máquina
democracias é a
escola pública.

E, por último, a metáfora orientacional “BOM É PARA CIMA” e


“MAU É PARA BAIXO”, que possui uma base experiencial tanto física
quanto cultural. Quando relacionamos nossas bases físicas como: postura,
posição, tamanho ligado à força física e até mesmo o nível de quantidade
representa algo físico também. Algumas orientações como “PARA
FRENTE e PARA TRÁS” podem também corresponder à “PARA CIMA
e PARA BAIXO”, como comentam os autores:

Em geral, nossos olhos vão na direção na qual normalmente nos movemos (para
frente, em frente). Quando um objeto se aproxima de uma pessoa (ou a pessoa se
aproxima do objeto), o objeto parece ficar maior. Uma vez que o chão é percebido
como fixo, o topo do objeto parece se mover para cima no campo de visão da
pessoa (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 63).

Além disso, o status social de uma pessoa pode se referir a essa metáfora
orientacional se em dada cultura o status alto seja algo bom e o status baixo
seja algo ruim. Os autores comentam que “status social é correlacionado ao
poder (social), e poder (físico) é PARA CIMA” (LAKOFF; JOHNSSON,
2002: p.63). Quanto a isso, os autores complementam:

Existe uma sistematicidade externa geral ligando as várias metáforas de


espacialização, o que gera coerência entre elas. Assim, BOM É PARA CIMA dá
uma orientação PARA CIMA para o bem-estar geral e essa orientação é coerente
com casos especiais como FELICIDADE É PARA CIMA, SAÚDE É PARA
CIMA, VIDA É PARA CIMA, CONTROLE É PARA CIMA, STATUS É PARA
CIMA é coerente com CONTROLE É PARA CIMA (LAKOFF; JOHNSSON,
2002: p. 65).

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Quadro 3 - Análise das Metáforas Orientacionais (retiradas do corpus).
METAFORAS ORIENTACIONAIS ESTRUTURAS DISCURSIVAS
ALEGRIA É PARA CIMA Uma estratégia para um futuro maior, mais justo e mais
feliz .
TRISTEZA É PARA BAIXO Para aprofundar o fosso;
A educação une porque não compete com nenhuma
CONSCIENTE É PARA CIMA outra área. Pelo contrário, fortalece cada uma delas
INCONSCIENTE É PARA BAIXO Como podemos sair deste pântano em que estamos
mergulhados?
FORÇA É PARA CIMA O poder dele na empresa está subindo feito um foguete
ESTAR SUJEITO À FORÇA É PARA Temos um Ministério da Educação liderado por opor-
BAIXO tunistas de visão curta, acuados pela própria incompetência.
BOM É PARA CIMA [...]um futuro maior, mais justo e mais feliz .
RUIM É PARA BAIXO O Brasil está nessa espiral de baixo desenvolvimento
Fonte: Os autores

Legenda: 1. Encontra-se em destaque os conceitos relacionados com


sua respectiva orientação física. (cima ou baixo)
Há de se questionar o que está sendo feito para mudar o cenário da
educação brasileira. A articulista do texto deixa evidenciada uma posição
de GUERRA com o governo, conforme notamos em estruturas discursivas
tais como: “já passamos de um ano de escolas fechadas em razão do
descontrole da pandemia, provocado, principalmente, pelo desprezo do
atual governo federal” . Obviamente, percebemos que há uma polarização
entre quem luta pela educação e quem não luta. Temos como perceber
os POSICIONAMENTOS ideológicos. Não se trata de um interesse
particular da jornalista em travar uma GUERRA com o governo, mesmo
porque não há ideologias individuais, elas são representações sociais
compartilhadas pelos grupos sociais. A questão é o abismo que a educação
brasileira se encontra e que no cenário da pandemia se agravou ainda mais,
com o fechamento das escolas. Esse abismo representa um cenário de
tristeza para os profissionais da educação, já que ele está sendo aprofundado
pela incompetência do Ministério da educação (‘para aprofundar o fosso”),
conforme materializado no artigo de opinião analisado.
A consciência da importância de valorizar a educação é que faz com que
haja a resistência, para se manter firme na luta (interligando assim, com as

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metáforas GUERRA/CONSTRUÇÃO), conforme é possível comprovar
na seguinte estrutura discursiva retirada do artigo de opinião: “A educação
une porque não compete com nenhuma outra área. Pelo contrário, “fortalece
cada uma delas”. É a resistência de vários atores sociais que ainda fortalece
a luta por uma educação de qualidade.
No entanto, sabemos do cenário desalentador causado pela pandemia,
do escancarar de uma desigualdade social que posiciona os estudantes de
escolas públicas como inferiores (metáfora: ESTAR SUJEITO À FORÇA
É PARA BAIXO) àqueles que têm acesso ao ensino privado (muitas
escolas particulares, inclusive, estão funcionando de forma presencial
ou oferecendo aos estudantes a opção pelo ensino híbrido, ou seja, nas
duas modalidades, on-line e presencial). E isso nos faz concordar com
a articulista, quando ela questiona. “Como podemos sair deste pântano
em que estamos mergulhados? ”. O uso da metáfora mergulhados em um
pântano revela o quanto a situação está complicada, o quanto será difícil
garantir uma boa formação aos estudantes diante de tanta desigualdade,
ainda mais, conforme denuncia Priscila Cruz: “há uma “completa omissão
no enfrentamento dos efeitos da pandemia na educação básica”. Por isso,
a produtora do texto convida aqueles interessados na temática a “formular
um projeto de nação que rompa de vez com esse passado e tenha a coragem
e a generosidade de dar passos firmes na direção da escola pública como eixo
de uma estratégia para um futuro maior, mais justo e mais feliz (metáfora:
BOM É PARA CIMA). Lembro aqui Anísio Teixeira, que faleceu há 50
anos. Ele costumava dizer que a máquina que prepara as democracias é a
escola pública”(metáforas: CONSTRUÇÃO/GUERRA É VIDA).
Trata-se de um país que está há muito tempo “nessa espiral de baixo
desenvolvimento” (metáfora: RUIM É PARA BAIXO). Enfim, o’ Brasil
já enfrentava vários problemas referentes à desigualdade, que foram
efervescidos durante a pandemia.

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Considerações finais

Esperamos ter ficado claro o quanto as metáforas estão a serviço de


representar o mundo, de pensar e de agir. A produtora do texto apontou
formas de representar a educação, de agir no mundo, considerando aspectos
do contexto atual e da preocupação que se deve ter com o processo de
ensino e aprendizagem. Pautando em crenças compartilhadas em grupos,
sabemos que muitas pessoas não se importam com a gravidade do que está
acontecendo. A ausência de vacinas impossibilita o retorno para as aulas
presenciais, em contrapartida, o ensino remoto oferece vários entraves.
Talvez esse “desprezo” com a educação se dê pelo negacionismo tão
presente atualmente, pela busca de (des)informação por meio de fake news
ou por um total desconhecimento dos problemas sociais que acometem
as minorias do nosso país, principalmente os estudantes pobres que não
têm como acompanhar as aulas remotas, prejudicando, sobremaneira, seu
aprendizado.
É muito importante analisar textos que circulam na mídia e acreditamos
que a ADC contribuiu muito para percebermos os efeitos sociais das
metáforas utilizadas pela produtora do artigo de opinião. Acreditamos que
esse tipo de empreendimento pode contribuir para possíveis mudanças
sociais que superem relações de poder, que são, de certa forma, sustentadas
pelo discurso, como bem defende Fairclough (1989).
Apesar de ser uma breve análise apresentada neste capítulo, esperamos
poder contribuir com reflexões acerca de injustiças sociais, a fim de que
aqueles que não tenham acesso discursivo possam de alguma forma se
sentirem representados na luta por uma educação de qualidade.

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Referências

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Editora UFMG, 2008.
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FAIRCLOUGH, Norman. Analysing Discourse: textual analysis for social research. Londres
e Nova York: Routledge, 2003.
KOCH, I. G. V. A Interação pela Linguagem. 4ª Ed., São Paulo: Contexto, 1998.
KOCH, Ingedore Grünfeld Villaça. Desvendando os Segredos do Texto. São Paulo: Cortez
Editora: 2003.
LAKOFF, George and Mark JOHNSON. Metaphors We Live By. Chicago: Chicago
University Press, 1980.
LAKOFF, George; Mark JOHNSON. Metaphors We Live By. Chicago: Chicago University
Press, 2002.
LAKOFF, George; TURNER, Mark. More than cool reason: a field guide to poetic
metaphors. Chicago: University of Chicago Press, 1989.
Magalhães, Izabel. Introdução: a análise de discurso crítica. DELTA: Documentação de
Estudos em Linguística Teórica e Aplicada [online]. 2005, v. 21, n. spe [Acessado 29 Maio
2021] , pp. 1-9. MITTELBERG, Irene. Peircean semiotics meets conceptual metaphor:
Iconic modes in gestural representations of grammar. In: A. Cienki & C. Müller (Eds.),
Metaphor and Gesture (pp. 115-154). Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 2008.
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sexista. In: OTTONI, Maria Aparecida Resende; LIMA, Maria Cecília de (Org.). Discursos,
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p. 25-55.
 VAN DIJK, Teun Adrianus. Discurso, notícia e ideologia: Estudos na Análise Crítica do
Discurso. Tradução de Zara Pinto-Coelho, Portugal: Editora Húmus, 2017.   
VAN DIJK, Teun Adrianus.  Discurso e Poder. São Paulo: Contexto, 2018.

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https://doi.org/10.52788/9786589932192.1-9

Ética e desconstrução do direito


como possibilidade de justiça:
identidade e diferença na formação
do discurso jurídico

Priscilla Gershon

Introdução

Em Força de Lei, conferência proferida em um colóquio na Cardoso


Law School, em 1989, Jacques Derrida afirmou que o direito não tem
como fundamento a justiça, mas a violência que o instaura ou o conserva1.
Citando Montaigne, o autor franco-argelino ressalta que “as leis se mantêm
não porque são justas, mas porque são leis” (DERRIDA, 2010, p. 21).
Eis o fundamento místico de sua autoridade. Místico porque, segundo
Derrida, a instituição da lei se deve “a um golpe de força, em uma violência
performativa e portanto interpretativa que, nela mesma, não é nem justa
nem injusta” (DERRIDA, 2010, p. 24). Místico, enfim, por haver ali
“um silêncio murmurado na estrutura violenta do ato fundador. Murado,
emparedado, porque esse silêncio não é exterior à linguagem” (DERRIDA,
2010, p. 25).

1 Importante ressaltar a existência, no pensamento do autor, de duas violências relativas ao direito. Além da
violência fundadora (violência mística), que institui e instaura o direito, há uma violência que mantém, confirma
e assegura a permanência e a aplicabilidade do direito (violência conservadora). Outra distinção importante
que vale a pena mencionar: violência mística, que funda e instaura o direito, e violência divina, destruidora do
direito. Enquanto o poder se relaciona à primeira violência, porque ligado a toda instauração mística do direito,
a segunda violência se relaciona à justiça, princípio de toda colocação divina do direito.

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A noção de fundamento místico nada tem de sobrenatural ou
metafísico. Ao contrário, alude ao esquecimento da arbitrariedade com
que as leis são criadas e impostas, referindo-se ao apagamento da origem
da lei. Esse esquecimento da violência originária é o que funda a norma
(MACHADO, 2012, p. 41), ou seja, a lei se impõe e se instaura na medida
em que a violência de sua gênese seja esquecida. A força necessária para a
instauração da lei é o esquecimento dessa força, dessa origem violenta que
mantém a força de lei (CONTINENTINO, 2004, p. 142).
Discordando de Walter Benjamin, em sua Para Uma Crítica da
Violência, Derrida acredita que a violência fundadora é indissociável da
violência que conserva o direito, na medida em que a primeira requisita sua
própria repetição para transmitir o que foi fundado em determinado tempo
histórico. Se a fundação do direito, desde o início, requisita a repetição
conservadora, a conservação deve (re)fundar o gesto inicial para realizar a
manutenção do mesmo (NEGRIS, 2016, p. 157). A regra da iterabilidade,
ou seja, essa economia na qual o movimento de repetição jamais repete o
idêntico, porque se faz desvio com o surgimento do outro na reiteração,
exige a repetição do ato performativo de instauração para a perpetuação
ou conservação do seu significado fora do contexto originário, ou seja,
deslocado do seu âmbito de emergência. Assim, se repete e se altera a origem
para conservá-la, indício da existência de mistura indiscernível entre ambas
as violências, onde o direito se encontra suficientemente indeterminado e
um espaço de completa anomia, que paira sobre um fundo místico, garante
a autoridade das leis e do direito. (NEGRIS, 2016, p. 160).
O direito, em suma, aparece sempre como produto de violência ou
de uma força performativa, esta última, na medida em que sua natureza,
não de ato deliberado, mas de prática reiterativa e citacional pelo qual o
discurso produz os efeitos que nomeia (BUTLER, 1993, p. 2), resulta em
violência nos momentos de instauração, formulação ou justificação da lei.
No jogo de construção, desconstrução e reconstrução do direito,
permeado pela prática reiterativa e citacional de que fala Judith Butler, o
processo de produção simbólica e discursiva, por meio do qual a identidade
e a diferença aparecem como processo (assimétrico) de adiamento e

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diferenciação linguísticos, ressalta e ilustra uma compreensão do direito não
só como uma forma de inscrição, sistema de escrita, força ou performance,
mas também sua natureza desconstrutível e a maneira pela qual, no jogo dos
rastros jurídicos, os momentos de fundação e fundamentação do direito são
atravessados pela força diferencial, que torna a forma jurídica invólucro das
relações políticas de poder e violência (NIGRO, 2004, p. 87). O processo,
não somente de produção do discurso jurídico, mas enquanto encenação
de conflitos identitários, expressa o caráter retórico do direito.2
Enquanto, na esteira do reconhecimento, pelo Critical Legal Studies,
da natureza política do direito, a lei resulta, para Derrida, da dinâmica social
e política do poder, sendo então o direito finito, relativo, historicamente
determinado e contingente, a justiça transcende a esfera da negociação,
do arranjo social e da deliberação política, porque infinita, absoluta e
indesconstrutível. Dessa maneira, o direito fundado está sempre sujeito à
desconstrução porque é histórico e seu fundamento tem natureza mítica.
Assim, a desconstrução encontra a sua força e a sua motivação no próprio
apelo, sempre insatisfeito, para que o direito, jamais a realização plena da
justiça, se torne sempre e cada vez mais justo, razão pela qual Derrida
identifica desconstrução e justiça. (RECH, 2014, p. 71).
Sendo o direito infinitamente reinterpretável e, por isso, desconstrutível,
a justiça incalculável e marcada pela indesconstrutibilidade, e a relação
entre ambos caracterizada por Derrida como indecidível, como situar o
potencial político da desconstrução em relação à produção de identidade e
da diferença no campo jurídico? Pensada a justiça em projeto permanente
de abertura infinita para uma alteridade absoluta, que nunca se presentifica,
como é possível concretizar as demandas por justiça pautadas na construção
de identidade? Como a desconstrução, esse modo de ler que questiona
e problematiza a noção de identidade, serve (paradoxalmente) de matriz
produtiva para a política de identidade (ou da diferença)? Em outras palavras,
2 Para compreender a produção discursiva do direito, na perspectiva de Jacques Derrida, importante situar o debate
contemporâneo em torno do conceito do direito a partir da superação, pelas tendências constitucionalistas e pós-positivistas,
da perspectiva teórica do juspositivismo, que reduz o direito à norma e, portanto, ao seu aspecto formal, prescindindo de
valores e conteúdos; do excessivo idealismo da abordagem jusnaturalista à procura de uma fundamentação moral para o
direito; e da postura deveras reducionista do realismos e institucionalismos jurídicos que ressaltam o fato de o direito estar
profundamente inserido na realidade, decomposta, entretanto, numa série de comportamentos individuais que excluem o
elemento normativo essencial do fenômeno jurídico. (FARALLI, 2006)

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como pensar, nesse contexto, o potencial político da desconstrução?
Uma hipótese possível é que a desconstrução desestabiliza a legitimidade
dos discursos jurídicos formulados, também, em demandas por justiça
pautadas na construção de identidade, cujos limites das reivindicações de
direitos estariam tanto na violência da afirmação de direitos, só possíveis com
a força de lei, quanto na sobreposição de identidades sobre a singularidade.
(RODRIGUES, 2007, p. 492).

Identidade e diferença na formação do discurso jurídico

“Eu não tenho senão uma língua e ela não é minha.”


- Jacques Derrida, O Monolinguismo do Outro

A fim de situar a discussão sobre identidade e diferença, dois conceitos


iniciais se fazem importantes: formação e discurso. O primeiro remete ao
conceito marxista de formação social, ou seja, à ideia de que toda sociedade,
em dado momento, é determinada por um princípio fundamental de
organização, que delimita no abstrato as possibilidades de alteração das
situações sociais. (HABERMAS, 1999, p. 19).
Quanto ao segundo, a perspectiva de análise adotada neste trabalho
decorre da crescente ênfase pós-estruturalista no papel do significado dentro
de estruturas descentradas, ou seja, de estruturas discursivas essencialmente
instáveis, submetidas a uma variedade de práticas articulatórias que
constituem e organizam relações sociais (LACLAU; MOUFFE, 1989).
Pensar a identidade e a diferença na formação do discurso jurídico,
portanto, implica considerar os processos de formações identitárias,
mediados pela diferença, como construções discursivas (FERREIRA;
SILVA, 2014, p. 221), reconhecendo a incompletude das identidades e
dos discursos, bem como o caráter provisório de todo e qualquer arranjo
político que reivindique direitos, ou que, de outro modo, construa sobre o

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direito um discurso. A desconstrução é justamente uma prática de leitura
crítica ou uma estratégia de decomposição dos elementos ambivalentes
e contraditórios dos discursos (PERRONE-MOISÉS, 1995), também
jurídicos.
Em Emancipação e Diferença, Ernesto Laclau reafirma a contingência
e a precariedade das identidades, e o universal como “significante vazio”,
ou seja, “como significante sem significado”, ocupado por algum elemento
particular que assuma contingentemente a tarefa de representar um
conjunto de demandas políticas a partir de seu caráter universalizante.
Se o conceito de identidade tem se mostrado inadequado, sendo um
daqueles conceitos que, segundo Derrida, operam ‘sob rasura’, ou seja, “no
intervalo entre a inversão e a emergência”, como afirma Stuart Hall3, qual a
necessidade, então, de retornar mais uma vez a ele? (HALL, 2000, p. 104).
Hall procura responder à indagação que faz propondo dois possíveis
caminhos: um primeiro seria observar a existência da rasura que caracteriza
a crítica desconstrutiva à qual estão submetidos muitos conceitos
essencialistas, crítica que não os substitui por conceitos mais verdadeiros na
produção de um conhecimento positivo, porque considera que, sem eles,
certas questões-chave sequer podem ser pensadas; um segundo caminho
consiste na observação de sua centralidade para a questão da agência, que
designa o elemento ativo da ação individual, e da política, entendida tanto
no contexto dos movimentos políticos em suas formas modernas quanto das
dificuldades e instabilidades das políticas de identidade contemporâneas.
Dada a posição de descentramento que ocupa o sujeito da pós-
modernidade, o reaparecimento do conceito de identidade, ou de
identificação (se a ênfase é colocada mais no processo de subjetivação
que nas práticas discursivas), parece estar situado, como afirma o autor,
“na tentativa de rearticular a relação entre sujeitos e práticas discursivas”
(HALL, 2000, p. 105 ).
Como todas as práticas de significação, a identificação está sujeita

3 Ainda que cada um dos autores atue em campos teóricos distintos, é possível estabelecer diálogos entre suas propostas: os
estudos culturais de Stuart Hall e as formulações pós-estruturalistas de Jacques Derrida reconhecem em comum o caráter
múltiplo do sujeito, do seu discurso, da heterogeneidade dos sentidos produzidos, partindo, ambos, do entendimento de que
a língua não se resume a um constructo abstrato, não existindo independentemente de um sujeito, cuja identidade, acima
de tudo, é um sistema de significação. Do mesmo modo, partilham também o entendimento dos processos de formações
identitárias como construções discursivas em permanentes deslocamentos (FERREIRA; SILVA, 2014, p. 213).

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 132


ao jogo da différance e “envolve um trabalho discursivo, o fechamento e
a marcação de fronteiras simbólicas” (HALL, 2000, p. 106), requerendo
o que é deixado de fora - o exterior que a constitui - para consolidar o
processo. Não é, portanto, um conceito essencialista ou uma forma natural,
mas estratégico e posicional (HALL, 2000, p. 108). Sendo as identidades
construídas dentro, e não fora do discurso, emergem, também, no interior
do jogo de modalidades específicas de poder e, dessa forma, são mais
produto da marcação da diferença e da exclusão do que signo de uma
unidade idêntica, naturalmente constituída (HALL, 2000, p. 109).
Nas palavras de Stuart Hall que remetem a Derrida, Laclau e Butler,
a construção das identidades por meio da diferença, e não fora dela,

implica o reconhecimento radicalmente perturbador de que é apenas por meio


da relação com o Outro, da relação com aquilo que não é, com precisamente
aquilo que falta, (...) que o significado ‘positivo’ de qualquer termo e de sua
identidade pode ser construído (HALL, 2000, p. 110).

Em síntese, a falta é constitutiva da identidade, na medida em que


“toda identidade tem necessidade daquilo que lhe ‘falta’ – mesmo que
esse outro que lhe falta seja um outro silenciado e inarticulado” (HALL,
2000, p. 110 ). Na afirmação de Ernesto Laclau, “a constituição de uma
identidade social é um ato de poder” (LACLAU apud HALL, 2000, p.
110).
Na dimensão performativa, a construção de identidade é um processo
que, no curso de seu devir temporal, funciona pela reiteração (citação e
repetição) de normas que ocasionam a formação do sujeito e de práticas
de exclusão que, sob um impulso democrático, não cessam de modificar
criticamente as ações de exclusão que efetuam.
Assim, considerando o jogo dos rastros jurídicos, ou seja, o processo
de produção simbólica e discursiva que atravessa a construção social do
direito e no qual a afirmação da identidade e a enunciação da diferença
traduzem o desejo de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais, de
diferentes grupos sociais assimetricamente situados (SILVA, 2000, p.
81 ), a instalação da différance entre a fundação e a repetição das regras

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 133


permite pensar o direito não simplesmente como instância justificadora da
ordem hegemônica, mas como estrutura de promessa de justiça, promessa
que se repete em cada interpretação ou ressignificação da regra jurídica
(KOZICKI, 2005).

Diferenças: da ontologização da diferença à modificação


ontológica da presença

Diferença é um conceito de enorme complexidade e dificuldade, pois


reúne em sua rubrica diferenças de naturezas distintas: diferença como
significado gerado pela instância da articulação, e diferença que procura
inverter e deslocar o efeito diferenciador do discurso pronunciado na
differénce com “e”, ou seja, desconstruí-la.
Na formulação de Derrida, diferença, como significado gerado
pela instância de articulação, remete a um desvio de significante, por
meio do qual a palavra que não se apresenta em sua pureza oferece sua
verdade (SANTIAGO, 1976, p. 25). Dito de outra maneira, no “jogo
de remetimentos da linguagem”, lá onde ela é formada por rastros, e
por uma ausência total de apoio, de uma estrutura fixa de significação,
apontando para um sistema de referencialidade que, a todo momento,
se desestabiliza, a linguagem desliza enquanto a coisa mesma sempre lhe
escapa. (MACHADO, 2012, p. 38).
O jogo das diferenças supõe, dessa forma, sínteses e reenvios que
impedem que um elemento simples seja presente em si mesmo, pois sua
presença ocorre por um reenvio a um outro elemento que não é, ele mesmo,
simplesmente presente (HERMES, 2013, p. 238).
Por sua vez, différance, grafada com “a” inaudito, é descrita por
Derrida como:

o que faz com que o movimento da significação não seja possível a não ser que
cada elemento dito ‘presente’, que aparece sobre a cena da presença, se relacione

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 134


com outra coisa que não ele mesmo, guardando em si a marca do elemento
passado e deixando-se já moldar pela marca da sua relação com o elemento
futuro. (DERRIDA, 1991, p. 45).

Em outras palavras, a differánce aparece como movimento do


sentido existente apenas numa rede de elementos passados e futuros,
numa economia de rastros (PERRONE-MOISÉS, 1995), que impede
que o discurso produza totalização e, consequentemente, que o conteúdo
semântico do direito seja resultado do golpe de força que se instala na
estrutura iterável de significantes. Considerando a possibilidade estrutural
de todo signo linguístico ser repetido na ausência de seu referente, e
também na ausência de seu significado ou intenção determinada, essa
ausência é a différance, uma modificação ontológica da presença, que torna
legível toda linguagem4 muito depois do desaparecimento empírico de seus
destinatários ou produtores (PINTO, 2009, p. 124).
De outra forma, a différance (escrita com “a” que não se pode ouvir)
essa operação que acolhe o regime da diferença (différence), e que pensa
a diferencialidade para além das oposições estabelecidas, para além de
qualquer espécie de limites (culturais, nacionais, linguísticos ou mesmo
humanos), possibilita a realização da justiça contra a violência da afirmação
de direitos presente nas reivindicações de identidade.

O que o motivo da différance tem de universalizável em vista das diferenças é


que ele permite pensar o processo de diferenciação para além de qualquer espécie
de limites: quer se trate de limites culturais, nacionais linguísticos ou mesmo
humanos. Existe a différance desde que exista um rastro vivo, uma relação vida/
morte ou presença/ausência ... Há portanto aí claramente uma potência de
universalização. Depois a différance não é uma distinção, uma essência ou uma
oposição, mas um movimento de espaçamento, um devir-espaço” do tempo, um
“devir-tempo” do espaço, uma referência à alteridade, uma heterogeneidade que
não é primeiramente oposicional. Daí uma certa inscrição do mesmo, que não é
o idêntico, como différance. (DERRIDA, 2004, p. 33-34).

Elisabeth Roudinesco, na introdução de Políticas da diferença, em

4 Enquanto “combinação seletiva de elementos invariáveis” (CEVASCO, 2003), a linguagem corta nossa ligação
com as coisas (MERLEAU-PONTY, 2007), mas dela não se escapa, porque, segundo Gadamer, o mundo é
linguagem, e nosso contato com a realidade encontra-se, desde sempre, linguisticamente estruturado.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 135


De que amanhã, conduz a explicação de Derrida, marcando a distinção
existente entre ambas as diferenças, ou seja, entre uma diferença que
opera desumanizando, por meio da ideia de raça, por exemplo, e uma
diferencialidade anterior à toda diferença determinada, à toda diferença
com ‘e’, e, portanto, à toda presença.

O debate sobre o etnocentrismo pode ser colocado a partir da questão da diferença


[différence]. Foi em 1965 que o senhor escreveu pela primeira vez este termo
com um ‘a’ (différance), num artigo dedicado a Antonin Artaud. (...) Trata-se de
definir uma espécie de ‘parte maldita’, uma diferença no sentido de absoluto ou
da duplicidade, algo que não se deixa simbolizar e que excede a respresentação.
Encontramos seus traços no teatro da crueldade, de Artaud, no qual não se faz
distinção entre os órgãos do teatro, o autor, o ator e o encenador. Em suma, a
différance, seria a ‘anarquia improvisadora’. Ela seria portadora da negatividade,
mas também de uma alteridade que escaparia incessantemente ao mesmo e ao
idêntico (ROUDINESCO, 2004, p. 32).

Derrida afirma que, assim como Roudinesco, sempre desconfiou do


culto do identitário e do comunitário. Retomando seu O monolinguismo
do outro, afirma que sua resistência a movimentos que tendem para um
narcisismo das minorias, desenvolvido inclusive nos movimentos feministas,
de modo algum impede que se desconfie da reivindicação identitária ou
comunitária enquanto tal, assim como não impede, por parte do autor,
alianças momentâneas e prudentes que apontem também seus limites.
Noção que não pode fundamentar a si mesma, como o direito que
não fundamenta a si próprio, a identidade, singular ou coletiva, ao se
manifestar por meio de suas grafias (BRANDÃO, 2005), produzidas
nos entre-lugares da articulação das diferenças culturais, onde formula e
enuncia seus discursos, permite a emergência da différance (escrita com
“a” inaudível) ou, em outras palavras, a “intervenção muda de um signo
escrito” (DERRIDA, 2001, p. 14) por meio da qual a justiça enquanto
desconstrução se possibilita.
A fim de contornar a diferença ontológica constitutiva dos processos
identitários, ou seja, a temporalização e espaçamento, a não-identidade e a
alteridade do signos que constitui a différence, Derrida inventa o neologismo
différance, grafado com “a” que não se ouve, como espécie de anulação da

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 136


diferença ontológica por meio de

um adiamento simultâneo, retardamento, um cálculo econômico, uma


divergência, uma demora, um atraso, um prazo, uma reserva, em suma, uma
temporização do signo em relação a outros, um desvio consciente ou inconsciente
que suspende a obtenção e o completar do desejo na significação, fenômeno
já postulado por Lacan, ao falar do escorregamento metonímico contínuo do
significado sob o significante, em seus seminários (CAUDURO, 1996, p. 65).

Por meio da différance, “o sentido é ao mesmo tempo diferencial e


diferido, produto de um jogo incessante dentro da linguagem” (CAUDURO,
1996, p. 66), no qual o sentido está sempre sujeito à “derrapagem (ou
demora) semântica que impossibilita o signo de jamais (por assim dizer)
coincidir consigo mesmo em um momento de apreensão perfeita, sem
resíduos” (CAUDURO, 1996, p. 66).
A desconstrução é o próprio trabalho de diferimento em relação às
demandas da singularidade, porque impõe às reivindicações de identidade
abertura às próprias diferenciações internas, exigindo do direito uma
abertura ética à alteridade, de modo a afirmar uma justiça que transcende
e transborda os limites da ordem jurídica.

A metafísica da presença e a desconstrução

“Não mais a pessoa: o interstício do tempo


habitado por ela,
outrora, quando a presença era visível e esquecível...”
- Cecília Meireles

Questionando o estruturalismo da teoria de Saussure, na qual o signo


linguístico, com função de representar uma coisa, um referente, durante
sua ausência, é estruturado na oposição entre significante e significado5,
5 Enquanto o significado está ligado ao conceito/sentido ou aos “fatos da consciência”, o significante se caracteriza
pela grafia e pelo som da palavra e refere-se à “imagem acústica”, que serve para exprimi-los e representá-los, não sendo
exatamente o som material ou físico, mas a impressão psíquica dos sons, perceptível quando pensamos numa palavra, mas

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 137


Derrida, colocando em relevo o caráter de arbitrariedade do signo (agora
chamado rastro), questionado enquanto portador de uma unidade natural
entre significante (palavra) e significado (sentido), vai então problematizar a
própria tradição metafísica (e todo um modo de pensar o mundo e de utilizar
a linguagem para expressá-lo, e também, para ocultar suas contradições),
implicada na ideia de que a linguagem carrega consigo a possibilidade de
expressão de uma verdade transcendental (RODRIGUES, 2008, p. 20).
A linguagem, ela própria, é uma estrutura instável. Do postulado
de que a linguagem vacila parte o pós-estruturalismo de Derrida. No
modo de disseminação, ou seja, “entendida como produção de sentidos”
(CAUDURO, 1996, p. 71) a linguagem, enquanto jogo sistemático de
diferenças, uma escrita de traços de diferenças, está em um desbalanceamento
infindável e fora de equilíbrio (HARLAND apud CAUDURO, 1996, p.
71), na medida em que a disseminação, explosão do horizonte semântico
que introduz a diferença no interior do mesmo, se aproveita dos tremores
aos supostos conceitos universais e interrompe a circulação que transforma
em origem um a posteriori do sentido, provocando uma ruptura sem fim
da escritura, um golpe na disseminação dos rastros, além da permanente
desconstrução da identidade.
Contestando a fala como lugar da presença da razão, como portadora
do logos, e a consequente atribuição de um papel derivado de simples
representação da fala à escrita, caracterizada, assim, como excesso da
totalidade, a desconstrução derridiana procura demonstrar que o mostrar-
se do excesso como suplemento não vem complementar uma totalidade
que se encerra em si, mas supre, antes, uma falta constituinte da própria
totalidade (PRIKLADNICKI, 2007, p. 31). Para Derrida, “a razão é
incapaz de pensar esta dupla infração à natureza: que haja carência na
natureza e que por isso mesmo que algo acrescente-se a ela” (DERRIDA apud
PRIKLADNICKI, 2007, p. 31).
Este entendimento também explica porque, segundo Derrida, não
haveria a identidade em si, pois toda identidade está permeada por uma
carência e precisa ser suplementada, motivo pelo qual é substituída por um
não a pronunciamos (FIORIN apud HERMES, 2013, p. 232).

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 138


pensamento da identidade como diferença. Afinal, “a identidade diferencia-
se de si mesma, sua essência nunca está presente” (PRIKLADNICKI, 2007,
p. 31).
Derrida procura superar a violência associada à fala mística (aquela de
função alocucionária mais que ilocucionária e dirigida de forma absoluta
ao absoluto) insistindo na ruptura com a totalidade como condição para a
relação com o outro, ou, ainda, conforme afirma Duque-Estrada, recusando
toda pretensão de totalização que se encontra operante em um discurso, de
modo a viabilizar um pensamento para além de uma grande ilusão que ele
considera a metafísica da presença.
A desconstrução do signo saussuriano, cujo sentido jamais é obtido
completamente no jogo múltiplo da significação, caracterizado pelo
“adiamento e pelo diferimento da presença”, demonstra que a língua,
por meio da qual a construção dos processos de identificação se efetiva,
não pertence, não é totalmente apropriável, assim como as construções
identitárias se constituem como processos inacabados, porque a língua que
define enquanto sujeito é sempre modificável (FERREIRA; SILVA , 2014,
p. 217).
A desconstrução derridiana, essa “operação crítica através da qual
tais oposições [binárias em que se assenta o estruturalismo] podem ser
parcialmente enfraquecidas”, é, ela própria, uma prática política e, em
última análise, “uma tentativa de desmontar a lógica pela qual um sistema
particular de pensamento e, por trás disso, todo um sistema de estruturas
políticas e instituições sociais mantêm sua força” (EAGLETON, 2003, p.
204).
A filosofia de Jacques Derrida fornece assim uma contribuição
importante para a tarefa de formular uma teoria da justiça dentro da
rubrica da desconstrução, ressaltando seu aspecto ético, ou seja, a aspiração
não violenta da relação com a alteridade. A desconstrução da presença real,
por meio da ausência que constitui a différance, não é, então, uma forma de
relativismo, subjetivismo ou niilismo tendente a desfazer a verdade, mas,
antes, “um ato de humildade que pretende libertar as coisas para algo mais
além da presença” (MACHADO, 2012, p. 38).
Opondo-se às alienações políticas da linguagem e à dominação das

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 139


normas, a desconstrução (do direito, das instituições jurídicas, ou, ainda,
da lei institucionalizada) realiza “uma crítica da ideologia jurídica, uma
dessedimentação das superestruturas do direito que ocultam e refletem, ao
mesmo tempo, os interesses econômicos e políticos das forças dominantes
da sociedade” (DERRIDA, 2012, p. 23)

A desconstrução do direito e a justiça, uma perspectiva


ética

No campo do direito, considerando o direito como produto de


força performática que, não sem violência, institui e sempre refunda
suas concretizações e configurações históricas, a desconstrução procura
desestabilizar determinada concepção do direito, ou mesmo determinada
interpretação dele, em nome da possibilidade da justiça que se realiza pela
própria desconstrução.
Porque o direito é força, porque é força performática, então ele sofre
a força da desconstrução. O direito também é desconstrutível porque
construído sobre camadas textuais interpretáveis e transformáveis ou
porque não fundado, ou, em outras palavras, porque sua fundação é
histórica e seu fundamento, mitológico. A lei da desconstrução se impõe
assim na desconstrução do direito, afirmando-se na differánce, na força
diferencial, que é a força da diferença, força que denuncia a relação entre
força (violência) e significação nas operações de textualidade jurídica.
Mais legítimo se torna o direito quando suas prescrições são revogadas
toda que vez que não puderem se justificar. Mais a democracia se fortalece
toda vez que essa desconstrução pode ser realizada sem grandes rupturas
institucionais. (NIGRO, 2004, p. 98).

Enquanto o direito é desconstrutível, a justiça aparece em toda


sua indesconstrutibilidade. Entendida como dom sem cálculo, a
justiça derridiana compartilha com a concepção de Levinas a ideia de
responsabilidade sem limites e de um “direito infinito”, no qual a equidade

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 140


não implica em igualdade ou proporcionalidade calculada, distribuição
equitativa ou justiça distributiva, mas em dissimetria absoluta. (DERRIDA,
2010, p. 42).
A experiência derridiana da justiça implica em alteridade porque esta
guia a política, mesmo não pertencendo ao âmbito público (CRITCHLEY,
1997, p. 36). Como experiência inapresentável e indeterminável da
alteridade absoluta, a justiça, ao contrário do direito, excede ao cálculo e
às regras, mas, ao mesmo tempo, “é a chance do acontecimento e condição
da história” (DERRIDA, 2010, p. 55).
Se o Direito está relacionado a um ordenamento jurídico, efetivo em
determinado território, a justiça é sempre um porvir, sendo a decisão judicial
específica integralmente justa. Porém, como a ética de justiça afirma uma
relação infinita, jamais realizada, com o outro, a justiça pressupõe uma
decisão impossível. O indecidível, não é, desta forma, a impossibilidade de
escolher entre diversas opções, mas ao fato de que a singularidade do outro
jamais consegue ser plenamente apreendida.
Se a violência mítica do direito se efetiva no vazio da lei, em descompasso
ou desconcerto com a decisão que inaugura o direito, pensando o direito
no limite, ou seja, pensando-o na aporia temporal, a justiça só é possível
enquanto desconstrução, pois ela é a própria desconstrução. Neste sentido,
“a justiça já não é estrutura ou forma, mas acontecimento – trabalho da
diferença no rastro” (UCHÔA; SOUZA, 2013, p. 74).
Desta maneira, no jogo dos rastros jurídicos, onde se forma um
discurso sobre o direito, a força diferencial das práticas de significação
constitutivas do processo de construção de identidade, ao atravessar os
momentos de fundação e fundamentação do direito, cumpre a tarefa
de reformular e realizar a permanente refundação do direito. Assim,
a identidade e a diferença aparecem como processo (assimétrico) de
adiamento e diferenciação linguístico no processo de formação do discurso
jurídico, mostrando o caráter de inscrição (sistema de escrita, força ou
performance) do direito e, então, sua natureza desconstrutível.
Ao posicionar o direito na différance, evidencia-se sua essência de
força, que se desdobra em violência fundadora, que instaura e institui o

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 141


direito, e em violência conservadora da lei, que assegura a permanência e
a aplicabilidade das normas. É a força de lei (GOMES, 2017). Força que
reside no fato de que o direito funda a si mesmo ou, em outras palavras, no
ato performativo que cria e, ao mesmo tempo, esconde as convenções que
proporcionam sua existência. (BUTLER apud GOMES, 2017, p. 130).
Se, nesta perspectiva, o direito pode ser lido como um texto6 (não
há fora-de-texto, segundo Derrida, porque nunca houve senão a escritura)
e, enquanto tal ser passível de desconstrução, isso também significa que o
direito é infinitamente reinterpretável e que o trabalho da desconstrução é,
precisamente, apontar essa inadequação radical do fundamento ao fundado,
fazendo ruir a segurança ontológica do discurso jurídico, ao apontar não só
suas contradições internas, mas os motivos pelos quais a justiça não pode
servir-lhe de fundamento (FRANÇA, 2013, p. 200).
Porque a desconstrução demanda que se questione incansavelmente
a origem, os fundamentos e a concepção teórica que embasa o atual
entendimento de justiça, ela impede que a justiça seja cristalizada e possibilita
que ela seja mantida como força que torna possível a desconstrução.
Em síntese, diante da complexidade das sociedades contemporâneas,
do pluralismo de valores e de concepções de bem e da indeterminação
de sentido que, nesse cenário, constitui o horizonte do sujeito e das
identidades coletivas, em permanente trabalho de reconstrução do direito,
a desconstrução derridiana do direito construído, e a todo momento
refundado, possibilita que a justiça, em sua indesconstrutibilidade,
endereçamento à alteridade, e infinitude, por meio da própria diferença
que a atravessa, possa ser concretizada em relação às singularidades.
Dentro da rubrica da desconstrução, a teoria derridiana procura
formular um conceito de justiça que não caia no vazio formalista do direito
positivo tampouco no essencialismo dogmático do direito natural. O
aspecto ético dessa teoria da justiça se encontra na aspiração não violenta
da relação com a alteridade. A ética da desconstrução aparece, assim, como

6 Para Derrida, um texto é texto somente quando ele esconde a lei de sua concepção e a regra de seu jogo, ou seja, somente
quando, a partir do mascaramento de seu sentido, de sua dissimulação, seu conteúdo jamais se oferece pleno e presente
(SANTIAGO, 1976, p. 93). De certo modo, a ideia de texto remete ao conceito de violência mística do direito, no que ele
tem de ocultação e esquecimento.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 142


uma postura de pensamento resistente às investigações dogmáticas que
excluem ou impedem a experiência do outro, resumido, nos dizeres de
Duque-Estrada, à uma sombra dos discursos do mestre ou do colono. Atua,
dessa maneira, problematizando a heteroneidade de toda identidade, uma
defesa não da pluralidade, que seria uma coexistência de inúmeras unidades
atômicas, auto-idênticas, mas o reconhecimento de que toda identidade é
habitada pela alteridade, pelo sempre outro (DUQUE-ESTRADA, 2010,
p. 6-7).

Conclusão

Considerando a perspectiva de análise de Homi Bhabha, em que


a passagem do cultural como objeto epistemológico à cultura como
lugar enunciativo possibilita a existência de outras temporalidades e
outros espaços narrativos, por meio da qual os sujeitos históricos, as
identidades coletivas e, por conseguinte, as agências mobilizam o discurso
e constroem espaços de intervenção, a desconstrução da regulação jurídica
e, portanto, do direito fundado ou instituído, sempre e em todo momento
refundado, pode ser compreendida, na perspectiva de Jacques Derrida,
como possibilidade de que a justiça, enquanto indesconstrutibilidade,
endereçamento à alteridade, e infinitude, exceda o cálculo do direito e se
realize como experiência do impossível, evitando sua instrumentalização
violenta pelo direito e possibilitando novas exigências de justiça.
A desconstrução do direito, essa prática política que assegura, permite
e autoriza a possibilidade da justiça, pressupõe, segundo Derrida,

uma distinção entre a justiça e o direito, uma distinção difícil e instável entre, de
um lado, a justiça (infinita, incalculável, rebeldes às regras, estranha à simetria,
heterogênea e heterotrópica) e, do outro lado, o exercício da justiça como direito,
legitimidade ou legalidade, dispositivo estabilizável, estatutário e calculável,
sistema de prescrições regulamentadas e codificadas. (DERRIDA, 2010, p. 41).

Mais adiante, continua o autor a elencar os traços da justiça

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indesconstrutível e sua relação não violenta com a alteridade.

Se há desconstrução de toda presunção à certeza determinante de uma justiça


presente, ela mesma opera a partir de uma ‘ideia de justiça’ infinita, infinita
porque irredutível, irredutível porque devida ao outro – devida ao outro, antes
de qualquer contrato, porque ela é vinda, a vinda do outro como singularidade
sempre outra. Invencível por qualquer ceticismo, como podemos dizer à maneira
de Pascal, essa ‘ideia de justiça’ parece indestrutível em seu caráter afirmativo,
em sua exigência de dom sem troca, sem circulação, sem reconhecimento, sem
círculo econômico, sem cálculo e sem regra ou sem racionalidade teórica, no
sentido da dominação reguladora. Podemos aí reconhecer ou aí acusar uma
loucura. E talvez uma outra espécie de mística. E a desconstrução é louca por
essa justiça. (DERRIDA, 2010, p. 49).

Em geral, se é em estética que cultura e política se interseccionam,


é na ética, contudo, que a justiça derridiana reformula (por meio da
desconstrução) infinitamente o direito. Resgatando Levinas, Derrida afirma
que a justiça nada mais é que a relação com o outro, e o outro é infinito.
No entanto, o outro não se configura como presença, são antes de
tudo rastros, e infinita é também a distância que dele nos separa. Entre o
direito que se reconstrói e se refunda incessantemente e a justiça, existe um
intervalo estrutural onde se situa a desconstrução, como um pensamento
de eterna vigília, “à espreita das flores da justiça que crescem nas brechas do
direito” (CAPUTO apud CONTINENTINO, 2004, p.144).

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https://doi.org/10.52788/9786589932192.1-10

Justiça e Democracia em Jacques


Derrida

Priscilla Gershon

Introdução

Após percorrer as fendas e divisões no interior da própria razão, e,


portanto, por meio do negativo, o Espírito hegeliano corporifica a reunião
ou reconciliação (universal) das contradições numa síntese absoluta e, por
isso, representa o pensamento que aposta na concretização ou fechamento
da história por meio da totalização do logos e da produção do Absoluto.
Todo esforço filosófico de Jacques Derrida consiste, então, em apontar
a estrutura de divisão que compõe a metafísica ocidental, indicando o ato de
violência praticado (performed) em nome da reconciliação. Em “Posições”,
Derrida afirma que é contra a reapropriação incessante desse trabalho de
simulacro em uma dialética hegeliana que a operação crítica se esforça e se
organiza.
De forma geral, é possível dizer que o pensamento de Derrida, em sua
oposição a todo e qualquer conhecimento totalizante, é não só uma aposta
não metafísica que dispensa a filosofia do sujeito, pela sua inserção decisiva
na filosofia da linguagem, a partir da asserção de que o sujeito humano é
determinado pela linguagem, mas também uma aposta na promessa da
vinda do outro presente em toda relação entre línguas, delineando-se o
sentido espectral da justiça e da democracia como estruturas de promessa
em abertura infinita para a alteridade. Na concepção de Derrida, a abertura
de ambos os conceitos (justiça e democracia) é o que pode direcionar,
talvez, a vida política a um ideal renovado e mais elevado de emancipação.

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Assumindo de Levinas a ideia de um direito infinito e incalculável, onde
a ideia de equidade transcende a igualdade e proporcionalidade medida, a
distribuição equitativa ou a justiça distributiva, a justiça derridiana aparece
como experiência do impossível, e sua condição de possibilidade acontece
na própria desconstrução do direito e no porvir democrático, ou seja,
em uma concepção redimensionada de democracia, pensada a partir da
diferença e da alteridade.
No projeto de radicalização democrática e no exercício da cidadania
radical, numa esfera pública marcada pelo conflito e pelo antagonismo, o
cidadão é mais que um indivíduo racional, universal, portador de direitos
individuais, autêntico representante de uma totalidade. A fragmentação
social e a multiplicidade do sujeito são algumas das marcas indeléveis da
pós-modernidade, conceito que se pensa, aqui, a partir das definições de
Jean-François Lyotard, Zygmunt Bauman, David Harvey, Terry Eagleton,
entre outras contribuições teóricas importantes.
Em um breve parêntese, a condição pós-moderna, para Lyotard,
refere-se ao estado da cultura após as transformações que afetaram as regras
dos jogos da ciência, da literatura e das artes, a partir do final do século
XIX. Harvey, sob o mesmo título de Lyotard, descreve a pós-modernidade
como o período de novas experiências frente ao tempo e ao espaço, de um
engendramento de uma nova sensibilidade, e da emergência de modalidades
diferentes, mais flexíveis de acumulação do capital que refletem e também
produzem novos modos de organização da existência humana e de regulação
social. Eagleton, por fim, sintetiza a pós-modernidade como um período
histórico específico, uma “linha de pensamento que questiona as noções
clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a ideia de progresso
ou emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas ou os
fundamentos definitivos de explicação”. (EAGLETON, 1998, p.7)
Sem poder aprofundar, aqui, a potencialidade ou limitação do
conceito em termos de pós-colonialismo e emancipação social, e abstraindo
as implicações éticas e políticas de seu uso, é certo que, entre os impactos
que a pós-modernidade produz sobre o direito, um dos mais profundos
parece ser a revelação de uma série de ausências, uma série de “différances”,

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 149


suplementadas por um substituto que, ao presentificar o ausente, torna
presente a violência ausente do direito, a violência furtiva da contingência de
sua validade. Sob o discurso contextualista da pós-modernidade, qualquer
base unívoca de validade do direito torna-se facilmente desconstruível, o
que vem a abalar não só a tese kelseniana da norma fundamental como
imperativo hipotético de validade do direito, mas também as Constituições,
que já não se validam mais na norma fundamental hipotética, mas na
vontade do povo ou na política mesma (SIMIONI, 2014, p. 180).
Procurando encadear os conceitos derridianos de diferença e de texto,
sua formulação do direito como texto, a constatação da textualidade do
direito constituída de e nas diferenças, seu postulado de que o direito é, por
essa razão, e também por esta maneira, desconstrutível, este trabalho tem
por objetivo apontar a compreensão da relação entre justiça e democracia
no pensamento do autor, de modo a apreender a indesconstrutibilidade
da justiça, a desconstrução do direito como condição de possibilidade de
realização da justiça, e o porvir democrático como compreensão da ideia
de democracia.

O horizonte derridiano de justiça: assimetrias,


alteridades e desconstrução

As teorias filosóficas da justiça mais proeminentes na atualidade são


criticadas, segundo Gunther Teubner, por não serem suficientemente
históricas ou sociológicas. Mesmo teóricos que partem da reformulação
do conceito kantiano de justiça sob as condições do presente, como John
Rawls e Jürgen Habermas, ancorados em concepções de universalização de
reciprocidade, busca do consenso e racionalidade, não podem, segundo o
autor, tematizar questões ligadas à assimetria, à orientação pelo ambiente e
ao Outro não-racional da justiça (TEUBNER, 2008, p. 21).
John Rawls e Jürgen Habermas trabalham com o princípio moral da
reciprocidade entre atores individuais e sua universalização em normas
gerais e abstratas, que devem construir a base para uma sociedade justa.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 150


O véu de ignorância rawlsiano, ao abstrair as projeções normativas de
atores individuais racionais das circunstâncias concretas de seus contextos
originários, conduz ao acordo sobre instituições políticas corretas. Na
situação ideal do discurso de Habermas, é dirigida a procedimentos formais
a expectativa de poder garantir a expressão não distorcida de interesses
individuais, bem como a sua universalização discursiva em normas morais
justas.
Entretanto, uma das mais desconcertantes experiências do nosso
tempo, a policontexturalidade, ou seja, a “emergência de estruturas sociais
intermediárias, altamente fragmentadas, e da dissociação de sistemas de
interação, de organizações formais e do sistema social” (TEUBER, 2008,
p. 20) lança dúvidas fundamentais sobre se essas variantes do conceito
kantiano de justiça são cabíveis ainda hoje.
Dada a pluralidade de visões de mundo irreconciliáveis ou a
coexistência de diferentes concepções de bem que caracterizam a sociedade
contemporânea, a ausência ou dissolução de um horizonte de valores
válido como padrão de comportamento em todas as esferas da vida social
suprime a possibilidade de uma fundamentação inquestionável do direito,
tornando-o, por essência, desconstrutível, seja porque o mesmo é fundado,
isto é, constituído sobre camadas textuais interpretáveis e transformáveis,
seja porque seu fundamento último, por definição, não é fundado
(DERRIDA, 2012, p. 26).

Diferença (s) e desconstrução como força


diferencial no direito

Apesar da complexidade e da dificuldade do conceito, que reúne


diferenças distintas (diferença como significado gerado pela instância da
articulação, e diferença que procura inverter e deslocar o efeito diferenciador
do discurso pronunciado na differénce com “e”) pode-se afirmar em linhas
gerais que, para Derrida, différance, grafado com “a” inaudito,

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 151


é o que faz com que o movimento da significação não seja possível a não ser que
cada elemento dito ‘presente’, que aparece sobre a cena da presença, se relacione
com outra coisa que não ele mesmo, guardando em si a marca do elemento
passado e deixando-se já moldar pela marca da sua relação com o elemento futuro
(DERRIDA apud HERMES, 2013, p. 238).

Em outras palavras, no “jogo de remetimentos da linguagem”, lá onde


ela é formada por rastros, e por uma ausência total de apoio, de uma estrutura
fixa de significação, apontando para um sistema de referencialidade que, a todo
momento, se desestabiliza, a linguagem desliza e derrapa enquanto a coisa
mesma, o objeto em si, talvez se perca, mas sempre lhe escapa (MACHADO,
2012, p. 38).
Neste sentido, “desconstruir o direito é posicioná-lo no texto, no contexto
de remetimentos da escritura”, de uma linguagem que jamais toca a essência e a
natureza das coisas. (MACHADO, 2012, p. 51) Por meio da desconstrução, a
justiça se torna possível, chegando Derrida a afirmar que não conhece nada mais
justo que a desconstrução e nada mais verdadeiro que a justiça.
Categoria de análise importante para a compreensão crítica do fenômeno
jurídico contemporâneo, a desconstrução (do direito e das instituições jurídicas),
na medida em que se opõe às alienações políticas da linguagem e à dominação
das normas, realiza “uma crítica da ideologia jurídica, uma dessedimentação das
superestruturas do direito que ocultam e refletem, ao mesmo tempo, os interesses
econômicos e políticos das forças dominantes da sociedade” (DERRIDA, 2010,
p. 23).
Enquanto “operação crítica através da qual tais oposições [binárias em
que se assenta o estruturalismo] podem ser parcialmente enfraquecidas”, a
desconstrução é, ela própria, uma prática política e, em última análise, “uma
tentativa de desmontar a lógica pela qual um sistema particular de pensamento
e, por trás disso, todo um sistema de estruturas políticas e instituições sociais
mantêm sua força” (EAGLETON, 2003, p. 204).
A lei da desconstrução se impõe assim na desconstrução da lei, afirmando-se
na differánce, na força diferencial, que é a força da diferença, força que denuncia
a relação entre força (violência) e significação, nas operações de textualidade
jurídica.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 152


Direito como texto e sua violência sem fundamento

Para Derrida, um texto é texto somente quando ele esconde a lei de


sua concepção e a regra de seu jogo, ou seja, somente quando, a partir do
mascaramento de seu sentido, de sua dissimulação, seu conteúdo jamais se
oferece pleno e presente. (SANTIAGO, 1976, p. 93) .De certo modo, a
ideia de texto remete ao conceito de violência mística do direito, no que ele
tem de ocultação e esquecimento.
As leis se mantêm não porque são justas, mas porque são leis. Eis o
fundamento místico de sua autoridade. Místico porque, segundo Derrida,
a instituição da lei se deve “a um golpe de força, em uma violência
performativa e portanto interpretativa que, nela mesma, não é nem justa
nem injusta, (DERRIDA, 2010, p.24). Místico, enfim, por haver ali
“um silêncio murmurado na estrutura violenta do ato fundador. Murado,
emparedado, porque esse silêncio não é exterior à linguagem” (DERRIDA,
2010, p.25). Esse silêncio místico aprisionado no interior do próprio ato
fundador do direito fala, segundo Homi Bhabha, através de enigmas e, por
meio da obliteração de nomes e lugares próprios, faz perder a memória
histórica dos que ouvem o seu eco (BHABHA, 2013, p.204).
Permitindo pensar a norma como regra de conduta estabelecida
autoritariamente, a noção de fundamento místico nada tem de sobrenatural
ou metafísico. Ao contrário, alude ao esquecimento da arbitrariedade com
que as leis são criadas e impostas, referindo-se, portanto, ao apagamento
da origem da lei. É esse esquecimento da violência originária que funda a
norma (MACHADO, 2012, p. 41), ou seja, a lei se impõe na medida em
que a violência de sua gênese seja esquecida.
A essência do direito se revela, assim, como puro exercício da violência,
seja a violência mística da lei, violência fundadora capaz de modificar as
relações jurídicas e de legitimar novas demandas de direito aos direitos, seja
a divina, quando destruidora do direito, e colocação divina de finalidade,
princípio da justiça (e não do poder, princípio de toda instauração mística
do direito).

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 153


A violência marca, portanto, toda instauração ou fundação de um
novo direito, cujo efeito é sempre a suspensão do próprio direito e assim,
como na norma fundamental kelseniana, o direito suposto não se encontra
perante a lei em si, mas em um por vir indeterminado (KOZICK, 2008,
p. 2501).
Dessa forma, como afirma Derrida, “o conceito de violência pertence
à ordem simbólica do direito, da política e da moral – de todas as formas
de autoridade ou de autorização ou pelo menos de pretensão à autoridade”
(DERRIDA, 2010, p. 75).
À maneira do que ocorre no conto de Franz Kafka , “estamos
sempre diante da lei, sem conseguir nela entrar, acessar seu conteúdo, o
que assegura um avanço sempre constante na criação de novos direitos”
(MACHADO, 2012, p. 43). Precisamente porque “o direito é uma criação
literária, portanto, cuja essência é a força, a força de lei, ele continua e
continuará a ser inventado, numa dinâmica constante de progresso,
resultado da interdição de acesso à sua natureza” (MACHADO, 2012, p.
43). Neste sentido, a lei será sempre inalcançável, ou sempre transcendente
na violência de sua fundação.
Sendo, a ideia do texto derridiano, conteúdo que jamais se oferece
pleno e presente, ou, na compreensão pós-estruturalista, um emaranhado
complexo de signos, movimento de avanço e recuo em seus processos
concretos (EAGLETON, 2003, p. 181-182), nota-se a força diferencial,
um dos efeitos mais profundos da pós-modernidade sobre o direito, tornar
presente a violência ausente do direito. É a força da desconstrução. Que se
impõe sobre o direito. Por causa e por meio da diferença.
A textualidade do direito se constitui, assim, de (e nas) diferenças, no
movimento de presença e ausência, de avanço e de recuo da significação
estabelecido pelo jogo de remetimentos em que a essência de força do
direito se desdobra em dupla violência: violência fundadora que instaura e
institui o direito e violência que assegura a permanência e aplicabilidade das
normas, por meio ato performativo que cria e, ao mesmo tempo, esconde
as convenções que proporcionam sua existência (BUTLER apud GOMES,
2017, p. 130).

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 154


Se, nesta perspectiva, o direito pode ser lido como discurso, prática
enunciativa ou, enfim, como texto (não há fora-de-texto, segundo
Derrida, porque nunca houve senão a escritura) e, enquanto tal ser passível
de desconstrução, isso também significa que o direito é infinitamente
reinterpretável e que o trabalho da desconstrução é, precisamente,
apontar essa inadequação radical do fundamento ao fundado, fazendo
ruir a segurança ontológica do discurso jurídico, ao apontar não só suas
contradições internas, mas os motivos pelos quais a justiça não pode servir-
lhe de fundamento (FRANÇA, 2013, p. 200).

Justiça como experiência do impossível e sua condição


de (im)possibilidade no porvir democrático

Para Derrida, o direito fundado é sempre desconstrutível, uma vez


que sua fundação é histórica e seu fundamento, mitológico. Em outras
palavras, o processo histórico de construção do direito, que lhe atribui
tanto forma quanto conteúdo, e o caráter mitológico da fundamentação
desse conteúdo, ou seja, a ocultação do caráter místico do discurso
fundamentador do direito, podem e devem ser objeto de desconstrução, a
fim de que possa ser estabelecido um conceito de justiça que não caia no
vazio formalista do direito positivo tampouco no essencialismo dogmático
do direito natural.
Embora seja o direito desconstrutível, a justiça, porque incalculável,
não o é. Entendida como dom sem cálculo, a justiça derridiana compartilha
com a concepção de Levinas a ideia de responsabilidade sem limites e de
um “direito infinito”, no qual a equidade não implica em igualdade ou
proporcionalidade calculada, distribuição equitativa ou justiça distributiva,
mas em dissimetria absoluta. (DERRIDA, 2010, p.42).
A experiência derridiana da justiça implica em alteridade porque esta
guia a política, mesmo não pertencendo ao âmbito público. (CRITCHLEY,
1997, p. 36). Como experiência inapresentável e indeterminável da
alteridade absoluta, a justiça, ao contrário do direito, excede ao cálculo e às

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 155


regras, mas, ao mesmo tempo, é a chance do acontecimento e condição da
história” (DERRIDA, 2010, p.55).
Infinita, incalculável, estranha à simetria, heterogênea e heterotópica,
a justiça não é conteúdo, não se deixa aprisionar em sistemas dogmáticos
de moralidade, de legitimidade ou de direito natural, o que a converteria
em uma construção social não fundamentada. Sempre por construir, essa
justiça é assim indesconstrutível, porque ela própria não é construída, e
porque ela própria não pode ser determinada em termos de conteúdo ou
valor específico, mas, como afirma Borradori, “simplesmente indicada
como condição de possibilidade para o que for elaborado pela política
e pela lei”, (BORRADORI apud FRANÇA, p. 201). Isso que está além
pertence, ainda segundo o autor, ao domínio da singularidade irredutível à
universalidade da lei e à impessoalidade do direito.
Aparecendo como experiência (indecidível) do impossível, a justiça é
a experiência daquilo que não se pode experimentar, pois o direito supõe
generalidade de um imperativo, mas a justiça se realiza na singularidade
das exigências insubstituíveis de uma situação única. Ademais, a justiça é
essencialmente impossível porque o endereçamento na língua do outro é
também impossível.
Mas é preciso decidir, é justo que haja uma decisão. A decisão é
um momento de negociação no qual justiça e direito trasbordam-se
mutuamente, em um instante de loucura. Embora a justiça tampouco se
esgote na aplicação da lei, é justo haver um direito. O direito é necessário,
ainda que jamais possa ser uma representação adequada da justiça.

A impossibilidade que a justiça experimenta é, na linguagem da filosofia


transcendental, sua própria condição de possibilidade. Assim, a justiça é essa
experiência da qual não se pode experimentar, na medida em que ainda está por
vir. Esse à-venir é a própria dimensão dos eventos, irredutível a qualquer fórmula
ou cálculo. Talvez por isso, a justiça não possa ser reduzida a um conceito jurídico
ou a uma idéia regulativa ou a um horizonte que acomoda nossas expectativas. Ao
contrário, a justiça é a possibilidade de transformação; a possiblidade de refundir
e refundar o próprio Direito. (CHUEIRI, 2007, p. 49).

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O direito deriva da força, e não tem a justiça por fundamento, pois
o fundamento do direito é um ato de força, passível de ser desconstruído,
de ter sua estrutura decomposta. Desconstruir é resistir à tirania do Um,
do logos, da metafísica ocidental na própria língua em que é enunciada
(DERRIDA & ROUDINESCO, 2004, p.9)
A justiça, por sua vez, não tem conteúdo próprio, é uma aporia situada
entre a decisão do direito, que deve ser sempre justificada, e a assombração
do indecidível, como condição de possibilidade da justiça da decisão, e,
enquanto aporia, é um caminho a ser buscado para nada se alcançar, talvez,
mas que deve ser necessariamente percorrido, justificando assim sua busca.
A decisão que busca a justiça tem de escapar ao cálculo característico
do direito sem permanecer, contudo, na suspensão da indecidibilidade
onde não há justiça, porque somente a decisão o pode ser.
Assim, o transbordamento da justiça sobre o direito, ou seja, aquilo que
Derrida chama de excedente ou que se refere ao indecidível, é de extrema
relevância no que concerne às consequências políticas da desconstrução.

Pois, se a justiça se coloca como algo que ultrapassa o conteúdo da regra –


qualquer regra – isso implica que a democracia de fato – isto é, a realização da
justiça – jamais está circunscrita ao campo normativo estabelecido pelo estado de
direito (FRANÇA, 2013, p. 225).

Entendida mais como possibilidade de instituir a justiça nas relações


políticas do que como uma determinada forma de governo, a democracia,
para Derrida, é um projeto permanente, cuja concretização jamais se
completa. Enquanto “experiência de uma promessa empenhada, que é
sempre uma promessa sem fim” (DERRIDA, 2014, p. 54), a democracia,
como formulada em Vadios, Dois Ensaios sobre a Razão, “nunca existirá,
no sentido de uma existência presente; não porque será adiada, mas
porque permanecerá sempre aporética em sua estrutura” (DERRIDA
apud OLIVEIRA, 2013, p.208). Daí a exigência do novo imprevisível,
o acontecimento ou o por vir, que venha a transformar a ordem
estruturalmente, mantendo-se aberta à experiência do impossível e criando,
assim, possibilidades que transcendam os limites da própria democracia.

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A democracia derridiana, deslocada na temporalidade do por vir,
segundo Borradori, deve ir além do cosmopolitismo kantiano e da cidadania
mundial que ensejaria a paz perpétua, de modo a permitir que, onde ainda
não são definidos pela cidadania, ou seja, pela condição de sujeitos legais
em um Estado, seres singulares convivam (KOEHLER, 2009, p. 59).
Para que a justiça não seja cooptada pelos piores cálculos, para evitar
que ela seja instrumentalizada por objetivos violentos, para que o direito,
enfim, não se feche sobre si mesmo, impedindo novas exigências de justiça,
é necessário que ele possa ser desconstruído pela revisão constante do seu
arcabouço jurídico e institucional (FRANÇA, 2013, p.205).

A desconstrução exige que toda leitura de um texto possa ser submetida a uma
nova leitura, em um movimento que une presente e passado, futuro e presente.
O sentido deve permanecer aberto, permitindo a própria desestabilização
do direito e consequentemente a possibilidade da sua transformação, como
condição de justiça. Sendo assim, qualquer decisão, para ser justa, deve traduzir
um novo julgamento, algo que surge com nova força e que atende ao fato de
que, se o direito e a lei são gerais, a justiça deve atender sempre à singularidade.
(KOZICKI, 2000, p. 211).

Na medida em que evitam a sedimentação e cristalização das estruturas


de poder, a exigência e a manutenção dessa abertura do texto jurídico
tornam-se essenciais para o desenvolvimento e aprofundamento da própria
democracia (NIGRO, 2004, p. 98) e, por conseguinte, para a realização
de uma justiça que possa transcender o totalitarismo das pretensões de
fechamento político e determinação definitiva de sentido, comuns ao
positivismo jurídico e ao universalismo liberal, de modo a permitir e a
possibilitar o permanente aperfeiçoamento da política e do direito em
direção à emancipação social (FRANÇA, 2013, p. 201), mesmo que a
interminável polititização, indissociável da ética, não possa nem deva ser
jamais total (DERRIDA, 2010, p. 56)

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 158


Conclusão

A história é incrível, mas aconteceu, e não uma única vez, quem sabe, e sim
muitas, com diversos atores e diferenças locais. Nela está a síntese perfeita de uma
época irreal, e é como o reflexo de um sonho ou como aquele drama no drama que se
vê em Hamlet.
(Jorge Luis Borges, O Simulacro, em O Fazedor)

Quando Chantal Mouffe afirma ser inútil imaginar a possibilidade


de um sistema mundial regulado pela Razão, ela não se refere aos abalos
teóricos e metodológicos que o ideal da razão iluminista teria sofrido com
as revoluções de Marx, Freud e Popper no pensamento ocidental, mas a
uma consciência mais aguda do caráter instrumental que ela assume em
uma sociedade baseada no interesse individual e egoísta suscetível a exaltar
e a consolidar a feição repressiva do racionalidade humana, uma vez que
as sínteses racionais operadas pela totalidade hegeliana estão diretamente
relacionadas com o estabelecimento de regimes totalitários, disseminando
a bestialidade, o absurdo e a desagregação ética, ao mesmo tempo em que
banaliza e justifica extermínios e atrocidades das mais diversas naturezas.
A desconstrução que Jacques Derrida propõe sobre a metafísica da
presença, o reconhecimento da ilusão de que a linguagem carrega consigo
a possibilidade de expressão de uma verdade transcendental, por meio do
qual então procura superar a violência da fala mística, a contestação do
fonologocentrismo e da investigação ontológica da realidade, insistem,
todos, na ruptura com a totalidade como condição para a relação com o
outro; recusam toda pretensão de totalização que se encontra operante em
um discurso, nas palavras de Duque-Estrada.
Desta maneira, ao ser impositiva sobre o direito, na medida em que
este último se estrutura como texto e se constitui de e sobre camadas textuais
interpretáveis e transformáveis, na não fundação do seu fundamento último
(DERRIDA, 2012, p.26), a desconstrução possibilita a refundação do
próprio direito e o permanente aperfeiçoamento da justiça e da democracia.
Contra a reapropriação incessante do trabalho de simulacro hegeliano que

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 159


assombra o direito pela presença da violência sem fundamento, a crítica
de Jaques Derrida se empenha e organiza. Embora a desconstrução por
ele proposta esteja relacionada à dialética hegeliana, não constitui uma
unidade superior ou uma progressão racionalmente estruturada. Em lugar
do movimento hegeliano de negação dialética, Derrida aponta para o
movimento não totalizável da différance.
Por fim, na articulação derridiana entre justiça e democracia, se
implicam reciprocamente uma concepção ética de justiça, pautada pela
alteridade e pelo equilíbrio da assimetria restada do poder argumentativo
da razão, na formação procedimental democrática da vontade, e uma
compreensão não instrumental da política, nem reduzida ao programável e
pragmático, redução ou restrição que fazem as pesquisas que a identificam
com uma arena em que se desenrolam processos de poder.
Para que a justiça não seja cooptada pelos piores cálculos, para evitar
que ela seja instrumentalizada por objetivos violentos, para que o direito,
enfim, não se feche sobre si mesmo, impedindo novas exigências de justiça,
a desconstrução de Jacques Derrida fornece uma contribuição importante
para a filosofia política e a teoria do direito contemporâneas.

Referências

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CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 162


Sobre as organizadoras

Ana Carla Barros Sobreira. Possui graduação em Letras-Inglês pela


Universidade Federal da Paraíba- Campus II- Campina Grande.
Especialização em Ensino de Línguas Mediado por Computador pela
Universidade Federal de Minas Gerais e Mestrado em Estudos Linguísticos
pela Universidade Federal de Uberlândia. Tem experiência na área de Letras,
com ênfase em Linguística Aplicada, EAD, Letramento em Contexto
Indígena. Membro da Red de Investigación en Educación, Empresa y
Sociedad (REDIEES) Bogotá-Colombia. Participa do Grupo de Estudos:
CG Scholar coordenado por Kope, W.;Kalantzis,M. e do Grupo de Pesquisa
Nos-Outros: Linguagem, Memoria e Direitos Humanos, coordenado pela
Profa. Dra. Daniela Palma IEL-UNICAMP e pelo Prof. Dr. Daniel do
Nascimento e Silva -UFSC. Doutoranda em Linguística Aplicada - IEL-
UNICAMP.
Fabiane Lemes. Graduada em Letras. Doutoranda em Estudos Linguísticos
pela Universidade Federal de Uberlândia (Ufu). Mestre em Estudos
Linguísticos pela Ufu. Bolsista CAPES. Sobre as organizadoras

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 163


Sobre as autoras e autores

Camila Maria Magalhães. Graduanda em Direito na Universidade


Estadual da UEMA.

Carlos Elias Barros Sobreira Rodrigues. Mestrando em História pelo


Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de
Maringá. Membro do Laboratório de Pesquisa sobre História Política e
Políticas de Memória -LAPPOM/UEM e integrante do Grupo de pesquisa
sobre o Brasil Contemporâneo. Graduado em História pela Universidade
Estadual de Maringá.

Eliana Ladeira. Mestranda em Estudos Linguísticos - UFU. Especialista


em Ensino de Língua Inglesa, Letramentos e Tecnologias na Educação
Básica pela Universidade Federal de Uberlândia (2017). Graduada em
Letras, habilitação em Inglês e Literaturas de Língua Inglesa (2015). É
pesquisadora e membro do Grupo de Pesquisa O Corpo e a Imagem no
Discurso, liderado pela Profª. Drª. Simone Tiemi Hashiguti. Atualmente
é professora na E.E. Américo René Giannetti, Uberlândia - MG. E-mail:
eliana.ladeira@ufu.br.

Giselly Tiago Ribeiro Amado. Doutoranda e mestra pelo Programa de Pós-


graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Federal de Uberlândia.
Pesquisadora e membro dos grupos de pesquisa: “Linguagem Humana e
Inteligência Artificial” e “O Corpo e a Imagem no Discurso”. Desenvolve
pesquisas com uma perspectiva decolonial ligadas ao ensino-aprendizagem
de língua inglesa por meio de novas tecnologias, em especial com o uso de
inteligência artificial. http://lattes.cnpq.br/5771970287386431.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 164


Isabella Zaiden Zara Fagundes. Mestranda pelo Programa de Pós-
graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Federal de
Uberlândia. Pesquisadora e membro dos grupos de pesquisa: “Linguagem
Humana e Inteligência Artificial” e “O Corpo e a Imagem no Discurso”.
Desenvolve pesquisas com uma perspectiva decolonial ligadas ao ensino-
aprendizagem de língua inglesa por meio de novas tecnologias, em especial
com o uso de inteligência artificial. Bolsista CAPES. http://lattes.cnpq.
br/0229096247950294

Luana Inês Alves Santos. Mestra em Educação pela Universidade Federal


de Sergipe (UFS) e possui licenciatura em Letras - Português e Inglês pela
mesma universidade. Atuou nas áreas de História da Educação e História
do Ensino de Línguas, e atualmente tem interesse na área de Linguística
Aplicada, Ensino de Línguas Estrangeiras, Formação de Professores,
Políticas Linguísticas e de Internacionalização do Ensino Superior. E-mail:
luana.santos@programaisf.pro.br.

Mariana Ruiz Nascimento. Doutoranda e Mestre em Estudos Linguísticos


pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Especialista em
Português Língua Estrangeira e Cultura Brasileira, e possui licenciatura
em Letras – Habilitação em Inglês e Literaturas de Língua Inglesa pela
mesma universidade. Tem experiência e interesse na área de Linguística
Aplicada, Análise do Discurso, Ensino de Línguas Estrangeiras, Formação
de Professores, e Desenvolvimento e Análise de Material Didático.

Micaela Tavares Sampaio. Graduanda em Direito na Universidade


Estadual da UEMA.

Odair Ledo Neves. Mestre em Educação do Campo pela Universidade


Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Especialista em Alfabetização e
Letramento pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Especialista
em Desenvolvimento Humano, Educação e Inclusão Escolar pela

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 165


Universidade de Brasília (UnB). Especialista em Gestão Pública (UNEB).
Licenciado em Pedagogia (UNEB). Licenciado em Letras (UnB). Professor
da rede municipal de Serra do Ramalho - BA. Professor da Faculdade de
Ciências e Tecnologia da Bahia (FACITE). E-mail: odairln@yahoo.com.
br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5144465651782992.

Priscilla Gershon. Graduada em Direito pela Universidade Federal


Fluminense (1999-2004), mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pelo
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito - PPGSD/UFF
(2005-2007), pesquisadora e professora. Lecionou Pensamento Social,
Sociologia, Teoria Política, Ética e Direitos Humanos, Antropologia da
Saúde, Bioética, Antropologia Jurídica, História do Direito, Teoria Geral
do Estado, Ciência Política, Hermenêutica Jurídica, Sociologia do Direito,
Economia Política. E-mail:gershonp@uol.com.br
Rogério de Castro Ângelo. Doutorando e Mestre em Estudos Linguísticos
pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Universidade
Federal de Uberlândia e possui licenciatura plena em Letras - Português -
Inglês e Literaturas pela mesma universidade. Tem experiência e interesse
na área de Linguística Aplicada, Análise do Discurso, Ensino de Línguas
Estrangeiras, Ensino de Língua Portuguesa e Educação Profissional
e Tecnológica. Atualmente é professor de Português e Inglês no IFTM
campus Ituiutaba. E-mail: rogerioangelo@iftm.edu.br.
Romário Pereira Carvalho. Mestrando em Ensino pela Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Especialista em Educação do
Campo pelo Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologias – IF
Baiano. Graduado em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia
(UNEB) segunda Licenciatura em História Pela Universidade Norte do
Paraná- (UNOPAR), E-mail: romariouneb@hotmail.com. Lattes: http://
lattes.cnpq.br/6034517503617660.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 166


Thiago Allisson Cardoso de Jesus. Advogado. Pós-Doutor em Ciências
Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Fez estágio pós-doutoral no Programa Desigualdades Globais e Justiça
Social (Capes/Print) pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília
e pela Faculdade Latinoamericana de Estudos Sociais (FLACSo). Professor
Permanente do Mestrado em Direito da Universidade Ceuma. Editor-
Assistente da Revista Brasileira de Direito Processual Penal. Pesquisador
da Rede e Observatório Internacional em Desaparecimento Forçado
(ROAD). Doutor e Mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal
do Maranhão. Bacharel em Direito pela UFMA. Professor Adjunto I do
Curso de Direito da Universidade Estadual do Maranhão e na Universidade
Ceuma. Orientador de Iniciação Científica (FAPEMA e CNPQ) e de
atividades extensionistas. Integrante do Corpo Nacional e Internacional
de Pareceristas do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Direito (CONPEDI). Compõe a equipe do ‘DIALETICCA : Escola de
Pesquisa, Consultoria Científica e Projetos’’. Autor de “A (des)ordem do
discurso em matéria de segurança pública” lançada em 2020 pela Editora
Tirant Lo Blanch e de diversas outras obras.
Yone Alves de Souza. Especialista em Educação do Campo, pós-graduada
em Psicopedagogia e Alfabetização e Letramento. Pós- Graduanda em
Educação Especial com ênfase em Tecnologia assistiva e comunicação
alternativa. Pedagoga. Licenciada em Letras/Português. Professora da rede
municipal de Cristalina-GO. Endereço para acessar o CV: http://lattes.
cnpq.br/2190536021377303.

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 167


Índice remissivo
A
Aprendizagem 11, 15, 23, 41, 57, 61, 74, 111, 112, 119, 126, 164, 165
C
Colonialidade 8, 9, 11, 15, 18, 19, 20, 23, 24, 30, 32, 33, 38, 40, 51, 54,
55, 67, 73, 74, 75, 76, 78, 81, 82, 83, 94, 100
Corpo 6, 9, 10, 11, 26, 27, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 38, 39, 40, 45,
56, 69, 89, 92, 95, 97, 99, 147
D
Decolonialidade 30, 32, 34
G
Globalização 14, 15, 25
I
Identidade 7, 9, 13, 16, 36, 40, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65,
78, 81, 83, 87, 88, 91, 97, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 135, 136, 137,
138, 139, 141, 143, 144, 145, 146, 147, 149
L
Língua 6, 9, 10, 11, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30,
34, 37, 39, 43, 44, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 55, 66, 67, 69, 70, 71, 72, 73,
74, 75, 76, 77, 78, 79, 81, 82, 114, 131, 132, 139, 145, 156, 157, 164,
165
Linguagem 5, 6, 8, 9, 10, 29, 30, 44, 45, 53, 54, 75, 82, 83, 113, 114,
115, 116, 127, 128, 134, 135, 137, 138, 139, 144, 148, 152, 153, 156,
159, 163, 164, 165
Língua Inglesa 15, 164, 165
Linguística 10, 15, 16, 17, 23, 27, 29, 31, 41, 43, 48, 50, 54, 67, 83, 145,
163

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 168


Linguística Aplicada 9, 13, 27, 43, 54, 67, 83, 163, 165, 166
M
Memória 19, 22, 43, 99, 100, 153
Mulher 29, 31, 35, 36, 38, 90, 95
R
Racismo 11, 56, 58, 62, 89
S
Sexualidade 9, 31, 36, 40, 86, 88, 92, 97
Subjetividade 32, 75, 85
Sul global 29, 39
T
Texto 5

CULTURAS, CORPOS E LINGUAGENS HÍBRIDAS: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS VOL.2 169

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