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140 aan eSiside ACASCAE A GEMA: REUNIAO. O ANSEIO PELO ABSOLUTO EM LAVOURA ARCAICA, DE RaDUAN Nassar’ ‘Aworé Luis Roorioves. Universidade de So Paulo esi Peloras-have © eno dette na abr fundamental le Ran Nass 9 romance Lavwa anave, bsendo compreendert ei ‘lager que nie re exabelecem entre forms conteada, A romance, tuetio du ordem e dx excuse, bem como a de urn suits wusura de fina, presente no enedo,enconts report reunao genes. sora degeneros edo carter ecard estat Koos The aril examines Radar Nasr fundamen work La Brain voura ais, nthe ctenp understand cee latonchips erawe: {stabil beeen orm and content int, The urine oder rove tnd exclsion a5 well as hao he sp sujet, reslve sed goes the reunion which mateiies i srr, trough the mtu of gn nd he clay nr ofthe narrate "tae ensio comesponde a0 cattle 4, “Cuculadade e misters de gnc em Lavoure rca" coe algunas modfiagese alguns cores, de desert de mestrado em Lieatrs ‘slr, apreentats a9 Departamento de Letras Cis e Verncule da Farldade de Fol, ‘eas elena Hmanas da Universidade de Sip Paul, cob a rtentagto do Prof Dr. Aides Celso de Olvera Villas, itiads Unit, cto, rendo em Lvouraaeie, de Radar Naser A pequis conto com onpao da Fapesp. © autor dautorando no Departamento de Leas Casas Vernicolas do FFLCH-USR Ls Bess ease eagon: ei. on dal ox Enos aia de adn osor VA La rbelion le pls tementaie eprine, oadoslement, ipiration wx ne (Alber Camis, homie rl) Toda esrtara poten profundamente determina, cxatamente nos eres de composgto que a iniiam, porum dado mado ce conser © mando (eng its, Nartae ou dese E. Lavoura arcaica a forma ~ incluindo a estrutura circular e a mistura de _gtneros operada pelo escritor no romance ~ pode ser vista como resposta a uma ddas mais importantes questdes que se colocam em seu entedo: a da ordem e da cexclusdo, duas faces de uma mesma moeda, principio da cisdo do sujeito. Se no ‘campo da fabula a reuniao se apresenta apenas como possibilidade ou anseio ~ precéria e funesta, no easo da relaczo entre Andké e Ana; aparente e enganadora, rng caso dorretomno do filho desgarrado; ireslizivel mesma, no caso da relagio com a natureza, ou realizivel apenas através da morte, misteriosa e insondavel, ‘motivo ao mesmo tempo de aracao e pavor~, essa reunido s6 pode se dar, efetiva mente e de maneira duradours, no plano literiri, por melo de uma outta ordem, anisticamente construida, e que no caso de Lavoura arcaicarealiza a tas estreita fasio enue forma e conteido, Paradoxalmente, porém, essa reunio $6 ocorre quando a obra esta profunda- mente vinculada com a vida Essa é a visto de literatura do préprio escritor: “a leicura que mais eu procurava fazer era do livrdo que todos temos diante dos ‘olfos, quero dizer, a vida acontecendo fora des livzos"; “Um texto vale quando sinto nele a vibragio da vida, quando tem cireulagio sangiiines, uh texto com o qual eu possa estabelecer umm minima de interlocucio" * Todas os techos ctados neste ena foram retrados da segunte ecto: Raduan Nass, Lasour aac, 3.4, So Palo, Companhia ds Lets, 158, ® Geo Lula, "Naar ou desrever? Contra ps uinadacasto sre © naturalism € © formaismo",nEnsis sore eratar, Rio dene, Civico easier, 1965 “ Raduon Nasa »Cadewos de Liereara Gracia games 3), Sto Paul, Intute Morir Ses 1896p. 27 "Eis Cestr Bona, "Rafuan crt na Meratera 29 como questo pesoal~ Em enters ‘xcusv, scritr fi da ae de escevere seu abandono", Fea deS Pal, Sto Paulo 39 de mao 1 ee Side Nao se trata de buscar «ragos bingrificos na obra, mas de reconhecer na sua faturaa experiéncia pessoal, em sentido amplo,artisticamente trabalhada etrans- formada numa “sintese poéties” ou “expressto concentrada", para utlizar as pala- vras de Lukics, Para isso, € preciso relletir sobre forma e contesdo, bem como sobre as relagoes entre ambos, Para comecar, pode-se tear entrever 0 tempo ou fs tempos presentes na narrativa Tempo, tempos (a ironia tragica) 0 tempo cero, que todo v8 (Gott Lape Red Mais de um estudioso mostrou que o sermo paterno em Lavoura arcaica tem. tiger nos livros biblice, tanta do Novo como do Velho Testamentos.* Curios ‘mente, porém, nem o Deus cristio nem lahweh sio nomeados naquele discurso. O deus por exceléncia do pai, que tinhe sempre nos sermoes“o relogio de parede a5, suas Costas” e "cada palavra .. ponderada pelo péndulo", & 0 Tempo: “quando 0 ‘avd, com dois dedos no bolo do colete, puxava suavemente o relogio até a palma, deitando, como quem ergue uma prece, 0 olhar calmo sobre as horas..” (Cap. 9, P 60, grifo meu). Fo avo vem aqui bem a propdsito, pois a imagem (pode-se mestno dizer simabolo) mais precisa e mais errivel desse deus encontrase justamente em seu relogio e sua corrente: “a corrente do relogio de bolso desenhtando no peito escuro um brilhante e enorme anzol de ouro” (cap. 7, p. 46). A inexorabllidade do destino materaliza-se assim nesse anzol de owo, a fisgar 0s homens, retirando-os cdo mar tempestuaso mas conhecido da Vide para langi-los no vazio da morte, (0 proprio André nao tem uma visio muito diferente do poder do tempo vai dizer, naquela prece blaslema feta na casa velha, que Cristo mesmo nio fagiv dessa armadiha do destino: “com meus dedos aplicados removerei oanzol de ouro aque Te isgou um dia 2 boca” (cap. 18, p, 104). A diferenca entre a visto do pai edo avo ea de André ndo esti no poder atribuido ao tempo. André parece considers-lo ainda mais terrvel do que supunha 0 pai. Mas, enquanto o pai endeusa o tempo, ‘Andi prefere vé-lo como um deménio: *O tempo, o tempo € versati, o tempo faz diabruras, o tempo brincava comigo..” (ap. 17, p. 95); "0 tempo, © tempo, esse algos as vezes suave, as vezes mais terivel, demonio absolut.” (p. 99) 'No infcio do capitula 29, momentos antes de iniciar a narracio da festa que iria terminar de modo irigico, Andee mostra a inuilidade da luta contra 0 seu poder. Esse largo rio do tempo, que Mlui a despeito do homem, de seus desejos € vontades, © que o proprio Ande jé nomeara destino, val continua indiferente 0 seu curso até cumprit seus designios secretos, No seu proprio Muir jé recebe & catrega, contudo, muito do que so sera perceptivel quando a violencia da corren: * Ve, rte ous eabalos, de Huge Abt, Da Lasoua aralca~ Fortuna ees, nai € interpreta da obra de Raduan Naor, Cait, 1999, Dissertaio (Mestad) ~ Universidade Fetal do Panna ‘rss Romie A.nso 8 ger en. Co pe elem Ln old oon Nese 14 {eza, provocade por um volume excessivo de agua, se abater sobre os homens Essa percepeo seré asim sempre a posteriori e sa dnica vantagem, se hoUvet, seréoconhecimentc do passado. Ha aqut uma sui ioniaiualmente agi: nao ppodemos deixar de nos lembrar do maktub doav6, E como seo nattadordisesse sim, estava escrito, mas ninguém él capae de decfrarosearacteresem que esta ‘seit. E essa itonia prossegue a0 se referic as palavras do pai: ai daquele, cieia 0 pa, cue tenta deter com as maos seu movimento [do tempol: seri constmido por suas guas;aidaquele, sprendzdefiticeiro, que abe a camisa param confonto ‘hs de sucumbir em suas chamas, ue toda mudanca antes de ousar profedr 0 nome, nfo pode ser mais que insinuada" (p. 185). Para o pal, € como se © movi ‘mento do tempo paradoxalmente se desse no sentido de sempre manter as coias ‘no mesmo lugar. Ou entéo um movimento etcular que sempre retorna a0 mesmo lugar Ele nto ¢capaz de imaginar que possa haver um movimento das dguas do tempo que possa trgar a si proprio eas suas leis, bern como a lami intra F a irons enconta-se no fto de que a sua maldigto contra aqueles que tentam deter © movimento do tempo irk resi sobre si mesmo, do mesino mold como ocorre no in das agi, eso i eda por meio de sas aden Ese tempo iabalico de André, um tempo ques utiliza das proprias palavraso pee more Pelabcw) ears dos homens pts inlosno amen Orkin capitol do romance é ambém oreconheciriento irnico da verdad da concepeto do pai sobre ocempo. Esse capitulo, de mimero 30, fecha detintva mente romance eo seu cireulo, fechando igualmente um outo circu, aberto 2atanente no capitulo 15,onde—“em meméria do avd" Andre registava seu “arto tosco que vali por todas as ciciss, por todas a igreas por todos ox sermoes do pal"Maktub’ (Esta escrito). Agora, “em memati do pat (parceidio simbelico?), retoma um techo do sermo paterna do capt 9, tansctevendo-0 Integalmente Mesmo coma enormes diferengas entreesses “dscursos",podemos petceber em ambos a crengafaalisa na inexorabildade do destino, Mas especial. mente no discurso do pai, muma espécie de parodia do maktub do av6, poemos ‘er que ess renga € otmista~ Yo gado sempre vai a pogo" ~no sentido de que nada ir ablar as bases da estrutra familar sob seu comando, O que quer que contra deve ser encarado como obstéculos quc, mais do que levara0s poucos 4 rina da familia ro fortalec-s, rio tornar mais fies 0s lgos que nem o& seus membros. No entanto, nto & sé uma ideologia para uso proprio. Inserida no serio drigido aos filo, tem afungio de mastrar.hes a precaredade de qualquer revolt, de qualquer tentative de mudanca™ 20a REET nat coma cao dese cri, And tre no sal lade do fatalismo, mas 0 paradoxo em cercilo de atimist ¢ 0 equlvoco de ua usisagto politica, iso , vols prs manvieneto da estate falar © do status quo. © tempo ouo destino nto se deixam intelramente utilizar como insu 0 uma fla opsonet de Fre, Bed, Sio Paulo, Guanabira Kogan, s. d. me 144 reo Scnde sant opal as armalhas do destino eG quctemos etn Lavoua tin €o conlronto ene dois tempos: um tempo sng primordial eum outa, itrco, Ocoee qe em nossa sociedad yao tals gar pao prime, pos eee pico das sotedades “primitive Eo que pa rd descobsir urde dra, ao peteeer a mpossbidade de volar para t A totalidade e o fragmento; narracao e meméria £ mut belo o erm paterna cambio, so €,procura concentar nas rates do patrrea odo 0 poder sobre ama, do admiindoaexstenca de ponios de visa diferentes dos seus e que postam conesti-o, alm de sobrepor os inleeses crits individuals os da coltvidade”" Mas igvalente discoro em busa da toaldade, da manstenlo da nit fara ou da re- da fara end, decuso eae quase tao apsixonad quanto o de André ao re. vindia seu gat 4 mesa da fea, E asim como nao € mais possivelrecuperar 2 inidade perdida do homem ragmentado,nio se pode mas rela € mantels mim mundo fechad, alla sslictagoes do mindo extero, Este €= Como o sex proprio tempo = lines aberto, steric, A faa tem com oigem Ina remola urn mundo cil, fechado, mic" Asi como o Indu se Aescobre enpatrado dere da préptia pti, to dentro daa esta abn sc encontraexpatriada" no mundo modern” Por parsdoxal que posea parecer, * Masaud Noss, Diconrio de termes erro, Se, So Fel, Cali, 1988 “Nee Rada Naser ~ Carats ops p23. ‘eer Octo Pas, El aca ali: Mex, Fonda de Cultura Econom " Peuena doar brs da lingua porque, Lhe, Ro de Jane, Cviiaaczo Bes lei, sd "Nex Max Hoctheimer, Theodor Adorao (Org) “Fail, Teas bss da Socal, S80 Paulo, Coli, Eada Untersidade de S30 Paulo, 1973, p37 ‘er eles Bos, Memoria eeoedade emoronas bo, 2, $40 Fala, A, Quer, sp, 1987, 382, Aces Romaus Acoma gena: tia, Dan pn en us a filhoaproximam-se dsse modo noanseoe nostalgia por um tempo perdido, Por uma patria por uma ordem. A diferneaente eles € que o pl, a conto do fino, nt sabe ainda da impossibiidade de tal eenconto,se¢ ue term alge ‘conscencia da propia perdn. Da perspective do tempo presente, o ciclo paerno da layoura ~"A ttt, © tego, 0 po, a mesa, a familia (a tera) existe nese cielo, det © pi nos seus sees, amor trabalho, tempo" ~se mora sem sentido. Nom outro erp, sm tempo mic, ese ciclo teria todo o sentido, jd que a eireulanidade de un coutsponderia & perfeico @ ciulridade do outro. (0 mesmo podese dizer da histria do faminto, que nao seria apenes um cconvite dismal, mas mare tela ntacto seu carter exemplar.) Nao sendo mais esse o caso, tele enn snes postva) da unio eda tocaldade tora-se ca ez mas intransigence transforma em totalarismo, Os eslorgos na manutencae dessa esteulur acca to mundo medeno acsbam por arava sinda mats a iso de cada urn de seus rmenbros, especialmente daqueles do galhoexquerdo, sbretado a de Ande. E «ste 9 pode responder ao cbialiarzmo com a aimacio mais deidida de sua Indidaldadsfagmentada;atotaldade, com a fragmemacao.Aquele que tnsst ‘a oun da familia cle pode opora busca pela unidade de seu ser dividid, Desse modo, o carter fragmentaro da narratva areada por reminictncia; dlalogose fagmenios de dialogs: reptcoes; tempos diverse; captulos que ae alernam; diferentes andamenton) «0 oro caualesoe incontrolivel do dacurse de And Gobretdo no que se refere a0 eaptuls da primeia parte do romanicd) passim nos pela cist daquele que nara, como anim pela neceaidade dese oper ao discusotoalitio do pai" E se este € preggo, aque ¢ recowagan, Assi como o xo do tempo é linda da socisdade na manutengia do sas suo, a recordago liad dos que buscama sua superagio” Aecordariempreendica vor And parte da memsria pura, do sono e do devaneio, sendo asin execicio de iterdade realirmacto de sua individualdade, emborsindacomscente (ou ate mmalsconsciente) da cso muito ditnte da busca da elieiade, de urs paisa cw de um tempo perdi Mesmo quando nos dium “invent” das “coeas dn farsa” que se acumularam na memes, lstando objeto euenslios domestcoe ‘num primero momento, Andeé ess loge de se ulizar da *memornchabite” bergeniana Esesobjeos vio surgindo no capitulo 10 aparencemente sem e- ‘hua order, Na realidade, hs uma rgorosa ouizast (a organsayae da nes sors) que ¢ dada pola analogia entre os objets, através de sua funglo, de seo formato, do seu cntedo, da sua temperatura, de uma cracteisticn qualquer "er Andve Las Rodrigues, Uni, cso, amie Lavoura acca, de Raduan Nassar, Sto alo, 2000, Dseraes (Mesias) ~ Faculdade de Fol, eta e Citnces Humane, Unive Sidade de Sto Pate "Ver Hebert Maree, Ens cil, op .20Is¢ Hens Berson, Matra mera rane sobre reac do corpo com o spre, So Pla Mains Pomes, 1930, p Lise 102, dene cute, 146 ie oie nied uma (p64) No capo 12, Ande prossegu com oven, masse TES Mose ou tao da menor comer aqol tents, tz agre ‘Shu hum ose" Osan quel eam pe tt or ascigbs alga, gus ve apenas tad, ou numa expec de de es nu Sea 8 il, oman mtn aes do ‘vesturio e das vores. © quadro torna-se cena, 0 que era estatico ¢ silencioso (ow Tey Sovimena cpodur raver come gua coaprent ue ands brow IETS ind®Porem ete movimento eho log ces, ead concede neeapasonomstaigare tna eras Aime, €0 movimento SIRI Ge eatn qe cus aig canengo, ques dea ness recor deste cori praesent, isp, das proiboeseeigeeis oe oes cnt jacenamentanndor rages ojos abs cr aden tus pstaram demi due fai gue os mes da fain «adic oscotanmeneprns mena pracomoimagensdaquls wales a0 mpegrse dos aloe dai, prem em iad o que datas em epee Asim do gue selina algo contig Ba que apontma as cbjeosnaemenoago¢ qe hls de sibico srt colmeno oe despa omits socador proves 8 Spnla lade ecavomidas a cance amass motingy, mahucaa; © Bada deca ened mens pcre oe de psa fe “Cou ce do pe bead or ai der attic da mr on tude Corsumbeciengdequeesrsobjse mutes utes agent mids, posse contin contnutogvados og a meri cra rei de Kee nponel dscararse nese dvr dew abies seu poder Ho Camber eles que ae er ue € Maen quemomentoedc onde se Antara oforemente pela, e tmben pla sus tagea dsl, ememora Em oto ems: qual 0 mo tren eo ugar da aa? Na vena, 26 enconrmos no rome alguns wages nana que no ermtam responder defnitraente ats questo, Dene 25S indo, mas genie (uo enn vgs surge no cape BE que tenor no eape pee 0 tempo veil qu coresponde nomalene (Onde eu na aber qu eno er ese ue fais ams, mas mao, mas cheitoso, rma tranquil, me detando mo dots profunds dos esboles ¢ dos cura? que feno era, Sot que sono era ese? = onde es tnha a eabega? mo tenho outa exons nessa ‘mndgsncirs em elo em ge abo jane tenho Smpeos esa 8 ESgUNS QUE ‘ow peguntando eo onde e sem aber 4 quem pega, ecvaco aera sb a uz proce {Brin cla feto um mdrugadrenlouuecido quem espera ras caida da maha se desis ds east do Io weg ese pe descalgo em jejum aarumae bors de peda roma prt. (502), Mas que esclarecimento esse capitulo pode trazer quanto 20 lugar a0 mo: possivel mento da narragao? Na verdade, se considerarmos mesmo esse tempo ‘como o momento da narragio (0 que é muito provavel) a nica *conclusk rs fas Aas 0 um i, ar plc em oo a de Rabon say 47 é quea davida, a angustia,o desconhecimento, a cisko permanecemn no sujeito ou mesino acabaram por recrudescer.A imagem da arrumacio de “blocos de pedra ‘numa prateeira" € muito préxima da de Sisif, a rolar a enorme pedra montanha acima, Ese al esforco nao €inteiramente intl € que podemos ver, com Camus, a positividade da reflexio nos momentos em que desce a montanha, no caso de Sisifo, e @ positividade das interrogagSes que por si 6 se opdem (a despeito das respostas) aideologia, no caso de André Se a diida persiste ou mesmo se agrava, ela é, contudo, um dos motores da propria nar-ativa. Os versos de Jorge de Lima que fazem a epigrale da primeira parle revelam o que a narrativa como um todo parece escamoteat: a questio da culpa. Mais do que uma pergunta, indagagio postica do autor de Invengao de Orfeu (que culpa tereos nés...) pode set visia como uma des-culpa, isto €, decla- ragio da auséncia de culpa. Contudo, se André continua a se interrogar é que & culpa ainda paira sobre sua cabera, como paira sobre tados os que se desculpam, como para igualmente sobre toda a cviizagao judaico-crista, Detodomodo, entrea recordacto ea pregegio, 0 fraginento ea totaidade, isto 6 entre os discursos do filho edo pai, também entre as agdes de André, inluindo as relagdes incestuosas com Ana, eas ages do pai, incluindo sobretudo a e6lera desmedids que o leva a matar a propria filha, podemos ver com Freud, Basle, Adorno ou Girard que 0 reprimido sempre retorna: que a barbie invaravelmente ressurge em meto ao que se queria civilizado; que © dominio da natureza resulta ‘numa submissdo ainda mais profunda as suas imposices; que mais cedo ou mais, tarde a violncia se volta contra # ordem que supostamente queria domé-la, A espiral e 0 circulo: “A partida” e “O retorno’ André sti de casa e volta ela (a prépria historia do filho prodigo é uma historia recortente ¢ além disso, Lula, o cavula,jé se preparava pata repetir os passos do irmaio); 0 pa €o sucessor do av6 e seria sucedido peo filho mais velho, Pedro, que seta pate av um dia, eassim por diante; o trabalho da feria na lavoura mance seno ciclo paterno aque jé fiz alusdo; a fest retorna periodicamente; a fara sai da casa vella para a nova e André ¢ Ana voltam aquela para consumar 0 inceso. ‘Tado isso que no nivel da fabula se liga ao movimento circular tem intimetos cor respondentes na forma mesma do romance: os capitulos iniciaisaltemnam-se e os pares sempre retomam o fio da nartativa,além de pelo menos uma vez um capi- tulo comerar com as mesmas quatro ou cinco linhas que haviam encertado 0 eapi- ‘lo fmpar imediatamente anterior (caps. 7 9); 0 romance & dividido em duas partes: “A partida” e “O tetorno", ue correspondem fuga ¢ ao retomo do filko Drodigo: a marragio da festa na primeira parte retorna na segunda, praticamnente com as mesmas palavtas, excetuando-se 6 tempo verbal (pretérto imperfeto, na rimeira, pretérito pereito, isto & conclulds,acabado, na segunda) eo final inte Tamente diverso; no capitulo 15 (o centro exato do romance) éregistrado 0 maktud ‘em memériado avo, e no 30,0 gado sempre vai aa poco ern meméria do pai (e todo © fragmento “registrado” nesse ultimo capitulo € repetigao,retorno: jé estava no 14 ea Sede capa em melo so emt patena gp cpt 1, as esp da ems Ta movimentscingens celine ania" ema doe ores quando meu no ches ra me Ivar de ls mina aes ne nes eb st Secram corpses eas sbte wc did da fot ole line arama “Srus, dn ort. dope etapa lovenbo a acolhiment a msn que gee we crvands peg ola wo co 330)" se cvter ilar da maa €eseniament po: eames dime de “ago ques er sobre si mest de "um univers autos", no ual "@ fim lm um principe, iso, um mundo Merazamenteordenado que se oye 2 cos do mundo em gue vier’ im protest conta + dear Jo Indo, quest cn apresentarse como orm, e cota a exis que esa ens crdem pret Preuctmo, eve mundo meso, ei ordem ¢ es excislo que sl gue dosem LaowaacaleaAordem pea tudo o que ta fama sia x0 mov tens lular ou dcologin ou desepeada trata de mantengo de una orem oe ne ean mundo de je Deseo pre Salser tga por un movimento ro mas peluoo,omavimeno exp SW denen, data do tempo, sé, Movie que pees ng clclaidade paras ter eo um omad sabre ot homens, quando cls menos tsperam, quand cei qu nae pserdating nem sound, qe ce techado ded © ror de Andre qu parece a0 plo restabelecento ao cielo da favours, do clo das eas que perolcamente se alleram com trabalho, omando-o mals produtv, edo co da sucess oa faa ~ aed cron dea ive dali la ol erie contapania da faa Melhor dzndox quem ftorma€ umm André que, mesmo ‘rucado pl cont mila pe gee ds wots fmt ambem tim utto Andee que vr utes mundo” conheeu outros valores quando da Sus fuga emesto nos momentos qua peceeram, nos bors qu eqaentrs¢ Sobreio no reomoacst vel om if tomo que certo do im dt inn. Esa, uaimentento€ mass mesa dade a fg como amber no ers amenna desde a midanga dan vella pata anora,ou dees ore do te descarao,substiido na chela da andl por um pl sngtnen, sa it neg Mea aS un ee Cee eee Sr rete een fe to omen (in Ensis de sallogia da cultura, Rio Joe, ‘els Rams Aca ea ge erie. os tn Lav oir de Radon Nasa: 149 Desse modo, a fest dada pelo retorn do filho prio (a Piscoa de Andté, tum dos momentos mais intensos e matcantes do liv, earregado de patho, 20 fina do qual 0 pai mata a propria filha ~ momento em que a figuracio desea personegem tio bela eto vivaévetdadeiramente admiral, o que faz autmentat 4 dramatieidade de seu destino) néo seré mais uma festa, masa festa que mostrard 4 fragilidade do ciclo patero, levado de rolddo por umm movimento inexarive ¢ trigleo or exceléncia,o movimento do destine, mito mais terivel do que poderia supor o pariata O secrilcio de Ana e dessa fara, contudo praticamente nao alters os valores a fara contra os quais André sempre se bateu. Qutas familias estarao cera ‘mente cumprindo seus proproscilas, em pontos diversos, mais proximos ou amas cltantes de seu trmino, enquanto outas ainda ir comecé-o, Ou melhor estarBosummprindo a sua volta da espiral. Do mesmo modo como no has rn mundo miico, nao pode mais haver un tempo celica A isto de que a cada volta, a cada elo da espral triacs um ciclo fechado € que as demas vols, os demas elos, nada mas seriam que repetigdes daguela Drimeira essa iio no €contudodesprovidadevazao, Com farsa nas palaveas de Mars - ou nto, «historia multas vezes se epete. Ou entio ela avancs, mas 0 hhomem permanecepratcamente o mesmo, por mais “maquininhas" que iwente Assim, lvespossamis ver esse movimento cama uma imagem da intemporaidade ¢ tunivetsalizagao dos problemas enfentados pela familia e pelo homer: embora seja sempre um novo € um outro homem, eom seu cater proprio e suas pecuba, Fidades,devides ao tempo e ao espago-em gue vive ou viveu ea0 que ha en side singular, ele nunca deixa de ser em esséncia.© mesmo homem. A also a pardbola dbo filhoprédigojparecia indict. O mesmo se pode dizer do desfeche trgice do romance, jéanterirmente anunciado, como em todas a5 tragedias Ea. ‘mente, esse carter universlzant jéestava no proprio titulo do romance, na utlizaco da palara “arcnico" ‘a arkhe € © que vem e est antes de tudo, no comegoe no fim de wido,o fundamento, o finde mortal efmutavel,incorruptivel di todasas colts, que as faz surgi eas governs 3 origem, mas nd com algo ‘que ficou no passade e sim como aguilo que, aqui e agora dé origem a tudo, Perenee permanentemente™ A mistura de géneros: romance, poesia, tragédia Lavoura areaicaé um romance, mas, como essa ¢ uma denominagdo abrangente [por exceléncia (nela tudo cabe), 2 ponto de muitos caractrizarer essa forma como ‘morta ha que se dizer mas alguma coisa sobre esse romance que o singularize, 2 Ver Augusto Mass, Mito Sabino Filo, "A patito pea tteratura- Entrevista de Radean ‘Nasar a Augusto Masi e Maro Sabino Fho",Foka de SFale, Sao Paul, 16 de desenie 1964, Fothet a. $13, p10. "Marlena Chau, todas de, eaters, 1994, © 1,4 tf dos psoralen x Anstteles, So Paul, 150 reve Sede E possivel chamd-lo tanto “prosa poética’ como “romance-litico”, como 0 fez Odtvio de Fara Do mesmo modo, pode mito bem concordar com Leyla Perrone-Moisés, que aficma nfo s6 que alguas trechos ou expitulos sio “verdadeiros poemas em prosa” como que “Lavoura arcaicaé um texto musical, composto como ‘uma sinfonia, cada capitulo correspondendo a um movimento”. ‘Mais do que nomed-lo, pode-se ver que Raduan Nassar construiu um texto em aque prosa, poesia e tragedia se misturam de maneira inexiricivel. Nao se tata do Caratet compésito do romance tradicional, em que o eseritor mesclava cartas, di logos dramaticos,fragmentos de dramas ou dperas, poemas ¢ cangdes, reflexdes| filosoficas e morais, tratacos cientificos e documentos historieos, descrigdes de ambientes e paisagens, tudo aquilo que Bakhtin pode denominar “estilizasbes pars- dias das linguagens de generos".® Nao é também o caso, ou no € somente, do “romance moderna” ¢ da “destealizacao"® promovida pelos escritores do século XX, ao transgredir as "normas” do romance tradicional, o que em multos c350s acabou por levar& normatizacdo da prépria tansgressio, A despeito da utlizagao dde procedimentes tomados aos "modernos", Raduan Nassar esereve um romance ‘com personagens e conta uma determinads histéria, ambientada em determinados fespagos e que transcorre num determinade tempo, embora espaco e tempo munca sejam dados com precisto, Nas palavras de Alfredo Bosi, uma historia com “um. ‘ilcleo dencoe profundo de experigncias vis’. Se ha metalinguagem, ela ésempre disereta, Sel fragmentacao e repetigao, eis nao impossibiitam a compreensto do cenredo, Se hi a utlizagfo de urna linguagem préxima da oralidade, ha também & utlizagao de uma linguagem retricae excessiva (ndo 59 no sermdo paterno), quase Darrocs, o que até paderia ser visto como um certo anacronismo. Se o escritor, ‘enfits, fetoma “estruturas arquetipicas” do homem (como “as de Edipo ou de Electr... as do pecado original, da indivduacio; da partida da casa paterna, da volta do ftho prodigo; de Prometeu, de Tesew no labirinto.."), como também o “tempo mitico”e circular, em que *passado, presente e foturo se identificam”, ca- racteristicas pleas do romance modemo segundo Anatol Rosenfeld,” ele nio deixa de contar a historia desses André, Ana, Lula e Pedto, essa mae, desse pai e dessa faratlia, personagens que sto, cada qual & sia manera, herdis ou anticherdis dessa Jstoia, que se passa num determinado espaco enum determinado tempo. Contudo, Lavoura arcaica nia é um romance tradicional, slheio a0 seu tempo. Trata-se de tama obra que, sem deixar de ser prosa, € poéticaetrigica ao mesmo tempo, como & ‘a0 mesmo tempo una e fragmentiria, citculare espral, mitica e historia.” Leia Prone Mots, Da clr ao sent Radon Naor = Cader.» op. 667 Mila alii, "0 scan no romance” Quate deleeraturee deca A weots Jo romance, Je, S40 Paulo, ute, Une, 1985, >. 9. Ve Anatol Roseaed, “Refleces sere o mance modern", TewfContexo, 4d, $0 Paulo, Perspectivg, 1999. dem bide. 82:30. 2 Ver Caos Tavees,"Tavoura sce ama Viger par dence da mrt = Cede. op. tp. 88. Raden Neier ot Us faaces Acoma ca gume mie. ce pb ch am on rac, alan Nase 151 (© que caracterizaa obra de Raduan Nassar € 2 recusa de toda e qualquer férmula a utilizagao de tudo 0 que Ihe pareceu ull acs seus objetivos. O resultada é um. romance que, sendo inteiramente novo, nio deix: de dever muitoa toda. experiencia de vida do autor ea suaexperiéncia de eitura tanto dos modemnos come de literatura ‘mais antiga, sem desconsiderar suas leitras de flosofa e direto, Provavelmente, mais do que uma idéia preconcebida e depois colocada em pritca, « mistura de sgneros em Lavoura arcaica parece surgir de umaposturadiante da vida que aborina 1 exclusio, os valotesestabelecidos einquestioniveis, a idolavia, a mluficagao, bem. ‘como as receltas de qualquer tipo e de onde quer que provenham, 0 inicio do romance ¢ talvez © melhor ponto de patida para falar da poesia em Lavoura Arcaica: (Os hes no tet, ‘ner dene do quate 9 quo ¢ noe © ques e indies Cam mind, ‘quan cated, nde nor intervals ds angi cle, fe um espero cle, a palma da mo, 1 oon brea do desespero, pos eaze es objets que o quart consagrs {suo primeto os objeto do corpo, Obviamente, nZo ¢a disposicto de sintagmns ou Irases em linhas distintas © 0 fato de passarmos a chamé-los versos o que faz que reconhegamos estar diante de Jum poema, Essa redistribuigdo dos sintagmas e oragbes, se é lito faze-lo, so tem como finalidade permitic urna melhor visualizeea0 dos recursos verdadeiramente ppoéticos empregados pelo escritor em sua prosa. Para além da sonoridade (as aliteragdes, assonancias e paronomésias) « das repetigoes, esa inguagem é essen- cialmente poética em seu ritmo. Mais do que possiveis versos, a divisie procurot localizar unidades ritmicas e de sentido. Ou melhor dizendo, unidades ritmicas aque sto também unidades de sentido. E essa un'dade assim obtida expressaa visio de mundo do autor Inmeros outros exemplos poderiam ser dedos: ‘obra meu corpo de fll, detado a sombva, ew dormia na posure ques de uma planta ‘enfe vega a peso de um bot vermelha (B13) ‘onde en a cabeca? qu eno er ese que fsa cama, mals mci, mais heros, mas trangio, me deitando no dose protundo dos estos «doe car? (p. 50) ‘quant sonoléncia, quanto torpor, quanto psidele ness adslesctnca que lous Branca, ‘qe po atmo, que campo cdo, ave cor delete, que pests nai alos, que lances ‘ai logos, qe legis mas moles plangendo meu soopo ndokseente! (p72) 1 naterez logo fzendo de mim seu fio, sbrindo us gordo bas, me borfndo com @ frescor do seu serene, me enol nut lencl dels, me tomando kite mening a set regsca (p19) 12 lea Side ae culpa ems nis ders plana da iltnci,d su sed, dese vo cons? que folpa tenon nes se mas Juamcnt agidas ple vrs fatal dos algae desmedioe? que Culpa temos nds etnias (ols teras escondam a haste bids desta ram? (130) Esse lirisma estd profundamente arraigado na trama do romance. Se 0 que Ange busca éaunidade perdida, o paraiso de que foi expulso um diao lirismo 20 ‘mesmo tempo corrobora essa busca de certo modo jéreaiza 0 seu objetivo.™ A polissemla,apluraidade de sentido da linguagem poétiea em Lavoura araica ¢ ilurinacio por parte daquele qu: tem os olhos escuros, ¢ € assim busca de superagto do maniquetsmo e da lirguage referencial do pensamento suposta mente esclarecido, que 20 eleger um ico significado possivel exclui todos os demas, como exclui a contradicao eo paradoxo ® A despeito da aparente prolixi- dade, do que ha nela de excessivo e “batroco",s linguagem do romance € concen trada ap extremo. Cada palavra est: carregada de sentido, além de apontar para ‘uma multiplicidade de sentidos possveis, a que corresponde a muluplicidade das leituras do romance. Mais uma respostaideologia dominante que finge ou encena a existéncia de uma s6 verdade, Essa mesmo a malor mentia: ndo s0 cada um de ‘nbs tem a sua verdade, como nés mssmos ~ Legiao~ somos muitos Assim como a recordagzo opoe-se a0 fluxo linear do tempo, o catster litico poético da narrativa op8e-se a ideobgia™ e também a retérica, do mesmo modo como a busca da superagio das ditincias opoe-se as relagoes medistas (que a ‘deologia apenas finge serem i-mediatas)™ Se nto se pode dizer que Lavouraarcaica seja um poema, também nao faz sen tido nomed-lo tragédia, Rigorosamente falando, a tragédia nao dura mais que um século.® Contudo, podemos dizer que Lavouraarcaica € um romance trgic, 30 58 porque a morte da filha pelas mios do patiarca é um acontecimenta trigico por exceléncia, mas sobretudo porque hauma ativude trgica como ha uma atiude lirica, fazendo que elementos caracterizadores do trigico se encontrem entranhados no romance tanto quanto elementos lircos, ‘Além disso, aquela alirmacao sobre a tragédia nfo implica que o trigico no ais se manifeste entre nds. Ao relle' a respeito das considerag6es de Marx sobre. ‘os motivos pelos quais os “produtos” a arte mais antiga permanecem vivo, Vernant afta que o drama antigo Ver El Sager, Conceptos fndametls de potica, Made, Ediciones Ril, 1965, e Octavio as El ao lair op cl ® Ver bax Herkimer, Teo 28, Rio de Jane, Jonge Zaha, 1985, er Otto Maia Cxrpeaux, "Poesia esa, ix Orgs it~ Enis, Rio de Jano, CEB, 1993p. 345 Aled Bos, Poesaresstenca" nO ser atop da poesia, io Pal, ules, 19969. 146. Nex El Sisiger, Conceptos andanaesde psig, op. cp 19. Ver Jean-ee Verant, Pierre Vida-Naque, Mie etrageda na Grécle Ange JH, S80 Paolo, Pepe, 1999.7 ‘Alome, Dice do elarecimentfapmentcs fos tts eas eso 00 gn rin. O x po hat em os ra de on Nos 153 desu 0 Jog de forgscontrauore 2 ue 0 homer es submetio, pos toda socedad, tod alta, da mesma forma que a greg, implica tensiese conlites, Des fora a apein prope ao espectdor uma imerogian de alcane geal sbre a condio humana, es ents, 5 finite necesita El tax consgo, na sts mir, ua epi de saber mao eave ess lg lien que preside & onde de nasa vides de homem (p19) [Nio se deve igualmente desconsiderar ofato de que a “inspiragio” para acom- pposigio do romance pode tambem ter origem na leitura dos trigieos gregos, sem conta’ as origens mediterraneas (mesmo que muito distantes daquelas da tragédia) de Raduan Nassar €o “convivio com o Mediterrineo” que havia em sua cidade na- ‘al, Pindorama> Ainda segundo Vernant, o surgimento da tragédia € simultane so do pens ‘mento juridico (noo direto acabacio, mas um direto que se constitu histoicamen ‘e, € assim um direto ainda ambiguo, que oscila de um polo a outo) e de um ppensanento propriamente politico em oposig4o ao pensamento religioso, tibutario «daantiga crenga nos mitosertos da época herbica, Dessa ambigiidade eoscilacio, jJjuntamente coma irona trigica,€ que participa Lavoura arcaica. A primeira inscre. ‘ve-se mesmo no processo de composi¢do do romanee, na confusio entre os persona~ gens (entre Ana e 2 mie, entre Ana e Lula, entre © proprio André Lula), nas revelayoes que mats ocultam que eselarecem (a relagio com a cabra; a relagdo com © irméo mais novo; a propria relagao incestuosa com a irma; o desejo de morte ea ‘opsto pelo suicidio, depois substituido pela fuga; a freza ou suposta fieza diante ‘da merte da irms); no didlogo entre André e o pai, em que as palavras assumem significados distintos e mesmo opostos (como a palavra ome), no cariter de André «dems personagens (no pai que, apaixonado, amaldigoa as paixées; no filho que © coniesta, mas que utiliza a tazio patena, com toda a sua promiscuidade, na tentativa da “eternizacao” da relacdo incestvosa com a irmd; nesta, caracterizada Por urna passividade de pomba ow de anjo que se transforma na atividade de uma serpente ou demdnio; na mde ene amor materno, causa de destruigdo e morte), S30 essus ambiguidades todas que caracterizam uma composigao eujo processo pode ser nomeado de sugestao, de descobrirfencobrindo, ou ainda de velaridesvlar/evelar>* E quasealeatoriamente que podemos retirar rases dos estudos de Vernant sobre ‘ ambiguidade (e também sobre a tensao e a ironia) na tragédia para confirmar a ‘manifestagdo do trigico em Lavouraaraica, A titulo de exemplo, vejamos este trecho. (dara oga com ela a ambigaidde| pare tradi si vis tigica de um mado vidio contra st mes, diacerado pels contndioes As pulvas ocalas m9 epace ce em ver de etabelser a comunieacio ¢o acodo ene a ptsonagensublicha, so onus,» Impermesbiidde ds espe eo bogus do araceres ratcam a ares ‘que sepaam os potagoisus, desenham slits de conto Cala hea, ech a enrese ‘ue he propio pli um seni eum, Asia untraidade choca se lestente dla Van Steen, “Raduan Naser” lene com in Vver 6 esceve, Feta Alege, LSP, 192,621». 2656 Ver Ande Ls Rogues, Unido, ceo, reno em Lavour rc, eRaduan Nass “54 oe Safe ‘uma our uniateaiade Anis gia poled consi em mostrar como, no decore da (ro. o bess encanta Heralmente "pepo m alve’, uma pala qe e ola conta ele trncndohe a anga cxpentncla do senado que ele we obtnava em edo sconheces (p. 734) [Nao ha como ndo ver Edipo nessa “descricao” ou qualquer outro herd tragico, ‘como Agamenon ou Crevuis: Mas € igualmiente dificil deisar aqui de reconbecer © pai de Lavoura areaica, como também nao hé como no ver naquela “impermea- bilidade” o se relacionamento com o filko. "Ao ttatar do tempo, jé comentamas a xoniatrigica que se esconde no Sermo paterno e nas palavras do pai ionia ao dizer que s6 na familia € que cada um poderia prolongar a sua existéncis, palavias daquele que vai por suas mios fazer ‘cessat a da propria filha ironia 20 exigircalma, paciéncia, moderacto, exigencia daquele que vai agir do modo mais fuirinante. Pode-se igualmente apontar 0 crgulho do pattarca,o seu cultivo do excesso, por mais que pregasse a moderacao, bbem como a veemente e apaixonada condenacao da palxio e a cegueira daquele ue cré0 tempo todo cultivar a luz e repel as trevas. Se “a personagem trigica se constitu na distancia que separa daimon de ethos" isto é, uma potncia doalém de ‘um cariter que se forma.® é também ai que se configuram o discurso ¢ o erto do pal, O tempo € 0 seu daimon, assim como era o do av9. No entanto, 0 contratio deste, 0 pai acredita no livee-arbittio e na culpa. Por iso todos os seus esforcos, todas os seus sermoes, todo 0 seu discurse, E a0 mesmo tempo todo 0 seu orgulho, a hybris que o levaré a ruina Forma: contetido (Reuniio) ‘As diversas declaragbes de Raduan Nassar de que s6 se pode fazer literatura levando-se em conta a experiéncia de vida do escrtor podem ser contrapostas aos seus comentitios acidos e provocadores a respeito da literatura ¢ 20 abandon esse oficio pouco depois da publicacéc de Um copo de colera. Tria o escritor deixado de acreditarna literatura mesma como demonstrava ter ha muito perdido 4 “crenca” na maior parte dos escritores, para nao falar da critica, a quem ele ‘nunca parece ter dado crédito? Teriadeisada de buscar o absoluto? Em Lavoura arcaicaa buscs ¢ exatamente essa Se nao era mais um adolescente 40 escrever o romance, ceramente projeton em André, como também em outros [personagens, o seu desejo de absoluto, de unidade, de ordem, de reunito, isto €, a recusa de toda e qualquer exclusto, As ambiguidades todas, sugesides, encobri- 'mentos¢ misturas podem ser compreendidos como respostasa esse anseio. Porém, a resposta mais vital € — através da mistura dos gneros no romance e de sua ‘circularidade — a forma que se fez contetdo ou, o que dé no mesmo, o contesdo {que se-Tez forma, mesmo que por oposicio ou por complementaridade. O caréter ™ Jean-Pee Vernan, ier Vidal Nsguet, Mao erage ne Gre Aga Fel, op et. 1S en, us Rawnss as. e0 gem, ano pel as en oe cen de Raton Naser 155 fragmentirio da narrativa apenas aponta para a cisio do sujeit,afragmentagdo do hhomem e de suas experigncias de vida, enquanto a reunifo desses fragmentos na ‘composicio do romance materializa a unidade perdida ea interminavel busea dessa tunidade, Essa a maior vitude da obra e quic4 seu limite extremo, limie que talvez passa ser expresso por meio de uma indagagio paradoxal:concratizar acomplenude, ‘mesmo no nivel formal, nao é realizar 0 que ¢ j irtealizavel? ‘Essa busca Reduan Nassar a empreendeu ao longo de toda a sua produgéo liecira,relatvamente pequena em extensio, mas com qualidades que inquietaramn 4 muitos, tendo inclusive duas de suas obras sido levadas as telas com étimos resultados, sobretudo Lavouraarcaica num belissimo filme de Luiz Fernando Car- valho. Um copo de colera e "Menina a caminho™ sio dois exemplos de que a circularidade € uma das obsessoes do autor. A imagem de recolhimento ao ventre ‘materno, ques liga estreltamente ao movimento circular, ¢ outta delas,literalmen- te presente na novela e sugerida no conto, na menina pobre que, curiosa, contem- pla no espelho a propria vagina. E é também o circulo, imagem por exceléncia da tnidade sem arestas, que surge na recorréncia de temas e motivos na obra como ‘um todo; 2 Infancia paradisiaca; 0 amor e o carinho matemnes, responsaveis em grande medida por esse paraso, gerendo paradoxalmente morte e destruigla; ppaixdo que se transforma em frieza e indiferengs; a impossiblidade de mutua compreensao entze dots seres € os espasmos caudalosos em que se transforma ‘mondlogos plenos de painio; a nudex como respostae desafio a ordem estabelecida; ‘vanseio pea fusdo com a terrae o papel dos pés nesse anseio, na sexualidade e no erotsto etc et, Assim, as alinidades entre a novela eo romance ow entre a novela {cum conto. Um copo de céleraaproxima-se em muitos aspectos de Layoura arcaica (especialmente naquele jorre do discurso do chacareiro que tem tantas afinidades comode André) e muito maisde “O ventre seco", assim come Lavoura, porestranho ‘que pareca, pode ser aproximada de “Ai pelas ies da tarde”, pela exclusio anunciada © pela atitude que o narrador sugere ao seu suposte interlocutor ou ouvinte, odes- das roupas das convengSes sociais, numa nudez que nao irdferir © decora, seu decoro, estd claro”, A recorréncia ¢ também das referencias biblicas ¢ alcoranicas: Um copo de célera tem como epigrfe, do mesmo modo que a segunda parte de Lavoura, uma passagem do Alcor: “Ninguém dirige aquele que Deus ‘exirvia". E por mais que muitos entrevistadores lhe enham perguntado (e sugerido) seo titulo da novela teria como origem os versos de Jonge de Lima que Ihe sto tz0 ‘caros ("Ha sempre um copo de mar/para um homem navegar”),a0 que ele pareceu concordar, penso que o titulo tem também origem biblica. Se recarréncias de todos (0s tipos estio obviamente presentes em qualquer escitor, penso que em Raduan Nassar elas se ligam sempre 20 anseio pelos retornos, > Todas a ciaoese referenda sobre a novela ¢ os contos pont ds sepuintes eicbes adaan Nossa, Um copo de clr, Sed, Sto Paula, Cmmpashia ds Letras, 1992, « Meni camino ets ees, S80 Paula, Companhia da Let, 1897

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