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Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo - SP)

T693d Torres, Antonia Lis de Maria Martins (org.); et al.


Direitos humanos para a diversidade: Diálogos transdisciplinares em educação /
Organizadores: Antonia Lis de Maria Martins Torres, Jarles Lopes de Medeiros e
Patrícia Helena Carvalho Holanda; Prefácio de Gisafran Nazareno Mota Jucá.– 1. ed.–
Campinas, SP : Pontes Editores, 2020.
308 p.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5637-039-2
1. Direitos Humanos. 2. Diversidade. 3. Educação. 4. Processos Sociais.
I. Título. II. Assunto. III. Organizadores.

Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846

Índices para catálogo sistemático:

1. Direitos humanos / Direitos civis. 341.481


2. Educação. 370
3. Educação Inclusiva. 371.9
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2020 - Impresso no Brasil


direitos humanos para a diversidade:
diálogos transdisciplinares em educação

CIDADE PARA TODOS: A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA


DA CIÊNCIA URBANA E DO DIREITO À CIDADE
COMO PRINCÍPIOS DEMOCRÁTICOS
DOS DIREITOS HUMANOS CONTEMPORÂNEOS

Héctor Cândido Oliveira Barreto


Débora Klippel Fofano

INTRODUÇÃO

Em meio a uma sociedade inscrita num contexto de supervaloriza-


ção do poder econômico e eminente desigualdade social, a produção de
uma urbanização segregadora denota uma das facetas mais lancinantes
do mundo contemporâneo, a sub existência de indivíduos em situação
de vulnerabilidade que, regra geral, ocupam as cidades globais em con-
dições desumanas.
Diante dessa realidade impactante e brutal, deu-se a necessidade
de averiguar a evolução e efetivação do Direito à cidade, seus aparatos
legais e princípios que concorreram ao longo das últimas décadas para
uma garantia de acesso a cidades mais sustentáveis, justas e igualitárias.
Isso ocorre na composição de suas estruturas físicas, suas dinâmicas so-
ciais ou seus usufrutos, confluindo em debates acerca do enclave urbano,
seus conflitos e tensões sob a ótica do Direito à cidade, à luz do Direito
Constitucional e resguardados os mais variados tratados de Direitos
Humanos que resolvem acerca da vulnerabilidade social, jurídica e de
dignidade humana.

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diálogos transdisciplinares em educação

Avesso às “impecáveis matemáticas”, ao planejamento metafísico


que pretende resolver em definitivo os problemas sociais e declarar o
fim da história, a intervenção transformadora desse espaço é ciente de
sua historicidade, procurando no tempo sua reconstrução cotidiana pelas
tensões entre as experiências do real e as utopias construídas a partir delas.
O estudo desse fenômeno urbano nos coloca diante de uma vasta
e diversificada literatura que trata esse objeto de forma a construir uma
teia de relações, sejam elas, estruturais, históricas, econômicas, jurídicas,
mentais, éticas que vão confluir numa sociologia urbana, preocupada
com a elaboração teórica e necessária para o enfrentamento de certos
problemas práticos urgentes ligados ao enorme crescimento das grandes
cidades que acompanharam o processo capitalista industrial a partir do
final do século XIX até os dias atuais.

PRELÚDIO AO ESTUDO DO DIREITO URBANO

Destacar a Cidade como objeto de saber inserindo-a na efetivação de


práticas do direito e democracia traz consigo a necessidade de posiciona-
mentos que vão além da análise de um sistema ou mesmo a substituição
deste por outro sistema. Este estudo requer ativismo, engajamento, no
qual o pesquisador pretenda romper com o formalismo na construção de
ações que ensejem novos caminhos, horizontes, enfim, possibilidades.
Tratar de demandas e matérias urbanísticas requer reflexões e
aberturas que ultrapassam o tecnicismo factual, ao qual grande parte
dos grupos de especialistas em estudos urbanos historicamente tendeu a
recair. Incorporar o urbanismo como terreno de pesquisa num contexto
pós-moderno é ter no escopo do processo, um olhar sobre a Cidade num
viés ideológico (pensamento coletivo constituído) e prático (estratégias
e ações urbanas) permeando temas e problemáticas da vida urbana que
se materializem em um cotidiano de efetivação da cidadania através de
dinâmicas que possibilitem pensar a Cidade de maneira consciente.

Saber que tipo de cidade queremos é uma questão que não


pode ser dissociada de saber que tipo de vínculos sociais,

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relacionamentos com a natureza, estilos de vida, tecnologias


e valores estéticos nós desejamos. O direito à cidade é muito
mais que liberdade individual de ter acesso aos recursos urba-
nos: é um direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade.
Além disso, é um direito coletivo, e não individual, já que essa
transformação depende do exercício de um poder coletivo para
remodelar os processos de urbanização. A liberdade de fazer e
refazer, um dos nossos direitos humanos mais preciosos e ao
mesmo tempo mais negligenciados. (HARVEY, 2014, p. 43)

A competência na análise desse assunto não pode ser abalizada


senão por um viés interdisciplinar, galgando respostas para os entraves
e conflitos humanos urbanos que perpassarem perspectivas diversas. A
luta individual tem-se mostrado ineficaz, o próprio Direito Urbanístico
explicita toda sua ineficiência quando majoritariamente aponta como
ponto central das contendas urbanas, em torno da segregação do espaço,
a relação entre adequados e não adequados de acordo com a classe social
dos indivíduos.

CRÍTICA À CONSTRUÇÃO IDEOLÓGICA DE UMA CIÊNCIA DA


CIDADE

A construção da ideia que o estudo e a aplicação do Direito à Cidade


formulou em torno da contribuição das Ciências Humanas é consenso.
De fato, provém da contribuição de áreas do conhecimento como a
História, Sociologia, Ciências Políticas, Antropologia, Educação e o
Direito as possibilidades metodológicas que enunciaram esse caminho
científico. Porém, cabe a nós avaliar como se deu essa estruturação, que
se afastou de um uma abordagem orgânica e recorreu-se de uma intensa
especialização:

Não se pode pretender que a cidade tenha escapado às pesquisas


dos historiadores, dos economistas, dos demógrafos, dos soci-
ólogos. Cada uma destas especialidades traz sua contribuição
para uma ciência da cidade. Já foi constatado e verificado que
a história permite elucidar a gênese da cidade e sobretudo

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discernir melhor que qualquer outra ciência a problemática


da sociedade urbana(...) É a cidade essa soma de indícios e
de indicações, de variáveis e de parâmetros, de correlações,
essa coleção de fatos, descrições, de análises fragmentantes?
Não falta rigor a essas desocupagens analíticas mas, como
já se disse, o rigor é inabitável. O problema coincide com a
interrogação geral apresentada pelas ciências especializadas.
(LEFREBVRE, 2001, p. 43)

Nessa perspectiva, os especialistas que se propuseram a estudar a


cidade, o fizeram quase sempre sob uma ótica fragmentada, utilizando-se
de suas especificidades acadêmicas formataram análises muitas vezes
fechadas em uma disciplina, o que acabaram por recair em organicismo,
evolucionismo, continuísmo de uma realidade urbana ilusória e parcial,
ou mesmo, cientistas que sem o devido embasamento para sustentar suas
convicções terminaram por produzir generalizações, saindo do parcial
para o global, do direito para o fato.
Por outro lado, está a dinâmica do entendimento universal sobre o
urbanismo, buscando uma saída para as práticas, técnicas e aplicações
eminentemente parciais a prática social nesse caso estaria atrelada a um
olhar global sobre a urbes. Porém surge outro dilema, ao atravessar o
obstáculo do exame fracionário tender-se-ia ao mundo especulativo da
generalização, o que fez surgir, no campo ideológico da construção do
urbanismo, um confronto de ideias em torno de como lidar com as duas
representações1.
Uma ciência reservada às demandas da cidade ainda se estabele-
ce, um plano em que os fundamentos e teorias se encontram em frases
iniciais de desenvolvimento, não pela própria concepção, mas destarte
a própria realidade, prática social também se encontram em formação.
Porém, a maior superação que essa ciência poderia ser de momento vem
1 Ou o urbanista se inspira na prática de conhecimentos parciais que ele aplica ou então ele põe
em ação hipóteses ou projetos ao nível da realidade global. No primeiro caso, a aplicação dos
conhecimentos parciais dá resultados que permitem determinar a importância relativa desses
conhecimentos; esses resultados, mostrando vazios e lacunas, permitem precisar experimen-
talmente, na prática, aquilo que falta. No segundo caso, o fracasso (ou o sucesso) permite
discernir aquilo que elas definem ao nível global (LEFEBVRE, 2001, p. 45).

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sendo alcançada com o combate de sua associação com ideologias que


a limitavam, entendemos que esse limite foi superado.
E é como um novo humanismo que vem essa ultrapassagem, a
assimilação de uma nova práxis e de um novo contexto urbano que
produziu um outro homem social. A superação final de uma sociedade
eminentemente agrária dá origem a um novo subproduto, contextos,
ideias e valores distintos daquela, é da assimilação dessa transição que
surge um terreno fértil para se pensar o “novo urbano” como ressalta
(LEFREBVRE, 2001, p. 98):

Estamos acabando hoje o inventário dos restos de uma socie-


dade milenar na qual campo dominou a cidade, cujas idéias e
“valores”, tabus e prescrições eram em grande parte de origem
agrária, de predomínio rural e “natural”. Esporádicas cidades
apenas emergiam do oceano do campo. A sociedade rural era
(ainda é) a da não abundância, da penúria, da privação aceita
ou repudiada, das proibições que dispunham e regularizavam
as privações. A sociedade rural foi aliás a sociedade da Festa,
mas este aspecto, o melhor deles, não foi retido e é ele que é
preciso ressuscitar e não os mitos e os limites! Observação de-
cisiva: a crise da cidade tradicional acompanha a crise mundial
da civilização agrária, igualmente tradicional.

Os vários profissionais que tentaram inventariar análises marcando


posições anteriores, mesmo globalizantes, sobre as relações sociais, se-
jam eles sociólogos, arquitetos, urbanistas, economistas, historiadores,
políticos ou filósofos, não criaram ou formularam relações sociais, mas
foram nutridos por análises de contextos e tendências sobre as quais de
certa forma puderam tirar lições para a propositura de uma nova ciência
urbanística (LEFEBVRE, 2001, p. 109):

A teoria que se poderia legitimamente chamar “urbanismo”,


que se reuniria às significações da velha prática chamada
“habitar” (isto é, o humano), que acrescentaria a esses fatos
parciais uma teoria geral dos tempos-espaços urbanos, que
indicaria uma nova prática decorrente dessa elaboração, este

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urbanismo existe virtualmente. Só pode ser concebido enquan-


to implicação prática de uma teoria completa da cidade e do
urbano, que supera as cisões e separações atuais. Especialmente
a cisão entre filosofia da cidade e ciência (ou ciências) da
cidade, entre parcial e global. Neste trajeto podem figurar os
projetos urbanísticos atuais, mas apenas através de uma crítica
sem fraquezas de suas implicações ideológicas e estratégicas.

Os desafios das ciências da cidade são dinâmicos, pois a cidade está


viva e em movimento, é fragmentada e não acabada. Essa constatação
nos leva à máxima da construção de uma ciência tomando emprestado
conceitos e métodos de outras ciências2. Admitir a alta complexidade
sobre aquilo que cerca o urbano e que os estudos sobre esse projeto
jamais apresentarão caráter total e finalizado nos transfere uma maior
naturalidade para a pesquisa nesse campo. O não esgotamento do assunto
e o afastamento da tomada deste como uma verdade absoluta possibilita
métodos não menos rigorosos sobre essa “coisa”, conforme (LEFEBVRE,
2001, p. 134).

Descrições, análises, tentativas de síntese não pode nunca


passar por exaustivas ou definitivas. Todas as noções, todas
as baterias de conceitos entrarão em ação: forma, estrutura,
função. Nível, dimensão, variáveis dependentes e independen-
tes, correlações, totalidade, conjunto, sistema etc. Tanto neste
como em outros casos, porém mais do que em outros casos, o
resíduo se revela o mais precioso. Cada “objeto” construído
será por sua vez submetido à verificação experimental. A ci-
ência da cidade exige um período histórico para se construir
e para orientar a prática social.

A base de sustentação de uma formulação científica em torno da


cidade torna necessária a distinção que perpassa, segundo (LEFEBVRE,
p. 47)

2 Como já abordamos anteriormente, poderiam recair em sínteses que tenderiam a superficiali-


dade de uma abordagem geral ou pior, a apresentação analítica de um sistemático olhar sobre
o objeto de maneira estática nos indica que o conhecimento sobre a cidade deve vim através
de uma reconstituição sobre fragmentos. Ver (LEFREBVRE, 2001, p 106-107).

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a. os filósofos e as filosofias da cidade que definem especulativamente


como globalidade ao definir o “homo urbanicus”, na mesma qualidade
do homem em geral, o mundo ou o cosmo, a sociedade, a história;

b. os conhecimentos parciais referentes à cidade (seus elementos, suas


funções e estruturas);

c. as aplicações técnicas desses conhecimentos (um certo contexto: no


quadro geral fixado por decisões estratégicas e políticas);

d. o urbanismo como doutrina, isto é, como ideologia, que interpreta os


conhecimentos parciais, que justifica as aplicações, elevando-as (por
extrapolação) a uma totalidade mal fundamentada ou mal legitimada.

Os estudos urbanos sucumbiram a uma ideologia urbana, a filosofia


da cidade, que encara uma modernidade gestora de uma sociedade que se
superestruturou em torno de uma cidade e da ocupação. As formulações
próprias do urbanismo passaram a ser sinais dessa ideologia, e que peri-
gosamente ao longo de tempos, e não raramente, se apresentaram como
difusoras de ideais higienistas e medidores para justificar segregações
nos espaços urbanos, produto de uma definição estrita de cidade como
locus de redes de circulação e de consumo, como centro de informações
e de decisões, produtos de uma ideologia absoluta que divide-se em
dois aspectos solidários, um de caráter mental, outro social, conforme
(LEFEBVRE, 2001, p. 49):

Mentalmente ela implica uma teoria da racionalidade e da


organização e cuja formulação pode ser datada por volta de
1910, quando de uma mutação da sociedade contemporânea
(começo de uma crise profunda e de tentativas de resolver essa
crise através de métodos de organização primeiro na escala
da empresa, depois em escala global). Socialmente, é então a
noção de espaço que passa para o primeiro plano, relegando
para a penumbra o tempo e o devenir. O urbanismo como ide-
ologia formula todos os problemas da sociedade em questões

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de espaço e transpõe para termos espaciais tudo que provém


da história, da consciência.

Assim, indispensável a crítica tanto no campo teórico quanto prá-


tico, de ideologias que atenderam historicamente a interesses de classes
socioeconômicas dominantes.

O DIREITO À CIDADE

O Direito à cidade surge como uma redefinição do campo das


ciências sociais e posteriormente jurídica de enfrentamento sobre uma
ciência urbana anterior que endossava, através da consolidação de ide-
ologias massivas, a legitimação do controle social, econômico e urbano
das classes dominantes sobre as classes menos favorecidas num contexto
de acumulação pecuniária e segregação espacial.
As premissas de estabelecimento do Direito à cidade foram, de
acordo com (MENDES, 2018, p. 14):

a. O capitalismo se afirma “tomando” as cidades e realizando


movimentos de implosão-explosão que transformam comple-
tamente as realidades das antigas cidades históricas medievais,
comerciais, políticas, etc.; b) As novas aglomerações urbanas
são atravessadas por conflitos político-sociais e grandes
intervenções urbanas são realizadas não só para organizar a
produção, mas para ordenar e disciplinar os corpos sociais que
serão explorados (ex: Paris do séc. XIX); c) O urbanismo como
técnica autônoma, pretensamente neutra e científica, emerge
e nutre uma utopia de completa organização e disciplina do
espaço, apontando para o Estado como o principal protagonista
dessa ordenação; d) além do registro utópico, o urbanismo se
alimenta de um ideário médico-terapêutico que, para Fou-
cault, inventa novas formas de intervenção no espaço urbano
(biopolítica) que são heterogêneas com relação às disciplinas,
preocupando-se com os fluxos e as circulações em seu próprio
movimento; e) Na mesma direção de Foucault, Lefebvre aponta
para passagem do planejamento estatal-burocrático, para um

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planejamento espacial que tem como objetivo o controle dos


fluxos e das mobilidades; f) Esse momento caracteriza a emer-
gência de uma sociedade urbana que promove transformações
espaço- temporais radicais, o espaço se desloca para o centro
da produção capitalista mundial e o tempo as da métrica da
fábrica e devém fluxo e intensidade; g) A sociedade urbana
não se compõe de relações unívocas, mas articula de forma
contraditória o estável (a burocracia) e o efêmero (os fluxos).

É preciso discernir conceitualmente como o Direito a Cidade se


apresenta no campo jurídico e no campo da prática social da vida urba-
na. No primeiro caso, matéria que trata das competências e tutelas legais
em torno do enfrentamento às constantes violações que apontam par/a
um desafio em se estabelecer a efetiva aplicação de normas jurídicas
em situações reais de convívio urbano. No segundo, uma proposta de
investigação em torno das relações de poder que permeiam a gestão
de uma ordem urbana em torno da criação e invenção que confrontam
as dimensões do direito à cidade, neste sentido, aponta (LEFEBVRE,
2001, p. 134):

O Direito à Cidade se manifesta como forma superior dos direi-


tos: direito à liberdade. À individualização na socialização, ao
habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade participante) e
o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade)
estão implicados no direito à cidade.

Cunhado pela primeira vez pelo célebre filósofo francês Henri


Lefebvre, a partir da obra Le Droit à la Ville (1968), o termo “Direito
à Cidade” ditou os termos de sua conferência para a Associação Fran-
cesa de Ciência Politica em 1972. Em sua apresentação foi responsável
por tecer importantes delimitações histórico-políticas sobre a relação
entre capitalismo e espaço urbano (LEFEBVRE, 2016). Referências
primordiais que contribuíram para que se elevasse a status de demanda
política e plataforma de luta dos movimentos sociais a reivindicação
sobre a efetiva ocupação dos espaços urbanos em consonância com
direitos humanos.

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diálogos transdisciplinares em educação

Como intelectual engajado, Lefebvre colocou sua capacidade


analítica a serviço de uma interpretação da historicidade da-
quele 1968 e legou ao mundo uma categoria que, até hoje, é
debatida e sobre a qual se aglutinariam movimentos sociais
em torno de uma utopia acerca de uma forma mais justa de
viver nas cidades. (ALFONSIN, 2018, p. 121)

O capitalismo transformou a realidade das cidades europeias, sub-


metendo os centros comerciais às lógicas produtivas e reprodutivas esse
processo foi decisivo numa afirmação sobre os modos aristocráticos,
corporativos ou comunitários de organização social. A industrialização
se apresentou como grande motor dessa mudança, sobretudo por acelerar,
em torno da instalação dos cenários fabris a proliferação de inúmeras
aglomerações pequenas, médias, periféricas e grandes centros urbanos.
É dessa emergente sociedade urbano industrial que surgem uma
série de novas relações de poder, arranjos estruturais, dinâmicas urbanas
e convívios sociais, todas elas estabelecidas em torno do acesso ou não
aos meios de produção. O espaço urbano, que já se mostrava instrumental,
se desloca para o coração de estratégias econômicas e políticas, para o
centro da produção capitalista. As unidades de produção e a organização
empresarial perdem a sua forma centralizada e se diluem nas múltiplas
atividades, serviços e redes do urbano (MENDES, 2018, p. 12). A discipli-
narização dos indivíduos que compõem o cenário urbano se faz presente
também no constante controle sobre os espaços urbanos, recaindo em
sociedades de disciplina e controle.
No cenário brasileiro a matéria é revestida de grande importância,
pois marca um período de reabertura política após um longo regime
militar marcado pela violação de liberdades sociais fundamentais e
crescimento nos índices de desigualdade social. O Estado brasileiro a
partir da Constituição Federal de 1988 marca a modernização legal e
a consagração de um sistema jurídico que promoveu, de acordo com
(WEIS, 2006, p. 17):

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(...) universalmente os valores fundamentais da dignidade


humana e da justiça social, cujas normas destinam-se não a
cristalizar a exclusão e o privilégio, mas a obrigar os Estados
a voltarem suas ações aos esquecidos, aos marginalizados.

Nossa Carta Magna trouxe em seu escopo a incorporação de normas


do Direito Internacional dos Direitos Humanos as suas mais diversas leis,
o que resultou no surgimento de novos direitos individuais, coletivos
e difusos, e consequentemente na vinculação da obrigação do Estado
em resguardá-los. A projeção de uma nova realidade torna pertinente o
estudo sobre os mais variados conteúdos jurídicos, com destaque para
aqueles que decorrendo das relações entre o direito interno com os sis-
temas internacionais33 de direitos humanos tem um maior impacto sobre
a realidade social em nosso cotidiano.
Diretamente conectada aos Direitos Humanos, essa Constituinte
consolidou um verdadeiro pacto político que se apresentou como estru-
tura central de compromisso, no qual todo cidadão há de ter acesso a
dignidade e justiça social através de condições de dignas de vida urbana.
Confluiu-se em torno desse direito uma série de necessidades individu-
ais, coletivas e de outros interesses no tocante à vivência em torno das
cidades. Assim, coube ao Estado garantir que a efetivação dessa lei ao
proporcionar moradia, saúde, educação, segurança, transporte público,
saneamento, energia elétrica, comunicações4.
O ordenamento relativo aos direitos urbanos transmitiu para as mais
variadas esferas orgânicas suas referências, e tão logo se viu que a luta
pela reforma urbana foi incorporada por Constituições Estaduais, Leis
3 Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgado em 1948; Pacto Internacional sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos
(assinados nas Nações Unidas em 24.01.92, entrando em vigor em 24.4.92, e promulgados
pelos Decretos 591 e 592, de 6.7.92, respectivamente); Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (assinada em São José, Costa Rica, em 22.11.69, aprovada pelo Decreto Legislativo
27, de 26.5.92, tendo o Brasil aderido em 25.9.92, entrando em vigor em 26.5.92, promulgada
pelo Decreto 678, de 6.11.92).
4 Como também garantir que no domínio dos outros interesses, a gestão democrática das cida-
des e a proteção ambiental e cultural. Diante desse novo entendimento, Santos Júnior (2009):
“Nessa concepção de direitos urbanos constava uma clara conexão com o cumprimento da
função social da propriedade. Pretendia-se que o direito a condições de vida urbana digna
condicionasse o exercício do

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diálogos transdisciplinares em educação

Orgânicas e dos planos diretores dos anos 90. Foi nesse percurso que
amadureceu a noção de direito à cidade em nosso país e que recai anos
mais tarde na criação do Estatuto da Cidade. No Brasil o direito à cidade
foi materializado a partir do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), este
explicitando em seu conteúdo propostas vinculadas ao acesso a cidades
sustentáveis, categoria de direito indefinido, geral, e ligado de maneira
efetiva a diversos direitos fundamentais previstos constitucionalmente e
a princípios relacionados ao meio ambiente, à distribuição equitativa dos
benefícios e ônus da urbanização, à justiça social, à gestão democrática
das cidades, entre outros. Sob enfoque do Fórum Nacional da Reforma
Urbana, programa que reúne demandas de organizações e movimentos
criada em 1987 para incentivar a Reforma Urbana no Brasil, o direito à
cidade é entendido como usufruto de um conjunto de direitos de liberda-
de e igualdade (moradia digna, sustentabilidade ambiental, mobilidade,
trabalho, saúde etc.) e está relacionado ao princípio da função social da
cidade e da propriedade, além do princípio da gestão democrática das
cidades (SANTOS JÚNIOR, 2009, p. 134).
Prevista no inciso II do Artigo 2º do Estatuto das Cidades, a gestão
democrática das cidades é um elemento indispensável para se alcançar
uma política urbana voltada a materializar através da legislação diretrizes
que denotem melhor intervenção sobre o espaço urbano através de “ges-
tão democrática por meio da participação da população e de associações
representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação,
execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desen-
volvimento urbano” (BRASIL, 2001).
O processo de criação do Estatuto das cidades foi demorado, tendo
tramitado por longos 10 anos no Congresso Nacional entre os anos de
1989 a 2001, sobretudo pela oposição que esse projeto recebeu de grupos
políticos conservadores.
Nesse contexto que se incorporou ao direito à cidade o princípio do
acesso a cidades sustentáveis, uma premissa que viria a ser resgatada em
muitas Conferências internacionais na década de 2000 e que se tornou
objetivo dos mais relevantes dentro do exercício da política urbana.

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São compreendidos como seus componentes a terra urbana,


moradia, saneamento ambiental, infraestrutura urbana, trans-
porte e os serviços públicos, o trabalho e o lazer. Os elementos
da condição de vida urbana digna que foram transportados da
visão dos direitos urbanos é o que predomina nessa visão do
direito à cidade. (SAULE JR, 2018, p. 45)

Diante da constituição desse novo direito, também foi indispensável


o questionamento de quem seriam os titulares do direito à cidade, aqueles
que se apresentariam tanto como os protagonistas vivenciais quanto po-
los ativos em questões de ordem legal. Baseando na visão adotada pelo
direito ao meio ambiente, foi estabelecido como titulares, as presentes
e futuras gerações.
O pioneirismo brasileiro no tocante à efetivação de uma legislação
nacional que incorporasse o direito à cidade no âmbito legal e institu-
cional influenciou movimentos em torno do Direito à cidade por todo
mundo. A formulação do Estatuto das Cidades não pode ser vista de
maneira isolada, pois foi produto direto de um contexto favorável mais
amplo e de visões progressistas relativos ao tema e que foram pautas
importantes em eventos sediados no Brasil no início da década de 2000,
como os Fóruns Sociais Mundiais realizados na cidade de Porto Alegre.

CONCLUSÃO

Dentre todos os pontos que exigem um olhar mais atento a respeito


do fortalecimento do direito à cidade no Brasil, sem dúvida o ponto crucial
perpassa o entendimento sobre como a cidade deve ser entendida como
um bem comum. Essa concepção se mostra central, mesmo diante das
diferentes contribuições que outras visões e pensamentos possam trazer,
é mister balizar a cidade ao direito do bem viver.
Neste sentido, também auferimos aos direitos urbanos princípios
dos direitos humanos, presentes em diversas declarações e pactos aos
quais o Brasil foi signatário. A vista disso pensar o direito da cidade em
contexto nacional é retornar a proposta de reforma urbana constituída

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ao longo do processo que levou a redemocratização do Brasil na década


de 1980, materializado com a Assembleia Constituinte que produziu a
Constituição Federal de 1988, com destaque para a matéria da histórica
emenda popular de reforma urbana de 1987.
Abordar o tema do Direito à Cidade é ter a compreensão que estamos
inseridos dentro do universo dos direitos humanos que resguardam o Es-
tado Democrático, que por sua vez é produto de históricos movimentos
sociais e políticos que evoluíram em torno da satisfação das demandas
coletivas na constante busca pela solidariedade social. O emergente
contexto de pactos internacionais em torno dos Direitos Humanos e seus
desdobramentos no surgimento de sistemas universais e regionais de
normas e organismos reservados a esta matéria, associado com intensas
dinâmicas oriundas de um processo de globalização econômica e jurídica
destaca a importância no estudo da relação do Estado com os Direitos
Humanos contemporâneos.
Entendemos que lutar pelo direito à cidade é romper com a socie-
dade da indiferença e caminhar para um modo diferencial de produção
do espaço urbano, marcado pelo florescimento e interação igualitária de
diversos ritmos de vida, expressão das diferentes formas de apropriação
do espaço.

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