Você está na página 1de 129

TEORIAS E SISTEMAS

PSICOLÓGICOS II

autora
ROZILIANE OESTERREICH DE FREITAS

1ª edição
SESES
rio de janeiro  2018
Conselho editorial  roberto paes e gisele lima

Autora do original  roziliane oesterreich de freitas

Projeto editorial  roberto paes

Coordenação de produção  gisele lima, paula r. de a. machado e aline karina


rabello

Projeto gráfico  paulo vitor bastos

Diagramação  bfs media

Revisão linguística  bfs media

Revisão de conteúdo  rodrigo diaz de vivar y soler

Imagem de capa  axel bueckert | shutterstock.com

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida
por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em
qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Copyright seses, 2018.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

F866t Freitas, Roziliane Oesterreich de


Teorias e sistemas psicológicos II / Roziliane Oesterreich de Freitas.
Rio de Janeiro : SESES, 2018.
136 p: il.

isbn: 978-85-5548-561-9.

1. Psicanálise. 2. Inconsciente. 3. Sexualidade. 4. Pulsional. I. SESES.


II. Estácio.
cdd 150.1

Diretoria de Ensino — Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido — Rio de Janeiro — rj — cep 20261-063
Sumário
Prefácio 5

1. Freud e a psicanálise 7
Introdução 9
Antes do século XVII 10
Freud, a medicina e a histeria 13

2. A descoberta freudiana: o inconsciente 33


Primeira tópica freudiana: inconsciente, consciente e pré-consciência 34
Segunda tópica freudiana: Isso, Eu e Supereu 47

3. A interpretação dos sonhos 55


O sonho 56

Duas afirmações de Freud 59

Dois registros do sonho 59

Elaboração onírica e Interpretação 60

Os quatro mecanismos fundamentais do trabalho do sonho 61


Condensação 61
Deslocamento, verschiebung. 61
Figuração 62
Elaboração secundária 62

Sobredeterminação e superinterpretação 63

A injeção de Irma: relato de um sonho de Freud 64

A realização de desejos 70

O sonho e os sistemas Pcs/Cs e Ics 72

A concepção evolutiva do aparelho psíquico 74


4. O discurso da pulsão: os três ensaios sobre
a sexualidade 79
A elaboração de uma teoria da sexualidade 80

Perversos e polimorfos 82

A sexualidade infantil 84
A interdição como fundamento da sexualidade humana 85

O autoerotismo e as características da sexualidade infantil 85


Zonas erógenas e pulsões parciais 88

As fases de organização da libido 90

A fase oral 90

A fase anal-sádica 92

A fase fálica 93

O Complexo de Édipo e o complexo de castração 93

As transformações da puberdade 93

A teoria da libido 95

5. Pulsão, representação e desejo 101


Conceitos metapsicológicos 102

O conceito de pulsão 104

Fonte (quelle) 109

Pressão (drang) 111

Objetivo (ziel) 111

Objeto (objekt) 112

Pulsões do ego e pulsões sexuais 113

Os destinos da pulsão 115

Pulsões de vida e pulsão de morte 120


Prefácio

Prezados(as) alunos(as),

Os estudos que você encontrará neste livro fazem parte do eixo estruturante
de fundamentos teóricos (epistemológicos) e históricos que compõem as discipli-
nas de Teorias e Sistemas Psicológicos I, III, IV. Essas disciplinas têm por objetivo
introduzir as diferentes linhas de pensamento em psicologia. E assim, proporcio-
nar a você uma visão geral dos principais eixos teóricos e práticos que constituem
as principais abordagens da psicologia. Ao tratarmos da psicanálise, é importante
saber que seus fundamentos orientam-se diretamente às ênfases do curso, ou seja,
o que irá encontrar neste livro formará o entendimento dos processos clínicos e
dos processos de prevenção e promoção da saúde.
Em Freud e a Psicanálise você irá explorar os principais eixos da teoria psicana-
lítica de Sigmund Freud, como a prática clínica foi construindo a teoria psicana-
lítica. Começará estudando a metapsicologia freudiana, que consiste em entender
como Freud partiu de um projeto que se pretendia científico e com a descoberta
do inconsciente refaz sua teoria sobre o trauma, abandona a hipnose e entende
que o conflito neurótico está relacionado à sexualidade. Cuidado com este ponto!
Sexualidade para a psicanálise não se reduz à vida sexual das pessoas. Veremos o
que isso significa ao longo deste livro.
Se você entender no que consiste a hipótese do inconsciente, será capaz de de-
senhar a topologia psíquica e construir a compreensão do funcionamento psíqui-
co. Composta pelos sistemas inconsciente e pré-consciente⁄consciente, o primeiro
tópico fornece os alicerces para entendermos que o tema da sexualidade para a
psicanálise é gerador da vida pulsional. Você se surpreenderá com o conceito de
pulsão, e entenderá que quando falamos de instinto, não nos referimos ao que
é pulsional no seu todo e, sim, num primitivo aspecto – ponto fundamental na
teoria pulsional. E assim, você poderá alcançar o entendimento do que seja de-
manda e desejo, dois importantes conceitos psicanalíticos porque sustentam o que
se entende em psicanálise como posição do sujeito. Em cada capítulo deste livro,
os conceitos se articulam um com o outro, e assim terá cumprido com o objetivo
de entendimento do que seja a psicanálise. E assim, poderá se aventurar na leitura
dos pós-freudianos, como Jacques Lacan, Melanie Klein, Winnicott e outros.

Bons estudos!

5
1
Freud e a
psicanálise
Freud e a psicanálise
©© MAX HALBERSTADT | WIKIMEDIA.ORG

Sigismund Schlomo Freud, mais


conhecido como Sigmund Freud, foi
um médico neurologista criador da psi-
canálise. Freud nasceu em uma família
judaica, em Freiberg in Mähren, na épo-
ca pertencente ao Império Austríaco.

Nascimento: 6 de maio de 1856, Příbor,


República Checa.

Falecimento: 23 de setembro de 1939,


Hampstead, Reino Unido.

Wikipedia

Para começar os estudos sobre psicanálise, é imprescindível voltar ao tempo


que antecede seu surgimento. Por isso, os acontecimentos, as descobertas e inves-
tigações que antecederam o que constituiu o método psicanalítico serão apresen-
tados neste capítulo.
Você verá como um fenômeno, no sentido de um conjunto de manifestações
que marcaram o comportamento do final do século XIX, foi capaz de revolucionar
os princípios da medicina da época renovando o espírito investigativo. No en-
tanto, essa movimentação gerou oposições e enfrentamentos que Sigmund Freud
soube retroceder por um lado e avançar por outro.
Você entenderá também que a histeria, que surge como um sintoma da época,
já tinha tido seus trágicos desfechos na idade média. E nos tempos de Freud, foi a
partir das manifestações histéricas que uma teoria da neurose foi sendo construída.
Mas o que a histeria tem a ver com a neurose? Para esta pergunta, uma resposta
será encontrada ao longo desde capítulo.

capítulo 1 •8
OBJETIVOS
•  A psicanálise enquanto prática clínica e teoria. Resumo da vida e da obra de Sigmund Freud;
•  Freud, a medicina e a histeria. A hipótese e o método catártico. Uma hipótese psicogênica
para o sintoma histérico;
•  O recalque (Verdrangung) como mecanismo de defesa responsável pela formação do sin-
toma na histeria. A hipótese da existência de processos psíquicos inconscientes. O abandono
da hipnose e a resistência. O recalque e os destinos da pulsão.

Introdução

Você deve ter escutado nas discussões sobre o surgimento da psicanálise que
o texto Estudos sobre a Histeria, escrito entre 1893 e 1895, constituiu o primei-
ro texto freudiano de cunho psicanalítico. Foi um estudo que exigiu de Freud e
de Breuer, seu maior colaborador na época, pelo menos dois anos de dedicação
em um período de intensa produção e no intermeio de dois outros estudos: a
Comunicação Preliminar (1893) e a Psicoterapia da Histeria (1895).
Para que você entenda o contexto social e histórico em que se delinearam estes
estudos e as descobertas, terá que voltar para o passado, aos anos finais do século
XIX. Naquele final de século, a Europa é varrida por uma epidemia: a grande
maioria das mulheres de diferentes classes sociais apresentava uma série de estra-
nhos sintomas:
•  Convulsões que simulam epilepsia;
•  Falas delirantes;
•  Paralisias em regiões do corpo que não eram explicadas pela neurologia;
•  Alterações de sensibilidade de fala;
•  Situações de nudismo;
•  Alterações de visões, entre outros.

Neste período, esses quadros clínicos já eram atendidos nas clínicas e nos hos-
pitais, ao contrário de séculos anteriores quando essas mulheres eram interrogadas
pela inquisição e classificadas de bruxas. Durante a Idade Média, morreram apro-
ximadamente 50 mil delas por terem um “pacto com o demônio”.

capítulo 1 •9
Freud, a partir do atendimento das mulheres que apresentavam esses quadros
clínicos, esboçou uma teoria do inconsciente e construiu o que seria depois a psi-
canálise. Relatando os casos de cinco pacientes, especialmente o da célebre Anna
O. Freud e Breuer argumentaram que os histéricos sofrem por haverem sufocado a
memória dos eventos que originaram a doença. É preciso, então, trazer à luz esses
traumas, inicialmente por meio da hipnose. Mas, como isso não funcionava com
alguns pacientes, Freud passa a recorrer à associação livre tornando seu método
ainda mais complexo.
Vamos retomar o decorrer dessas descobertas para que você possa entender
como a presença de um sofrimento na sociedade responde pela forma como a
mesma entende seu momento.
©© WIKIMEDIA.ORG

Josef Breuer: Nasceu em Viena em 1842. Médico e fisiolo-


gista, suas obras lançaram as bases da psicanálise.
Fonte: Wikipedia

Antes do século XVII

Neste período, a humanidade não tinha ainda concebido a ideia de louco


como uma entidade diferenciada. O que se tem, nessa época, é a consciência da
diferença entre o louco e o não louco. Tinha-se então uma diferença que servia
como uma denúncia da loucura, mas não uma definição que justificasse sua es-
pecificidade e suas formas de aparição. Foi o filósofo francês Renée Descartes que
elaborou um entendimento inicial, gerando não somente um conceito de loucura,
mas uma visão do mundo que impõe o irredutível. E antecipo para você que esta
visão percorre ainda os dias atuais.

capítulo 1 • 10
René Descartes: filósofo e matemático fran-
©© WIKIMEDIA.ORG
cês da Idade Moderna. Também era conheci-
do por seu nome latino Renatus Cartesius. Foi
influenciado especialmente por Aristóteles,
Platão e Tomás de Aquino. Nasceu em 31 de
março de 1596, Descartes, França. Faleceu
em 11 de fevereiro de 1650 em Estocolmo,
Suécia.
Fonte: Wikipedia

PERGUNTA
O que significa uma visão do mundo que impõe o irredutível?
Significa uma visão em que os termos razão-desrazão impõem uma oposição. Era funda-
mental naquele momento que se estivesse de um lado ou de outro. E não poderia mais haver
lugar para a dúvida.

LEITURA
Sugere-se que você leia sobre a dúvida como pressuposto da certeza filosófica de Des-
cartes que, como visto, formulou as bases deste entendimento. Para lembrá-lo, Renée Des-
cartes é o filósofo do Cogito. Ergo sum: Penso. Logo existo.

Muito mais a visão cartesiana da loucura se ateve a pensar quando acreditou


que a loucura não atingia o pensamento, mas apenas o homem. Não havia, segun-
do Descartes, um pensamento louco. Loucura e pensamento eram dois termos
que podiam ser definidos por exclusão, pois o pensamento era aquilo que, por ser
regulado pela razão, opunha-se à loucura. O homem pode ficar louco, o pensamento
não. Ficar louco implica exatamente a perda da racionalidade.

capítulo 1 • 11
É essa linha de raciocínio que construiu no século XVII a consciência da lou-
cura: se o que distingue o homem do animal é a racionalidade, o louco identifica-se
com o animal. Por isso as práticas de dominação da loucura, durante muito tempo,
adquiriram características muito semelhantes às empregadas para se dominar um
animal. Loucura, além de desrazão — ou precisamente por isso — é furor. Surge,
então, a consciência dos seus modos de aparição.
Você verá que essa proposta lançada à consciência fez a loucura emergir como
objeto do saber e não apenas como diferença a ser segregada e asilada. E que
produzir o saber sobre a loucura termina por produzir a própria loucura, no sen-
tido de que não é descobrir uma realidade oculta que se apresentava e que não se
conseguia identificar as causas; era sim produzir o saber sobre a loucura. É nesse
sentido que Foucault diz que a loucura é uma produção do século XVIII, por meio
dos seus saberes, das suas práticas, das suas instituições. E que o louco é o efeito da
convergência de, principalmente, duas séries: a série asilar e a série médica.
Eis aí um ponto interessante e que exige de nós, nesse caso, a nós professores
e alunos, aprofundarmos o conhecimento a respeito, servindo-nos de leituras fun-
damentais como: A História da Loucura, de Michael Foucault. E sugere-se tam-
bém pesquisar o significado cunhado por Deleuze de efeito do agenciamento entre
essas duas séries.
Não pense que estes estudos farão você entender que a loucura propriamente
dita não exista; significa, sim, entender que o conceito de loucura foi fabricado, e
sua grande fábrica foi o hospital e o grande artesão foi o psiquiatra, como dizem
os pensadores dedicados a investigar as formas de racionalização. Foucault disse
o seguinte:

O hospital do século XVIII devia criar as condições para que a verdade do mal explodis-
se. Donde um lugar de observação e demonstração, mas também de purificação e de
prova. Constituía uma espécie de aparelhagem complexa que devia ao mesmo tempo
fazer aparecer e produzir realmente a doença. Lugar botânico para a contemplação
das espécies, lugar ainda alquímico para a elaboração das substâncias patológicas.
(FOUCAULT, 1979)

capítulo 1 • 12
©© WIKIMEDIA.ORG
Michel Foucault: Nascido em Poitiers, França em
1926, foi filósofo, historiador das ideias, teórico social,
filólogo e crítico literário.
Fonte: Wikipedia

No entendimento de Foucault, com o saber psiquiátrico, a produção da lou-


cura acabou criando não somente um conjunto de práticas de dominação e con-
trole, como a elaboração de um saber. O saber, nesse caso, não funcionava no
sentido de encontrar alguma razão que explicasse porque o homem enlouquecia,
mas de apontar quem era louco e quem não era. Nesse sentido que o diagnóstico
psiquiátrico era absoluto e verdadeiro e não tinha a intenção de ser um diagnós-
tico diferencial.
O louco passou a ser interrogado, já que não apresentava uma doença no cor-
po, tinha que encontrar alguma pista hereditária, localizada na família do louco.
O fator hereditário por lembranças infantis desencadeadoras da doença mental.
Entretanto, o saber obtido pelo interrogatório tornou-se insuficiente e não tinha
nenhum valor terapêutico; funcionava apenas como prova de verdade, conduzin-
do o paciente ao reconhecimento de sua própria loucura.

Freud, a medicina e a histeria

Um autor que conta toda a evolução do pensamento de Freud é Luiz Alfredo


Garcia-Roza no livro Freud e o inconsciente. Na página 25 ele diz o seguinte:

Se epistemologicamente a psicanálise pode ser apresentada como uma teoria e uma


prática que rompe com a psiquiatria, a neurologia e a psicologia do século XIX, do
ponto de vista arqueológico, ela pode ser apresentada como o efeito de uma série de
articulações entre saberes e práticas que constituíram o solo histórico que possibilitou
sua emergência.

capítulo 1 • 13
MULTIMÍDIA
Freud – Além da alma (1962), do dire-
©© WIKIMEDIA.ORG

tor John Huston, retrata como as teorias freu-


dianas esboçam a própria vida do criador da
psicanálise. O filme se passa no ano de 1885
e é fundamentado no roteiro escrito pelo fi-
lósofo Jean-Paul Sartre (que não consta nos
créditos do filme). Enquanto a maioria dos
médicos da época se recusa a tratar a histeria
acreditando tratar-se de simulação, Sigmund
Freud (Montgomery Clift) faz avanços usan-
do a hipnose. Sua principal paciente é uma
jovem (Susannah York) que não bebe água e
é atormentada diariamente pelo mesmo pe-
sadelo. Huston conseguiu articular as desco-
bertas de Freud com as próprias experiências
pessoais do psicanalista como, por exemplo,
a teoria sobre o Complexo de Édipo com base
na relação com o seu pai morto.
Fonte: Wikipedia

Garcia-Roza está nos dizendo que o caminho percorrido por Freud conjugou
teoria e prática, ou seja, a psicanálise se constituiu como efeito de uma série de
articulações entre saberes e práticas. Seus textos eram respostas de estudos e inves-
tigação clínica, desde os primeiros artigos, quando pretendia construir o enten-
dimento do que seria o psiquismo como uma ciência explicativa da mente, que
resultou na publicação do Projeto. Sabemos que a proposta emblemática do Projeto
despertou Freud para outro estudo, o qual consagrou a constituição do mecanis-
mo mental e o método analítico. Sobre isso você estudará no próximo capítulo.
Voltando ao século XIX, você verá que o esforço da psiquiatria ainda estava
voltado a encontrar um critério seguro para distinguir a loucura da simulação.
Afinal, o psiquiatra era capaz de identificar a loucura, mas não sabia o que ela era;

capítulo 1 • 14
sua relação com o louco era uma relação de exclusão: Sei que não sou louco e sei
quem é louco, mas não sei o que é a loucura.
Esse “não saber” sobre a loucura gerou um ambiente muito arriscado para as
histéricas de Freud. A ideia de que as histéricas simulam seus sintomas as coloca-
vam muito vulneráveis a serem vistas como loucas. Voltaremos a este ponto.
E assim passamos por longo período de tentativas de compreensão da
loucura propiciada por elementos químicos, ervas, drogas e ópio, como é o caso
de Moreau de Tours com seus experimentos sobre o haxixe. Dizem que Freud
também empreendeu esforços deste tipo, mas não se tem certeza absoluta a res-
peito desta tentativa de produzir os mesmos sintomas da loucura e poder retornar
ao estado normal, adquirindo dessa forma um saber direto sobre a loucura e não
indireto como o obtido pela observação do outro ou pelo interrogatório. Foi algo
como acreditar que a loucura poderia ser produzida experimentalmente.
O estudioso Moreau de Tours não sossegou e arriscou com sucesso em anun-
ciar que haveria fundo homogêneo ao normal e ao patológico que não precisava
ser produzido artificialmente porque o encontramos em nós mesmos cada vez que
sonhamos.
Veja as conclusões de Moreau:

O sonho reproduz as mesmas características da loucura. O sonho é a loucura do indi-


víduo adormecido enquanto os loucos são sonhadores acordados.

E imagine o quanto essas conclusões contribuíram com o fato de Freud fazer


disso um princípio de análise.
Mas, antes de chegarmos à interpretação dos sonhos, tema do próximo capí-
tulo, voltaremos ao que antecedeu o início da psicanálise, ou seja, os estudos sobre
a hipnose.
©© WIKIMEDIA.ORG

Jacques-Joseph Moreau: Nascido na França em 1804 foi


o primeiro psiquiatra a fazer um trabalho sistemático com o
efeito das drogas no sistema nervoso central.

Fonte: Wikipedia

Figura 1.1  –  Jacques-Joseph Moreau. França – 1804 / 1884.

capítulo 1 • 15
A hipnose

Como você entende a seguinte afirmação? A hipnose foi precedida historica-


mente pelo mesmerismo. Não sei se você percebeu que temos nesta afirmação dois
conceitos e que se constitui um pelo outro. Ou seja, o que significa hipnose se
esclarece por meio do que se faz entendido no mesmerismo.
Primeiro, então, o pressuposto por Anton Mesmer, doutor em medicina pela
Universidade de Viena, de que os seres animados eram sujeitos às influências mag-
néticas porque os corpos, dos animais e do homem eram dotados das mesmas
propriedades que o ímã. Mesmer experimentou clinicamente a eficácia do mag-
netismo e substituiu o ímã, que era usado para fins terapêuticos, pelo seu próprio
corpo. Acreditou que não havia necessidade de ímãs, bastando o contato de sua
mão para que o efeito terapêutico fosse alcançado, o que lhe atribuiu muito êxito
e reconhecimento.
Você sabia que Anton Mesmer propunha a magnetização em grupo e, para
isso, colocava várias pessoas dentro de uma tina com água, magnetizando-as em
conjunto, para que o fluido magnético que se espalhava pela tina atingisse todos
os que nela se encontravam mergulhados?
Essa técnica se popularizou como fluidismo e foi condenada pela comunidade
científica da época que levou às ultimas consequências suas decisões (muito às
cegas) chegando a condenar Mesmer ao charlatanismo.
Veja só o que contém nas alegações condenativas de Mesmer: A conclusão da
comissão foi que não existia nenhum fluido magnético e que a cura se dava por efeito
da imaginação.
©© WIKIMEDIA.ORG

Franz Anton Mesmer: Nasceu em 1734, Suábia, Ale-


manha – Médico, advogado, linguista e músico. Fundador
do mesmerismo.

Fonte: Wikipedia

capítulo 1 • 16
Ou seja, o efeito de sugestão, que atribuiu o fator charlatanismo à terapêutica
do mesmerismo vai se constituir no princípio da técnica hipnótica empregada
inicialmente por Freud.
Com isso, abandonam o mesmerismo e, a partir da metade do século XIX,
surge a hipnose como uma nova técnica, que inventada por James Braid, ficou du-
rante muito tempo conhecida por braidismo. Nessa nova técnica, o efeito obtido
depende apenas do estado físico e psíquico do paciente. E quando obtido o efeito
hipnótico, o médico exerce todo o poder e passa a dispor inteiramente do corpo
do paciente. O psiquiatra passa a dispor de um controle sobre a mente e sobre o
corpo do doente e esse domínio sobre o corpo permite tanto a eliminação de sin-
tomas como a domesticação do comportamento.
É a domesticação do comportamento reforçada pelos estudos neurológicos
que chamará a atenção de Charcot. Ele ficará atento ao fato de que a existência
ou não de lesão anatômica relativa a determinados sintomas compunha, para a
psiquiatria do século XIX, um fator de extrema importância.

A anatomia patológica começava a ser vista, nessa época, como o único meio de in-
clusão da medicina no campo das ciências exatas, sendo esperado do médico que
suas investigações clínicas fossem acompanhadas por investigações anatomopatoló-
gicas que oferecessem, ao nível do corpo, a lesão referente aos distúrbios observados.
(GARCIA-ROZA, p. 35, 2005)

É nesta época que se formam dois grandes grupos de doenças: aquelas com
uma sintomatologia regular e que remetiam a lesões orgânicas identificáveis pela
anatomia patológica, e aquelas outras – as neuroses – que eram perturbações sem
lesão e nas quais a sintomatologia não apresentava a regularidade desejada. No
início, Charcot entendeu o problema da histeria com essa visão de um correlato
orgânico das suas manifestações, e posteriormente, modifica seu ponto de vista ao
afirmar que a histeria é, como tantas outras esfinges, uma doença que escapa às
mais penetrantes investigações anatômicas. (LEVIN, 1980)
No entanto, veja bem o que salientou Charcot: Apesar da ausência de um refe-
rencial anatômico, a histeria apresenta uma sintomatologia bem definida, obedecendo
a regras precisas.

capítulo 1 • 17
ATENÇÃO
Essa conclusão a que chega Charcot é importante porque lhe permite afastar a hipótese
de simulação – o grande fantasma da psiquiatria do século XIX.
©© WIKIMEDIA.ORG

Jean-Martin Charcot: Nasceu em 1825, Paris, Fran-


ça. Médico e cientista, junto a Guillaume Duchenne
fundou a neurologia moderna.

Fonte: Wikipedia

Garcia-Roza (1983) e tantos outros historiadores do processo de constituição


do campo psicanalítico reconhecem que, ao produzir a separação da histeria com
respeito à anatomia patológica, Charcot a introduziu no campo das perturbações
fisiológicas do sistema nervoso, e assim abriu campo para novas formas de inter-
venção clínica, dentre as quais a hipnose se constituiu a mais importante.

CURIOSIDADE
Você sabia que um dos aspectos mais importantes salientados, tanto por Charcot como
por Freud, nesse período, era o fato de que a histeria não era uma simulação, que ela era
uma doença funcional com um conjunto de sintomas bem definido e na qual a simulação
desempenhava um papel desprezível?
O empenho maior era apresentar uma sintomatologia regular para a histeria, e assim in-
cluí-la no campo das doenças neurológicas e livrar os histéricos de serem identificados como
loucos. O lugar do histérico deveria ser o hospital e não o asilo.

Além disso, outro ponto enfatizado por eles foi o de que a histeria era tanto
uma doença feminina como masculina, desfazendo dessa forma a ideia de que
apenas as mulheres padeciam de manifestações histéricas (como sugeria o próprio
termo histeria, que deriva da palavra grega hystéra, que significa útero).
No sexto capítulo do livro Histeria, de Alonso e Fuks, você encontrará um en-
tendimento a respeito da histeria nos homens, uma explicação muito interessante

capítulo 1 • 18
do motivo pelo qual não se fala até hoje sobre o assunto, além de a leitura levá-lo
a entender as formas de manifestações histéricas nos homens.
Foi o fator sugestivo da terapêutica hipnótica que colocou em dúvida os as-
pectos de sintomatologia bem definida e regular da histeria, já que o médico po-
dia obter um conjunto de sintomas por meio de seu poder de sugestão sobre
o paciente.
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 1.2  –  Charcot demonstrando a hipnose em uma paciente histérica, no Hospital da


Salpétrière ou Pitié-Salpétrière (em francês, Hôpital de la Salpétrière), em Paris, na França.
Freud permaneceu por quatro meses entre 1885-1886 acompanhando Charcot, encontra-
va-se na época fortemente interessado em hipnose e tinha abordado o grande mestre, com
o objetivo de melhorar a sua própria técnica.

Para superar esse impasse Charcot elaborou a teoria do trauma, conduzindo a


uma terapêutica hipnótica idêntica ao desempenhado na situação traumática, com
a diferença apenas de não ser o estado traumático permanente.
O que aconteceu foi surpreendente para as pesquisas da época. O fato de que
o trauma em questão não é de ordem física, gerou a necessidade de o paciente
narrar sua história pessoal para que o médico pudesse, então, localizar o momento
traumático responsável pela histeria.

capítulo 1 • 19
Leia o que diz Garcia-Roza no livro Freud e o inconsciente:

O que Charcot não esperava era que dessas narrativas surgissem sistematicamen-
te histórias cujo componente sexual desempenhasse um papel preponderante. Es-
tava selado o pacto entre a histeria e a sexualidade; pacto esse que foi recusado por
Charcot e que se transformou em ponto de partida e núcleo central da investigação
freudiana.

Foi assim que Freud partiu para a construção da teoria do trauma psíquico. O
que não durou muito tempo, pois logo percebeu que, se ficasse sustentando uma
terapêutica fundamentada no trauma e na ab-reação, conforme Joseph Breuer
havia desenvolvido e acreditado em seu potencial catártico e libertador, não avan-
çaria na elaboração de uma teoria psicanalítica que repercutisse sua experiência
clínica.
Se Freud tivesse persistido na teoria do trauma, os aspectos da sexualidade
infantil e do Édipo não poderiam fazer sua entrada em cena, porque no trauma os
sintomas neuróticos permanecem dependentes de um acontecimento traumático
real que os produziu, e isso não é o que acontece nas fantasias edipianas da criança.
O entendimento do sofrimento por meio do trauma poderia eliminar o sintoma,
mas não conseguiria remover a causa. Então, Freud tenta encontrar uma solução e
propõe que empregasse o método elaborado por Joseph Breuer, que consistia em
fazer o paciente remontar, sob efeito hipnótico, à pré-história psíquica da doença
a fim de que fosse possível localizar o acontecimento traumático que originou o
distúrbio.
Você encontrará o estudo empreendido por Freud a respeito disso no texto
de 1896, ESB, (sigla para a tradução da obra psicológica completa de Freud, ofe-
recida pela Editora Imago). É neste mesmo volume que Freud publicou o artigo
Um caso de cura pelo hipnotismo, em 1892, e que mostrará como a influência de
Breuer é bem maior do que a de Charcot. Outro ponto interessante se deu no ano
seguinte quando Freud publicou com Breuer o texto Sobre o mecanismo psíquico
dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar, que foi transformado no primei-
ro capítulo dos Estudos sobre a histeria, e contém o caso clínico que de Anna O.
(Bertha Pappenheim), a paciente de Breuer. Na época em que Breuer se dedicou
ao tratamento de Anna O., a pedido do pai desta que, na época, era seu paciente.
A jovem Anna O. apresentava uma série de sintomas histéricos enquanto se dedi-
cava a cuidar do pai.

capítulo 1 • 20
Nesta época, Freud estava se formando em medicina e todo o seu interes-
se estava voltado para os estudos sobre anatomia do sistema nervoso. E, cinco
anos mais tarde, viajou para Paris onde assistiu aos cursos dados por Charcot
na Salpétrière.
©© BAUFLE PASCAL | WIKIMEDIA.ORG

Figura 1.3  –  Hospital Salpétrière-Pitié.

Voltando ao caso da paciente de Breuer, você verá mais adiante, em


Sexualidade, que o mesmo tornou-se emblemático por incidir nos campos da
transferência e contratransferência.
Para entender a abrangência desse caso, assista ao filme Freud além da Alma,
filmado em 1962, do diretor John Huston.
Breuer submeteu Anna O. à hipnose e verificou que os sintomas desapareciam
sempre que o acontecimento traumático que estava ligado a ele era reproduzido
sob hipnose. Foram dois anos de tratamento quando todos os sintomas de Anna
O. pareciam ter desaparecido. Quando Breuer narrou o caso a Freud, este ficou
tão impressionado que, em uma de suas viagens a Paris para o encontro com
Charcot, contou para o mesmo. Mas o fato não chamou a atenção de Charcot, e
Freud resolveu não pensar mais no assunto. Quando retorna de Paris para Viena
inicia o tratamento de Frau Emmy von N., e resolve aplicar a técnica de investiga-
ção pela hipnose, bem como Breuer vinha fazendo.
O referido o método “catártico”, (de kátharsis = purgação), que ocorria duran-
te o tratamento era uma “purgação” ou uma descarga do afeto que originalmente
estava ligado à experiência traumática. O paciente sob hipnose era conduzido, por

capítulo 1 • 21
sugestão, ao seu passado, com a intenção de que ele próprio encontrasse o fato
traumático e sob “ab-reação” liberasse a carga de afeto.
Veja só: Freud acrescenta uma novidade à técnica empregada por Breuer, qual
seja: em vez de manter-se passivo diante da torrente de fatos narrados pela sua
paciente não procurando influenciá-la em nada, mas apenas esperando que ela
própria chegasse às suas retenções e produzisse a ab-reação, Freud passou a empre-
gar a sugestão diretamente como meio terapêutico.
Freud assim o fez por entender que assim chegaria aos fatos traumáticos, tal
como fazia Breuer, porém, fazendo uso da sugestão poderia eliminá-los ou pelo
menos debilitar sua força patogênica.

Defesa psíquica

Os estudos de Freud prosseguiram ao ponto de descobrir novos entendimen-


tos. Um desses entendimentos que se tornou fundamental na elaboração da teoria
psicanalítica foi a noção de defesa. Porém, provocou o afastamento de Breuer – o
que nos leva a pensar que Freud não somente se valeu das reações de suas pa-
cientes, mas também as questões que apareciam para o próprio analista. Entre a
Comunicação preliminar, de 1893 e os Estudos sobre a histeria, 1895, Freud publi-
cou o artigo As neuropsicoses de defesa (1894), no qual seu afastamento de Breuer e
de seus contemporâneos se manifestou de forma acentuada.
Veja bem: a noção de defesa foi lançada no artigo de 1893, mas o termo defesa
iria aparecer somente no artigo de 1894, acompanhado de uma elaboração mais
completa a respeito.
Algo importante de observar é que Freud só teve pleno acesso ao fenômeno da
defesa quando abandonou a técnica da hipnose. Todos os indícios que poderiam
ter-lhe sugerido a existência de algo ficavam vedados pelo próprio método que
empregava, e esses indícios só se transformariam em evidência após o abandono
desse método.
Assim, sem que Freud soubesse, o procedimento hipnótico tinha se tornado
um obstáculo ao fenômeno que iria ser um dos pilares da teoria psicanalítica, ou
seja, a defesa. Mais tarde Freud atribuirá a este termo o conceito de recalcamento
– “pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise”, dirá Freud.
E acrescentará que o recalcamento, como a parte mais essencial da psicanálise,
nada mais é senão uma formulação teórica a respeito de um fenômeno que somen-
te pode ser observado quando em análise, sem que se recorra à hipnose.

capítulo 1 • 22
Quando se recorre à hipnose, Freud entendeu que nos deparamos com uma
resistência que se opõe ao trabalho de análise e, a fim de frustrá-lo, alegava falha
de memória. O uso da hipnose ocultava essa resistência.
É a partir dessa nova técnica que dispensa a hipnose que inicia a história da
psicanálise propriamente dita. É quando Freud abandona a hipnose e entende que
seus pacientes precisam valer-se da lembrança do fato traumático, causador dos
sintomas, que se depara com o fator resistência, tanto a respeito de sua insistência
quanto dos esforços do paciente em lembrar. A resistência impedia que as ideias
patogênicas se tornassem conscientes.
Freud, então, se lançou na investigação da natureza dessas ideias e o motivo
pelo qual geravam resistência.
Você verá, estudando o percurso freudiano por meio de seus textos, que ele
chegou à conclusão de que todas essas ideias eram de natureza aflitiva, capazes de
despertar emoções de vergonha, de autocensura e de dor psíquica. “De tudo isso
surgia, como que automaticamente, a ideia de defesa”, dirá (ESB, v. II, p. 19).
Portanto, a defesa aparece como uma forma de censura por parte do ego do pa-
ciente, forçando a ideia ameaçadora a manter-se fora da consciência; e a resistência
como o sinal externo dessa defesa. O mecanismo pelo qual a carga de afeto que se
encontra ligada a essa ideia, ou conjunto de ideias, será transformada em sintomas
somáticos. Eis o conceito de conversão definido por Freud.
Veja bem, não podemos pensar que os termos defesa e recalcamento sejam
sinônimos, apesar de, na época em que Freud publica o estudo As Neuropsicoses
de Defesa, eles foram quase que identificados como sendo o mesmo. Defesa é um
termo mais amplo que designa, em sua primeira acepção, o mecanismo pelo qual
o ego se protege de uma representação desagradável e ameaçadora. Recalcamento
(ou recalque) está ligado a uma conceituação mais precisa de vez que apenas par-
cialmente pode ser tomado como sinônimo de defesa.

Resistência, defesa e conversão

Freud entende que a própria concepção de terapia deveria ser modificada, que
seu objetivo não poderia mais consistir simplesmente em produzir a ab-reação do
afeto, mas em tornar conscientes as ideias patogênicas e possibilitar a elaboração.
E é nesse momento que começa a se operar a passagem do método catártico para
o método psicanalítico.

capítulo 1 • 23
Freud não se contentava com generalizações decorrentes de suas observações
clínicas e, por isso, mesmo nos seus trabalhos iniciais, veremos seu esforço em
fornecer um modelo teórico que conferisse inteligibilidade às suas descobertas.
Ou seja, suas descobertas geravam transformações reais nos pressupostos teóricos.
E foi essa forma que consagrou o campo analítico como resultado da pesquisa
clínica.
Um exemplo disso, você obtém com a noção de defesa como concepção que se
desenvolve na medida em que Freud vai ampliando seu entendimento do funcio-
namento do aparelho psíquico que, embora só fosse desenvolvido em seu projeto,
encontrava-se implícito nos trabalhos anteriores.

A sexualidade

Voltamos aos Estudos sobre a histeria. Lembram-se do estudo de caso de Breuer,


a paciente Anna O.?
Quando Breuer narrou para Freud a história de sua paciente, não narrou a
história completa; o final foi cuidadosamente ocultado. Nos estudos sobre a histe-
ria, Breuer termina a exposição do caso de Anna O. dizendo que a mesma se en-
contrava liberta de seus sintomas e determina o término do tratamento conforme
o desejo de sua paciente em encerrá-lo na data em que completaria um ano que
ela teria mudado para uma casa de campo nos arredores de Viena por questões de
segurança. Isso foi visto por Breuer como fator de lucidez, pois Anna morava num
terceiro andar e tinha impulsos suicidas.
No entanto, todas as explicações escondem o verdadeiro motivo que le-
vou Breuer dar o caso por encerrado. Aquilo que o motivou foi um fenôme-
no que, apesar de ser hoje em dia bastante conhecido, impossibilitou Breuer de
continuar a relação terapêutica com Anna O.: o fenômeno da transferência e da
contratransferência.
O interesse de Breuer pela sua paciente era vivido por ele como sendo de cará-
ter puramente clínico e científico, e o fato de falar nela com uma frequência acima
do comum não lhe parecia indício de nenhum envolvimento emocional, mas sim
desse interesse “neutro” que deveria existir na relação médico-paciente.
Essa não era, porém, a maneira como a mulher de Breuer vivia a situação.
Cansada de ouvir o marido falar apenas em sua paciente, ela se tornou triste e
ciumenta. Quando Breuer percebeu o que estava se passando, ficou extrema-
mente embaraçado e resolveu encerrar rapidamente o tratamento. A decisão foi

capítulo 1 • 24
comunicada a Anna O. e o caso foi dado por terminado. Nesse mesmo dia, Breuer
foi chamado com urgência à casa de Anna O., que se encontrava numa de suas
piores crises. A paciente apresentava contrações abdominais de uma crise de par-
to histérica e nesse momento teria dito a Breuer: Agora chega o filho de Breuer.
Muito chocado com o fato, Breuer hipnotizou-a e ela saiu da crise. No dia seguin-
te, Breuer e sua mulher viajaram de férias para Veneza.
O que havia escapado a Breuer, até então, era exatamente esse componente
sexual que havia estado presente o tempo todo na sua relação com Anna O., mas
que era rejeitado por ambos. Segundo o relato que fez de sua paciente, ela era uma
pessoa assexual e que nunca, durante o tratamento, havia feito alusões a questões
sexuais. Quando a evidência do fato se tornou irrecusável, Breuer abandonou-a
horrorizado e fugiu. Nesse momento, segundo Freud, Breuer deixou cair a chave
que poderia decifrar o grande segredo oculto das neuroses. Anos mais tarde, Freud
comenta que, se dependesse dos Estudos sobre a histeria, a importância concedida
à sexualidade na etiologia das neuroses seria praticamente nula ou, pelo menos,
bastante secundária.
O sucedido com Breuer, aliado às experiências de Charcot, na Salpétrière sobre
o componente sexual do comportamento das histéricas, tomou proporção com o co-
mentário de Chroback segundo o qual o remédio a ser receitado para uma histérica
deveria ser Penis normalis (FREUD, ESB, v. XIV, p. 24). Freud, atendo-se ao aconte-
cido e ao comentário da época, com sua experiência clínica foi impulsionado a criar
a hipótese de que não era qualquer espécie de excitação emocional que se encontrava
por trás dos sintomas neuróticos, mas sobretudo uma excitação de natureza sexual
e conflitiva. A importância concedida à sexualidade, tanto para a compreensão da
neurose como para a compreensão do indivíduo normal, torna-se cada vez mais
central em Freud, tendo sido este um dos motivos de seu rompimento com Breuer.
Freud, o sexólogo. Assim ele foi visto pelos seus contemporâneos e assim ele
ainda é visto mesmo por aqueles para quem a psicanálise é algo mais do que
informação erudita. Para muitos, Freud foi aquele que descobriu a sexualidade,
sobretudo aquele que descobriu a sexualidade infantil. E não há nada mais falso
do que isso. Na verdade, a sexualidade já era bastante tematizada pela medicina,
pela psiquiatria, pela pedagogia e por vários campos de discurso no século XIX.
Hoje sabemos que o fator originalidade da obra de Freud não está em des-
cobrir a sexualidade sob a neurose. A sexualidade já tinha sido apontada por
Charcot. Freud foi original por tomar isto ao pé da letra e a partir daí edificar um
entendimento diferente da etiologia sexual das neuroses.

capítulo 1 • 25
O recalcamento

O recalcamento, verdrängung em alemão, é um dos mais importantes concei-


tos na construção da metapsicologia freudiana. Freud, em A História do Movimento
Psicanalítico, em que reúne textos de sua metapsicologia, declarou que o recalca-
mento é o pilar fundamental sobre o qual descansa o edifício da psicanálise; muitos
autores traduziram o recalcamento como a pedra angular da psicanálise. O termo
em alemão não se encontra livre de problemas terminológicos no que se refere à
sua tradução. Por exemplo, em francês, o termo utilizado é refoulement; em inglês:
repression; em espanhol: represión e, em português, encontramos três referências à
tradução do termo, a saber: repressão, recalque e recalcamento.
No Vocabulário de Psicanálise, de Jean Laplanche e J-B. Pontalis, você encon-
trará os termos recalque e recalcamento. Quanto ao termo repressão refere-se a uma
ação que é exercida sobre alguém, a partir da exterioridade; enquanto que recalque
designa aquele que seria um processo intrínseco ao próprio eu. Por isso, o termo
que mais corresponde ao sentido proposto por Freud como correspondente a um
processo interno, seria recalque ou recalcamento. No entanto, devemos ter em
mente que embora o processo seja interno, não prescinde de forma alguma dos
acontecimentos externos pelos quais passa o sujeito ao longo da sua vida. E os
aspectos externos ao sujeito seriam representados pela censura e pela lei.
A história nos conta que foi Johann Friedrich Herbart quem mais se aproxi-
mou da "verdrängung" como concepção freudiana. Estudioso de Kant e Leibniz,
Herbart pertenceu a uma linha de pensamento que o aproximou de Freud. Em
suas obras, publicadas no séc. XIX, Herbart entendeu a representação (vorstellung)
como um elemento constituinte da vida anímica, que se adquire por meio dos
sentidos. Ele considerava o conflito entre as representações o princípio fundamen-
tal do dinamismo psíquico e estava ligado aos sentidos e à vida anímica. Não era
assim que Freud entendia as representações, ele irá dizer que elas se constituem
como ideia, como pensamento.
Entre estes dois autores havia um consenso, pois diziam que as representações
tornadas inconscientes, pelo efeito do recalcamento, não foram destruídas nem
tiveram sua força reduzida, mas sim, enquanto inconscientes, permaneceriam ba-
talhando para se tornar conscientes.

capítulo 1 • 26
Ao longo do percurso histórico, Herbart irá exercer grande influência sobre
Meynert, que fora professor de Freud. Mas, embora existam esses pontos de con-
fluência, o próprio Freud afirmou que a teoria do recalcamento, por ele construí-
da, estaria na ordem de uma total novidade, nada existindo até então nas teorias
sobre a vida anímica. Tanto isso é verdade que não encontraremos uma só citação
de Freud quanto ao nome de Herbart em toda a sua obra. As referidas semelhanças
foram citadas por Ernst Jones e James Strachey.
O que dá para considerar é que muito embora haja pontos de semelhança, as
duas teorias não podem ser tomadas como unívocas pontualmente. Em nenhum
momento Herbart fizera como Freud o fez, o qual considera o processo do recalca-
mento como sendo o responsável pela clivagem do psiquismo em duas instâncias
psíquicas: o sistema inconsciente e o sistema pré-consciente–consciente. Herbart
também não propôs estruturas e modos de funcionamento diferentes para cada
uma delas. Herbart não propôs uma teoria do inconsciente, tendo permanecido
mais propriamente dentro dos limites de uma psicologia da consciência.
Como você pode ver, a verdrängung está presente desde os primeiros escritos
de Freud, mas quando se defronta com o fenômeno clínico da resistência é que
realmente o conceito de recalcamento começa efetivamente a se delinear. A re-
sistência foi interpretada por Freud como sendo um sinal externo de uma defesa
(abwer), com o intuito de que se mantivesse fora da consciência a ideia ameaçado-
ra. Note-se que a defesa é exercida pelo Eu sobre um conjunto de representações
que despertariam sentimentos de vergonha e dor. É sabido que o termo defesa foi
empregado mais no sentido de designar uma proteção contra uma excitação pro-
veniente de uma fonte interna (pulsões).
No período imediatamente anterior a traumdeutung, Freud já se encontra de
posse das noções de resistência, defesa e conversão, e isso o conduziu a modificar
a sua própria concepção em relação ao aspecto psicoterápico psicanalítico. Sua
meta terapêutica já não poderia se sustentar em produzir a ab-reação do afeto,
mas sim em tornar conscientes as ideias patogênicas a fim de tornar possível a sua
elaboração por parte do paciente. Exatamente neste momento, encontramos o
"ponto de virada" do método catártico para o método psicanalítico. Essa "virada"
se completa com a publicação de A Interpretação do Sonho, que será o momento
em que o conceito de recalcamento adquire um posicionamento mais preciso por
meio da distinção entre inconsciente e consciente, ambos entendidos como sendo
sistemas psíquicos.

capítulo 1 • 27
A noção de recalque e os destinos da pulsão

É interessante você entender porque Freud, em seu artigo de 1915, se pergun-


tou sobre o fato de que uma moção pulsional tem como destino o recalcamento.
A ideia de que o sistema psíquico é dinâmico está presente nesta questão, quando
se entende que o caminho em direção à satisfação pode acabar produzindo mais
desprazer do que propriamente prazer. A respeito da satisfação da pulsão, é preciso
levar em conta a "economia" presente no processo. Assim, se levar em conta a
presença das instâncias psíquicas, você poderá notar que aquilo que dá prazer em
algum lugar, pode vir a ser extremamente desprazeroso em outro, sendo que desta
forma fica estabelecida a "condição para o recalque": é preciso que a potência do
desprazer seja maior do que o prazer da satisfação. Aprendemos com Freud que o
recalque está a serviço da satisfação pulsional e não contra ela.
O recalque impede a passagem da imagem à palavra, embora isso não elimine
a representação, não destruindo, inclusive, a sua potência significante. Em outras
palavras: o recalque não elimina progressivamente o inconsciente, ao contrário,
o constitui. E esse inconsciente constituído pelo recalque continua insistindo no
sentido de possibilitar uma satisfação da pulsão.
Assim o recalque é ao mesmo tempo um mecanismo do sistema pré-conscien-
te-consciente, contra os efeitos do inconsciente, bem como o mecanismo responsá-
vel pela divisão do aparato psíquico em inconsciente e pré-consciente-consciente.
Você verá aqui um possível paradoxo: ou bem ele funda a divisão entre os
dois sistemas, ou bem ele opera a partir da divisão já constituída. Freud resolveu
esse paradoxo, fazendo a distinção entre o "recalque originário, ou primário", e
o "recalque secundário", ou "recalque propriamente dito". Mais tarde, estaremos
diante também daquilo que Freud tanto insistiu em sua teorização: "O retorno
do recalcado". Sabemos que, em psicanálise, essa tríade constitui aquilo que foi
denominado "Os Três Tempos do Recalque".
Na continuidade dos estudos que irão se desenvolver nos capítulos à frente,
você poderá aprofundar o entendimento de cada tipo de recalcamento, especial-
mente com os casos clínicos que encontramos na obra de Freud, nos chamados
"grandes casos clínicos", como caso Dora e o caso Schreber. Antes da publicação
do artigo metapsicológico sobre o recalque, Freud já havia admitido a decomposi-
ção do processo de recalcamento em fases distintas.

capítulo 1 • 28
Trata-se da mesma distinção que vai ser feita em 1915, a qual discrimina
três fases:
1. A fixação
2. O recalque propriamente dito
3. O retorno do recalcado

A seguir, você poderá ler a definição de Recalque, segundo Vocabulário de


Psicanálise, de Jean Laplanche e J-B. Pontalis:

Operação pela qual o indivíduo procura repelir ou manter no


inconsciente representações (pensamentos, imagens, recorda-
ções) ligadas a uma pulsão. O recalcamento produz-se nos casos
em que a satisfação de uma pulsão-susceptível de por si mesma
proporcionar prazer – ameaçaria provocar desprazer relativamen-
NO SENTIDO te a outras exigências (de outras instâncias).
PRÓPRIO É fenômeno marcante na histeria, mas também presente em
outras afecções mentais, assim como em psicologia normal. É
considerado um processo psíquico universal, na medida em que
está presente na constituição do inconsciente como um domínio
separado do resto do psiquismo.

O termo muitas vezes é tomado por Freud como próximo à de-


NUM SENTIDO fesa e, em outro sentido, na medida em que o modelo teórico
MAIS VAGO do recalcamento é também utilizado por Freud como sendo o
protótipo de outras operações defensivas.

Vamos concluir essa apresentação com uma afirmação clássica de Freud sobre
o conceito de "recalque" ou "recalcamento”: "A Teoria do Recalcamento é a pedra
angular em que assenta todo o edifício da Psicanálise".
A seguir, tem-se o início do percurso histórico de estudos e publicações
de Freud:
•  No inverno de 1885, Freud vai a Paris e assiste ao curso de Charcot, cujas
aulas práticas eram ministradas na Salpétrière, e adere entusiasticamente ao mode-
lo fisiológico oferecido por ele para a histeria;
•  A Recusa de Charcot foi o ponto de partida de Freud;
•  De volta a Viena, Freud se aproxima de Joseph Breuer, segue o entendimen-
to sobre o trauma e ab-reação, como liberação da carga de afeto/método catártico
– a hipnose como sugestiva remete o paciente ao seu passado, encontrando assim
o fato traumático, produzindo a liberação da carga de afeto;

capítulo 1 • 29
•  No entanto, chegar a um acontecimento traumático real impede Freud de
construir a teoria psicanalítica dos sintomas neuróticos como causa das fantasias
edipianas infantis.;
•  Em dezembro de 1892, Freud publica o artigo Um caso de cura pelo hipno-
tismo (ESB, v. I), no qual a influência de Breuer é bem maior do que a de Charcot;
•  No ano seguinte, Freud e Breuer publicam em conjunto Sobre o mecanismo
psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar, que foi transformado no
primeiro capítulo dos Estudos sobre a histeria;
•  O caso clínico que deu origem à Comunicação preliminar (1893) foi a pa-
ciente de Breuer, Anna O. (Bertha Pappenheim);
•  Freud publicou o artigo As neuropsicoses de defesa em 1894 e um ano depois
surge os Estudos sobre a histeria;
•  O artigo As neuropsicoses de defesa, assim como os Estudos sobre a histeria,
já apresentavam alguns dos elementos importantes do Projeto de 1895, obra que
permanecerá inédita até o ano de 1950.

ATIVIDADES
01. Como eram chamadas as neuroses que se manifestavam por meio de somatizações,
alucinações e angústias, no final do século XIX?

02. As descobertas e experiências a seguir foram realizadas por Freud com Charcot
ou Breuer:
a) No inverno de 1885, Freud assiste ao curso de Charcot ou de Breuer.
b) Trauma e ab-reação: a liberação da carga de afeto/método catártico – a hipnose como
sugestiva remete o paciente ao seu passado, encontrando assim o fato traumático, pro-
duzindo a liberação da carga de afeto.
c) Salienta que a histeria não é uma simulação; não é uma doença apenas feminina.
d) Descobre que na histeria há uma sintomatologia bem definida, obedecendo a re-
gras precisas.
e) Não é mais produzir ab-reação do afeto e sim tornar conscientes as ideias patogênicas.

03. Segundo Michel Foucault em História da sexualidade, os séculos XVIII e XIX conhe-
ceram uma verdadeira explosão discursiva sobreo sexo; o que significa que a colocação do
sexo em discurso não é uma prerrogativa de Freud, pois o fenômeno da histeria, a familiari-
zação, a preocupação com a masturbação das crianças, a organização física e funcional dos

capítulo 1 • 30
colégios, a confissão religiosa, o controle sobre a procriação, a psiquiatrização dos perversos,
e tantas outras práticas mais, falavam do sexo. Nunca se falou tanto sobre o sexo, esclarece
o autor, e isso resultou no que ele denominou de colocação do sexo em discurso.
A partir dessas colocações de Foucault, que contribuição a psicanálise ofereceu a este
contexto e ao homem do século XIX?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALONSO, Silvia Leonor; FUKS, Mario Pablo. Histeria. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2012. – (Coleção
clínica psicanalítica/dirigida por Flávio Carvalho Ferraz).
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
LAPLANCHE E PONTALIS. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

capítulo 1 • 31
capítulo 1 • 32
2
A descoberta
freudiana: o
inconsciente
A descoberta freudiana: o inconsciente
Para dar continuidade aos estudos de psicanálise, é preciso que você preste
atenção aos conceitos e seus desdobramentos que serão apresentados neste capí-
tulo. A começar pelo conceito de “inconsciente”, comumente empregado como
adjetivo, designando a propriedade daquilo que estava fora do campo atual da
consciência, para ser empregado como substantivo (das unbewusste), designando
um sistema do aparelho psíquico. Você verá que a construção teórica de Freud é
responsável pela substituição da noção descritiva de inconsciente pelo conceito de
inconsciente sistemático. Além deste momento fundamental, Freud apresentará
uma construção topológica do aparelho psíquico, constituindo a primeira tópica
freudiana, isto é, a concepção do aparelho psíquico formado por instâncias ou
sistemas: o sistema inconsciente, o pré-consciente/consciente. E com o texto de
1923 O ego e o id, você poderá inteirar-se a respeito da segunda tópica freudiana
e acompanhar a concepção evolutiva do aparelho psíquico.

OBJETIVOS
•  Apresentar a hipótese do inconsciente como correlativa aos desdobramentos da clínica
psicanalítica em freudiana;
•  Introduzir conceitos de aparelho psíquico, processos primários e secundários, regressão
e recalcamento;
•  Localizar as instâncias da primeira e da segunda tópica.

Primeira tópica freudiana: inconsciente, consciente e


pré-consciência

No texto A interpretação dos Sonhos, Freud nos propõe um novo modelo do


aparelho psíquico, não mais calcado em um substrato neuronal. Ele nos fala:

[...] queremos deixar inteiramente de lado que o aparelho psíquico de que aqui se trata
também nos é conhecido sob a forma de preparado anatômico, e queremos evitar com
cuidado e tentação de determinar o lugar psíquico anatomicamente. Permanecemos
em terreno psicológico. (FREUD, 1900/2012, p. 564)

capítulo 2 • 34
Propõe então como metáfora para o aparelho psíquico, o modelo de um mi-
croscópio composto: uma máquina fotográfica. Ao imaginar o aparelho psíquico
como uma máquina fotográfica, Freud nomeia as diferentes lentes de instâncias
ou sistemas, esclarecendo que não precisamos fazer a suposição de um arranjo
espacial, basta que estabeleçamos uma sequência fixa, uma direção que demarque,
durante certos processos psíquicos, os sistemas sejam percorridos pela excitação
num encadeamento temporal determinado. Vamos ao esquema proposto por ele:

Figura 2.1  –  Aparelho psíquico proposto por Freud (1900/2012, p. 569) em 1900.

É atribuído ao aparelho psíquico uma extremidade sensível e uma motora. Na


extremidade sensível, há um sistema que recebe as percepções, pois nossa ativida-
de psíquica parte de estímulos (internos ou externos), e na extremidade motora
há outro que abre as comportas da motilidade, de modo que as setas indicam a
direção dos processos psíquicos. As percepções, contudo, não são imediatamente
encaminhadas para as vias motoras, daí a metáfora da máquina fotográfica: exis-
tem várias lentes, várias instâncias que se interpõem nesse percurso.
O primeiro sistema do aparelho recebe os estímulos perceptivos (P), mas nada
conserva deles. P absolutamente não tem memória, tampouco pode conservar
quaisquer marcas para associação, pois P seria impedido em sua função de recep-
tor se o resto de uma ligação anterior se afirmasse contra uma nova percepção.
Por trás dele, há um segundo sistema que transforma a excitação momentânea,
recebida por P, em traços permanentes ou mnêmicos (Mn), nas palavras de Freud
(1900/2012, p. 566):

Das percepções que nos chegam, resta um traço em nosso aparelho psíquico que
podemos chamar de “traço mnêmico”. Chamamos de “memória” a função relacionada
com esse traço mnêmico [o qual] apenas pode consistir em modificações permanen-
tes nos elementos dos sistemas.

capítulo 2 • 35
Freud elucida que a memória conserva não só o conteúdo que chega pela per-
cepção, mas também uma associação de traços mnêmicos, a partir de uma possível
simultaneidade: nossas percepções também se mostram ligadas entre si na memória,
sobretudo segundo seu encontro na simultaneidade, ocorrido no passado. Chamamos
esse fato de associação. (FREUD, 1900/2012, p. 566-567)
Assim, tal como postulado a partir da noção de trilhamentos, vemos que a
memória não se configura apenas por traços isolados (modificações permanentes),
mas por ligações, conexões, trilhas, associações que não estão em P, que nada con-
serva, mas sim no próprio sistema mnêmico:

[...] devemos supor que o fundamento da associação se encontra antes nos sistemas
mnêmicos. A associação consiste então no seguinte: em consequência de diminui-
ções da resistência e de facilitações [trilhamentos], a excitação se propaga de um dos
elementos Mn preferencialmente a um segundo do que a um terceiro elemento Mn
(FREUD, 1900/2012, p. 567).

As associações se fariam também de acordo com as facilitações ou trilhamen-


tos já existentes no sistema mnemônico. Os traços mnêmicos fariam parte da ins-
tância denominada inconsciente, estado em que – como Freud observa – podem
produzir os mais diversos efeitos.
Subsequente ao sistema inconsciente, estaria o pré-consciente, instância que
guarda o registro do que é passível de se tornar consciente e que tem a chave da
atividade motora. Entre inconsciente e pré-consciente há uma forte censura pela
qual cada representação terá que passar para chegar à consciência (o inconsciente
não tem acesso à consciência exceto pelo pré-consciente), porém, essa é uma pas-
sagem que obriga seu processo excitatório a tolerar alterações (FREUD, 1900/2012,
p. 569). Para passar pela censura, muitas vezes a representação mnêmica terá que
passar por grandes alterações, para não ser reconhecida pela consciência.
O pré-consciente submete o material inconsciente a uma crítica, resultando
disso uma exclusão da consciência. Ele se encontra entre o inconsciente e a cons-
ciência como um anteparo a esta última, mantendo com ela íntima relação. Esta
instância crítica é identificada como aquilo que guia nossa vida de vigília e decide
sobre nosso agir consciente, voluntário, estando situada na extremidade motora.
Um estado psíquico que chega à pré-consciência ainda não é consciente, mas
pode tornar-se objeto da consciência ao ultrapassar a resistência entre pré-cons-
ciente e consciência; resistência essa que é menos rigorosa, mais frágil que a exis-
tente entre inconsciente e pré-consciente.

capítulo 2 • 36
Há uma forte censura entre o inconsciente e o pré-consciente, pois, tudo que está no
pré-consciente pode chegar à consciência. O pré-consciente é a memória a que temos
acesso ao direcionar nossa atenção. Essa censura produz deformações, alterações no
conteúdo inconsciente.

Destacamos que não há um movimento linear e unívoco pelas instâncias psí-


quicas, pois a censura existente entre inconsciente e pré-consciente faz muitas das
representações não continuarem seu caminho pelo sistema, ou seja, em estado
inconsciente são barradas pela censura, não alcançando a consciência. Há uma
regressão no interior do aparelho psíquico que se articula ao princípio do prazer
em uma tentativa de satisfazer-se no interior do aparelho – não visando ao mundo
externo – e evitando qualquer possibilidade de desprazer. Embora seja uma forma
imediata de aliviar a tensão, ele pode gerar desprazer, pois ao retornar ao psiquis-
mo ele encontra desamparo, porque o objeto da suposta satisfação não está mais
lá, só restaram suas marcas.
A esse retorno ao aparelho psíquico, que nega a entrada da ideia na consciên-
cia, Freud nomeia recalque, esclarecendo que a ideia apenas não chega a ser cons-
ciente, mas continua a produzir efeitos. Freud nos ensina também que, para que
a ideia chegue à consciência e burle a censura, são estabelecidas transformações,
como disfarces que possibilite a ideia passar pela censura sem que seja reconhecida.

ATENÇÃO
Vale destacar que nos deteremos no conceito de recalque mais adiante, ao trabalhar-
mos sua articulação com os mecanismos psíquicos do esquecimento. Ressaltamos ainda,
que optamos por utilizar o termo “recalque” em detrimento do termo “repressão”, pois, como
destaca Jorge (2005) o recalque é uma operação constituinte, originária do campo do sujei-
to, não pressupondo nenhuma força externa (tal como a repressão), sendo por isso impos-
sível de ser suspensa. A tradução realizada pela L&PM utiliza o termo recalque, já as demais
traduções por nós consultadas (Amorrotu, Cosac Naify e Companhia das Letras) fazem uso
de “repressão”, embora esta última tradução (a da Companhia das Letras) aponte a tradução
por “recalque” como possível e que, caso o leitor queira, pode realizar a troca mentalmente
durante a leitura.

Freud vale-se do sonho para nos falar das vias de alterações possíveis, desta-
cando a condensação e o deslocamento. No deslocamento, as intensidades (ou

capítulo 2 • 37
o afeto) de cada representação se tornam capazes de escoamento e passam de uma
representação a outra, formando algumas representações dotadas de grande inten-
sidade. Com a repetição desse processo, a intensidade de toda uma cadeia de ideias
pode se reunir em um único elemento representacional. Já na condensação, a in-
tensidade de uma representação é movida para outra, que ganha assim o poder de
representá-la, ao mesmo tempo em que a encobre. Assim, a consciência terá acesso
a um material distorcido que vem revelar e velar algo da memória inconsciente,
onde se encontram os ancoramentos subjetivos de cada sujeito, que são colhidos
na cultura que o circunda.
Podemos dizer que o pré-consciente também traz uma memória, porém uma
memória sustentada em vestígios da memória inconsciente e profundamente mar-
cada pela distorção. Essa memória pré-consciente que se assemelha à noção de in-
consciente da psicologia como aquilo que está fora do campo da consciência, mas
acessível a ela, nos indica uma memória enquanto função do aparelho psíquico e
não em seu caráter radical de fundação e estruturação do psiquismo. Vale ressaltar
que, quando falamos em memória na psicanálise, não nos referimos àquilo que
o sujeito consegue se lembrar pela via da consciência (como pré-consciente, por
exemplo), mas a uma dimensão que mesmo sem o conhecimento ganha o estatuto
de ato, memória impregnada na própria experiência; não se trata, portanto, de
um conhecimento a que se está consciente, mas de uma dimensão que funciona
encarnada em quem dela se apropria. Dimensão de memória viva, que constitui
um sujeito, que é ao mesmo tempo efeito dela e responsável por ela.

CONCEITO
Vimos que para a psicanálise a memória é ponto de origem do psiquismo, já que sua
fundação se dá pela inscrição de um traço mnêmico.

O inconsciente se constituiria pelos traços mnêmicos, resíduos da percepção,


de forma que o próprio sujeito se constitui pela memória. Marcas que se associam
produzindo um encadeamento representativo, pensamento inconsciente que rege
toda economia psíquica.
Freud (1900/2012, p. 643) aproxima a consciência do sistema P, dizendo que
ela “é excitável por qualidades e incapaz de conservar marcas de alterações, isto é,

capítulo 2 • 38
desprovida de memória”, e ainda, que o aparelho psíquico que está voltado para o
mundo externo com os órgãos sensoriais (P), “é ele próprio mundo externo para o
órgão sensorial da consciência”.

O inconsciente freudiano não é um adjetivo que qualifica a memória que não é conscien-
te, essa definição é própria da filosofia e da psicologia. Na psicanálise, o inconsciente
tem seu próprio modo de funcionamento, uma lógica diferente da consciência, e cons-
titui nossa realidade psíquica.

Trabalharemos mais detidamente a noção do inconsciente freudiano como


aquilo que não é uma negação da consciência, mas uma instância psíquica com
características e modo de funcionamento próprio, em alguns textos posteriores,
como “O inconsciente”, de 1915, em que Freud nos ensina importantes proprie-
dades do sistema inconsciente, a saber:
1. O inconsciente consiste de representantes pulsionais coordenados entre si,
que coexistem sem influência mútua, não contradizendo uns aos outros. Freud
(1915b/2010) nomeia de representante pulsional a soma da ideia (representação)
ao afeto (intensidades psíquicas), destacando que apenas a ideia é passível de recal-
que, pois o afeto mantido livre associa-se a outra representação ou é transformado
em angústia, chegando à consciência ainda que deslocado da ideia originária ou
qualitativamente transformado. Aqui se faz primordial citarmos uma importante
definição que pinçamos no texto O inconsciente (1915b/2010, p. 117) e que
muito nos interessa: ideias são investimentos – de traços mnemônicos, no fundo –,
enquanto os afetos e sentimentos correspondem a processos de descarga, cujas expressões
finais são percebidas como sensações. Esta definição nos permite pensar que o inves-
timento no traço mnêmico faz existir uma representação, produz a ideia incons-
ciente e a cadeia associativa de concatenações. Assim sendo, os sentimentos são
apenas o modo como a consciência percebe as descargas de afeto inconscientes.

ATENÇÃO
Retomaremos mais adiante o conceito de traço a partir do texto “O bloco mágico”
(FREUD, 1925/2011) e da noção de traço unário e recalque primário, pois é um importante
conceito freudiano na discussão da memória.

capítulo 2 • 39
2. Retomando a primeira premissa, as representações pulsionais não contradi-
zem umas às outras, o que equivale a dizer que no inconsciente vigora a lógica do
paradoxo. Não há contradição e sim diferentes ideias e afetos que se afirmam ao
mesmo tempo, sem que um anule o outro. Amor e ódio, alegria e tristeza, prazer
e desprazer e uma infinita rede de pares antitéticos convivem e coexistem lado a
lado. Com isso, vemos que o princípio da unidade e da contradição se aplica ape-
nas à consciência, de forma que toda construção de uma identidade, que afirma
determinados atributos em detrimento de outros, parte da lógica segregacionista
da consciência. Esse fenômeno pode ser notado na constituição identitária de
países como os Estados Unidos, por exemplo, que mantêm uma imagem de poder
e ostentação que impede a possibilidade de acolhimento de qualquer fracasso, o
que gera efeitos de rechaço, escamoteamento, e lança fora, no outro, aquilo que
não posso admitir como parte de mim (seja social ou particular). A lógica parte do
princípio de que há o Eu e a alteridade, o fora de mim, como campos separados,
que em nada se encontram. Mas como vimos, a alteridade é íntima, nos habita e
nos constitui.
Tomemos aqui o texto freudiano Análise da fobia de um garoto de cinco anos,
conhecido como O pequeno Hans (1909/2015). Freud descreve um garoto de cin-
co anos que tinha fobia de cavalos, que lhe causava sofrimento e angústia. Em aná-
lise, Hans pôde retomar uma cena recalcada: a imagem dos pais em uma relação
sexual, em que a mãe estava de quatro e o pai lhe copulava por trás. Hans sai de
seu quarto em uma manhã, e ao adentrar o quarto dos pais fica horrorizado com a
cena, aliás lhe parece que o pai batia na mãe, e que ela gemia de dor. O pai, figura
que era tão amada, passa a ser objeto de ódio e temor. Dissemos que no incons-
ciente não há contradição, logo, o pai amado e odiado coexistem sem se anularem,
o que não é aceito pela lógica segregacionista da consciência.
Certo dia Hans se depara com cópula de um cavalo, cena que retoma a posi-
ção sexual dos pais. Tal representação possibilitava que o afeto direcionado ao pai
pudesse chegar à consciência sem ser reconhecido, vejamos como: o afeto (ódio,
medo) ligado ao pai (representação), é deslocado para outra representação (cava-
lo), e pode assim alcançar a consciência. Afinal, é possível direcionar o medo ao
cavalo, mas não ao pai, objeto amado.
A representação permanece inconsciente, recalcada, viva, ativa, produzindo
efeito, se articulando a novas representações e experiências, até encontrar uma
representação que não seja reconhecida pela censura, e que possa assim ter livre
acesso a consciência. Segue o esquema:

capítulo 2 • 40
Representante pulsional: ideia/representação + afeto /energia psíquica
Pai (representante recalcado) + medo/ódio (energia livre)
Cavalo (representante consciente) + ódio/medo (energia deslocada)

Eis as alterações que a censura produz no material inconsciente que alcan-


ça a consciência. O inconsciente se faz presente, sem, contudo, ser reconhecido.
Produz-se uma formação de compromisso entre o desejo inconsciente recalcado e
as exigências do Eu, de onde deriva o sintoma.

3. Não há negação, não há dúvida nem graus de certeza. Tudo isso é trazido apenas
pelo trabalho da censura ente Ics e Pcs (FREUD, 1915b/2010, p. 127). No incons-
ciente existem apenas conteúdos mais ou menos investidos em busca de descarga.
A negação é efeito do trabalho da censura, pois o conteúdo recalcado de uma ideia
pode abrir caminho até a consciência sob a condição de ser negado. No texto A
negação (1925), Freud explica que a negação é um levantamento do recalque, uma
forma de tomar conhecimento do recalcado sem precisar aceitá-lo e se haver com
ele. Podemos evidenciar isso com o exemplo de uma paciente que escutei em meu
consultório com a prática clínica da psicanálise: Lisa (nome fictício) fala que não
consegue gostar e, portanto, se relacionar com homem algum. Ao mesmo tempo
fala sobre a postura rígida dos pais, extremamente religiosos, que não gostam nem
mesmo que ela chegue perto de um homem “para não se perder”. Conta que gos-
tava de um rapaz e ele dela, mas que nunca chegou a ter qualquer contato físico
com ele, embora já tivessem se encontrado várias vezes. Pergunto por que e ela
diz: “dessa vez não foi por causa dos meus pais”, salientando aí uma importante
verdade que só pode ser dita pela negação: “foi por causa dos meus pais”, além
do adjunto adverbial “dessa vez”, apontando que há um caráter de repetição. A
articulação entre o próprio ato e a fala dos pais é feita por esse sujeito; faz parte de
sua economia psíquica, embora não seja suportada de outro modo que não pela
negação. Associação que, se dita de modo afirmativo, implicaria ter que se haver
com o lugar que ela confere a esses pais como portadores de uma verdade pela qual
ela se determina. Verdade essa que está além dos pais, posto que é estabelecido pela
religião que lhes orienta e que, por sua vez, encarna um discurso que perpassa a
sociedade e a cultura, evidenciando como a subjetividade não é individual, mas
está imbricada no aparato social em que se calca.
Outro, entre vários exemplos disso, ocorreu em 1977, quando em defesa da
moral, 20.000 católicos, na maioria mulheres, fizeram da procissão de Corpus

capítulo 2 • 41
Christi na cidade do Rio de Janeiro um grito contra a decisão do Congresso a fa-
vor do divórcio. O movimento se intitulava: “Divórcio, não”, cujo lema sinaliza o
que já é uma realidade no âmbito da cultura, sendo seguido por um advérbio que
revela a tentativa de negar o que já se afirma como possibilidade no âmbito social.
Freud (1925/2011, p. 278) nos esclarece:

[...] é tarefa da função intelectual confirmar ou negar o conteúdo dos pensamentos [...].
Negar algo num juízo é dizer, no fundo: ‘‘isso é algo que eu gostaria de reprimir’’. O juízo
negativo é o substituto intelectual da repressão [recalque], seu ‘‘Não’’ é um sinal distin-
tivo, seu certificado de origem.

Ao adjudicar ou recusar uma coisa, o juízo admite ou contesta a uma represen-


tação a existência na realidade consciente. Apropria-se dela como parte de si, ou a
lança para fora, não a reconhecendo como íntima. Daí a premissa de que o reco-
nhecimento do inconsciente pode se exprimir numa fórmula negativa. O sujeito
nega algo que nele se afirma no inconsciente, sem, contudo, suportar tal verdade.

A negação é um mecanismo de defesa, é a marca do recalque, visto que no inconsciente


só há afirmação.

4. Há mobilidade nos processos de investimento, ou seja, a energia é livre po-


dendo circular entre as representações. Desse modo, por meio do processo de des-
locamento, uma representação pode ceder à outra todo o seu montante de inves-
timento e pelo de condensação pode acolher todo o investimento de várias outras
representações em si. Isso equivale a dizer que no inconsciente vigora o processo
primário, o afeto que está originalmente ligado a uma representação recalcada
pode unir-se a outra ideia, passando a ser tido pela consciência como manifestação
desta última, ou ainda, pode produzir diversos derivados e organizações, cadeias
associativas que permanecem inconscientes.
Assim, um objeto fóbico pode condensar em si uma série de afetos que, por
vezes, o próprio sujeito reconhece como estranho. Como no caso Hans, citado
anteriormente, em que a fobia de cavalos aparecia em substituição ao pai, há uma
impossibilidade intelectual de justificar o medo e angústia que surgem diante
do objeto (ou da possibilidade de seu encontro), evidenciando a articulação que
esse afeto mantém com a representação inconsciente. Do mesmo modo vemos
na cultura manifestações brutais contra alguns grupos minoritários, como assisti-
mos ainda, por exemplo, com relação aos homossexuais. Alguns atos de extrema

capítulo 2 • 42
violência pautados em um discurso de ódio e intolerância à diferença irrompem
no tecido social. Embora muitas agressões direcionadas ao homossexual sejam
realizadas por um sujeito, elas revelam o retorno da outra cena velada e camuflada
pela cultura, que ergue um tabu, impossibilitando que a sexualidade e suas diver-
sas possibilidades de vivência sejam acolhidas como parte integrante da cultura.
O processo primário se opõe ao processo secundário. O processo secundário,
próprio dos mecanismos conscientes, trabalha com fixação, ligando afeto e repre-
sentação como se fossem dois lados de uma mesma moeda. A morte de um objeto
amado evidencia isso, pois o afeto se mostra fixado ao objeto impossibilitando
possíveis deslocamentos e novos investimentos.

Processo primário: a energia é livre, podendo circular entre diferentes representações,


possibilitando os processos de deslocamento e condensação.

5. Os processos do sistema inconsciente são atemporais, isto é, não são ordenados tem-
poralmente, não são alterados pela passagem do tempo e não têm nenhuma relação
com o tempo. (FREUD, 1915b/2010, p. 128), de modo que a referência ao tempo
também se acha ligada ao trabalho do sistema consciente. Então, o dito popular
“nada como o tempo” ou “o tempo cura todas as feridas” não se aplica à realidade
inconsciente. Pode ser que no curso do tempo seja possibilitado um novo rearran-
jo psíquico, uma ressignificação daquilo que acomete o sujeito, mas a passagem de
tempo em si não traz nenhum efeito nos encadeamentos e intensidades psíquicas.
Freud se depara no trato com seus pacientes adultos com a mesma intensidade
e realidade que os acometia quando ainda eram crianças, ou seja, o transcorrer do
tempo não alterou a posição infantil do sujeito; ela permanece inalterada até que
a experiência da fala em análise produza algum efeito de retroação. Do mesmo
modo, a vivência do sonho nos mostra a possibilidade de coexistência do homem
adulto e do infantil, retomando a lógica do paradoxo e a impossibilidade de apli-
car a lógica do tempo cronológico e linear ao psiquismo. Ou ainda os traumáticos
de guerra que vivem na repetição incessante de cenas insuportavelmente dolorosas
que, embora transcorra o tempo, não podem ser acolhidas nem pela cultura (que
apesar de produtora da guerra, muitas vezes nada quer saber de seus horrores),
nem pelo sujeito que as vivenciou. Assim, o tempo, enquanto experiência cro-
nológica é resultado de uma adequação do psiquismo ao princípio da realidade,
valendo-se apenas para ordenação consciente do mundo.

capítulo 2 • 43
ATENÇÃO
Retomaremos mais adiante o lugar da fala e do a posteriori na economia psíquica.

O inconsciente é atemporal: os processos inconscientes não são ordenados tempo-


ralmente, não se alteram com a passagem do tempo, não têm qualquer referência ao
tempo.

É impossível falar em inconsciente demarcando passado, presente e futuro, o


que retomaremos mais adiante através da discussão sobre trauma e sintoma.

6. Os processos do inconsciente não são regidos pela realidade externa; são su-
jeitos ao princípio do prazer. Seu destino depende apenas de sua intensidade e de
cumprirem ou não as exigências da regulação prazer-desprazer.
Freud, em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico
(1911), esclarece que o princípio do prazer se empenha em ganhar o máximo de
prazer com o mínimo de desprazer, sem qualquer entrave ou limite. Já o princípio
de realidade modificaria o primeiro impondo-lhe as restrições necessárias para a
adaptação à realidade externa. Representar o mundo externo junto ao psiquismo
é importante, pois sem considerar esse ingente poder exterior, não escaparia a destrui-
ção, no cego afã de satisfação pulsional. (FREUD, 1911/2010, p. 218).
É interessante apontar que a substituição do princípio do prazer pelo da realida-
de não significa a deposição do princípio do prazer, mas a sua salvaguarda (FREUD,
1911/2010, p. 117), ou seja, é impossível se satisfazer sem o mundo externo, sem
o outro, logo, o princípio de realidade está a serviço do princípio de prazer, pois
considera o mundo externo para nele encontrar vias de satisfação.
Vigora no inconsciente a realidade psíquica, realidade constituída pelo enca-
deamento de memórias inconscientes que se ligam segundo a lógica própria do
sistema, ou seja, pela ausência de contradição, processo primário (mobilidade dos
investimentos) e atemporalidade. O princípio da realidade vai regular o funciona-
mento da consciência e a ela caberá a tentativa de conciliar o mundo externo com
as exigências psíquicas.
Vale dizer que, no início de sua prática clínica, Freud creditava uma verdade
factual aos conteúdos e cenas que lhe eram relatados sendo acometido de grande

capítulo 2 • 44
decepção quando percebeu que suas pacientes tinham “mentido” para ele, reve-
lando-lhe episódios que não tinham acontecido de fato. A partir dessa experiência
clínica, percebe que, mesmo não se tratando de uma realidade factual, tais relatos
se sustentavam em uma verdade na qual o sujeito que lhe falava estava ancorado.
Apreende então que a realidade é constituída por e constitutiva para cada sujeito,
e nada podia haver de mais precioso do que essa verdade que lhe rege. Podemos
dizer que o sujeito é suporte de uma história que o antecede e que já está presente
na cultura que o circunda muito antes de seu nascimento e, concomitantemente,
a história passa a lhe servir de coordenada para sua constituição psíquica, de forma
que passa a ser o suporte pelo qual o sujeito se edifica.
Destarte, a memória inconsciente que engendra e gere o sujeito, tem um ca-
ráter de verdade psíquica e não de realidade externa, factual. Ela não é um sim-
ples registro do mundo externo, mas sim uma apropriação da percepção, um in-
vestimento que requer invenção, significação e recriação. Como Freud destaca
(1900/2012, p. 638, grifo do autor):

[...] tudo que pode se tornar objeto de nossa percepção interna é virtual, tal como a
imagem produzida no telescópio [modelo das lentes compostas explicitado em “Inter-
pretação dos sonhos”] pela passagem dos raios luminosos.

Não existe, pois, imagem na realidade, e sim uma imagem virtual que exige
uma reprodução psíquica, uma transcrição. Assim, não há para Freud uma reali-
dade histórica; há antes uma apropriação específica que se faz da história e que
certamente serve a um determinado olhar.

O inconsciente é regido pelo princípio do prazer, e não pelo princípio de realidade.


A fantasia inconsciente é a realidade psíquica, não é um simples registro do mundo
externo, mas sim uma apropriação sempre singular, que requer invenção, significação
e recriação.

As características do inconsciente revelam um modo de funcionamento pró-


prio pelo qual é organizada nossa vida psíquica. Vale lembrar que Freud compara
o inconsciente a um enorme iceberg submerso, enquanto a consciência é apenas
a ponta do iceberg, porção mínima. A vida psíquica é inconsciente, e essa carac-
terística não se altera nem mesmo com anos de análise, pois, a análise não visa a

capítulo 2 • 45
conscientização, poderíamos dizer que ela leva a uma apropriação inventiva dos
registros dos quais somos efeitos, e a criação de uma forma de satisfação que não
implique tanto sofrimento.

Vamos resumir: ausência de contradição, processo primário (mobilidade dos investi-


mentos), atemporalidade e substituição da realidade externa pela psíquica são as ca-
racterísticas que podemos esperar encontrar nos processos do sistema Ics. (FREUD,
1915b/2010, p. 128).

Para elucidar o modo como concebe o aparelho mnêmico e perceptual, Freud


(1925/2011) utiliza-se de um brinquedo infantil que dá nome ao seu texto, Nota
sobre o bloco mágico. O bloco mágico, atualmente conhecido como lousa mágica, é
uma prancha sobre a qual encontramos uma folha fina e transparente, estando sua
extremidade superior fixada na prancha, e a inferior solta, lhe conferindo movi-
mento. Essa folha transparente consiste em duas camadas, a camada superior é um
pedaço transparente de celuloide e a inferior é feita de papel encerado, fino e trans-
parente. O aparelho funciona de modo que se escrevermos sobre a folha superior
com qualquer objeto pontiagudo, nos pontos em que o objeto toca, pressionamos
a superfície inferior e os sulcos tornam-se visíveis como traços. Para destruir o que
foi traçado, basta levantar a folha de celuloide, de modo que o estreito contato
entre o papel encerado e a prancha (nos lugares que foram calcados) acaba, encer-
rando, portanto, a condição para aquela escrita, que não torna a suceder quando
os papéis são reunidos novamente.
O bloco mágico então está limpo e pronto para receber novas impressões,
no entanto é fácil perceber que o traço feito está permanentemente marcado na
prancha, de forma que o bloco mágico oferece não apenas uma superfície recepti-
va, utilizável repetidas vezes, mas também traços permanentes do que foi traçado
ou escrito.
Essa é a hipótese freudiana para o funcionamento do nosso sistema mnêmico
e perceptual: o sistema perceptual consciente recebe os estímulos, mas não forma
traços permanentes, tal como a superfície de celuloide; já o inconsciente, enco-
berto pela consciência, tal qual a prancha, registra de modo permanente toda e
qualquer inscrição. Há, assim, uma superfície sempre aberta à inscrição de novos
traços, mas nada é apagado; as novas inscrições se inscrevem sobre os traços an-
teriores, ressignificando-os e produzindo representações. Há, simultaneamente,
uma capacidade ilimitada para novas percepções e o registro de traços mnêmicos

capítulo 2 • 46
permanentes, mas não inalteráveis. Portanto, para Freud, a memória não é algo
acabado, pronto, definitivo. O psiquismo está sempre aberto a novas significações,
contudo, o material inscrito exerce influência sobre o que irá se inscrever e pode
ser ressignificado pelo que se inscreve posteriormente.
Partiremos agora para a última formulação freudiana acerca do aparelho psí-
quico, pela qual ele nos dá novos pilares a se acrescentar aos já formulados.

Segunda tópica freudiana: Isso, Eu e Supereu

CONCEITO
A tradução da Companhia das Letras, por nós utilizada nos textos “O eu e o Isso” (1923)
e a “A dissecção da personalidade psíquica” (1933), opta pela seguinte tradução: Id, Eu e
Supereu. Id é o temo utilizado na versão inglesa, e na sua tradução pela Editora Imago. O
termo utilizado em alemão é Es, pronome pessoal da terceira pessoa do singular neutro; pode
substituir um substantivo neutro ou entrar como sujeito na descrição de eventos impessoais,
podendo ser traduzido por ele, ela, o, a, isto, isso. Optamos por utilizar o termo Isso, por manter
o caráter de impessoalidade e, consequentemente, ressaltar o que é de grande importância
para Freud: o Isso é o que não é o Eu, descartando qualquer caráter de organização, reco-
nhecimento e identidade.

Em um momento posterior da obra freudiana percebemos se estreitarem os


laços entre as instâncias psíquicas, de forma que as divisões e limites entre elas
não serão tão bem demarcadas, pois a dimensão originária do psiquismo como
inconsciente é levada às últimas consequências. Trata-se da segunda tópica ou da
segunda teoria do psiquismo.
Freud falará de três instâncias psíquicas que não anulam as postuladas an-
teriormente: Super-eu, Eu e Isso são os três reinos, âmbitos, províncias em que de-
componho o aparelho psíquico (1933/2010, p.213). Três textos são particularmente
importantes para esses temas: Introdução ao narcisismo1 (1914/2010), O Eu e o Isso
(1923/2011) e A dissecção da personalidade psíquica (1933/2010).
Freud percebe em suas análises que de nada adianta comunicar ao paciente
que ele está resistindo, opondo-se ao curso do tratamento, pois ele nada sabe disso.
1  No qual nos deteremos mais adiante, ao tratar a temática do outro em Freud a partir do conceito de Supereu.

capítulo 2 • 47
O que lhe causa estranhamento, pois, se a resistência vem do Eu e não do sistema
inconsciente, como o sujeito poderia não saber de sua resistência? A resistência
viria do inconsciente? Por essa questão clínica é levado a constatar a radicalidade
do que a psicanálise vinha trazer com a noção de inconsciente: o Eu é, em parte,
inconsciente. Descoberta prenhe de consequências teóricas e clínicas.

O Eu não é senhor em sua própria casa (FREUD, 1917/2010, p. 251), eis a ter-
ceira ferida narcísica proposta por Freud. A primeira, o homem acreditava ser a Terra o
centro do universo, Copérnico desfaz essa ilusão, evidenciando que nosso planeta não
tem essa posição dominante. A segunda, com Darwin, põe fim à presunção humana
de ser o senhor das demais espécies animais, invocando a si uma precedência divina,
o homem tem origem animal, mais aparentado a algumas espécies e mais diferente de
outras. A primeira afronta ao narcisismo humano foi cosmológica, a segunda biológica
e a terceira psicológica. Os processos psíquicos são inconscientes em si, e o Eu não
exerce domínio sobre eles.

Constatando o Eu, em parte, também inconsciente, Freud se depara com a di-


ficuldade de nomear o inconsciente enquanto aquele que tem dinâmica e funcio-
namentos psíquicos próprios. Daí surge a nomeação Isso para o inconsciente dinâ-
mico, do qual vimos o modo de funcionamento próprio no subtítulo anterior. Ao
se deter no estudo do Eu como – em sua maior parte – inconsciente, Freud ainda
trará mais algumas contribuições: o Eu é divisível e é uma parte diferenciada do
Isso. Deter-nos-emos então nesses postulados.
Freud (1933/2010) elucida que o que sabemos do Isso é dado pelo trabalho
do sonho e da formação dos sintomas, o que nos obriga a descrevê-lo negativa-
mente, em contraposição ao Eu: Aproximamo-nos do Isso com analogias, chama-
mo-lo um caos, um caldeirão cheio de excitações fervilhantes. (FREUD, 1933/2010,
p. 215). O Isso abriga os representantes da pulsão, carregados de afeto, de in-
tensidade, de energia psíquica. Todavia, como já vimos com relação ao incons-
ciente, no Isso vigora o princípio do prazer e seu funcionamento não é regido
pela realidade externa, pelo tempo cronológico ou pela negação. Ali a lógica do
paradoxo reina soberana e a energia se mantém livre, não se fixando a nenhuma
representação, o que possibilita deslocamentos e condensações. Nas palavras de
Freud (1933/2010, p. 215-6):

capítulo 2 • 48
[...] a partir da pulsão ele se enche de energia, mas não tem organização, não introduz
uma vontade geral, apenas o esforço de satisfazer as necessidades da pulsão, obser-
vando o princípio do prazer. As leis do pensamento lógico não valem para os processos
do Isso, sobretudo o princípio da contradição não vale. Impulsos opostos existem um
ao lado do outro sem se cancelarem ou diminuírem; no máximo convergem em uma
formação de compromisso, sob a coação econômica de descarregar energia. Nada
existe no Isso que possamos comparar à negação, e também constatamos, surpresos,
uma exceção à tese filosófica de que tempo e espaço são formas necessárias de
nossos atos psíquicos. Nada se acha que corresponda à ideia de tempo, não há reco-
nhecimento de um transcurso temporal [...], não há alteração do evento psíquico pelo
transcurso do tempo.
Desejos que nunca foram além do Isso, mas também impressões que pelo recalque
afundaram no Isso, são virtualmente imortais, comportam-se, após décadas, como se
tivessem acabado de surgir.

ATENÇÃO
A tradução da Companhia das Letras utiliza o termo “instinto” e nos adverte que pode-
mos fazer a troca para “pulsão”, caso seja de preferência do leitor. Optamos por pulsão, pois
Freud utiliza “trieb” e não “instinkt”, demarcando que não se trata do instinto como um saber
biológico inscrito no organismo vivo, mas de uma subversão desse instinto pela linguagem,
o que lhe confere um lugar e uma dinâmica completamente diferentes. Como destaca Freud
(1915c/2010), a pulsão é força constante, não dá descanso, não é cíclica como o instinto,
e é impossível de ser aplacada qualquer que seja o objeto. Ela não tem um objeto de satis-
fação específico; seu objeto é o mais indiferente possível e sua satisfação é sempre parcial,
atrelada muito mais aos contornos que faz em torno do objeto que ao seu encontro, marcado
sempre por um “ainda não era bem isso”. Ainda cabe dizer que a satisfação da pulsão não
implica necessariamente prazer, portanto, o paradoxo prazer/desprazer.

Portanto, o fator econômico ou quantitativo, ligado ao princípio do prazer,


governa todos os processos: Investimentos pulsionais que exigem descarga, isso é tudo
que há no Isso (FREUD, 1933/2010, p. 216). Energia móvel e passível de descarga,
de onde advêm os deslocamentos e condensações que não levam absolutamente
em consideração a qualidade do que é investido, pois o Isso não conhece juízo de
valor, não conhece nem bem nem mal, não conhece moral. (FREUD, 1933/2010,
p. 216)

capítulo 2 • 49
A partir do Isso podemos pensar a memória, tal como postulada por Freud, des-
de o Projeto de Psicologia (FREUD, 1950/1985), como carregada de intensidades.
A menção a representantes pulsionais une representação e afeto, ou seja, os trilha-
mentos inconscientes que constituem a memória são teias representativas carrega-
das de afeto. O que nos relança a ideia de que nem tudo que chega aos órgãos dos
sentidos se inscreve no psiquismo, mas apenas aqueles conteúdos que afetam um
sujeito em particular, por seu alvo do seu investimento.
Partes do Eu são inconscientes, sem, contudo, terem as mesmas caracterís-
ticas do Isso, pois o Eu é uma organização que se faz em relação estreita com o
mundo externo (pelo sistema perceptivo). Tal relação constitui seu fundamento,
proporcionando as bases para sua diferenciação do Isso e o surgimento, durante
seu funcionamento, do fenômeno da consciência. O Eu assume a tarefa de re-
presentar o mundo externo ao Isso, para salvação do Isso, que, sem considerar esse
ingente poder exterior, não escaparia à destruição, no cego afã de satisfação pulsional
(FREUD, 1933/2010, p. 218). O Eu se esforça para fazer valer a influência do
mundo externo sobre o Isso e os seus propósitos e empenha-se para colocar o prin-
cípio da realidade no lugar do princípio do prazer, que vigora irrestritamente no
Isso. Tentativa absolutamente fracassada, pois, como já vimos, a realidade externa
não vigora enquanto realidade psíquica.
Cabe dizer que o Eu está a serviço do Isso: observa o mundo externo para dele
obter a satisfação impossível de ser alcançada no próprio psiquismo e cumpre sua
função quando descobre as circunstâncias em que a satisfação pode ser alcança-
da da melhor maneira possível. Porém, o Eu não é senhor nessa decisão, pois os
trilhamentos inconscientes, vias preferenciais de passagem de novas excitações,
coordenadas de prazer, dirão onde, por meio de quais objetos é possível àquele
sujeito obter alguma satisfação. Aqui os traços mnêmicos são colocados em cena
e um trabalho de pensamento, que só é possível pela memória inconsciente, se dá
à revelia do Eu.
O Eu pega suas energias emprestadas do Isso, por meio de truques, como a
identificação com objetos perdidos ou abandonados, recomendando-se ao Isso
no lugar do objeto, procurando guiar para si a força do Isso. De forma que, no
decorrer da vida, o Eu acolhe dentro de si um grande número desses precipitados
de antigos investimentos.
Freud, em sua experiência médica com a loucura, é tocado por uma queixa re-
corrente: os loucos se lamentam de ser importunado por entidades poderosas que
lhes observam, criticam e punem. E se pergunta: como seria se os loucos tivessem

capítulo 2 • 50
razão, se em todos nós houvesse uma tal instância no Eu, observadora e punitiva, que
neles apenas tivesse se separado agudamente do Eu e sido deslocado para a realidade
externa? (FREUD, 1933/2010, p. 195)

ATENÇÃO
É comum o relato de ser observado por Deus, pelo demônio, figuras religiosas ou folcló-
ricas (entidades importantes na cultura), que não apenas observam, mas comentam os atos
e pensamentos do sujeito de forma bastante severa, crítica, depreciativa e punitiva.

Sobre forte impressão desse quadro clínico, Freud começa a investigar a pos-
sibilidade de que a separação de uma instância observadora do resto do Eu po-
deria ser um traço regular na estrutura psíquica. Percebe então que a observação
é apenas preparativa para o julgamento e a punição, devendo ter como função a
consciência. Freud nomeia essa instância, que se separa do Eu para observá-lo,
criticá-lo e puni-lo, de Supereu: a consciência é uma de suas funções, juntamente
com a auto-observação indispensável para a atividade judicativa da consciência. O
Eu pode, então, tomar a si mesmo por objeto, observar-se, criticar-se, e fazer sabe-
se Deus mais o que consigo mesmo. (FREUD, 1933/2010, p. 194)
Embora tenha se edificado a partir do Eu, o Supereu goza de certa autonomia, per-
segue seus próprios objetivos e tem energia independente do Eu. Energia que advém
do Isso e que também serve às suas exigências de satisfação. Eu, Supereu e Isso muitas
vezes se acham fundidos, só podendo distingui-los quando há um conflito entre eles.
Nesse contexto, o Eu se vê submetido a três senhores severos e tirânicos: o
mundo externo, o Isso e o Supereu. Fazendo grande esforço para obedecê-los, e
em situação de perigo, reage produzindo angústia. Por sua origem, a partir das
experiências do sistema perceptivo, ele é destinado a representar as exigências do
mundo externo, mas também quer ser fiel servidor do Isso, recomendar-se como
objeto, atraindo para si sua libido. No esforço de mediação entre o Isso e a reali-
dade, muitas vezes o Eu reveste os mandamentos inconscientes do Isso com suas
racionalizações, disfarçando os conflitos do Isso com a realidade, fazendo crer, com di-
plomática dissimulação, que leva em consideração a realidade (FREUD, 1933/2010,
p. 221). O Supereu observa cada um dos seus passos (Eu) e lhe impõe determina-
das normas de conduta, sem considerar o Isso e o mundo externo, punindo-o com
tensos sentimentos de inferioridade e culpa.

capítulo 2 • 51
CONCEITO
Libido é um temo utilizado por Freud para designar a energia psíquica. A libido é uma
energia sexual, pois advém do laço com o outro, como pudemos ver desde a fundação do
psiquismo. Sexual em psicanálise tem o sentido amplo de referir-se a todo laço amoroso, não
se restringindo ao ato sexual estrito senso.

Freud propõe um desenho esquemático (figura 2.2) para representar as rela-


ções estruturais do psiquismo, mas destaca que não devemos imaginar fronteiras
bem definidas, como as traçadas artificialmente por uma geografia política; o ideal
seriam áreas cromáticas, que se fundissem umas nas outras, e o espaço conferido
ao Isso deveria ser infinitamente maior que o do Eu ou do pré-consciente.

Figura 2.2  –  Último esquema do aparelho psíquico proposto por Freud (1933/2010, p. 222).

Vemos que Eu e Supereu submergem no Isso e que esse último lida com o
mundo externo, via de regra, pelo Eu. O Eu, como uma organização que se faz em
contato com o mundo externo, é responsável pela lógica própria à consciência e
que nos parece ser bastante afeita ao modo como se constitui a nossa cultura: lógi-
ca da identificação, da tentativa ilusória de definir um si mesmo em detrimento de
um outro, que em nada o habita. Lógica dos contrários, em que interno e externo,
particular e social se contrapõem como dois universos distintos, que podem até vir
a dialogar, contudo, não deixando de se configurar como oposições.

capítulo 2 • 52
ATIVIDADE
01. A segunda tópica freudiana formalizada no texto O eu e o isso (1923/2001) anula a
primeira tópica proposta no texto A interpretação dos Sonhos (1900/2012)?

QUESTÕES PARA ESTUDO


02. Quais as instâncias psíquicas da primeira tópica freudiana? Quais as características de
cada uma delas?

03. Quais as instâncias psíquicas da segunda tópica freudiana? Quais as características de


cada uma delas?

04. Defina e explique as características do inconsciente.

05. O que são deslocamento e condensação?

06. Defina o recalque, e explique o destino da representação e do afeto no processo


de recalque.

Dica de estudo: o brinquedo infantil utilizado por Freud no texto “Nota sobre o bloco
mágico” (1925/2011) ainda está disponível no mercado com o nome de “Lousa Mági-
ca”. Ver de perto o funcionamento desse brinquedo pode ajudar e muito a entender a
dinâmica do aparelho psíquico proposta na psicanálise. Escreva no brinquedo e observe
que a superfície externa (consciência) é sempre uma folha em branco aberta para novas
inscrições, mas nada conserva. Já a parte posterior da lousa (inconsciente) conserva
todos os registros. É interessante ainda observar o que fica registrado desde o primeiro
traço, pois, você poderá perceber que a cada novo registro a memória é alterada. Logo, a
lousa evidencia que o inconsciente não é um reservatório do passado, não é um arquivo
morto, e sim uma memória viva, que produz novas associações a cada nova inscrição.

capítulo 2 • 53
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, Sigmund. (1900/2012). A interpretação dos Sonhos. Tradução de Renato Zwick. Porto
Alegre: L&PM.
__________. (1909/2015). Análise da fobia de um garoto de cinco anos (O pequeno Hans).
Obras completas. Tradução e notas Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras. v. 8.
__________. (1911/2010). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico.
Obras completas. Tradução e notas Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras. v. 10.
__________. (1914a/2010). Introdução ao narcisismo. Obras completas. Tradução e notas Paulo
César Souza. São Paulo: Companhia das Letras. v. 12.
__________. (1915a/2010). A repressão. Obras completas. Tradução e notas Paulo César Souza.
São Paulo: Companhia das Letras. v. 12.
__________. (1915b/2010). O inconsciente. Obras completas. Tradução e notas Paulo César Souza.
São Paulo: Companhia das Letras. v. 12.
__________. (1915c/2010). O instinto e seus destinos. Obras completas. Tradução e notas Paulo
César Souza. São Paulo: Companhia das Letras. v. 12.
__________. (1917/2010). Uma dificuldade da psicanálise. Obras completas. Tradução e notas
Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras. Vol.14.
__________. (1919/2010). O inquietante. Obras completas. Tradução e notas Paulo César Souza.
São Paulo: Companhia das Letras. v. 14.
__________. (1923/2011). O Eu e o Id. Obras completas. Tradução e notas Paulo César Souza. São
Paulo: Companhia das Letras. v. 16.
__________. (1925/2011). Nota sobre o bloco mágico. Obras completas. Tradução e notas Paulo
César Souza. São Paulo: Companhia das Letras. v. 16.
__________. (1925/2011). A negação. Obras completas. Tradução e notas Paulo César Souza. São
Paulo: Companhia das Letras. v. 16.
__________. (1933/2010). A dissecção da personalidade psíquica. Obras completas. Tradução e
notas Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras. v. 18.
__________. (1950[1895]/1976). Proyecto de Psicología. Obras completas. Buenos Aires –
Argentina: Amorrortu Editores S.A. v. 1.

capítulo 2 • 54
3
A interpretação
dos sonhos
A interpretação dos sonhos
Dando sequência aos estudos de psicanálise, dedicaremos esse capítulo aos
estudos sobre o sonho, especialmente ao entendimento de uma matriz interpreta-
tiva que se constitui por meio da escuta do relato do sonho por parte do sonhador.
Com a Interpretação dos sonhos, Freud Introduziu as hipóteses e conceitos funda-
mentais de sua teoria. O estudo desse capítulo possibilita que você, ao localizar
essas hipóteses e conceitos, entenda como vai se constituindo um percurso no qual
a psicanálise se legitima como método clínico.

OBJETIVOS
•  A importância da Interpretação dos Sonhos (1900) para a obra de Freud. Conteúdo mani-
festo e conteúdo latente;
•  O sonhar como trabalho do aparelho psíquico. Processo primário e processo secundário;
•  A interpretação do sonho no âmbito da psicanálise. O sonho como texto. O trabalho de
condensação e o trabalho de deslocamento. A elaboração secundária e o esquecimento
dos sonhos;
•  O modelo de aparelho psíquico conhecido como a primeira tópica freudiana. O sonho como
realização de desejo inconsciente.

O sonho

O sonho é o exemplo privilegiado de processo primário para Freud, pois é


acompanhado de uma diminuição das necessidades orgânicas e por um desliga-
mento dos estímulos externos que tornam supérflua a função secundária do ego.
A precondição essencial do sono, e, portanto do sonho, é a queda da carga en-
dógena em Ψ (Veja em: FREUD, ESB, v. l. p. 405). O bebê dorme quando não
está atormentado por nenhuma necessidade (fome, sede) ou por algum estímulo
externo (frio, por exemplo). Assim como ele adormece depois da mamada, o adul-
to também adormece depois da refeição e da cópula (FREUD, ESB, v. I. p. 444).
No sono o indivíduo se encontra no estado ideal de inércia, livre do acúmulo de
Q. É a reserva de Q acumulada no ego que, ao ser descarregada, possibilita o sono.
A condição prévia dos processos psíquicos primários é, pois, a descarga do ego.

capítulo 3 • 56
Durante o estado de sono, a catexização de Ψ a partir de Φ é extremamente redu-
zida, já que boa parte do contato com os estímulos externos não se faz.
Certas ideias do Projeto serão retomadas posteriormente e veremos que o lu-
gar ocupado pela neurologia será ocupado pela metapsicologia. No Projeto, Freud
tentou colocar a teoria psicológica numa linguagem neurológica; um bom exem-
plo é a construção de um entendimento sobre o sono, especialmente explicado a
partir do princípio de inércia que ocorre no sistema nervoso. Por fim, Freud irá
abandonar a perspectiva neurológica, ainda que se pense numa neurologia fantás-
tica aos modos freudianos. No entanto, são os estudos sobre a função neurológica
no estado de sono que o levarão a descoberta de que durante o sono há a ocorrên-
cia de um processo em Ψ ao qual dedica especial atenção, que é o sonho.
No final da primeira parte do Projeto encontramos o esboço de uma teoria do
sonho, juntamente com a distinção feita entre processos primários e secundários.
Encontramos enunciadas na parte final do Projeto algumas das características
dos sonhos que distinguem o processo onírico que veremos desenvolvidas poste-
riormente em A interpretação de sonhos:
•  Os sonhos são realizações de desejos. Esta foi, sem dúvida, uma das des-
cobertas mais importantes de Freud e que lhe foi sugerida pelo sonho da “injeção
de Irma” (você terá detalhes desse sonho na continuação deste capítulo), sonhado
por ele próprio. Os sonhos são processos primários que reproduzem o modelo da
experiência de satisfação.
•  As ideias oníricas são de caráter alucinatório. “Fecha-se os olhos e aluci-
na-se; torna-se a abri-los e pensa-se com palavras” (ESB, v. I, p. 447). A explicação
que Freud dá para o caráter alucinatório dos sonhos esboça seu futuro conceito
de regressão. Durante a vigília, a corrente de Φ que conduz à motilidade, impede
a catexia retroativa dos neurônios Φ a partir de Ψ, o que não acontece durante o
sono quando essa corrente cessa, fazendo Φ ser retroativamente catexizado.
•  Nos sonhos, as conexões são absurdas, contraditórias ou estranhamente
loucas. Segundo Freud, isso pode ser devido a dois fatores: o primeiro é o que ele
chama de “compulsão associativa”, isto é, o fato de que duas catexias coexistentes
devem necessariamente pôr-se em mútua conexão. O segundo fator mencionado
por ele, para explicar o caráter absurdo dos sonhos, é o do esquecimento que atin-
ge parte das experiências psíquicas do sonhador (por insuficiente catexia do ego).
Assim, o que é recordado é necessariamente fragmentário e, portanto, desconexo.
•  Os sonhos carecem de descarga motora. “Nos sonhos, ficamos paralisa-
dos” (ESB, v. I, p. 446).

capítulo 3 • 57
•  Como a lembrança dos sonhos é fraca, pouco dano causam em compa-
ração com outros processos primários. Os sonhos seguem velhas facilitações e,
além disso, por causa da paralisia da motilidade, não deixam rastro de descarga.
Daí seu caráter não lesivo.
•  Nos sonhos, a consciência fornece qualidade tal como na vida desperta.
Em função disso, Freud escreve: Eis aqui dois conselhos preciosos para o futu-
ro. (ESB, v. I, p. 449). O de que a consciência não se restringe ao ego e o de
que os processos primários não se identificam com os processos inconscientes.
(GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o Inconsciente)

Certas ideias do Projeto, e dentre elas algumas referentes à natureza do pro-


cesso onírico, serão retomadas na obra A interpretação de sonhos e teremos nestas
retomadas um giro teórico que consagrará novos horizontes epistemológicos, com
consequências no campo clínico. Vejamos o que diz Freud em carta a Fliess:

Um homem como eu não pode viver sem um cavalo de batalha, sem uma paixão devorado-
ra, sem um tirano. Encontrei um. A serviço dele não conheço limites. Trata-se da psicologia,
que foi sempre minha meta distante a acenar-me, e que agora, desde que deparei com o
problema das neuroses, aproximou- se muito mais. Estou atormentado por dois objetivos:
examinar que forma irá assumir a teoria do funcionamento mental, se introduzirmos con-
siderações quantitativas, uma espécie de economia das forças nervosas, e, em segundo
lugar, extrair da psicopatologia um lucro para a psicologia normal. (25.05.1895) (MASSON,
J. A., 1986, p.130)

E assim, Freud se dedicou a construir um método interpretativo dos sonhos,


que obtivesse (por meio da interpretação dos sonhos) uma via real que levasse ao
conhecimento das atividades inconscientes da mente. Anunciará, a partir de en-
tão, que o método de interpretação dos sonhos é também o melhor caminho para
o estudo das neuroses. E assim a ideia de que uma pessoa sadia é virtualmente um
neurótico, só que os únicos sintomas que ela consegue produzir são os seu sonhos.
Os sonhos fazem parte dos derivados do conflito psíquico que Freud iden-
tifica para além da esfera sintomática, concernente ao quadro clínico da neurose
aos fenômenos da ‘vida psíquica normal’, juntamente com os chistes, atos falhos,
enganos e esquecimentos, entre outros. O sonho tem um sentido, e esse sentido
é correlativo do trabalho de interpretação. A explicação “neurológica” cede lugar
a uma decifração do sentido. É nesse momento que se articulam o desejo e a lin-
guagem. É a partir dessa articulação que o sonho vai tornar-se o modelo para a

capítulo 3 • 58
compreensão dos sintomas, dos mitos, das religiões, da obra de arte como formas
dissimuladas do desejo. Essa é a razão pela qual Freud afirma que o sonho é o
pórtico real da psicanálise.

Duas afirmações de Freud

•  Os sonhos não são absurdos, mas têm um sentido;


•  Os sonhos são realizações de desejos;
Conclusão: como fenômeno psíquico, os sonhos são produções e comunica-
ções da pessoa que sonha. E a interpretação psicanalítica não é do sonho e sim do
relato. Por quê?
Porque Freud parte do pressuposto que a pessoa que sonha sabe o significado
do seu sonho, apenas não sabe que sabe, e isso ocorre porque a censura a impede
de saber.

Afirmação 1: os sonhos têm um sentido. E é possível um método científico de interpre-


tá-lo, pois o sentido não é imediatamente acessível nem ao sonhador nem ao intérprete.
Freud descobre que o sonho é uma forma disfarçada de realização de desejos e, por
isso, incide sobre ele uma censura, cujo efeito é a deformação onírica, como forma de
proteger o sujeito do caráter ameaçador dos seus desejos.

Dois registros do sonho

•  Conteúdos manifestos do sonho


•  Pensamentos oníricos latentes

Encontrar o sentido do sonho é percorrer o caminho que nos leva do conteú-


do manifesto aos pensamentos latentes, por meio do procedimento da interpreta-
ção, que é realizada em nível da linguagem, e não em nível das imagens oníricas
recordadas. Por isso, o sentido dos sonhos se prende aos vários elementos oníricos
que funcionam como significantes.
Maud Ferreira Mannoni, psicanalista francesa que fundou as instituições
Espace Analytique e École Expérimentale de Bonneuil-sur-Marne, afirma que o
inconsciente comumente aparece como aquilo de que se fala, quando na realidade
ele fala à sua maneira com uma sintaxe particular. Isso que Mannoni fala lembra o
que Lacan postulou: O inconsciente é estruturado como uma linguagem.

capítulo 3 • 59
A função da psicanálise é fazer aparecer a verdade do desejo. Mas qual é esse
desejo? Freud irá dizer que é sempre o desejo da nossa infância, com toda a carga
de interdições a que é submetida. E o sentido que se apreende oculta outro sentido
mais importante, e se expressa pela linguagem que é o lugar do ocultamento. Por
isso que o modo de o desejo aparecer, de transpor a barreira imposta constante-
mente pela censura, é sempre de forma distorcida por meio do sonho manifesto.

Elaboração onírica e Interpretação

Sabemos o quanto, para Freud, a linguagem, longe de ser o lugar transparente da ver-
dade, é o lugar do ocultamento. O sentido que se apreende oculta outro sentido mais
importante, e essa importância será tanto maior quanto maior for a articulação entre a
linguagem e o desejo. Enquanto o discurso chamado racionalista procurava afastar o
desejo para que a verdade pudesse aparecer na sua pureza essencial, a psicanálise vai
procurar exatamente a verdade do desejo. Sua função é fazer aparecer o desejo que o
discurso oculta, e esse desejo é o da nossa infância, com toda a carga de interdições a
que é submetido. O único modo de esse desejo aparecer, de transpor a barreira imposta
continuamente pela censura, é de uma forma distorcida, cujo exemplo privilegiado é o
sonho manifesto. O sonho manifesto, assim como os sintomas, é o efeito de uma dis-
torção cuja causa é a censura. É a esse trabalho de distorção que Freud dá o nome de
“elaboração onírica” ou “ trabalho do sonho” .
GARCIA-ROZA, Freud e o Inconsciente.

Freud compara a censura dos sonhos à censura da imprensa (ESB, vs. XV-XVI, p. 168-
69). Esta última opera de duas maneiras: sobre o texto já pronto ou, previamente, sobre
sua elaboração. No primeiro caso, impõe ao jornal cortes sobre certas notícias que, por
essa razão, serão retiradas, ficando apenas o espaço em branco no papel. Se o jornal
for da oposição, o número de espaços em branco pode ser de tal ordem que sua leitura
se torna ininteligível, ou então ficará para ser lido exatamente aquilo que não interessa
ou cujo interesse é bastante reduzido. A outra forma de censura é a que opera antes
de o jornal estar pronto. Nesse caso, os redatores sabem, de antemão, quais as notícias
que são objeto de censura, podendo assim modificá-las, substituí-las por alusões vagas
ou escrevê-las de forma deliberadamente obscura. Nesse caso, em vez de os espaços
sem branco, serão as obscuridades do texto os indicadores de que houve uma censura
prévia. A censura dos sonhos funciona de maneira análoga. As partes omitidas do sonho
ou aquelas que aparecem de forma estranhamente confusa são os indícios de sua ação.
O trabalho que transforma os pensamentos latentes em conteúdo manifesto, impondo-
lhes uma distorção que os torna inacessíveis ao sonhador, é o que Freud chama de ela-
boração onírica; e o trabalho inverso, que procura chegar ao conteúdo latente partindo
do manifesto que visa decifrar a elaboração onírica, é o trabalho de interpretação.
GARCIA-ROZA, Freud e o Inconsciente.

capítulo 3 • 60
Os quatro mecanismos fundamentais do trabalho do sonho

Condensação

A condensação, verdichtung em alemão, diz respeito ao fato de o conteúdo


manifesto do sonho ser menor do que o conteúdo latente. O conteúdo manifesto
é uma “tradução abreviada” do latente. E o inverso disso não ocorre, ou seja, você
não irá se deparar com a situação de ter uma elaboração do conteúdo manifesto
numa dimensão maior do que o latente.
A condensação pode operar de três maneiras:
1. Omitindo determinados elementos do conteúdo latente.
2. Permitindo que apenas um fragmento de alguns complexos do sonho
latente apareça no sonho manifesto.
3. Combinando vários elementos do conteúdo latente que têm algo em
comum num único elemento do conteúdo manifesto.

Além de ocorrer nos sonhos, o mecanismo da condensação acontece no chiste


(dito espirituoso), nos lapsos, nos esquecimentos de palavras, entre outros. No li-
vro de Garcia-Roza você encontrará um exemplo recorrente nos relatos dos sonhos
dos pacientes. Acompanhe por este trecho:

Um exemplo de condensação no sonho pode ser dado pelo fato de uma pessoa do
sonho manifesto poder estar representando várias pessoas do conteúdo latente. As-
sim, essa pessoa do sonho manifesto pode ser parecida com a pessoa A do conteúdo
latente, mas estar vestida como a pessoa B, ter gestos parecidos com os da pessoa C
e ter a mesma profissão da pessoa D. Características pertencentes a quatro pessoas
distintas.

Deslocamento, verschiebung.

O deslocamento se opera de duas maneiras:


1. Por meio da substituição de um elemento latente por um outro mais
remoto que funcione em relação ao primeiro como uma simples alusão.
2. Por meio da mudança de foco, quando o acento é mudado de um
elemento importante para outros sem importância, é uma forma de descen-
tramento da importância.

capítulo 3 • 61
Veja a anedota contada por Freud para exemplificar o sentimento de estranhe-
za causado pelo mecanismo de deslocamento:

Numa aldeia havia um ferreiro que cometera um crime capital. O júri decidiu que o cri-
me devia ser punido; porém, como o ferreiro era o único na aldeia e era indispensável,
e como, por outro lado, lá havia três alfaiates, um destes foi enforcado em seu lugar.
(FREUD, ESB, vs. XV-XVI, p. 209)

Figuração

O terceiro mecanismo da elaboração onírica é a figuração ou consideração à figu-


rabilidade, rücksichtauf darstellbarkeit. Esse mecanismo seleciona e transforma os pen-
samentos do sonho em imagens. Freud chama atenção para o fato de que essa transfor-
mação não afeta a totalidade dos pensamentos oníricos, pois alguns deles conservam
sua forma original e aparecem no sonho manifesto também como pensamentos.
Se você percebeu que essa transformação do pensamento irá distorcer a ideia
contida, você acertou, pois esse mecanismo é, por si só, um dos responsáveis pela
distorção resultante da elaboração onírica.
Veja que o exemplo de Freud para ilustrar o efeito da distorção é entregarmos
à tarefa de substituir um editorial político de um jornal por uma série de ilus-
trações. O editorial foi feito com palavras e frases, agora temos de transcrevê-lo
apenas com imagens. Para algumas passagens do editorial, a substituição poderá
ser vantajosa, mas para outras, sobretudo aquelas que fizessem uso de palavras
abstratas ou de partes do discurso que implicassem relações, a substituição inevi-
tavelmente irá distorcer a ideia original.

Elaboração secundária

Sekundäre bearbeitung, em alemão, consiste numa modificação do sonho a


fim de que ele apareça sob a forma de uma história coerente e compreensível. Esse
mecanismo tem por finalidade fazer o sonho perder sua aparência de absurdidade
e, com isso, aproximá-lo do pensamento diurno. No artigo Psicanálise, que Freud
escreveu para o Handwörterbuch de M. Marcuse, Freud esclarece que este último
processo (a elaboração secundária) não faz parte da elaboração onírica (FREUD,
1996, p. 293). Isso significa que esse mecanismo, o que não minimiza seu papel
ativo na própria formação do sonho ao apossar-se de um material já pronto — o
das fantasias diurnas — e introduzi-lo no conteúdo do sonho.

capítulo 3 • 62
Sobredeterminação e superinterpretação

Com Freud, aprendemos que o sentido de um sonho nunca se esgota numa úni-
ca interpretação porque todo sonho é sobredeterminado. Isso significa que um mes-
mo elemento do sonho manifesto pode nos remeter a séries de pensamentos latentes
inteiramente diferentes. Além disso, para a psicanálise a sobredeterminação não é
uma característica apenas dos sonhos, mas de qualquer formação do inconsciente.
A sobredeterminação atinge o sonho como um todo e seus elementos isola-
damente, e isso acontece porque o sonho é construído a partir de uma massa de
pensamentos oníricos na qual aqueles elementos que têm articulações mais fortes
e numerosas passam a formar o conteúdo onírico. Se levarmos em conta que os
pensamentos que formam o conteúdo latente do sonho em nada diferem dos
pensamentos da vigília, entenderemos por que eles têm de ser submetidos a uma
deformação como exigência da censura. Esse é o papel da elaboração onírica.
Portanto, a elaboração onírica constitui propriamente o sonho, e não o con-
teúdo manifesto ou os pensamentos latentes. Somado a isso, a condensação e
o deslocamento transformam os pensamentos oníricos – com seu elevado valor
psíquico – no conteúdo manifesto. É nisso que a sobredeterminação diz respeito,
ou seja, a relação do conteúdo manifesto com os pensamentos latentes e não aos
pensamentos latentes entre si.
As questões referentes à sobredeterminação já existiam para Freud desde a
época dos Estudos sobre a histeria, quando afirmava que a gênese das neuroses é
sobre determinada, isto é, que vários fatores devem convergir para a sua formação.
E apesar de Freud ter desenvolvido o problema da sobredeterminação mais em
nível dos processos oníricos, ela se aplica a toda a formação do inconsciente e não
apenas aos sonhos e aos sintomas. A questão da sobredeterminação nos remete
diretamente à questão da superinterpretação, ou seja, remete a uma segunda in-
terpretação que se sobrepõe à primeira, fornecendo outro significado do sonho,
distinto daquele que foi obtido pela interpretação original.
É interessante entender que a superinterpretação não ocorre pelo fato de uma
primeira interpretação ter sido malfeita ou não ter revelado um sentido completo
do sonho. Mesmo que a primeira interpretação tenha sido correta, ela se reveste de
uma incompletude que lhe é essencial, e isso é devido à natureza sobredeterminada
do sonho. Por fim, devemos entender que, a rigor, não há interpretação completa.

capítulo 3 • 63
A injeção de Irma: relato de um sonho de Freud

A injeção de Irma é o relato de um sonho que Sigmund Freud teve na noite


do dia 23 para 24 de julho de 1895, quando dormia no Castelo de Bellevue,
perto de Viena. O comentário sobre esse relato, podemos encontrar no primeiro
volume do memorável Die Traumdeutung, que é verdadeiramente um documento
fundante da teoria psicanalítica, tanto do ponto de vista epistemológico quanto
clínico. O sonho da injeção de Irma é um autoexperimento que expõe um modo de
pensamento e entendimento de Freud.
É interessante perceber que o sonho A injeção de Irma apresenta algumas evi-
dências da própria família do sonhador. Nele figuram Oskan Rie (Otto, cunhado
de Willhem Fliess, médico da família de Freud), Joseph Breuer (Dr. M), Ernest
von Fleischel-Marxow (Leopold), e inclusive a própria Irma, que pode ser pensada
como condensação de Emma Eckstein e de Anna Lichtein.
O fragmento relativo ao sonho A injeção de Irma, em que esta simboliza uma
jovem viúva, que sofria de ansiedade, é antecedido por um pequeno preâmbulo.
E a análise que Freud fez do próprio sonho é um passo profícuo na teoria psica-
nalítica, que tem na concepção da importância dos sonhos, ou seja, da análise da
atividade onírica, a percepção de que o sonho é a realização de um desejo. No
final, Freud declara:

(...) se adotarmos o método da interpretação de sonhos que aqui indiquei, verificaremos


que os sonhos têm mesmo um sentido e estão longe de constituir a expressão de
uma atividade fragmentária do cérebro, como têm alegado as autoridades. Quando o
trabalho de interpretação se conclui, percebemos que o sonho é a realização de um
desejo. (FREUD, 1996, p.155)

Sabe-se que, mais tarde, Freud teria sugerido que no local qual tivera o famoso
sonho, se gravasse uma plaqueta de mármore indicando que naquele lugar o segre-
do dos sonhos fora revelado, como se um enigma havia sido desvendado. Freud
tornava-se o Édipo de nossos tempos, aquele que resolveu enigmas esfíngicos. O
preço, no entanto, foi caro, e o incesto, circunstância que tanto preocupou Freud,
é a maldição que se abateu sobre Édipo. Mas desse mal Freud não teria padecido.
Vejamos o que consta no preâmbulo do relato:
Freud observou que vinha tratando a uma jovem senhora que mantinha laços
cordiais de amizade com ele e com sua família. Por isso observava que a relação

capítulo 3 • 64
de amizade o perturbava como perturbaria a qualquer outro médico. Teria havido
uma interrupção no tratamento de Irma quando Freud recebera a visita de ou-
tro médico, colega mais novo na profissão, que também estivera com a paciente.
O médico teria observado que Irma estava bem, porém não totalmente curada.
Freud reconheceu que se aborreceu com o tom das palavras do amigo. E justamen-
te naquela noite Freud sonhou com circunstâncias vividas naquele momento, o
que nos indica também que sonhos carregam muito dos resquícios do dia vivido,
os chamados restos diurnos.
Acompanharemos o relatou o sonho, conforme sua tradução publicada
em 1996.

Um grande salão – numerosos convidados a quem estávamos recebendo. – Entre eles


estava Irma. No mesmo instante, puxei-a de lado, como que para responder a sua carta
e repreendê-la por não ter ainda aceitado minha “solução”. Disse-lhe: “Se você ainda
sente dores, é realmente apenas por culpa sua”. Respondeu ela: “Ah! Se o senhor pu-
desse imaginar as dores que sinto agora na garganta, no estômago e no abdômen (...)
– isto está me sufocando.” – Fiquei alarmado e olhei para ela. Parecia pálida e inchada.
Pensei comigo mesmo que, afinal de contas, devia estar deixando de perceber algum
distúrbio orgânico. Levei-a até a janela e examinei lhe a garganta, e ela deu mostras
de resistências, como fazem as mulheres com dentaduras postiças. Pensei comigo
mesmo que realmente não havia necessidade de ela fazer aquilo. – Em seguida, ela
abriu a boca como devia e, no lado direito, descobri uma grande placa branca, em ou-
tro lugar, vi extensas crostas cinza-esbranquiçadas sobre algumas notáveis estruturas
recurvadas, que tinham evidentemente por modelo os ossos turbinados do nariz. –
Chamei imediatamente o Dr. M., e ele repetiu o exame e o confirmou (...). O Dr. M. tinha
uma aparência muito diferente da habitual; estava muito pálido, claudicava e tinha o
queixo escanhoado (...). Meu amigo Otto estava também agora, de pé ao lado dela, e
meu amigo Leopold a auscultava através do corpete e dizia: “Ela tem uma área surda
bem embaixo, à esquerda”. Indicou também que parte da pele do ombro esquerdo es-
tava infiltrada. (Notei isso, tal como ele fizera, apenas do vestido.) (...) M. disse: “Não há
dúvida de que é uma infecção, mas não tem importância; sobrevirá uma disenteria, e a
toxina será eliminada.” (...) Tivemos também pronta consciência da origem da infecção.
Não muito antes, quando ela não estava se sentindo bem, meu amigo Otto lhe aplicara
uma injeção de um preparado de propil, propilos (...) ácido propiônico (...) trimetilamina
(e eu via diante de mim a fórmula desse preparado, impressa em grossos caracteres)
(...). Injeções como essas não deveriam ser aplicadas de forma tão impensada (...) E,
provavelmente, a seringa não estava limpa. (FREUD, cit., p. 141-142)

capítulo 3 • 65
Depois de relatar o sonho, Freud fez um interessante comentário a respeito
da vantagem que o sonho teria no momento em que passava por determinados
problemas, e que certamente influenciaram o conteúdo do que fora sonhado:

Esse sonho tem uma vantagem sobre muitos outros. Ficou logo claro quais os fatos
do dia anterior que haviam fornecido seu ponto de partida. Meu preâmbulo torna isso
evidente. A notícia que Otto me dera sobre o estado de Irma e o caso clínico que eu
me empenhara em redigir até altas horas da noite haviam continuado a ocupar minha
atividade mental mesmo depois de eu adormecer. Não obstante, ninguém que tivesse
apenas lido o preâmbulo e o próprio conteúdo do sonho poderia ter a menor ideia do
que este significava. Eu mesmo não fazia nenhuma ideia. Fiquei atônito com os sin-
tomas de que Irma se queixou comigo no sonho, já que não eram os mesmos pelos
quais eu a havia tratado. Sorri ante a ideia absurda de uma injeção de ácido propiônico
e ante as reflexões consoladoras do Dr. M. Em sua parte final, o sonho me pareceu
mais obscuro e condensado do que no início. Para descobrir o sentido de tudo isso, foi
necessário proceder a uma análise detalhada. (FREUD, cit., p. 142)

Freud passou a interpretar sistematicamente o sonho, desde o imaginário


evento do salão. Para Freud, o salão no qual o sonho se passava decorria da proxi-
midade do aniversário de sua mulher, para o qual havia previsão de uma festa, na
qual receberiam convidados. Por outro lado, confessou que não conseguia definir
exatamente os porquês que Irma sentia dores na garganta, abdômen e estômago.
No que se refere ao fato de que ficara alarmado porque não percebera em Irma
nenhuma doença orgânica Freud registrou:

Fiquei alarmado com a ideia de não haver percebido alguma doença orgânica. Isso,
como bem se pode acreditar, constitui uma fonte perene de angústia para um espe-
cialista cuja clínica é quase que limitada a pacientes neuróticos e que tem o hábito de
atribuir à histeria um grande número de sintomas que outros médicos tratam como
orgânicos. Por outro lado, uma ligeira dúvida infiltrou-se em minha mente – vinda não
sei de onde – no sentido de que meu receio não era inteiramente autêntico. Se as
dores de Irma tivessem uma base orgânica, também nesse aspecto eu não poderia
ser responsabilizado por sua cura; meu tratamento visava apenas a eliminar as dores
histéricas. Ocorreu-me, de fato, que eu estava realmente desejando que tivesse havido
um diagnóstico errado, pois, se assim fosse, a culpa por minha falta de êxito também
estaria eliminada. (FREUD, cit., p. 144)

capítulo 3 • 66
Este sonho apresenta vários significados, apresentando motivos e causalidade
do que Freud concebeu como atividade onírica, que forneceria elementos explica-
tivos, ainda que não fosse possível com todo material sonhado.
Quanto à temerosa placa que viu na garganta de Irma, Freud justificou:

A placa branca fez-me recordar a difterite e tudo mais da amiga de Irma, mas também
uma doença grave de minha filha mais velha, quase dois anos antes, e o susto que
passei naqueles dias aflitivos. As crostas nos ossos turbinados fizeram-me recordar
uma preocupação sobre meu próprio estado de saúde. Nessa época, eu vinha fazendo
uso frequente da cocaína para reduzir algumas incômodas inchações nasais, e ficara

sabendo alguns dias antes que uma das minhas pacientes, que seguira meu exemplo,
desenvolvera uma extensa necrose da membrana mucosa nasal. (FREUD, cit., p. 146)

A respeito da presença do amigo, Freud também lançou um interessante regis-


tro que se caracteriza por uma recorrente associação de ideias:

Meu amigo Otto estava agora de pé ao lado da paciente, e meu amigo Leopold a
examinava e indicava que havia uma área surda bem abaixo, à esquerda. Meu amigo
Leopold era também médico e parente de Otto. Como ambos se haviam especializado
no mesmo ramo da medicina, era seu destino competirem um com o outro, e frequen-
temente se traçavam comparações entre eles. Ambos haviam trabalhado como meus
assistentes durante anos, quando eu ainda chefiava o departamento de neurologia
para pacientes externos de um hospital infantil. Cenas como a representada no sonho
muitas vezes ocorreram ali. Enquanto eu discutia o diagnóstico de um caso com Otto,
Leopold examinava a criança mais uma vez e fazia alguma contribuição inesperada
para nossa decisão. A diferença entre o caráter de ambos era como a existente entre
o meirinho Bräsig e seu amigo Karl: um se destacava por sua rapidez, ao passo que o
outro era lento, porém seguro. Se no sonho eu estabelecia um contraste entre Otto e
o prudente Leopold, evidentemente o fazia em favor do segundo. A comparação era
semelhante à que eu fazia entre minha desobediente paciente Irma e sua amiga, que
eu considerava mais sensata do que ela. Percebia então outra das linhas ao longo
das quais se ramificava a cadeia de pensamentos no sonho: da criança doente para
o hospital infantil. - A área surda bem abaixo, à esquerda parecia-me coincidir em
todos os detalhes com um caso específico em que Leopold me impressionara por sua
meticulosidade. Tive também uma ideia vaga sobre algo da ordem de uma afecção
metastática, mas isso também pode ter sido uma referência à paciente que eu gostaria
de ter em lugar de Irma. Até onde eu pudera julgar, ela havia produzido uma imitação
de tuberculose. (FREUD, cit., p. 147).

capítulo 3 • 67
Freud insistiu no fato de que o sonho carregava uma grande ira dele para com
o amigo, que recorrentemente apareceu no sonho de Irma. É o que se percebe, por
exemplo, na avaliação feita a respeito à observação de que as injeções utilizadas no
sonho não poderiam ser aplicadas de forma impensada:

Injeções como essas não deveriam ser aplicadas de forma tão impensada. Aqui, uma
acusação de irreflexão era feita diretamente contra meu amigo Otto. Pareceu-me re-
cordar ter pensado em qualquer coisa da mesma natureza naquela tarde, quando as
palavras e a expressão dele pareceram demonstrar que estava tomando partido contra
mim. Fora uma ideia mais ou menos assim: “Com que facilidade os pensamentos dele
são influenciados! Com que descaso ele tira conclusões apressadas!” – Independen-
temente disso, essa frase no sonho lembrou-me mais uma vez meu amigo morto, que
com tanta pressa recorrera a injeções de cocaína. Como já tive ocasião de dizer, eu
nunca havia considerado a ideia de que a droga fosse ministrada por injeções. Notei
também que, ao acusar Otto de irreflexão no manuseio de substâncias químicas, eu
estava mais uma vez aludindo a história da infeliz Mathilde, que dera margem à mesma
acusação contra mim. Aqui, eu estava evidentemente reunindo exemplos de minha
conscienciosidade, mas também do inverso. (FREUD, op. cit., p. 151-152)

A mesma carga de rancor pode ser captada no fragmento do sonho que indi-
cava que a seringa utilizada em Irma não estava limpa:

E, provavelmente, a seringa não estava limpa. Essa era mais uma acusação contra
Otto, porém derivada de uma fonte diferente. Ocorre que, na véspera, eu encontrara
por acaso o filho de uma velhinha de oitenta e dois anos em que eu tinha de aplicar
uma injeção de morfina duas vezes ao dia. No momento, ela se encontrava no campo
e, disse-me o filho, estava sofrendo de flebite. Eu logo pensara que deveria ser uma in-
filtração provocada por uma seringa suja. Orgulhava-me do fato de, em dois anos, não
haver causado uma única infiltração; empenhava-me constantemente em me certificar
de que a seringa estava limpa. Em suma, eu era consciencioso. A flebite remeteu-
me mais uma vez a minha mulher, que sofrera de trombose durante uma das vezes
em que estava grávida, e então me vieram à lembrança três situações semelhantes,
envolvendo minha esposa, Irma e a falecida Mathilde. A identidade dessas situações
evidentemente me permitira, no sonho, substituir as três figuras entre si. (FREUD, op.
cit., p. 152)

Para Freud, o sonho revelava uma situação específica, tal como ele desejara que
fosse. Por isso, para Freud, seu conteúdo foi a realização de um desejo, e seu motivo
foi um desejo. (FREUD, op. cit., p. 152)

capítulo 3 • 68
Assim afirmando:

Acabo de concluir a interpretação do sonho. Enquanto a efetuava, tive certa dificul-


dade em manter a distância todas as ideias que estavam fadadas a ser provocadas
pela comparação entre o conteúdo do sonho e os pensamentos ocultos por trás dele.
Entrementes, compreendi o “sentido” do sonho. Tomei consciência de uma intenção
posta em prática pelo sonho e que deveria ter sido meu motivo para sonhá-lo. O sonho
realizou certos desejos provocados em mim pelos fatos da noite anterior (a notícia que
me foi dada por Otto e minha redação do caso clínico). Em outras palavras, a conclu-
são do sonho foi que eu não era responsável pela persistência das dores de Irma, mas
sim Otto. De fato, Otto me aborrecera com suas observações sobre a cura incompleta
de Irma, e o sonho me proporcionou minha vingança, devolvendo a reprimenda a ele.
O sonho me eximiu da responsabilidade pelo estado de Irma, mostrando que este se
devia a outros fatores – e produziu toda uma série de razões. O sonho representou
um estado de coisas específico, tal como eu desejaria que fosse. (FREUD, op. cit., p.
152-153)

Vemos nesta declaração de Freud o núcleo do conceito interpretação dos


sonhos, entendido menos como uma circunstância aleatória e inevitável, e mais
como a concreta realização de uma vontade, a exemplo da vontade que Freud
tinha de acertar contas com o amigo, por conta de suas opiniões relativas ao tra-
tamento de Irma.
Por fim, na conclusão, Freud afirma:

Não tenho a pretensão de haver desvendado por completo o sentido desse sonho,
nem de que sua interpretação esteja sem lacunas. Poderia dedicar muito mais tempo
a ele, tirar dele outras informações e examinar novos problemas por ele levantados. Eu
próprio conheço os pontos a partir dos quais outras linhas de raciocínio poderiam ser
seguidas. Mas as considerações que surgem no caso de cada um de meus próprios
sonhos me impedem de prosseguir em meu trabalho interpretativo. Se alguém se vir
tentado a expressar uma condenação apressada de minha reticência, recomendo-lhe
que faça a experiência de ser mais franco do que eu. No momento, estou satisfeito
com a obtenção dessa parcela de novos conhecimentos. Se adotarmos o método de
interpretação de sonhos que aqui indiquei, verificaremos que os sonhos têm mesmo
um sentido e estão longe de constituir a expressão de uma atividade fragmentária do
cérebro, como têm alegado as autoridades. Quando o trabalho de interpretação se
conclui, percebemos que o sonho é a realização de um desejo. (FREUD, op. cit., p. 155)

capítulo 3 • 69
A realização de desejos

Você estudou na parte que trata da interpretação dos sonhos, que Freud faz
duas afirmações: a de que os sonhos têm um sentido e a de que os sonhos são
realizações de desejos. Essas afirmações conduziram Freud a seguinte pergunta:
de onde se originam os desejos que se realizam nos sonhos? E é bem possível que,
para responder essa pergunta, tivéssemos que nos interrogar sobre o que é um
desejo.
Então, começamos pela pergunta: O que é um desejo?

O desejo é como certos personagens importantes de uma peça ou de um filme; sua


entrada em cena requer uma preparação prévia do espectador, a criação de um clima
que valorize o momento de seu aparecimento. Não há necessidade de trompas anun-
ciando a sua chegada, mas também não podemos minimizar sua importância introdu-
zindo-o no meio dos demais personagens. Como ponto de partida, podemos dizer que
um desejo é uma ideia (vorstellung) ou um pensamento; algo completamente distinto,
portanto, da necessidade e da exigência. O desejo se dá ao nível da representação
tendo como correlato os fantasmas (fantasias), o que faz com que, contrariamente à
pulsão (trieb) – que tem de ser satisfeita – o desejo tenha de ser realizado. (GARCIA
-ROZA, 1983, p. 83)

Nesta resposta Garcia-Roza aplica a afirmativa de que um desejo é uma ideia


ou um pensamento. Se essa afirmação não se encontra de forma explícita e literal
em A interpretação de sonhos, encontra-se pelo menos implícita na referência que
Freud faz à definição que Aristóteles fornece sobre o sonho, diz Garcia-Roza.
Aristóteles foi um filósofo grego que disse ser o sonho um pensamento que
persiste no estado de sono. O que Freud nos mostrou foi que esses pensamentos,
por exigência da censura, são deformados pela elaboração onírica, tornando os
pensamentos oníricos irreconhecíveis para a consciência. No entanto, Freud afir-
ma no (ESB, vs. XV-XVI, p. 206) que o material disponível à elaboração onírica
consiste em pensamentos — alguns deles podem ser censurados ou inaceitáveis, porém
são corretamente construídos e expressos. A matéria-prima dos sonhos, portanto, é
constituída de pensamentos que em nada diferem dos pensamentos da vigília, daí
a necessidade de serem distorcidos para não serem identificáveis pela consciência.
É esse material ideativo que constitui o conteúdo latente do sonho, que transfor-
mado pela elaboração onírica, vai aparecer como conteúdo manifesto.

capítulo 3 • 70
É importante entender que o pensamento que constitui a matéria-prima do
sonho não é portador apenas de um sentido, mas também de um valor. Neste
sentido, o desejo diz respeito, especialmente, ao valor do sentido.

PERGUNTA
Voltemos à pergunta inicial: de onde se originam os desejos que se realizam nos sonhos?

Freud aponta inicialmente três origens possíveis (ESB, vs. IV-V, p. 587):
•  Restos diurnos não satisfeitos. Trata-se de desejos que foram despertados
durante o dia e que por algum motivo externo não foram satisfeitos. São desejos
pertencentes ao Pcs/Cs.
•  Restos diurnos recalcados. São desejos que surgiram durante o dia, mas
que, em vez de terem sido impedidos por causas externas, foram suprimidos.
Nesse caso, são desejos pertencentes ao Pcs/Cs que foram transferidos para o Ics.
•  Desejos que nada têm que ver com a vida diurna, mas que pertencem ao Ics
e emergem durante o sono.

A essas três origens, Freud acrescenta uma quarta fonte de desejos oníricos que
são os impulsos decorrentes de estímulos noturnos (fome, sede, sexo etc.).
É bom lembrar que Freud não está dizendo que todos esses desejos são capa-
zes de produzir um sonho. O que quer dizer que um desejo que ficou insatisfeito
durante o dia pode, quando muito, contribuir para o induzimento de um sonho,
sendo incapaz, ele apenas, de produzir um sonho.

Os únicos desejos capazes de produzir um sonho são aqueles que pertencem ao Ics.

Certamente um desejo pré-consciente pode atuar como induzidor de um so-


nho, porém é necessário que ele se apoie sobre um desejo inconsciente. Veja o
que Freud escreve: Minha suposição é que um desejo consciente só pode tornar-se um
induzidor de sonho se obtiver sucesso em despertar um desejo inconsciente do mesmo
teor e conseguir reforço dele. (op. cit., p. 589)

capítulo 3 • 71
ATENÇÃO
Eis aqui um ponto importante para a Psicanálise:
Os desejos provenientes do sistema inconsciente encontram-se em permanente disposi-
ção para uma expressão consciente, no que são impedidos pela censura.

A censura, no entanto, pode ser ludibriada à proporção que o desejo incons-


ciente transfira sua intensidade para um impulso do consciente. Neste caso, o
conteúdo ideativo funciona apenas como indicador do desejo original.

O sonho e os sistemas Pcs/Cs e Ics

Freud chama a atenção para a diferença entre o desejo do sonho e o desejo


de dormir. Para ele o sonho serve ao sono: Os sonhos são coisas que eliminam, pelo
método da satisfação alucinatória, estímulos (psíquicos) perturbadores do sono. (op.
cit., p. 165). Assim, enquanto o desejo de dormir pertence ao Pcs/Cs, o desejo
do sonho pertence ao Ics e é necessariamente infantil, alerta Freud a respeito da
característica fundamental do desejo inconsciente; qual seja: a indestrutibilidade.
Essa característica é de todo e qualquer conteúdo do Ics, e nos leva a pensar uma
questão importante para a psicanálise clínica, que leva uma pessoa a fazer análise.
Voltaremos a este ponto no final desse capítulo.
Importante ressaltar aqui que se tratando de sistema inconsciente, o passado
se conserva integralmente, e como o sonho é um fenômeno regressivo, são os
desejos mais infantis os que funcionam como induzidores permanentes de seus
conteúdos.
Preste a atenção no caminho percorrido pelo desejo na formação do sonho:

Um desejo inconsciente, tendo efetuado uma transferência para os resíduos diurnos,


abandona o Ics e penetra no Pcs/Cs, seguindo um sentido progressivo em direção à
consciência. Esse avanço é, no entanto, detido pelo sono do Pcs/Cs, que impede sua
expressão consciente. A partir daí, o processo é invertido e tem início seu caminho regres-
sivo cuja força propulsora é a atração exercida pelos grupos de lembranças inconscientes.
Não havendo nada que detenha o processo regressivo, ele termina na ativação do sistema
perceptivo, produzindo, de modo alucinatório, a realização do desejo (op. cit., p. 611-12).
GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o Inconsciente.

capítulo 3 • 72
A partir desse esclarecimento, muitas questões se interpõem como a que diz
respeito a certo paradoxo entre afirmativa freudiana de que o sonho é uma realiza-
ção de desejos e nossas experiências com os sonhos que são desagradáveis, inclusi-
ve, sonhos que provocam ansiedade e nos fazem despertar por serem intoleráveis.
Luiz Alfredo Garcia Roza (op. cit. p. 86) nos orienta a respeito, vejamos:

Em primeiro lugar, temos de levar em consideração o fato de que a elaboração onírica


nem sempre obtém sucesso completo na realização de desejos. Pode acontecer que
parte do afeto ligado aos pensamentos oníricos fique excedente no sonho manifesto,
provocando o sentimento de desagrado. Segundo Freud (ESB, vs. XV-XVI, p. 257),
isso acontece porque é muito mais difícil a elaboração onírica alterar o sentido dos
afetos do que o conteúdo do sonho. Os pensamentos oníricos aflitivos são transfor-
máveis pelo trabalho do sonho, mas os afetos, mais resistentes à mudança, podem
permanecer inalterados no sonho manifesto. Há, no entanto, outro aspecto da questão
que frequentemente não é levado em conta e que é da maior importância: quando se
afirma que um sonho é uma realização de desejos e que a realização de um desejo
deve provocar prazer, não fica esclarecido o seguinte: a quem o sonho deve proporcio-
nar prazer? A resposta óbvia e imediata é: ao sonhador. Ocorre, porém, que é o mesmo
sonhador que deseja, repudia e censura seus desejos. A qual sujeito o sonho deve
agradar? Ao que deseja ou ao que censura? Se a realização de um desejo inconscien-
te e recalcado produz prazer, produz também ansiedade ao ego do sonhador.

Veja como é conflitante, mas também real e esclarecedor a relação entre os


sistemas Ics e Pcs/Cs a respeito de como se expressa nossa relação com aquilo que
constituiria um desejo com implicações em nossas vidas.
Há dois desejos que devem ser satisfeitos: o do Ics e o do Pcs/Cs, e eles nunca
estão de acordo. As exigências do Ics não são as mesmas do Pcs/Cs. O mesmo
acontecimento pode provocar prazer, quando se encontra no sistema inconscien-
te, e ansiedade, quando se constitui no sistema pré-consciente. Dessa maneira, os
sonhos desagradáveis são também realizações de desejos. Seu caráter desagradável
vem do fato de que seu conteúdo escapou, em parte, à ação da censura, deixando
aflorar um desejo inconsciente que, por ser inaceitável para a consciência, produ-
ziu ansiedade.
No estudo sobre as neuroses, Freud chamou atenção para os sonhos de pu-
nição, os quais, por mais desagradáveis que sejam, correspondem à realização de
desejos, ou seja: o desejo do sonhador de se punir por ter um desejo proibido. E,
além disso, Freud irá dizer que a punição é também a realização de um desejo: do
desejo de outra pessoa, a que censura (op. cit., p. 262).

capítulo 3 • 73
PERGUNTA
Sobre o que Freud se referiu ao afirmar que nos sonhos de punição estamos sob a ordem
de outro, neste caso um outro interditor?

Se você pensou no conceito de superego, acertou!


Claro que neste momento Freud ainda não tem o conceito de superego for-
mulado, esse só fará seu aparecimento quase um quarto de século mais tarde. No
entanto, ao falar sobre os sonhos de punição, Freud afirma que: o mecanismo de
formação dos sonhos seria grandemente esclarecido em geral se, em vez da oposição
entre “consciente” e “inconsciente”, devêssemos falar da oposição existente entre o “ego”
e o “reprimido”. (ESB, vs. IV-V, p. 594). Decorre deste entendimento o fato de
que um sonho de punição seria um sonho no qual o desejo elaborador não seria
proveniente do Ics, mas um desejo pertencente ao ego — inconsciente, mas não
pertencente ao sistema Inc — cujo objetivo é punir o desejo inconsciente, que é a
fonte originária do sonho. Vinte e três anos mais tarde, Freud chamaria a instância
que exerce esse policiamento do desejo de “superego”.

A concepção evolutiva do aparelho psíquico


©© PIXABAY.COM

Há para a psicanálise uma concepção evolutiva do aparelho psíquico, por este


não surgir pronto e acabado em seus mínimos detalhes quando nascemos. Freud
inclusive supõe que somente após um longo período de desenvolvimento nosso
aparelho psíquico atinge um ponto de perfeição.

capítulo 3 • 74
PERGUNTA
Como acontece esse processo evolutivo do aparelho psíquico?

Veja que resposta surpreendente a psicanálise oferece desde Freud.


Esse processo inicia no estado de desamparo que caracteriza o recém-nascido
humano. É a partir de uma experiência primeva, que se constitui como “ameaça”
de desamparo, que Freud irá explicar como se constitui a experiência de satisfação.
Há no recém-nascido certa organização constituinte do aparelho psíquico, em sua
forma mais primitiva, como regido pelo princípio de inércia neurônica, isto é,
qualquer excitação sensorial que o atingisse seria prontamente descarregada por
via motora. Somente tempos depois esse princípio será substituído pelo princípio
de constância.
No caso do recém-nascido, o organismo não é capaz de realizar uma ação
específica destinada a eliminar a tensão decorrente da estimulação interna. Por
exemplo, um recém-nascido com fome não tem nenhuma condição de se satis-
fazer, seu desamparo permite apenas que ele grite e esperneie impotentemente.
Gritar e agitar as pernas não elimina, porém, o estado de tensão decorrente da
necessidade, causando um estado de desamparo essencial do ser humano em seu
início do desenvolvimento.
Quando o infans experimenta uma excitação decorrente de uma necessidade
interna que é incapaz de executar, uma ação decorrente dessa necessidade interna
só poderá ser empreendida por meio de auxílio externo, ou seja, a mãe ou alguém
que exerça essa função materna. Somente por esse auxílio o bebê atinge a experiên-
cia de satisfação que põe fim ao estímulo interno.

O recém-nascido com fome mostra uma necessidade, que se satisfaz com auxilio de
outro ser humano. Essa experiência de satisfação é acompanhada de uma percepção,
e daí por diante o traço de memória produzido pela imagem perceptiva permanece as-
sociado à satisfação.

capítulo 3 • 75
©© PIXABAY.COM

Fica fácil entendermos então: a experiência de satisfação é acompanhada de


uma percepção, e daí por diante o traço de memória produzido pela imagem
perceptiva permanece associado à satisfação. Quando surge novamente o mesmo
estado de tensão produzido pela mesma necessidade, surge um impulso psíquico
que procurará reinvestir a imagem do objeto e reevocar a própria percepção, isto é,
uma tendência a reproduzir alucinatoriamente a experiência de satisfação.

Em palestra, a psicanalista Maria Rita Kehl explica como se desenvolve o processo de


construção dos recursos psíquicos a partir das primeiras experiências. No início, a ex-
periência da fome é totalmente orgânica e o choro é uma expressão muscular reflexa
de desconforto, ao ser atendido, o recém-nascido vivenciará a primeira experiência de
saciedade – experiência primeva, que passa pelo tubo digestivo e aplaca o desconforto
causado pela fome, como uma expressão orgânica neste momento, explica a palestran-
te. É exatamente a repetição dessa experiência que formará o que Freud chama de tri-
lhamento mental, “que parte da marca mnêmica dessa pequena memória da experiência
de satisfação e da marca psíquica que a experiência de fome, dor ou outro desconforto
imprimiu”. E assim começa a percorrer associações para encontrar a marca mnêmica
do objeto, que é o seio, o leite, a proteção. Kehl fala de uma parábola científica a partir
da observação, sem ter muito como confirmar, de como o humano passa da pulsão à
linguagem. É a primeira representação psíquica, ou seja, representação do objeto que
lhe irá satisfazer, como uma marca, ainda não como linguagem, mas como um meio am-
biente, como uma marca de memória, diz a palestrante. “A criança adquire a primeira re-
presentação psíquica”. A fome como um mal-estar orgânico fica associada ao objeto de
satisfação, e nesse caminho psíquico que parte de uma tensão de necessidade para a
sua representação, constitui-se o que a psicanálise nomeia como sendo o desejo. O de-
sejo não é nem um impulso, ou seja, a falta, e nem o objeto; “o desejo é o trilhamento, é
um movimento psíquico e não um estado, uma coisa, uma marca”, anuncia a psicanalista.

capítulo 3 • 76
Freud conclui que a busca de satisfação como atividade psíquica original tem
por objetivo produzir uma identidade perceptiva. No entanto causa uma decep-
ção quando a identidade perceptiva é obtida pelo caminho da regressão porque o
objeto é alucinado e não real, persistindo, portanto, o estado de necessidade. Daí
a utilização de um critério de verificação da realidade, algo que possa barrar o ca-
minho regressivo antes de se produzir a alucinação. Essa inibição da regressão vai
ser possível graças à formação do ego.
Assim, aprendemos que os sonhos são uma amostra atual do modo primitivo
de funcionamento do aparelho psíquico, pois o que eles produzem é realização
dos desejos como satisfação alucinatória por meio do caminho regressivo. É nesse
sentido que Freud afirma ser o sonho um pedaço da vida mental infantil que foi
suplantado, ou melhor ainda, que foi banido para a noite.
Lembremos que não é apenas na experiência noturna que esse modo de funcio-
namento do aparelho psíquico faz seu aparecimento; a psicose é a sua face diurna.
Quando na vida de vigília ocorre uma redução da censura crítica para além do limite
considerado normal, o caminho que conduz as excitações inconscientes até a consciên-
cia e a motilidade permanece aberto, produzindo a regressão alucinatória (GARCIA-
ROZA, 1983, p. 88). Lembrando que Freud repete a frase de Hughlings Jackson:
Descubra-se tudo sobre os sonhos e ter-se-á descoberto tudo sobre a loucura. (op. cit.,
p. 606, nota 2)
Resta, portanto, entender que os sonhos, a loucura e os sintomas neuróticos
obedecem a uma mesma forma de produção, ou seja, formas distorcidas de realiza-
ções de desejos inconscientes. Em outros termos, são expressões do conflito entre
desejos e a estrutura mental (psíquica) que reage a eles.

ATIVIDADES
01. Joana teve um sonho muito estranho: se encontrava num deserto com seres estranhos
que não se pareciam com os humanos e estavam de passagem. No sonho, pretendia seguir
com eles e se sentia bem com isso. Durante a sessão de análise, o psicanalista começou o
trabalho de interpretação do sonho. Esclareça no que consiste esse trabalho.

02. Rute acordou assustada porque tinha sonhado com um avião, uma tempestade e com o
mar. Ao contar seu sonho para o marido, disse que estava dentro do avião, sobrevoando um
mar imenso e todo azul. Quando aterrissou, foi surpreendida com a notícia de que uma tem-
pestade tinha passado pelo local deixando a população aterrorizada. Como é denominada

capítulo 3 • 77
a modificação imposta ao sonho, pelo sonhador, a fim de que apareça sob a forma de uma
história coerente e compreensível?

03. Ontem à noite, Marcos e Rosa saíram para namorar. Enquanto eles estavam se beijando,
Marcos murmurou o nome de outra mulher: Laura. Rosa ficou furiosa e os dois brigaram.
Correlacione a sentença com a noção de ato falho.

04. Com relação às discussões de Freud em A interpretação dos sonhos, coloque V, se a


proposição for verdadeira, e F, se a proposição for falsa.
( )No sono há uma remissão total da resistência, o que permite o sonho.
( ) Os elementos mudos do sonho referem-se à impossibilidade de associações.
( ) O conteúdo latente do sonho pode ser menor do que o conteúdo manifesto.
( ) O estado de sono aumenta a censura.
( ) A censura opera omitindo elementos no sonho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos, (1900) – Coleção Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud – v. IV, Rio de Janeiro: Imago,1996.
______________. Publicações pré-Psicanalíticas e esboços inéditos, (1886-1889) – Coleção
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – v. I, Rio de Janeiro: Imago, 2006.
_____________. Conferências Introdutórias sobre Psicanálise Parte I e II (1915-1916) – Coleção
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – v. XV, Rio de Janeiro: Imago, 1976.
FREUD, ESB, vs. XV-XVI
____________. Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-
1922). Coleção Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – v. XVIII, Rio de Janeiro: Imago,
1996.
MASSON, J. A. Correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess (1887-1904),
Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.
GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

capítulo 3 • 78
4
O discurso da
pulsão: os três
ensaios sobre a
sexualidade
O discurso da pulsão: os três ensaios sobre a
sexualidade
Neste capítulo, você irá aprender como localizar na teoria da sexualidade os
elementos que compõem um modo próprio de conceber a constituição do sujeito.
Esse modo próprio de constituição do sujeito surge nos estudos freudianos sobre a
sexualidade e se estabelece na articulação com a experiência clínica.
O percurso estabelecido nos estudos freudianos a respeito de uma teoria da
sexualidade infantil conduzirá você a perceber que aquilo que se entende sobre o
narcisismo tem sua origem no autoerotismo
Você estudará também, neste capítulo, sobre o complexo edípico. A questão
do Édipo terá sua importância no que se refere à sexualidade infantil, especial-
mente à superação da teoria do trauma e no destaque das fantasias infantis e suas
articulações com o desejo.

OBJETIVOS
•  A consideração de uma sexualidade infantil. A sexualidade infantil. O sexual e o infantil. O
infantil e o recalque;
•  As características da sexualidade infantil. A sexualidade infantil como fundamento da se-
xualidade humana;
•  Sexualidade e genitalidade. A consideração de uma sexualidade infantil. As características
da sexualidade infantil;
•  Autoerotismo. O exemplo paradigmático do ‘chuchar’. Zonas erógenas. Fase oral e fase
anal. A fase fálica. Complexo de Édipo e complexo de castração.

A elaboração de uma teoria da sexualidade

Você estudou A interpretação de sonhos e certamente relacionou esta obra com o


discurso do desejo. A mesma relação é possível quando falamos dos Três ensaios sobre
a teoria da sexualidade (1905) e o discurso da pulsão. Constituem eles os dois textos
fundamentais sobre os quais se apoia a teoria psicanalítica. (MANNONI, 1976, p. 77)
O título Três ensaios sobre a teoria da sexualidade indica que não é da pulsão em
geral que se trata o texto e sim da pulsão sexual em particular. É importante lembrar
que não é neste estudo que a sexualidade faz sua entrada nos escritos de Freud. Ela

capítulo 4 • 80
já estava presente nos Estudos sobre a histeria (1893-1895) escritos juntamente com
Breuer. Foi o caso de Anna O. (Berta Pappenheim) que colocou em cena a sexuali-
dade, apesar da resistência oferecida por Joseph Breuer. Poderemos pensar até que
foi exatamente por causa dessa resistência, como você pode ver no capítulo 1. Nesta
época, Freud estava às voltas com a teoria do trauma e, por fim, com a ideia de que
não é o passado que é traumático, mas a lembrança do passado a partir de uma expe-
riência atual. Foi exatamente a superação da teoria do trauma que o conduziu a duas
descobertas: a do papel da fantasia e a da sexualidade infantil. Essas duas descobertas
podem ser concentradas numa só: a descoberta do Édipo.
Vale a pena lembrar que a primeira referência feita por Freud ao complexo de
Édipo foi numa carta a Fliess em 15 de outubro de 1897, no momento em que
fazia sua autoanálise ao relatar um sonho que tivera. Escreve a Fliess:

Um único pensamento de valor genérico revelou-se a mim. Verifiquei também no meu


caso, o apaixonamento pela mãe e ciúmes pelo pai, e agora considero isso como um
evento universal do início da infância, mesmo que não tão precoce como nas crianças
que se tornaram histéricas. (...) Sendo assim, podemos entender a força avassalado-
ra de Œdipus Rex, apesar de todas as objeções levantadas pela razão contra a sua
pressuposição do destino. (...) Mas a lenda grega apreende uma compulsão que toda
pessoa reconhece, porque sente sua presença dentro de si mesma. Cada pessoa da
plateia foi um dia, em ponto menor ou em fantasia, exatamente um Édipo e cada pes-
soa retrocede horrorizada diante da realização de um sonho, aqui transposto para a
realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do seu
estado atual. (FREUD, 2006, 358-59)

Um mês antes dessa carta, Freud já havia questionado sua teoria da sedução
sem alcançar uma conclusão que o satisfizesse. Não acredito mais em minha neu-
rótica (teoria das neuroses), escreve ele a Fliess (op. cit., p. 350) e, dentre as razões
apontadas para o fato, duas são particularmente importantes para o que estamos
vendo, lembrou Garcia-Roza no livro Freud e o Inconsciente.

1. O fracasso terapêutico em grande parte dos casos, o que indicava que algo de
importante estava faltando para a compreensão da neurose.
2. A desconfiança na veracidade dos relatos dos pacientes quanto a terem sido
realmente seduzidos pelos pais (todos os pais, não excluindo o meu, tinham que ser
apontados como pervertidos). Ora, se a sedução não era real, não era possível negar a
realidade das narrativas de sedução feitas pelos pacientes. Essas histórias passam a
serem consideradas, então, como fantasias cuja elaboração foi decorrente de impulsos
edipianos anormalmente intensos. (1983, p. 94)

capítulo 4 • 81
São as cartas 69 e 71 escritas na época que expressam um momento funda-
mental do pensamento freudiano: o da passagem para a fantasia, lugar por exce-
lência da cena psicanalítica. É bom lembrar que nesta época Freud não dispunha
ainda do conceito de inconsciente e possuía somente suspeitas sobre a ideia de
uma sexualidade infantil.
Você aprendeu no capítulo anterior que conceito de inconsciente foi elabo-
rado no estudo que Freud realizou sobre a interpretação dos sonhos, e a sexua-
lidade infantil, apesar de já estar contida no mesmo trabalho, será desenvolvida
apenas nos Três ensaios sobre a sexualidade. É neste Três ensaios (...) que Freud, ao
construir uma pré-história da sexualidade, apresenta os elementos indispensáveis
para a compreensão do complexo de Édipo, apesar de ele mesmo não citar uma
única vez o Édipo, a não ser em notas de pé de página que foram acrescentadas
somente depois.
Temos que concordar que, em verdade, Freud nunca abandonou a teoria da
sedução, e pode ter abandonado, mas não totalmente, a tentativa de chegar a
uma cena originária. J. Laplanche diz (1973, p. 50), há uma sedução à qual pra-
ticamente nenhum ser humano escapa: a sedução dos cuidados maternos. Sobre isso,
escreveu Freud:

A relação de uma criança com quem quer que seja responsável por seu cuidado, pro-
porciona-lhe uma fonte infindável de excitação sexual e de satisfação de suas zonas
erógenas. Isso é especialmente verdadeiro, já que a pessoa que cuida dela, que, afinal
de contas, em geral é sua mãe, olha-a com sentimentos que se originam de sua pró-
pria vida sexual: ela a acaricia, a beija, a embala e muito claramente a trata como um
substitutivo de um objeto sexual completo. (1972, p. 229-30).

Se a importância da sexualidade era algo que Freud desde seus primeiros es-
critos já havia assinalado, o que vai ser colocado nos Três ensaios é a perda da
inocência infantil.

Perversos e polimorfos

O tema dos Três ensaios sobre a sexualidade é o pequeno “perverso polimorfo”


com sua sexualidade fragmentada em pulsões parciais vagando entre objetos e ob-
jetivos perversos. As aberrações sexuais é o título do primeiro dos três ensaios, mas
não pense que Freud ao dar este título partilha do saber da época, principalmente
o que se entendia por sexualidade. Na verdade, o que Freud faz é tomar como

capítulo 4 • 82
ponto de partida do seu discurso um saber já existente que ele se propõe não a
continuar ou a refutar, mas, sobretudo, a perverter a exemplo a substituição do
conceito de instikt pelo conceito de trieb.
As teorias existentes tinham base na noção de instinto (instikt). Freud realiza
um desvio teórico e uma alteração no entendimento ao substituir essa noção pelo
conceito de pulsão (trieb). Os Três ensaios sobre a sexualidade nos falam não do
instinto sexual, mas da pulsão sexual, e mais do que isso, constituem a pulsão
sexual como modelo da pulsão em geral, talvez modelo e exemplar único, já que
podemos perguntar se Freud em algum momento conseguiu caracterizar a pulsão
como sendo não sexual.
Se podemos apontar “desvios” ou “perversões” do instinto por se tratar de uma
conduta cujos padrões são fixados hereditariamente, ao tratarmos de pulsão, con-
cebe-se a ideia de um desvio do instinto. A partir disso, Freud começa por definir
o que ele considera o objeto e o objetivo sexual. Veja como ele concebe: o objeto
sexual é a pessoa de quem procede a atração sexual e o objetivo sexual é o ato a que a
pulsão conduz. (op. cit., p. 136)
Essa distinção pode, sem dúvida, aplicar-se também ao instinto com seus pa-
drões fixos de conduta ligando o objetivo e o objeto. A caracterização do instinto
foi determinada pela ciência biológica e, para esta ciência, a função dominante é a
função de reprodução. Por isso que é tida como perversa toda conduta sexual que
não conduza à reprodução, já que ela colocaria em risco a preservação da espécie.
Na pulsão, esses padrões são fixados seguindo outra ordem, ou seja, é a história
do sujeito e sua forma de se organizar psiquicamente perante o prazer. Veja então
que o critério do que seja um desvio é muito mais variável no caso da pulsão do que
no caso do instinto. Sob o ponto de vista psicanalítico, o fundamental é o prazer e
não a reprodução, e assim, certas condutas que seriam consideradas perversas se to-
mássemos como referencial o instinto, deixam de sê-lo se tomamos como referencial
a pulsão. Na pulsão, o objeto apresenta uma variedade que fica impossível definir
o que seria uma perversão. E se tomarmos como referencial o objetivo em lugar do
objeto, a caracterização das condutas desviantes permanece imprecisa.
É importante sabermos que o propósito do primeiro dos Três ensaios não é ra-
tificar as teorias existentes ou escolher dentre elas uma que fosse mais conveniente
aos propósitos de Freud. O que Freud mostrou nesse ensaio foi o quanto a noção
de sexualidade supera em muito os limites impostos pelas teorias biológicas, e isso
implicou rever o próprio conceito de desvio ou perversão. Freud vai definir os des-
vios com mais precisão quando explicar que objetivo sexual é caracterizado como

capítulo 4 • 83
a união dos órgãos genitais que conduz a um alívio da tensão sexual (op. cit., p.
15), e as perversões são definidas como atividades sexuais que se estendem, num
sentido anatômico, além das regiões do corpo que se destinam à união sexual, ou
demoram-se nas carícias prévias, as quais passam a ser mais importantes que o ob-
jetivo sexual final (op. cit., p. 151). Essa explicação não significa que, tal como na
sexologia da época, o referencial voltou a ser o biológico, e se comprova por Freud
declara em seguida que nenhuma pessoa sadia pode deixar de acrescentar algo de
perverso ao objetivo sexual normal e que “a universalidade dessa conclusão é em
si suficiente para mostrar quão inadequado é usar a palavra perversão como um
termo de censura.” (op. cit., p. 163)
Os traços perversos, grau de perversão para Freud, em cada pessoa depende da
maior ou menor resistência oferecida pelas “forças psíquicas”, particularmente no
caso da vergonha e da repugnância. Essas forças psíquicas vão ser responsáveis pela
transformação desses impulsos em sintomas neuróticos, de modo que podemos conside-
rar a neurose como o negativo das perversões (op. cit., p. 168) e os sintomas como a
atividade sexual do indivíduo neurótico.

A sexualidade infantil

A teoria da sexualidade infantil representa o fundamento essencial da teoria


psicanalítica desenvolvida por Freud no segundo dos Três ensaios (...). Essa teoria
causou polêmica na época, o que não significa que a sexualidade infantil teria sido
negada no século XIX. O que se negou foi a forma como Freud abordou o tema,
pois a sexualidade infantil era entendida sob formas de controle e vigilância exer-
cidas sobre a criança. Mesmo ainda não sendo colocada em discurso, a sexualidade
infantil já se fazia notar de forma evidente por meio de um conjunto de práticas
exercidas pelo social no sentido de conjurar a ameaça que ela representava. Esta
ameaça aparece de duas maneiras principais:

Pela negação pura e simples da existência de uma sexualidade


PRIMEIRA na infância.

Pela amnésia que incide sobre os primeiros anos de nossa


SEGUNDA infância.

capítulo 4 • 84
Freud irá mostrar que o não reconhecimento de uma sexualidade infantil sig-
nifica negar o reconhecimento dos nossos próprios impulsos sexuais infantis, isto
é, estamos mantendo o interdito que sobre eles lançamos na nossa infância.
Assim, o “esquecimento” por parte do saber da sexualidade infantil é uma das
formas pelas quais se manifesta a recusa de nossa própria infância perversa.
É justamente a pré-história da sexualidade e as vicissitudes a que ela foi sub-
metida que Freud se propõe reconstruir nos Três ensaios sobre a sexualidade infantil.

A interdição como fundamento da sexualidade humana

•  A proibição do incesto é uma espécie de síntese da natureza e da cultura e


de lugar da passagem de uma a outra;
•  Há um privilégio desse interdito porque ele incide sobre o sexual porque
entre todos os instintos que fazem parte do homem, o instinto sexual é o único
que implica um parceiro para se completar – garante e funda uma troca;
•  Enquanto a interdição do incesto é uma regra social, o complexo de Édipo
diz respeito ao desejo.

Ameaça que se fazia sentir, segundo Freud, de duas maneiras principais:


•  Primeira, pela negação pura e simples da existência de uma sexualidade na infância;
•  Segunda, pela amnésia que incide sobre os primeiros anos de nossa infância.
Ao recusarmos o reconhecimento de uma sexualidade infantil, o que estamos fazendo é
negar o reconhecimento dos nossos próprios impulsos sexuais infantis, isto é, estamos
mantendo o interdito que sobre eles lançamos na nossa infância.
Assim, o “esquecimento” por parte do saber da sexualidade infantil é uma das formas
pelas quais se manifesta a recusa de nossa própria infância perversa.

GARCIA-ROZA. Freud e o Inconsciente.

O autoerotismo e as características da sexualidade infantil

A primeira vez que Freud empregou o termo “autoerotismo” foi numa carta
a Fliess, em 9 de dezembro de 1899, e designou como o estrato sexual mais primi-
tivo, agindo com independência de qualquer fim psicossexual e exigindo somente
sensações locais de satisfação (FREUD, 2006, 377). Esse termo havia sido intro-
duzido por Havelock Ellis, um ano antes num artigo intitulado Auto-erotism: a

capítulo 4 • 85
psychological study. Ele é retomado por Freud nos Três ensaios (...) para caracterizar
um estado original da sexualidade infantil anterior ao do narcisismo, no qual a
pulsão sexual, ligada a um órgão ou à excitação de uma zona erógena, encontra
satisfação sem recorrer a um objeto externo.

Quando Freud afirma que o autoerotismo se caracteriza por uma ausência de ob-
jeto sexual exterior, o que ele está defendendo não é a existência de um esta-
do primitivo “anobjetal”, mas sim o caráter contingente do objeto da pulsão sexual,
pois é exatamente essa característica que vai distinguir a pulsão sexual do instinto,
para o qual haveria um caminho pré-formado em direção a um objeto determinado.

GARCIA ROZA, Freud e o Inconsciente.

Na fase anterior à fase autoerótica, a pulsão sexual perde seu objeto, e conse-
quentemente essa se satisfaz por um “apoio” na pulsão de autoconservação. Essa
satisfação se dá graças a um objeto: o seio materno. É na conclusão do item so-
bre o autoerotismo (ESB, v. VII, p. 187) que Freud coloca a questão de “apoio”
(anlehnung) da pulsão sexual na pulsão de autoconservação:

Nosso estudo do ato de sugar o dedo ou sugar sensual já nos forneceu as três ca-
racterísticas essenciais de uma manifestação sexual infantil. Em sua origem ela se
apoia em uma das funções somáticas vitais; ainda não se tem objeto sexual e é, assim,
autoerótica; e seu objetivo sexual é dominado por uma zona erógena.

Esse entendimento de que a pulsão sexual apoia-se na pulsão de autoconserva-


ção, esclarece o próprio conceito de pulsão, como veremos no próximo capítulo.
Entretanto, desde a compreensão do problema do autoerotismo, o termo apoio
designa a relação que as pulsões sexuais mantêm originalmente com as funções
vitais que lhes fornecem uma fonte orgânica, uma direção e um objeto. Não se
trata do apoio da criança na mãe, mas o da pulsão sexual em outro processo não
sexual, “sobre uma das funções somáticas vitais”, como escreveu Freud. Essa fun-
ção somática vital, que tem uma fonte, uma direção e um objeto específicos, é o
próprio instinto. O modelo dessa função somática vital tomado por Freud é o da
amamentação do lactente.
E um detalhe importante salientado por Freud é que, nesse primeiro momen-
to, o “objeto específico” não é o seio da mãe, mas o leite. É a ingestão do leite, e
não o sugar o seio, o que satisfaz a fome da criança. Poderíamos pensar que, na

capítulo 4 • 86
perspectiva dos instintivos, a função de sucção teria por finalidade a obtenção do
alimento e é este que satisfaz o estado de necessidade orgânica caracterizado pela
fome. Mas, ao mesmo tempo em que isso ocorre, ocorre também um processo pa-
ralelo de natureza sexual: a excitação dos lábios e da língua pelo peito, produzindo
uma satisfação que não é redutível à saciedade alimentar apesar de encontrar nela
o seu apoio.
Certamente você percebeu que o termo apoio designa precisamente essa rela-
ção primitiva da sexualidade com uma função ligada à conservação da vida, mas
ao mesmo tempo assinala a distância entre essa função conservadora e a pulsão
sexual. O objeto do instinto é o alimento, enquanto o objeto da pulsão sexual
é o seio materno — um objeto, portanto, externo ao próprio corpo. É quando
esse objeto é abandonado, e tanto o objetivo quanto o objeto ganham autonomia
com respeito à alimentação, que se constitui o protótipo da sexualidade oral para
Freud: o chupar o dedo.
O exemplo paradigmático do “chuchar” apresenta 3 características essenciais:
•  Em sua origem o ato de sugar o dedo se apoia em uma das funções somá-
ticas vitais;
•  Ainda não se tem objeto sexual e é, assim, autoerótica;
•  Seu objeto sexual é dominado por uma zona erógena.

Tem início, então, o autoerotismo. Com isso, a pulsão sexual deve, portanto,
ser entendida como o desvio do instinto. Vejamos o que diz Freud sobre o autoe-
rotismo nos Três ensaios (...):

Foi a sua primeira e mais vital atividade, sugando o seio da mãe ou substitutos dele
que deve tê-la (a criança) familiarizado com este prazer. Os lábios da criança, a nosso
ver, comportam-se como uma zona erógena, e sem dúvida o estímulo do morno fluxo
do leite é a causa da sensação de prazer. A satisfação da zona erógena se associa, no
primeiro caso, à satisfação da necessidade de nutrição.
De início, a atividade sexual se liga a funções que atendem à finalidade de autopre-
servação e não se torna independente delas senão mais tarde. Ninguém que já tenha
visto um bebê reclinar-se saciado do seio e dormir com as faces coradas e um sorriso
feliz pode fugir à reflexão de que este quadro persiste como protótipo da expressão da
satisfação sexual na vida ulterior. A necessidade de repetir a satisfação sexual desli-
ga-se agora da necessidade de nutrir-se – separação que se torna inevitável quando
aparecem os dentes e o alimento não é mais ingerido apenas pela sucção mas é
também mastigado. A criança não usa um corpo estranho para sua sucção, preferindo

capítulo 4 • 87
uma parte de sua própria pele porque é mais conveniente, porque a torna independen-
te do mundo exterior, que ela ainda não pode controlar, e porque desta forma ela se
proporciona, por assim dizer, uma segunda zona erógena, embora de espécie inferior.
(op. cit., p. 186-87)

É essa dissociação da pulsão sexual com respeito ao instinto que vai constituir
a diferença do sexual como instinto em face do sexual entendido como pulsão.
Esse apoio-dissociação corresponde tanto à ampliação do conceito de sexualidade
como à importância do papel desempenhado pela fantasia como fonte da pulsão
sexual. Você vai entender melhor essa questão na sequência deste capítulo.
Este estado original da sexualidade infantil, anterior ao do narcisismo, con-
duziu Karl Abraham pensar sobre a fase oral como organização sexual pré-genital
canibal – momento em que o prazer está relacionado à ingestão de alimento e à
excitação da mucosa dos lábios e da cavidade bucal – denominado por Freud de
incorporação do objeto.
Eis um desdobramento conceitual importante na constituição do que seja o
narcisismo precedido pela fase autoerótica, que “situa o ego como investimento
libidinal”, chama atenção o psicanalista brasileiro Joel Birman (1984, p. 19). É
importante ressaltar que essa unidade comparável ao eu, ao ego, não existe desde o
começo no indivíduo, e é preciso que ocorra um novo ato psíquico para que essa
unidade narcísica se forme, conduzindo o bebê a identificar-se com ele mesmo,
num encontro com seu próprio eu. Um novo ato psíquico que estrutura o narcisis-
mo se reserva em um fator constitucional das pulsões de autoconservação que, por
não se satisfazerem mais na modalidade fantasmática, exigem um objeto externo.
Agora, temos de compreender a relação que Freud estabelece entre as zonas
erógenas e as pulsões parciais.

Zonas erógenas e pulsões parciais

Na primeira edição dos Três ensaios, Freud não admitia ainda uma organização
da sexualidade anterior à puberdade.
O que havia até essa fase era uma sexualidade anárquica ligada a zonas eróge-
nas. Entende-se por zonas erógenas certas regiões do corpo, especialmente as que
apresentam o revestimento cutâneo-mucoso, que Freud considerava como fon-
tes das diversas pulsões parciais. Assim Freud está entendendo as pulsões parciais
como elementos últimos a que se podia chegar a uma análise da sexualidade e não
partes da pulsão sexual considerada como uma totalidade. Não é a pulsão sexual,

capítulo 4 • 88
entendida como um todo, que ao se fragmentar produz as pulsões parciais, mas
ao contrário, são as pulsões parciais os primeiros elementos que irão constituir as
organizações da libido.
Você pode ver que Freud considerou que as pulsões parciais começam a fun-
cionar num estado anárquico, inorganizado, que caracteriza o autoerotismo; en-
quanto umas estão ligadas a uma zona erógena determinada, outras são indepen-
dentes e definidas pelo seu alvo.
Presente na obra de Freud desde 1896, a noção de zona erógena é comentada
e, consequentemente, elaborada nas correspondências a Fliess (cartas 52 e 75). A
concepção até aquele momento era de que, na infância, a liberação da sexualidade
ainda não estaria tão localizada como posteriormente ocorrerá. A liberação da
sexualidade dar-se-ia não apenas mediante um estímulo externo sobre os órgãos
sexuais ou de excitações internas emanadas desses órgãos, mas também a partir
de ideias, isto é, a partir de traços de memória. A noção de organização pré-genital
só aparece nos textos freudianos a partir de 1913 ainda que restrita à organização
sádico-anal.
Somente em 1915, Freud fará acréscimos no artigo Três ensaios (...) ao tratar
a noção de organização pré-genital infantil de forma mais ampla, incluindo a
organização “oral” , a “anal-sádica” e, posteriormente, a “fálica”, sendo que esta
última só é introduzida em 1923. As organizações pré-genitais significam que
nas organizações da vida sexual as zonas genitais ainda não assumiram seu papel
preponderante, ou seja, a busca do prazer ainda não está dominada pela função
reprodutora sob a primazia da zona genital. A ideia de “organização” da libido
numa fase pré-genital dá a entender que a sexualidade anárquica do período de
autoerotismo comece a se organizar em torno de zonas privilegiadas, mesmo antes
de adquirir uma organização global em torno da zona genital.
Quando Freud articula a sexualidade às necessidades básicas do indivíduo,
quando “apoia” a pulsão no instinto, não está apontando para as semelhanças en-
tre instinto e pulsão, mas sim para as suas diferenças. A noção de apoio da pulsão
constituirá na teoria freudiana algo do “fantasma” que se dirige o desejo, e não
algo do real. Isso é importante para que entender que é em nível da representação
que se passa a psicanálise. A “sexualidade madura” que tem como apoio a função
de reprodução, pois concede primazia à zona genital, representa o desejo, para
além do que se possa pensar no âmbito da necessidade. Dessa forma, a primazia
do genital resultaria não da importância da função reprodutora, mas do privilégio
dessa zona na ordem da inscrição do prazer.

capítulo 4 • 89
As fases de organização da libido

Como vimos, a noção de fase libidinal designa uma etapa do desenvolvimento


sexual da criança caracterizada por certa organização da libido determinada ou
pela predominância de uma zona erógena ou por um modo de relação de objeto.
Freud, juntamente com Fliess (cartas 52 e 75), desde 1896, empenha-se em
estabelecer os períodos do desenvolvimento individual, os quais estariam relacio-
nados a zonas erógenas determinadas. Por isso, emprega desde sempre o termo
“fase”, para com ele designar as etapas da evolução da libido. Por algum tempo,
essas noções restringiam-se a comentários com o amigo, mantendo-as afastadas do
público. Somente em 1915, se transformaria na teoria das fases da libido incluída
nos Três ensaios (...). Veremos que a noção de fase permanece apenas parcialmente
inteligível se a referirmos exclusivamente à de zona erógena. Seu sentido reserva
um entendimento mais amplo, quando entendemos que a partir da noção de zona
erógena e da suposição de que algumas partes do corpo são “predestinadas” no que
se refere à erogeneidade, que Freud desenvolveu seu conceito de “organização” da
libido, implicando certo modo de relação do indivíduo com seu mundo. E isso diz
respeito a duas noções: a de zona erógena e a de relação de objeto.
Encontraremos nos textos psicanalíticos pós-freudianosuma tentativa de subs-
tituir a noção de fase pela de “relação de objeto”. Especialmente nos estudos dos
pós-freudianos M. Balint (1970) e R. Spitz (1958).

Organizações “pré-genitais” iniciais


Duas fases: oral (ou organização sexual pré-genital canibal); sádico-anal.
Em 1923, Freud incluiu uma terceira fase pré-genital, a fálica.

Essa terceira fase, apesar de genital, reconhece apenas uma espécie de genital:
o masculino. Essa fase é dominada pelo complexo de castração e corresponde ao
declínio do complexo de Édipo.

A fase oral

É a primeira fase da evolução sexual pré-genital, e corresponde ao momento em


que o prazer ainda está ligado à ingestão de alimentos e à excitação da mucosa dos
lábios e da cavidade bucal. O objetivo sexual consiste na incorporação do objeto,

capítulo 4 • 90
o que funcionará como protótipo para identificações futuras como, por exemplo, a
significação comer-ser-comido que caracteriza a relação de amor com a mãe.
Veja que aquilo que você aprendeu sobre a noção de “apoio”, isto é, a relação
que a pulsão sexual mantém com o instinto de nutrição. Na fase oral, ao tempo que
adquire independência com relação ao instinto, se satisfaz de forma autoerótica.
A vivência de satisfação (befriedigungserlebnis) constitui a base do desejo.
A experiência oral, nesta fase, se estabelece uma ligação entre o desejo e a satis-
fação. Mais adiante, estudaremos a distinção feita por Freud entre fonte, objetivo
e objeto da pulsão, mas, antecipando, podemos dizer que, no caso da organização
oral, a fonte é a zona oral, o objeto é o seio e o objetivo é a incorporação do objeto.
É importante assinalar que a fase oral não é caracterizada apenas pelo predo-
mínio de uma zona de corpo, mas também por um modo de relação de objeto:
a incorporação. Karl Abraham propôs, em 1924, que se subdividisse essa fase em
duas: a fase oral precoce, caracterizada pela função de sucção, e a fase oral-sádica,
caracterizada, com o aparecimento dos dentes, pela função de morder. Na fase
oral-sádica, o modo de relação – a incorporação – implica a destruição do objeto,
o que deflagra um sentimento de ambivalência com relação a ele. Essa ambivalên-
cia é acompanhada pela fantasia da criança de ser comida ou destruída pela mãe.
Karl Abraham, um dos primeiros e mais ilustres discípulos de Freud, brilhante
a respeito do que se consolidou como teoria da libido e a relação com a escolha da
neurose, declara:

Na infância, o indivíduo tem um intenso prazer no ato de sugar e já nos familiariza-


mos com o ponto de vista de que esse prazer não deve ser creditado inteiramente ao
processo de ingerir alimento, mas sim que se acha em alto grau condicionado pela
significação da boca como zona erógena. (ABRAHAM, 1970, p. 163)

Entende-se com isso que o alimento, enquanto objeto de uma necessidade orgâ-
nica, física, se distingue, como objeto do instinto, daquilo que constituirá o objeto
da pulsão, isto é, o seio materno para o bebê. No desmame, quando esse objeto
é abandonado, ou seja, quando a satisfação desliga-se da necessidade de nutrir-se,
tanto o objeto quanto o objetivo ganham autonomia com respeito à nutrição, cons-
titui-se o protótipo da sexualidade oral para Freud – o chupar o dedo – e o início do
autoerotismo. Este estado original da sexualidade infantil, anterior ao do narcisismo,
conduziu Karl Abraham pensar sobre a fase oral como organização sexual pré-genital

capítulo 4 • 91
canibal – momento em que o prazer está relacionado à ingestão de alimento e à
excitação da mucosa dos lábios e da cavidade bucal – denominado por Freud de
incorporação do objeto. O brilhantismo da investigação realizada por Karl Abraham
está em buscar nos pontos de fixação e na regressão temporal da libido o destaque
para uma teoria psicopatológica que irá explicar sua experiência clínica. Diz ele,

Com base na experiência psicanalítica, viemos a assumir o ponto de vista de que aque-
les elementos da sexualidade infantil que são excluídos de participação na vida sexual
do indivíduo adulto em parte se transformam em certos traços de caráter (...). (ABRAH-
AM, 1924-1970, p. 161)

E lembramos que tal ponto de vista não partiu dele: como é bem conhecido,
Freud foi o primeiro a demonstrar que certos elementos do erotismo anal infantil so-
frem uma transformação dessa espécie. (ABRAHAM, 1924-1970, p. 161).

A fase anal-sádica

A fase anal-sádica é a segunda fase pré-genital da sexualidade infantil (situada


entre os dois e os quatro anos, aproximadamente). Essa fase é caracterizada por
uma organização da libido sob o primado da zona anal e por um modo de relação
de objeto que Freud denomina “ativo” e “passivo”.
Escreve Freud:

Aqui, a oposição entre duas correntes que persiste por toda a vida sexual já está de-
senvolvida: elas não podem ainda, contudo, ser descritas como “masculina” e “feminina,
mas apenas como “ativa” e “passiva”. A atividade é posta em operação pelo instinto de
domínio, por intermédio da musculatura somática; o órgão que, mais do que qualquer
outro, representa o objetivo sexual passivo é a membrana mucosa erógena do ânus.
(FREUD, 1972, 204)

Freud salienta o valor simbólico dessa fase, sobretudo ligado às fezes. Tal é o
caso da significação de que se reveste a atividade de dar e receber ligada à expulsão
e retenção das fezes. Foi o próprio Freud quem, no artigo As transformações do
instinto exemplificadas no erotismo anal (1917), salientou a equivalência simbólica
entre as fezes e o dinheiro. É na fase anal que se constitui a polaridade atividade
-passividade que Freud faz corresponder à polaridade sadismo-masoquismo.

capítulo 4 • 92
A fase fálica

Somente em 1923, Freud tratará dessa fase, no artigo A organização genital


infantil, que corresponderá à organização da libido em que haverá um predomínio
dos órgãos genitais. Marcará o momento posterior às fases oral e anal, e é nela
que a criança reconhece apenas um órgão genital: o masculino. Para Freud, essa
fase apresentará a oposição entre os sexos, por meio da distinção fálico-castrado,
portanto, caracterizada pela castração.
No Dicionário de Psicanálise, Laplanche e Pontalis (1970, p. 238) apresentam
a ideia de um primado do falo já está presente em textos anteriores a 1923. O que
é verdade, pois nos Três ensaios (...) encontraremos duas teses que sustentam esse
ponto de vista:
a) A libido é de natureza masculina, tanto na mulher como no homem.
b) A zona erógena diretriz da criança de sexo feminino é localizada no
clitóris, que é o homólogo da zona genital masculina (glande).

O Complexo de Édipo e o complexo de castração

A importância dessa fase é salientada por Freud ao entender que a mesma


se encontrar ligada ao ponto culminante e ao declínio do complexo de Édipo
pela ameaça da castração. No caso do menino, a fase fálica se caracteriza por um
interesse narcísico que ele tem pelo próprio pênis em contraposição à descoberta
da ausência de pênis na menina. É essa diferença que vai marcar a oposição fáli-
co-castrado que substitui, nessa fase, o par atividade-passividade da fase anal. Na
menina, essa constatação determina o surgimento da “inveja do pênis” e o conse-
quente ressentimento para com a mãe “porque esta não lhe deu um pênis”, o que
será compensado com o desejo de ter um filho.

As transformações da puberdade

As transformações da puberdade constitui o terceiro ensaio e apresenta uma


análise da sexualidade genital, com início na puberdade, quando o desenvolvi-
mento da sexualidade começa a tomar sua forma adulta. As pulsões sexuais que,
até então estavam marcadas por uma forma autoerótica de obtenção de satisfação,
se voltam para um objeto sexual, e isso ocorre porque há uma combinação das
pulsões parciais sob o primado da zona genital.

capítulo 4 • 93
Nessa fase, Freud mostrará que é novo objetivo sexual, ou seja, a descarga
dos produtos sexuais se encontra subordinados à pulsão sexual se voltam para a
função reprodutora. Isso não quer dizer que a obtenção do prazer tenha deixado
de se constituir no objeto final da sexualidade, mas sim que ambos os objetivos se
fundem, conferindo à sexualidade um valor altruístico: a pulsão sexual está agora
subordinada à função reprodutora; tornou-se, por assim dizer, altruística. (FREUD,
1972, p. 213). O caráter altruístico no dizer de Freud diz respeito à reprodução
como manutenção da espécie, ultrapassando o nível da simples satisfação indivi-
dual. Claramente vemos a marca biológica presente no pensamento freudiano, o
que não significa que Freud subordinou a pulsão sexual à função reprodutora, o
que seria reduzir a concepção psicanalítica da pulsão a uma concepção biológica.
Freud escreveu em A pulsão e seus destinos que o objetivo (ziel) de uma pul-
são é sempre a satisfação. É portanto, em termos de satisfação que temos de com-
preender a pulsão e termos claro que o caráter prazeroso ou satisfatório de um
comportamento sexual não está subordinado à reprodução e não pode ter nesta
seu princípio explicativo.
Um dos pensadores que tratou dessa questão de denegar a pulsão foi Michael
Foucault, ao tratar a familiarização da sexualidade do século XIX:

A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de casa.


A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade da função de
reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal legítimo e procriador dita a lei. Impõe-se
como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de falar, reservan-
do-se o princípio do segredo. No espaço social, como no coração de cada moradia, um
único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao
que sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência
das palavras limpa os discursos. E se o estéril insiste e se mostra demasiadamente,
vira anormal: receberá este status e deverá pagar as sanções. (1977, p. 9-10)

A expressão familiarização da sexualidade expõe a desvinculação da sexualida-


de ao prazer; em outras palavras, a subordinação da sexualidade à reprodução. A
psicanálise contribuiu na desestabilização da função normalizadora que a critica a
familiarização da sexualidade expõe.
Freud no texto dos Três ensaios (...), articula as duas perspectivas: a biológica e a
psicológica, ao apontar o crescimento manifesto dos órgãos sexuais externos como
característica essencial da puberdade. E segue, esclarecendo que esse crescimento
é acompanhado pelo desenvolvimento dos órgãos genitais internos, responsáveis

capítulo 4 • 94
pela descarga dos produtos sexuais e pela formação de um novo organismo vivo.
O aparelho assim constituído é movimentado por estímulos originados de três
fontes: o mundo externo, o interior do organismo e a própria vida mental. Essas
três fontes produzem a excitação sexual que se mostra por duas espécies de indi-
cadores: as indicações mentais consistem num estado de tensão e as indicações
corporais consistem em alterações diversas nos órgãos genitais. Eis aí um ponto
que chama a atenção de Freud, o fato de a excitação sexual ter o caráter de tensão,
pois um dos postulados da teoria psicanalítica é o de que o desprazer é resultado
de um aumento de tensão e o prazer é resultado da redução da tensão. Por outro
lado, a excitação sexual é acompanhada por um sentimento de prazer.

PERGUNTA
Como conciliar o sentimento de prazer com o aumento de tensão?

Freud responde a essa pergunta por meio da distinção que faz entre “pré-pra-
zer”, caracterizado pela excitação das zonas erógenas, e “prazer final”, a descarga
das substâncias sexuais.
Há uma estimulação apropriada de uma zona erógena que é a de produzir pra-
zer, o que significa um aumento de tensão que é responsável pelo desencadeamen-
to da energia motora visando à descarga da tensão. E, portanto, a existência de
um estágio em que tensão e prazer se dão conjuntamente, mas que, se não foram
acompanhados de uma descarga motora, resultam em desprazer. No indivíduo
adulto, essa descarga é caracterizada pelo orgasmo, único capaz de proporcionar
uma satisfação final ou “prazer final”.

A teoria da libido

A libido é essencialmente de natureza sexual, sendo irredutível a outras formas


de energia mental não especificadas. E, por isso, o termo “libido” designa uma
energia como substrato da pulsão sexual, que Freud atribuiu um caráter priorita-
riamente quantitativo, para depois considerá-lo qualitativo.
Encontramos aí o principal ponto de discordância entre Freud e Jung, pois
este último via na libido uma energia psíquica indiferenciada em sua origem e que
poderia ser sexualizada ou dessexualizada e que coincidia com a noção de energia

capítulo 4 • 95
mental em geral. Freud se opôs por considerar essa redução supérflua, inclusive
por não oferecer nenhum benefício teórico. Para Freud, a libido é fundamental-
mente de natureza sexual, apesar de poder ser “dessexualizada” no que se refere ao
objetivo, além de ser concebida como a manifestação dinâmica na vida psíquica
de pulsão sexual. (FREUD, 1996, p. 308)
Na primeira formulação da teoria das pulsões (1910/1915), Freud elabora
uma concepção dualista opondo a pulsão sexual às pulsões do ego. Ao entender
que a energia da pulsão sexual é a libido e seu objetivo é a satisfação, estas se
opõem às pulsões do ego que colocariam sua energia a serviço do ego, visando à
autoconservação do indivíduo.
Essa oposição somente irá se desfazer com a introdução do conceito de nar-
cisismo, que tornou claro o fato de que as pulsões sexuais podiam retirar a libido
investida nos objetos e fazê-la voltar sobre o próprio ego. Esse fato, que se tornou
evidente a partir das investigações feitas sobre as psicoses, foi denominado “narci-
sismo” e a libido investida sobre o próprio ego foi chamada de “libido narcísica”.
A libido é invariável e necessariamente de natureza masculina, ocorra ela em homens
ou em mulheres e independentemente de ser seu objeto um homem ou uma mulher
(FREUD, ESB, v. VII, p. 226). Essa declaração não pretende ser o brado machista
da psicanálise, mas, por ser mostrar acima de tudo uma dificuldade fundamental
para Freud, ou seja, definir o que caracteriza o “masculino” e o “feminino”. Vemos
no trecho que antecede a declaração anterior o que Freud afirma: Na verdade, se
pudéssemos dar uma conotação mais definida aos conceitos de ‘masculino’ e ‘feminino’,
seria até mesmo possível sustentar que a libido é invariável e necessariamente (...).
Freud declara que os conceitos de “masculino” e “feminino”, que parecem às pes-
soas comuns como sendo de natureza absolutamente inequívoca, são na verdade
extremamente difíceis de determinar quando se trata de fazer ciência.
Vejamos que do ponto de vista biológico, concebemos o “masculino” e o “fe-
minino” como termos aplicados a indivíduos que se caracterizam por serem por-
tadores de espermatozoides ou óvulos, respectivamente, e por funções ligadas a
eles. Porém, nos termos aplicados por Freud. “masculino” e “feminino” são usados
no sentido de atividade e passividade. E, nesse caso, “uma pulsão é sempre ativa,
mesmo quando tenha em mira um objetivo passivo”. E assim somos conduzidos
a pensar que a libido é invariável e necessariamente de natureza masculina, o que
equivale a afirmar que a libido é invariável e necessariamente de natureza ativa.
Além do mais, Freud não poderia esquivar-se à sua hipótese de o ser humano ser

capítulo 4 • 96
essencialmente bissexual e, com isso desfazer uma possível acusação de machista
pela declaração exposta anteriormente.
Na conclusão dos Três ensaios (...), Freud retoma a questão dos fatores consti-
tucionais e hereditários e o quanto influencia o desenvolvimento da sexualidade.
Mesmo afirmando que os fatores constitucionais e acidentais são complementares,
isto é, não exclusivos, revelam que o peso maior recai sobre os primeiros, a ponto
de fazer afirmações do tipo: em mais da metade dos casos graves de histeria, neurose
obsessiva etc. de que tratei psicoterapicamente, pude provar com certeza que o pai do
paciente sofria de sífilis antes do casamento. (op. cit., p. 243)
Por que não dizer também que, em mais da metade dos casos graves de que
tratou psicoterapicamente, ele pôde provar com certeza que o pai e a mãe do pa-
ciente eram religiosos? Ou então que eram burgueses? Esse tipo de subordinação
do psíquico ao biológico é o mesmo que Freud empreende quando, ao falar da
sexualidade madura, condiciona-a à função reprodutora.
Freud anuncia que os fatores constitucionais podem imputar modificações
subsequente sem direções variadas, mesmo que as modificações não sejam origi-
nárias de fatores também constitucionais, mas que o constitucional pode sofrer
vicissitudes distintas daquelas que decorriam de uma simples manifestação de suas
características iniciais. Ou seja, se o constitucional é o determinante em última
instância, ele não é, porém, o determinante único ou o dominante numa certa fase
do desenvolvimento. Entende-se, então, que o mesmo conjunto de fatores cons-
titucionais de características anormais pode levar a três resultados finais diferentes
(op. cit., pp. 244-46):

É a persistência, na maturidade, de um tipo de relação entre os


PRIMEIRO fatores constitucionais que se pode considerar como anormal.
Nesse caso, o resultado será uma sexualidade perversa.

É aquele que ocorre no curso do desenvolvimento se alguns


dos componentes cuja força seja excessiva forem submetidos
ao processo de recalcamento. Nesse caso, as excitações con-
tinuam a ser geradas, mas são psiquicamente impedidas de
SEGUNDO atingir seu objetivo, sendo desviadas para outras formas de
expressão (sintomas, por exemplo). É nesse sentido que Freud
diz que a neurose é o negativo da perversão: haverá uma vida
sexual aproximadamente normal, mas acompanhada de mani-
festações neuróticas.

capítulo 4 • 97
É a que é possibilitada pelo processo de sublimação. É o que
ocorre quando excitações excessivamente fortes, que surgem
TERCEIRO de determinadas fontes sexuais, encontram uma saída em ou-
tros campos que não o sexual. Essa é, segundo Freud, uma das
fontes da criação artística em particular e da cultura em geral.

Tabela 4.1  –  GARCIA-ROZA, Freud e o inconsciente.

Podemos perceber nos estudos sobre a libido que Freud mantém-se consciente
da dificuldade de se calcular, de maneira eficaz, o peso relativo dos fatores consti-
tucionais e dos acidentais, conduzindo-o a lançar mão do que poderia constituir
um padrão ou mesmo certezas antecipadamente determinadas.

Extrato
A virada decisiva da teoria freudiana, que veio com os Três ensaios... (1905), foi a
ampliação do conceito de sexualidade, que deixou de designar apenas os atos e o
prazer ligados ao aparelho genital e passou a se referir a um conjunto de excitações
e atividades surgidas na infância – que depois, se integram na sexualidade adulta – e
proporcionam um prazer que vai além da satisfação de uma necessidade fisiológica
fundamental (por exemplo respirar e se alimentar são duas atividades que além de
satisfazer necessidades vitais, proporcionam prazer).

RESUMO
•  Primeiro momento do Édipo: a criança, a mãe o pai, três elementos que na verdade são
dois elementos.
•  A criança e a mãe = e da relação entre ambos, marcada pela falta.
•  A criança como o falo da mãe; isto é, o desejo do desejo da mãe. A criança se identifica
com a mãe, identificando-se com o objeto do seu desejo.
•  A criança como falta e não como sujeito; como complemento da falta da mãe.
•  Segundo momento do Édipo: advento do simbólico (linguagem e lei) e intervenção do pai.
•  Ser (o falo) e Ter (o falo).
•  A proibição do incesto – uma espécie de síntese da natureza e da cultura e de lugar da
passagem de uma a outra.

capítulo 4 • 98
•  Há um privilégio desse interdito porque ele incide sobre o sexual porque entre todos os
instintos que fazem parte do homem, o instinto sexual é o único que implica um parceiro para
se completar.
•  Garante e funda uma troca.
•  Enquanto a interdição do incesto é uma regra social, o complexo de Édipo diz respeito
ao desejo.
•  O exemplo paradigmático do “chuchar”

Três características essenciais:


•  Em sua origem, o ato de sugar o dedo se apoia em uma das funções somáticas vitais.
•  Ainda não se tem objeto sexual e é, assim, autoerótica.
•  Seu objeto sexual é dominado por uma zona erógena.
•  Autoerotismo é o estrato sexual mais primitivo – estado original da sexualidade infantil
anterior ao do narcisismo, no qual a pulsão sexual, ligada a um órgão ou à excitação de uma
zona erógena, encontra satisfação sem correr a um objeto externo.

Zonas erógenas:
•  São certas regiões do corpo, sobretudo o revestimento cutâneo-mucoso – fontes das di-
versas pulsões parciais.
A organização das pulsões parciais – fases (organização da libido) conduz a uma libera-
ção da sexualidade.

FASE ORAL Organização sexual pré-genital canibal. Relação de obje-


1a FASE to: a incorporação (dois corpos em um).

FASE SÁDICO-ANAL Organização da libido sob o primado da zona anal. Rela-


2a FASE ção de objeto ativo/passivo.

FASE FÁLICA Reconhece uma espécie de genital: o masculino. Distin-


3a FASE ção fálico/castrado.

As transformações da puberdade e o período de latência: o desenvolvimento da sexuali-


dade começa a tomar sua forma adulta.

capítulo 4 • 99
ATIVIDADES
01. Freud vê na infância um momento privilegiado para a compreensão da organização psi-
cológica humana. Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), atribui à sexualida-
de um caráter perverso, definido a criança como um perverso polimorfo.
Assinale a única opção que não se relaciona com a ideia de perverso polimorfo.
a) Masturbação infantil d) Anarquismo pulsional
b) Autoerotismo e) Submissão da libido à genitalidade
c) Sexualidade pré-genital

02. Pense, reflita e discorra sobre os assuntos a seguir.


a) O pressuposto de uma pulsão (trieb) sexual e sua diferença em relação ao modo como
a sexualidade era normatizada segundo a moral do senso comum.
b) O problema de distinguir entre o normal e o patológico no terreno da sexualidade.
c) A consideração de uma sexualidade infantil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAHAM, Karl. Teoria Psicanalítica da Libido – Sobre o caráter e o desenvolvimento da libido.
Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA, 1970.
BIRMAN, Joel; NICÉAS, Carlos Augusto (Coord). O objeto na teoria e naprática psicanalítica. Rio
de Janeiro: Campus, 1984.
FOUCAULT, M. 1977. História da sexualidade. Rio de Janeiro, Graal, 177.
FREUD, Sigmund. Fragmento de análise de um caso de histeria (1905) Três ensaios sobre a
sexualidade (1905) Edição Standard Brasileira (ESB) das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. v. VII. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1972.
____________. Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-
1922). Coleção Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – v. XVIII, Rio de Janeiro: Imago,
1996.
______________. Publicações pré-Psicanalíticas e esboços inéditos, (1886-1889) – Coleção
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – v. I, Rio de Janeiro: Imago, 2006.
LAPLANCHE J. Vida y muerte em psicoanálisis. Buenos Aires: Amorrortu, 1973.
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. Lisboa: Martins Fontes Ed., 1970.
GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

capítulo 4 • 100
5
Pulsão,
representação e
desejo
Pulsão, representação e desejo
Este último capítulo dos estudos sobre psicanálise mostrará para você que o
discurso sobre a pulsão surge a partir do estudo de 1905, os Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade.
É importante termos claro que nos ensaios que constroem uma teoria da se-
xualidade não encontraremos uma teoria sobre o instinto sexual, mas sim sobre a
pulsão sexual. E mais do que isso, estes ensaios constituem a pulsão sexual como
modelo único da pulsão em geral, já que Freud em nenhum momento conseguiu
caracterizar a pulsão como sendo não sexual.
Por fim, reunimos neste capítulo elementos bases para introduzir o conceito
de pulsão e situar seus desdobramentos ao longo da obra de Freud.

OBJETIVOS
•  O problema de distinguir entre o normal e o patológico no terreno da sexualidade e a defi-
nição freudiana de sexualidade humana;
•  O conceito de pulsão sexual. Pulsões do ego e pulsões sexuais. Objeto sexual e objetivo
sexual. Os elementos e os destinos da pulsão;
•  Pulsão de vida e pulsão de morte. Além do princípio do prazer;
•  O pressuposto de uma pulsão (Trieb) sexual e sua diferença em relação à norma moral. O
conceito de pulsão e sua relação com o instinto.

Conceitos metapsicológicos

Você que acompanhou os dois capítulos anteriores percebeu que Freud, nos
escritos A interpretação de sonhos e os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade,
construiu, no primeiro texto, o discurso sobre o desejo e, no segundo, o discurso
da pulsão. Sabemos hoje que desejo e pulsão constituem os pilares sobre os quais
se assenta a teoria psicanalítica, pois terão muito mais transparência teórica ao
longo da obra freudiana.
Neste capítulo você terá uma análise mais detalhada dos conceitos apresentados
nos escritos A interpretação de sonhos e Três ensaios (...) com mais detalhes esclarece-
dores para um entendimento mais profundo. Teremos os conceitos fundamentais

capítulo 5 • 102
da teoria psicanalítica que importam particularmente aos temas deste capítulo.
Vários desses conceitos, como os de pulsão, recalcamento e inconsciente, foram
desenvolvidos e mais explicitados nos chamados escritos da metapsicologia.
A metapsicologia freudiana, compondo-se de vários artigos, apresenta as bases
teóricas sobre as quais está assentada a psicanálise. Os cinco artigos que compõem
o conjunto — As pulsões e seus destinos, O recalque, O inconsciente, Suplemento me-
tapsicológico à teoria dos sonhos e Luto e melancolia — fazem parte de uma coletânea
de 12 artigos da qual os outros sete se perderam. Todos os artigos que restaram
foram escritos no ano de 1915 quando Freud teve sua clínica bastante reduzida em
decorrência da eclosão da Primeira Guerra Mundial.

CONCEITO
O termo “metapsicologia” possui, em Freud, dois sentidos:
1o sentido, mais explícito, diz respeito à metapsicologia entendida como um conjunto de
modelos conceituais que constituem a estrutura teórica da psicanálise.
2o sentido é fornecido pelo próprio Freud em algumas cartas dirigidas a Fliess e numa
passagem de A psicopatologia da vida cotidiana, em que o termo é empregado pela primeira
vez, e diz respeito às relações entre a metapsicologia e a metafísica (a semelhança dos ter-
mos não é casual).

Este segundo sentido reserva uma visão de Freud muito interessante que apa-
rece no texto A psicopatologia da vida cotidiana, e que mais tarde veremos que tem
relação com o conceito de pulsão. Ao declarar acreditar que é a psicologia pro-
jetada no mundo externo que constituirá uma grande parte da visão mitológica
do mundo – e isso alcançaria as mais modernas religiões – reconhece algo funda-
mentado nos fatores psíquicos e nas relações do inconsciente. O desenvolvimento
dessa ideia além de representar uma tentativa de elaboração de uma explicação
científica dos mitos, das crenças e das religiões, representa também uma velha
aspiração de Freud que era chegar ao conhecimento filosófico. Na carta que Freud
escreveu ao amigo Fliess em 1896, ele declara: Nos meus anos de juventude a nada
aspirei tanto como ao conhecimento filosófico, e estou a realizar esse voto, passando da
medicina à psicologia. (Carta de 2-3-1896)
Veremos que, com essa aspiração, Freud se lança no que iremos conhecer como
metapsicologia. Esse termo será definido no artigo O inconsciente: Proponho que,

capítulo 5 • 103
quando tivermos conseguido descrever um processo psíquico em seus aspectos dinâ-
mico, topográfico e econômico, passemos a nos referir a isso como uma apresentação
metapsicológica (FREUD, 2006a, 208). A proposta é de apresentar uma descrição
minuciosa de qualquer processo psíquico quando enfocado sob os pontos de vista
de sua localização em instâncias (ponto de vista tópico), da distribuição dos inves-
timentos (ponto de vista econômico) e do conflito das forças pulsionais (ponto de
vista dinâmico). Somam-se outros textos que tem por base essa definição:
•  O Projeto (1895);
•  O capítulo VII de A interpretação de sonhos;
•  Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico (1911);
•  Uma nota sobre o inconsciente em psicanálise (1912);
•  Sobre o narcisismo: uma introdução (1914);
•  Além do princípio de prazer (1920);
•  O Ego e o Id (1923); e
•  Esboço de psicanálise (1938).

O biógrafo E. Jones revela, com os relatos de Freud, que o mesmo se dedi-


cou a esses artigos como tendo sido uma tentativa de síntese de todo o trabalho
realizado como um fechamento final de sua obra. E esse propósito expressa uma
questão pessoal de Freud, que completava nessa época, 60 anos, e o pensamento
da morte lhe era cada vez mais frequente. Freud acreditava supersticiosamente que
morreria aos 62 anos e, quando chegou nesta idade, cancelou as conferências que
fazia anualmente na Universidade.
Tudo levava a confirmar que Freud acreditava estar no fim da vida, e a grande
síntese oferecida pela metapsicologia é uma prova. E dizer que viveu mais um
quarto de século, e poder vislumbrar as profundas transformações que a psicaná-
lise, por obra sua, subsistiu nesse período.

O conceito de pulsão

CONCEITO
O termo “pulsões” aparece cedo na obra freudiana, e é instrumentalizado a fim de com-
preender a impossibilidade de satisfação absoluta que pauta a sexualidade humana (infantil
e adulta) na qual o sexo anatômico nem sempre coaduna com os fins que lhe são dados.

capítulo 5 • 104
Freud escreveu nas primeiras páginas do artigo As pulsões e seus destinos: A teo-
ria das pulsões é, por assim dizer, nossa mitologia. (FREUD, 1976, p.119)

PERGUNTA
O que Freud quis exatamente dizer nessa afirmação?

Entende-se que, apesar de uma teoria científica tornar-se compreensível a par-


tir de uma série de fatos empíricos que, como no caso de Freud, de suas observa-
ções clínicas, ela depreende de um conjunto de conceitos que não são retirados
dessas observações, mas que lhes são impostos a partir de um lugar teórico. O que
não significa valer-se de noções descritivas e, sim, de construtos teóricos que não
designam realidades observáveis ou mesmo existentes.
É assim que temos a ficção teórica, ou seja, construções teóricas que permi-
tem e produzem uma inteligibilidade distinta daquela fornecida pela descrição
empírica. São ficções por serem conceitos que não descrevem o real, no entanto,
eles produzem o real, pois permitem uma descrição do real segundo um tipo de
articulação que não pode ser retirado desse próprio real enquanto “dado”. Assim
emergem as autênticas ficções científicas. Na obra de Freud temos a exemplo o
caso da pulsão (trieb), que nunca se dá por si mesma (nem em nível consciente,
nem em nível inconsciente), ela só é conhecida pelos seus representantes: a ideia
(vorstellung) e o afeto (affekt). Além do mais, ela é meio física e meio psíquica.
Daí seu caráter “mitológico”.

A pulsão (trieb) nunca se dá por si mesma (nem em nível consciente, nem em nível in-
consciente). Além do mais, ela é meio física e meio psíquica. Daí seu caráter “mitológico”.

Para seguirmos, temos que rever uma questão de tradução que na literatura
psicanalítica pode se constituir num entrave sério. Trata-se dos termos “pulsão” e
“instinto”. O termo empregado por Freud, no original alemão, é trieb, que tem
um significado distinto do termo instinkt. São dois termos que existem em língua
alemã e o emprego, por parte de Freud, do primeiro, deixa bem claro que ele
pretende muito mais acentuar a diferença entre ambos do que identificá-los. A
confusão não deve ser creditada a Freud, mas a James Strachey, que ao traduzir as
Gesammelte Werke com vistas à elaboração da Standard Edition preferiu traduzir

capítulo 5 • 105
trieb por instinct (em inglês). Entretanto, instinct seria a tradução adequada para
instinkt e não para trieb, cujo significado usual se aproxima muito mais de “im-
pulso” do que de “instinto”. No prefácio geral à Standard Edition, Strachey faz a
defesa de sua tradução e podemos concordar com ele que Freud deixa bem clara
a definição do termo trieb. Ocorre, porém, que as obras de Freud são atualmente
mais difundidas pela Standard Edition do que pelas Gesammelte Werke, e o leitor
da tradução inglesa deve tomar atenção. Em português, ficou consagrada a tradu-
ção de trieb por “pulsão” no lugar de “instinto”.
Pulsão é um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, bem como é
o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam
a mente (FREUD, 2006a, p. 142). Essas duas definições apresentadas por Freud,
num mesmo parágrafo do artigo As pulsões e seus destinos, trazem o inconveniente
de confundir a pulsão enquanto representante dos estímulos internos, com os
representantes psíquicos da pulsão. Para esclarecer, recorremos ao artigo O in-
consciente em que Freud afirma que uma pulsão nunca pode tornar-se objeto da
consciência e que mesmo no inconsciente ela é sempre representada por uma ideia
(vorstellung) ou por um afeto (affekt). Portanto, uma coisa é a pulsão, outra coisa
é o representante psíquico da pulsão (psychischerepräsentanz), e outra coisa ainda
é a pulsão enquanto representante de algo físico. Ideia ou representante ideativo
(vorstellungrepräsentanz) e o afeto (affekt) são os representantes psíquicos da pulsão
(psychischerepräsentanz).

Um motivo da confusão conceitual é fornecido pelo termo vorstellung, consagrado no


vocabulário filosófico alemão para designar:
1. Aquilo que está presente no espírito (por oposição a “coisa”);
2. A percepção de um objeto;
3. A reprodução da percepção, isto é, a recordação;
4. O conteúdo de um ato de pensamento.

Em todos esses casos, a vorstellung designa uma realidade psíquica por opo-
sição a algo que não é psíquico. Em português, a tradução mais adequada para
vorstellung seria, “representação”. Freud distingue a vorstellung (representação) do
afeto, e designa a ambos como representantes psíquicos da pulsão. Assim, o afeto
é uma representação da pulsão sem ser uma vorstellung.
Veja na tabela a seguir o significado dos vários termos empregados por Freud
em torno da noção de representação:

capítulo 5 • 106
É um dos representantes psíquicos da pulsão. Enquanto tal opõe-se ao afeto

REPRESENTAÇÃO
(affekt). Nesse sentido, o termo não é empregado por Freud tal como foi

(VORSTELLUNG)
consagrado pela filosofia alemã. Não se trata apenas de um correlato em
nível psíquico do objeto, mas de uma inscrição desse objeto nos sistemas
mnêmicos. Veremos mais adiante como Freud vai distinguir a “representação
da palavra” e a “representação da coisa”, ambos entendidos como represen-
tação (vorstellung).
(PSYCHISCHEREPRÄSENTANZ)
REPRESENTANTE PSÍQUICO

É a “representação” psíquica da pulsão. Abarca tanto o representante ideati-


vo (vorstellungrepräsentanz) como o afeto (affekt). Esse termo é empregado
por Freud com um sentido às vezes duplo: algumas vezes ele o utiliza para
designar a própria pulsão enquanto representante das excitações somáticas,
e outras vezes ele o emprega para designar o representante ideativo e o
afeto enquanto representantes da pulsão.
(TRIEBREPRÄSENTANZ)
REPRESENTANTE
PULSIONAL

Freud emprega esse termo ora como sinônimo de representante ideativo,


ora como sinônimo de representante psíquico. De qualquer forma, designa
uma expressão psíquica da pulsão.
(VORSTELLUNGREPRÄSENTANZ)
REPRESENTANTE IDEATIVO

É um dos registros da pulsão no psiquismo (o outro é o afeto): o represen-


tante ideativo é o que constitui, propriamente, o conteúdo do inconsciente
(pois o afeto não pode ser inconsciente) e também aquilo que constitui o
inconsciente, já que é sobre ele que incide o processo de recalcamento.
Como veremos uma pulsão não pode ser recalcada; o que é recalcado é o
seu representante ideativo.

É o outro registro em que se faz a representação psíquica. Ele é a expressão


(AFFEKT)
5. AFETO

qualitativa da quantidade de energia pulsional. O afeto e o representante


ideativo são independentes.

Tabela 5.1  –  GARCIA-ROZA, Freud e o inconsciente.

Podemos entender então que o afeto, para que seja no nível inconsciente,
tem de se ligar a uma ideia (representante ideativo), e quanto aos destinos, afeto e

capítulo 5 • 107
representante ideativo apresentam diferentes destinos. Essas indicações são apenas
iniciais, pois Freud vai atribuindo a esses termos um amplo sentido ao apresentar
uma análise dos conceitos metapsicológicos, como ocorre com o conceito de pulsão.
Freud oferece o conceito de pulsão logo nas primeiras páginas de A pulsão e
seus destinos, e a identifica com seu representante psíquico: uma pulsão nos apare-
cerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o
representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a
mente (...). Verificaremos que irá identificar a pulsão com seu representante psíqui-
co, o que também aparece na análise feita sobre o caso Schreber (FREUD, 1976,
p. 99): consideramos a pulsão como sendo o conceito situado na fronteira entre
o somático e o mental e vemos nele o representante psíquico de forças orgânicas,
e num acréscimo feito em 1915 aos Três ensaios sobre a sexualidade (FREUD,
1996a, p. 171): por “pulsão” deve-se entender provisoriamente o representante psí-
quico de uma fonte endossomática (...). Nesta última definição a pulsão é identifica-
da com o representante psíquico.
No artigo O inconsciente (FREUD, 2006a, 203), Freud afirma que uma pulsão
nunca pode tornar-se objeto da consciência — só a ideia (vorstellung) que a representa
(...) e que, mesmo no inconsciente, uma pulsão não pode ser representada de outra for-
ma a não ser por uma ideia. Como você pode ver, temos de distinguir a pulsão da-
quilo que a representa, acentua-se, portanto, a distinção entre a pulsão enquanto
representante de fontes somáticas e os representantes psíquicos da pulsão. Se, por
um lado, a pulsão representa psiquicamente as excitações emanadas do interior do
corpo, por outro lado ela é representada pelos seus representantes psíquicos, ou
seja, a ideia e o afeto.

A pulsão possui quatro características fundamentais:


1. Fonte (quelle), a zona erógena de onde emana a excitação dita “sexual” (boca,
mamilo, esfíncter, aparelho genital);
2. Impulso/pressão (drang), o motor ou força empreendida para a satisfação,
uma força ou medida da exigência de trabalho;
3. Objeto, que é variável (pessoa, objeto ou qualquer coisa), sobre o qual são
concentrados os investimentos pulsionais, é o que há de mais variável na pulsão;
4.. Alvo/objetivo (ziel), que é sempre sua satisfação, significando apaziguamento
de uma tensão, redução da tensão produzida pela pressão (drang).

capítulo 5 • 108
Se Freud diz que é preciso distinguir os 4 termos da pulsão, os quais aparecem
disjuntos: primeiro, o impulso; segundo, a fonte; terceiro, o objeto; quarto, o alvo,
Lacan destaca que essa enumeração, que poderia parecer natural, não é tão natural
assim. Por outro lado, são elementos disjuntos, descontínuos. Para Freud, exami-
nar o conceito de pulsão em função de sua fonte, sua pressão, seu objetivo e seu
objeto, permite estabelecer com esses referenciais algumas diferenças profundas
entre a concepção psicanalítica e a concepção psicológica da subjetividade.

Fonte (quelle)

A fonte (quelle) da pulsão é corporal, não psíquica; é um processo somático que


ocorre num órgão ou parte do corpo e cuja excitação é representada na vida mental pela
pulsão (FREUD, 2006a, p. 143). Vemos que a pulsão pode estar representando
algo físico, o que é diferente de falarmos dos representantes psíquicos da pulsão.
Freud emprega dois sentidos para o termo “fonte”; o primeiro diz respeito às
fontes da pulsão sexual e nesse caso o termo se apresenta com alguma ambiguidade
pelo número e variedade das fontes apresentadas por ele. A ambiguidade está no
emprego da noção de fonte da pulsão em que Freud mistura sob a mesma rubrica
fontes interna e fontes externas (indiretas) e assim irá colocar em risco a afirmação
de que a pulsão se origina sempre de uma fonte endógena. Nos Três ensaios sobre a
sexualidade Freud apresenta como fontes da sexualidade infantil, além da excitação
das zonas erógenas, as excitações mecânicas, a atividade muscular, os processos
afetivos e até mesmo a concentração da atenção numa tarefa intelectual (FREUD,
1996). O segundo emprego do termo “fonte” é o que está contido em As pulsões
e seus destinos, na declaração de Freud sobre as pulsões como sendo inteiramente
determinadas por sua origem numa fonte somática (FREUD, 2006a). E entende-
se por “fonte somática” ou “fonte orgânica” tanto o órgão de onde provém a exci-
tação como o processo físico-químico que constitui essa excitação. E afirma Freud
que o estudo das fontes das pulsões está fora do âmbito da psicologia (op. cit., p.
143): o que poderia levar a pensar em uma retirada do interesse pela questão da
fonte da pulsão.

capítulo 5 • 109
ATENÇÃO
Essas questões foram apresentadas no capítulo 4 e aqui adquirem uma análise mais pro-
funda. O acréscimo feito em 1915 aos Três ensaios (...) sobre a sexualidade (FREUD, 1996a
p. 187), esclarece: Nosso estudo do ato de sugar o dedo ou sugar sensual já nos deu as três
características essenciais de uma manifestação sexual infantil. Em sua origem ela se apoia
em uma das funções somáticas vitais (...). O emprego que Freud faz aqui do termo “apoio” é
bastante preciso. Não se trata do apoio do recém-nascido na mãe, mas do apoio da pulsão
sobre uma das funções somáticas vitais, isto é, sobre o instinto.

A noção de apoio tem considerada importância e não deve ser aplicada apenas
no que diz respeito à relação do recém-nascido com a mãe. É importante salientar
que o “apoio” compõe a chave para a compreensão do conceito de pulsão, pois
se caracteriza por estarem as pulsões sexuais ligadas, em sua origem, às pulsões de
autoconservação e cujo exemplo mais expressivo é o da atividade do lactente. Essa
atividade é devido à satisfação decorrente da ingestão do alimento que é paralela à
excitação dos lábios e da língua pelo peito, provocando um outro tipo de satisfa-
ção que apesar de apoiar-se na satisfação da necessidade instintiva, não se reduz a
ela. Como essa segunda satisfação é de natureza sexual, vê-se um desvio em relação
à função, o que constitui a pulsão.

CONCEITO
Jean Laplanche (1973) emprega o termo clinamen, retirado da física epicureia, para
caracterizar esse desvio do instinto que é constituinte da pulsão.

Sobre a “fonte” da pulsão, esta encontra a sua resposta no apoio que tem sobre
o instinto. A pulsão é o instinto que se desnaturaliza, que se desvia de suas fontes
e de seus objetos específicos; ela é o efeito marginal desse apoio-desvio. A fonte da
pulsão é, portanto, o instinto. Sabemos que, de fato, a pulsão se apoia no instinto,
mas não se reduz a ele.

capítulo 5 • 110
CONCEITO
Em francês étayage assinala exatamente o conceito de apoio, levando a entendê-lo
como o momento de constituição de uma diferença.
A que diferença se refere o conceito de étayage, ou seja, de apoio? O momento do apoio
é ao mesmo tempo um momento de ruptura. Dessa forma, o apoio marca não a continuidade
entre o instinto e a pulsão, mas a descontinuidade entre ambos.

Pressão (drang)

A pressão (drang) é a segunda dimensão da pulsão. Diz Freud: Por pressão de


uma pulsão, escreve Freud, compreendemos seu fator motor, a quantidade de força
ou a medida da exigência de trabalho que ela apresenta (FREUD, 2006a, p. 142).
A exigência de trabalho, que é o caráter ativo da pulsão, ocorre mesmo quando
falamos em pulsões passivas. A respeito destas, mais tarde Freud irá esclarecer que
a rigor elas não existem, o que realmente existe são pulsões cujo objetivo é passivo
como, por exemplo, no caso do exibicionismo ou do masoquismo. Aprendemos
com Freud que toda pulsão é ativa e a pressão é a própria atividade da pulsão, seu
fator dinâmico. É esse fator dinâmico como registro da pulsão, que possibilitará
uma elaboração conceitual mais precisa dos pontos de vista dinâmico e econômico
em psicanálise.
É bom lembrar que Freud, desde seus primeiros escritos, registrou essa exi-
gência de trabalho como uma marca distintiva do funcionamento do aparelho psí-
quico. A elaboração do conceito de pressão como elemento motor importante
explicita a ação específica da forma psíquica de eliminação da tensão.

Objetivo (ziel)

O terceiro elemento em relação ao qual Freud define a pulsão é o objetivo


(ziel). A respeito do objetivo, Freud diz: é o que há de mais variável na pulsão (op.
cit., p. 143). Essa variação é porque o objetivo da pulsão é sempre a satisfação,
sendo que “satisfação” é definida como a redução da tensão provocada pela pressão
(drang). Freud alcançou esse entendimento depois da descoberta da sexualidade
infantil, antes disso via o objetivo da pulsão sexual como análogo ao da busca de
alimento no caso da fome; ou seja, o objetivo era o ato sexual genital adulto. A

capítulo 5 • 111
partir dos Três ensaios (...), com a descoberta da sexualidade infantil e suas pulsões
parciais, Freud entende que há algo específico do objetivo, por este depender tanto
da fonte quanto do objeto.
Algo importante a se pensar no campo analítico é que do ponto de vista eco-
nômico há uma prevalência do objetivo sobre o objeto, bem posta na distinção
feita por Freud entre pulsão sexual e pulsão de autoconservação. Na medida em
que o objetivo de uma pulsão de autoconservação estaria voltada para uma ação
específica, que eliminaria a tensão ligada a um estado de necessidade, o objetivo
de uma pulsão sexual seria menos específico, pois seria sustentado e orientado por
fantasias.

Objeto (objekt)

O objeto (objekt) da pulsão é para Freud a coisa em relação à qual ou através da


qual a pulsão é capaz de atingir seu objetivo, é o que há de mais variável numa pulsão
(FREUD, 2006a, p. 143). Logo na primeira página dos Três ensaios (...) sobre a
sexualidade, ao distinguir “objeto sexual” de “objetivo sexual”, ele afirma que o
objeto sexual é a pessoa de quem procede a atração sexual; no entanto, algumas
páginas adiante, reconsidera a afirmação inicial e conclui que havia estabelecido
um laço muito estreito entre a pulsão e o objeto, e propõe afrouxar os laços que os
unem. Parece provável que a pulsão sexual seja, em primeiro lugar, independente de
seu objeto (FREUD, 1996a p. 149). E assim, o objeto passa a ser concebido como
um meio para que um fim seja atingido, enquanto o fim (objetivo) é de certa for-
ma invariável (a satisfação), o objeto é o que há de mais variável.
Freud inicialmente colocava o objeto como sendo uma pessoa, isto é, algo que
no sentido clássico do termo objeto apresentava uma “objetividade” (e não uma
subjetividade) como algo individualizado e completo. Posteriormente, o que se
pensa sobre o objeto se aplica tanto a outras pessoas como à própria pessoa, e não
apenas a pessoas inteiras, mas também a partes do corpo de uma pessoa. Por fim,
o objeto pode ser real ou fantasmático.
Você pode ver que para a psicanálise a noção de objeto reserva certa comple-
xidade, pois o sentido inicial do termo mantem-se apesar das objeções que foram
contra ele levantadas — especialmente quando enfatizam a noção de “relação ob-
jetal”. No primeiro sentido, o qual encontramos nos Três ensaios sobre a sexua-
lidade infantil o objeto da pulsão é um meio para o atingimento do objetivo que
é a satisfação, e pode ser uma pessoa, uma parte de uma pessoa, pode ser real ou

capítulo 5 • 112
pode ser fantasmático. É uma concepção que não se opõe àquilo que é subjetivo,
mas também não se trata de uma “objetividade transcendente”, e sim de algo que
tanto pode ser uma pessoa determinada como pode ser o equivalente simbólico
de uma parte do real.
No segundo sentido sob o qual aparece a noção de objeto, precisamos enten-
der o termo “objetal” – cuidado para não confundir com “objetivo”. O objeto no
sentido objetal não é um objeto parcial, mas preferencialmente uma pessoa que
seria amada (ou odiada). Nesse segundo sentido, a noção de objeto coloca em
questão não apenas a relação do objeto com o objetivo, mas o modo de relação
da pulsão com seu objeto e mais especificamente do indivíduo com o seu mundo.
Assim, a pulsão oral implica não somente um objeto, mas sobretudo um modo
de relação objetal: a incorporação. Os três ensaios do estudo aqui citado deram
ênfase à distinção entre as fases pré-genitais da libido, que se caracterizavam por
um modo de relação objetal (autoerótica, narcísica, objeto parcial etc.), e a fase
genital, em que ocorre uma escolha de objeto. É nesta fase que o objeto não é mais
um objeto parcial, mas uma pessoa (ou algo que funcione como um objeto total),
e o objeto da pulsão é tratado como objeto de amor.

Pulsões do ego e pulsões sexuais

A partir da análise da distinção feita entre fonte, pressão, objetivo e objeto da


pulsão, Freud propõe analisar “os destinos das pulsões”, estas se referem às pulsões
sexuais e às pulsões do ego ou pulsões de autoconservação. A diferença básica entre
os dois tipos de pulsões é que elas se encontram sob o predomínio de diferentes
princípios de funcionamento: como as pulsões do ego só podem satisfazer-se com
um objeto real, o princípio que rege seu funcionamento é o princípio de realidade.
Já para as pulsões sexuais, que podem “satisfazer-se” com objetos fantasmáticos,
encontram-se sob o predomínio do princípio de prazer. Porém é o termo “pulsão”
(trieb) que será utilizado para designar ambos os tipos de processos, sem deixar de
conceder a noção do apoio (anlehnung) da pulsão sexual no instinto.
Uma questão relevante diz respeito ao lugar psíquico dessa função de assimilação
das pulsões de autoconservação com o ego. Ego e libido: Cada qual possui uma energia
própria, distinta? Os dualismos freudianos não são elaborados longe do papel, absolu-
tamente fundamental, que o conflito psíquico desempenha no interior da psicanálise.
Não é apenas em relação às pulsões que Freud fala de “conflito”, sabemos disso, o
conflito pode se dar entre dois tipos de pulsões (pulsões do ego versus pulsões sexuais),

capítulo 5 • 113
como pode ocorrer entre duas instâncias psíquicas (sistema Ics versus sistema Pcs/Cs),
ou ainda entre o desejo e a defesa. E particularmente é o conflito edipiano que institui
a ordem humana, e, além disso, o conflito produz a clivagem do psiquismo.
Como podem ver, a concepção de conflito psíquico é uma das noções mais
fundamentais da psicanálise e que está presente nas suas mais variadas formas em
qualquer texto psicanalítico. A partir do conceito de pulsão, Freud passa a dispor
de um suporte dinâmico para sua concepção do conflito psíquico, justificando o
dualismo pulsional. Ao tratar das pulsões do ego, Freud tenta esclarecer que essas
pulsões investem o ego concebido como um grupo de representações, isto é, que
elas visam o ego e não que elas emanam do ego.
Apresenta, assim, uma referência bastante ambígua e margem para pensarmos
que as pulsões de autoconservação não emanam do ego, mas servem ao ego; o que
seria um dualismo puramente funcional e não um dualismo referente a pulsões
de naturezas distintas. A eliminação, ou melhor, a substituição desse dualismo
pulsional tem início no artigo Sobre o narcisismo: uma introdução, de 1914, Freud
substitui esse dualismo pulsional com a distinção entre “libido do ego” (ou “libido
narcísica”) e “libido objetal”, constituindo a oposição por referência não à nature-
za da energia, mas por referência ao objeto de investimento.

Designa não uma libido que emana do ego, mas uma libido
LIBIDO DO EGO investida no ego.

LIBIDO OBJETAL Designa o investimento da libido sobre objetos externos.

Essa nova distinção tem como consequência entendermos que toda pulsão,
em última instância, é sexual; vejamos a pulsão de autoconservação que, como um
amor a si mesmo, torna caduca a oposição entre pulsões sexuais e pulsões do ego.
E assim, a teoria dualista das pulsões foi progressivamente sendo enfraquecida e
quando tudo parecia pender para um monismo pulsional, análogo ao de Jung,
Freud apresenta um novo dualismo: o das pulsões de vida e das pulsões de morte.
Foi no texto de 1920, Além do princípio de prazer, que as pulsões sexuais e as
pulsões de autoconservação são unificadas sob a denominação de “pulsões de vida”
e contrapostas à “pulsão de morte”, isto é, a tendência inerente a todo ser vivo de
retornar ao estado anorgânico com a eliminação completa das tensões. Podemos
perceber que o novo dualismo pulsional tem sua base voltada mais para a biologia
do que para a psicologia.

capítulo 5 • 114
Os destinos da pulsão

Aprendemos com Freud que uma pulsão tem apenas um objetivo: a satisfação,
e que não se dá de forma direta e imediata, mas que, por exigência da censura, ela
implica sempre uma modificação da pulsão. E essa é a razão que Freud apresenta
os destinos da pulsão como modalidades de defesa (FREUD, 1996b, p. 147). Se hou-
ve o surgimento de uma pulsão, a mesma não pode nem ser destruída nem inibi-
da; e ela tende de forma coercitiva para a satisfação. E a defesa vai incidir sobre os
representantes psíquicos da pulsão, que assim irão conhecer os destinos diversos.
A pulsão tem dois representantes psíquicos:
1. O representante ideativo (vorstellungrepräsentanz).
Os destinos do representante ideativo são:
a) Reversão ao seu oposto;
b) Retorno em direção ao próprio eu;
c) Recalcamento;
d) Sublimação.
2. O afeto (affekt), cada um deles obedecendo a mecanismos diferentes de
transformação.
Os destinos do afeto são diferentes por que o afeto não esta ligado
necessariamente ao representante ideativo. Em 21 de maio de 1894, Freud
escreve uma carta a Fliess dizendo o seguinte sobre as transformações do
afeto: Conheço três mecanismos:
a) Transformação do afeto (histeria de conversão);
b) Deslocamento do afeto (obsessões);
c) Troca de afeto (neurose de angústia e melancolia). (FREUD,
2006c, p. 259)

Verificamos com isso, que o artigo As pulsões e seus destinos não trata dos
destinos da pulsão, mas dos destinos do representante ideativo da pulsão. Os des-
tinos dos representantes psíquicos não incluiriam o afeto, pois o afeto sofre trans-
formações decorrentes do recalcamento, mas ele não pode ser, enquanto afeto,
recalcado. Não se pode falar em “afeto inconsciente”; o que pode pertencer ao
inconsciente é o representante ideativo ao qual um afeto estava ligado, mas o afeto
propriamente dito pertence necessariamente ao sistema pré-consciente.

capítulo 5 • 115
Conclui-se então que a reversão ao seu oposto, o retorno em direção ao pró-
prio eu, o recalcamento e a sublimação são destinos do representante ideativo da
pulsão. Essas vicissitudes da representação atingem o afeto, mas ao ser atingido,
sofrerá destinos diferentes.
A REVERSÃO AO
SEU OPOSTO

Primeira vicissitude pela qual passa uma pulsão, e pode manifestar-se de


duas maneiras: como uma reversão do objetivo da pulsão, isto é, uma mudan-
ça da atividade para a passividade; e como uma reversão do conteúdo. Para
Freud, encontra-se no exemplo isolado da transformação do amor em ódio.

O retorno da pulsão em direção ao próprio eu do indivíduo caracteriza-se


essencialmente por uma mudança do objeto, permanecendo inalterado o
O RETORNO DA PULSÃO É
A SEGUNDA VICISSITUDE

objetivo. É na análise dos dois pares de opostos, sadismo-masoquismo e vo-


yeurismo-exibicionismo, que vamos encontrar os exemplos privilegiados de
reversão do objetivo e do objeto da pulsão. Segundo Freud, é a seguinte a
transformação operada no par de opostos sadismo-masoquismo:
a) O sadismo consiste no exercício da violência ou poder sobre outra pes-
soa como objeto.
b) Esse objeto é substituído pelo próprio eu do indivíduo (mudança de obje-
to: do outro eu para o próprio eu; mudança de objetivo: de ativo para passivo).
c) Uma outra pessoa é procurada como objeto para exercer o papel de
agente da violência (masoquismo).

As fases b e c não se confundem. É possível haver um retorno em direção ao eu


do indivíduo sem que haja uma inversão da atividade para a passividade. O exem-
plo fornecido por Freud para esse caso é o da neurose obsessiva, na qual o desejo
de torturar se transforma em autotortura e autopunição, sem que isso implique
masoquismo. Não há, nesse caso, passividade, mas “reflexão” da atividade. O ma-
soquismo é, por consequência, um sadismo que retorna em direção ao próprio eu,
mas que implica, além disso, uma outra pessoa que funcione como sujeito da ação.
O par de opostos voyeurismo-exibicionismo obedece à mesma sequência descrita
por Freud para o sadismo-masoquismo. Teríamos, assim, uma primeira fase que
seria o olhar como uma atividade voltada para um objeto distinto do próprio eu;
em seguida, o abandono desse objeto e o retorno do olhar para o próprio corpo;
finalmente, a introdução de outra pessoa diante da qual o indivíduo se exibe.

capítulo 5 • 116
Um aspecto importante da dinâmica dessas transformações é que nunca ocor-
re um esgotamento total de um dos opostos. Dessa maneira, na reversão da ativi-
dade para a passividade, persiste uma quota de atividade ao lado da passividade, o
mesmo ocorrendo com o retorno em direção ao próprio eu. Um sádico é sempre
ao mesmo tempo um masoquista, escreveu Freud dez anos antes nos Três ensaios
(...) sobre a sexualidade. Assim também poderíamos dizer que um voyeur é sempre
ao mesmo tempo um exibicionista.
Realmente, tanto o sádico, por meio de uma identificação com o outro, frui
masoquistamente da dor infligida ao outro, como o masoquista frui do prazer que
o outro sente ao exercer a violência. E de forma análoga, o exibicionista goza com
o olhar do outro. Freud supõe uma alternância do predomínio de cada um dos
termos dos pares de opostos durante a vida do indivíduo. Isso é “ambivalência”,
uma coexistência e alternância de opostos. Tanto o par de opostos voyeurismo
-exibicionismo, como o par sadismo-masoquismo, encontram sua explicação na
organização narcisista do ego. Os pares de opostos voyeurismo-exibicionismo e
sadismo-masoquismo por referência ao narcisismo. Em As pulsões e seus destinos,
Freud postula a existência de um sadismo originário que, ao retornar sobre o próprio
eu do indivíduo, transforma-se em masoquismo (op. cit., pp. 148 e 153). Haveria,
portanto, um sadismo preliminar narcisista que seria a origem do masoquismo,
sendo inaceitável a existência de um masoquismo primário não derivado de sa-
dismo. No entanto, nove anos depois, no artigo O problema econômico do ma-
soquismo, Freud afirma o oposto. A questão é, pois: o que é primário, o sadismo
ou o masoquismo? E mais ainda: de que maneira a referência ao narcisismo pode
oferecer uma resposta definitiva para a questão?
Entendemos que a transformação de uma pulsão em seu oposto desdobra-se
em dois processos distintos: uma mudança da atividade para a passividade e uma
mudança de seu conteúdo e ambas as mudanças dizem respeito ao objetivo da
pulsão. Na primeira, a transformação do objetivo ativo (olhar, torturar) para o
objetivo passivo (ser olhado, ser torturado), e na mudança de conteúdo temos
a transformação do amor em ódio (ambos ativos). Enquanto a reversão de uma
pulsão a seu oposto diz respeito aos objetivos da pulsão, o retorno em direção ao
próprio eu do indivíduo diz respeito ao objeto, e o objetivo permanece inalterado.
No caso anterior, referente aos pares de opostos voyeurismo-exibicionismo e
sadismo-masoquismo, vimos que operam a transformação no oposto e o retorno
em direção ao próprio eu; agora vamos entender o caso isolado da transformação

capítulo 5 • 117
no oposto pela mudança de conteúdo: a transformação do amor em ódio. Segundo
Freud, o amor não admite apenas um, mas três opostos (op. cit., p. 154):
1. Amar — Odiar;
2. Amar — Ser amado;
3. Amar/Odiar — Indiferença .

Essas três formas de oposição nos remeteriam a três polaridades que regeriam
não apenas as formas de oposição ao amar, mas toda a nossa vida mental.
As antíteses são:
1. Sujeito (ego) — Objeto (mundo externo);
2. Prazer — Desprazer;
3. Ativo — Passivo.

São três polaridades que se articulam entre si e são responsáveis pelas vicissi-
tudes das pulsões. Podemos resumir dizendo que o traço essencial das vicissitudes
sofridas pelas pulsões está na sujeição dos impulsos pulsionais às influências das
três grandes polaridades que dominam a vida mental. Dessas três polaridades,
descrevemos a da atividade-passividade como a biológica, a do egomundo externo
como a real, e finalmente a do prazer-desprazer como a polaridade econômica (op.
cit., p. 162). No começo da vida mental individual, essas antíteses se apresenta-
riam perfeitamente distintas.
No período dominado pelo narcisismo, o objeto de investimento das pulsões
o próprio ego do indivíduo e não o mundo externo, caracterizando uma forma de
satisfação autoerótica; o ego ama apenas a si próprio e encontra em si próprio a
fonte de prazer. Essa fase do desenvolvimento individual é representativa de uma
das formas de oposição assinaladas para o amor: a do amar – ser indiferente, na
qual o sujeito do ego coincide com o prazer e o mundo externo com o indiferente.
Mas atenção, essa forma de satisfação autoerótica é possível apenas em se tra-
tando das pulsões sexuais. As pulsões de autoconservação, por não se satisfazerem
na modalidade fantasmática, exigem um objeto externo. É, portanto, por exigên-
cia do princípio de prazer que o ego é obrigado a introjectar os objetos do mundo
externo que se constituem em fonte de prazer e a projetar sobre o mundo externo
aquilo que dentro de si mesmo é causa de desprazer.
Por um lado, uma parte do mundo externo é incorporada ao ego, enquanto,
por outro lado, uma parte do ego, fonte de desprazer, é projetada no mundo, que

capítulo 5 • 118
passa a ser vivido como hostil – e não mais indiferente como era antes. E aqui
temos outra oposição para o amor: a do amar – odiar.
Portanto, vamos supor que se operou uma passagem do “ego-prazer” para
o “ego-realidade”, entretanto o que Freud afirma é exatamente o contrário.
Entretanto, se faz necessário um pequeno parêntese na exposição para que essa
questão seja esclarecida.
No artigo Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, de
1911, Freud introduziu a distinção entre um “ego de prazer” e um “ego de realida-
de”. O ego do prazer seria regido pelo princípio do prazer e o ego da realidade seria
regido pelo princípio de realidade. Sendo assim, o “ego do prazer” seria primário
em relação ao “ego da realidade”, que surgiria apenas a partir das exigências do
real. O que Freud coloca no artigo A pulsão e seus destinos é que existe um “ego de
realidade” original, anterior ao “ego do prazer”, e este último seria um ego inter-
mediário para o “ego de realidade” final.
A afirmação desse ego de realidade original fica clara no seguinte trecho logo
ao início do artigo de 1915:

Imaginemo-nos na situação de um organismo vivo quase inteiramente inerme, até en-


tão sem orientação no mundo, que esteja recebendo estímulos em sua substância
nervosa. Esse organismo estará muito em breve em condições de fazer uma primeira
distinção e uma primeira orientação. Por um lado, estará cônscio de estímulos que
podem ser evitados pela ação muscular (fuga); estes, ele os atribui a um mundo exter-
no. Por outro lado também estará cônscio de estímulos contra os quais tal ação não
tem qualquer valia e cujo caráter de constante pressão persiste apesar dela; esses
estímulos são os sinais de um mundo interno, a prova de necessidades instintuais. A
substância perceptual do organismo vivo terá encontrado, na eficácia de sua atividade
muscular, uma base para distinguir entre um “de fora” e um “de dentro”. (op. cit., p. 139)

Veja então que, antes do “ego do prazer” existe um “ego da realidade” original
que, em vez de prosseguir até a constituição de um “ego de realidade” final adulto,
é substituído, por exigência do princípio de prazer, por um “ego do prazer”.
O artigo O problema econômico do masoquismo foi escrito após a reformulação
feita por Freud da teoria das pulsões em Além do princípio de prazer, no qual in-
troduz um novo dualismo pulsional: o das pulsões de vida e da pulsão de morte.

capítulo 5 • 119
Pulsões de vida e pulsão de morte

Certamente você percebeu o quanto a história da psicanálise é atravessada


pelo modo de pensar dualista de Freud. Os pares antitéticos: consciente-incons-
ciente, princípio de prazer-princípio de realidade, ativo-passivo, pulsões sexuais
-pulsões de autoconservação etc. são exemplos desse dualismo. Desde a primeira
teoria das pulsões, Freud opunha as pulsões sexuais às pulsões de auto conservação
(ou pulsões do ego), e em 1929 esse dualismo é substituído pelo novo dualismo:
pulsões de vida-pulsão de morte. É em Além do princípio de prazer, publicado em
1920, que Freud apresenta sua nova concepção das pulsões. Este é o texto em que
ele mais aproxima a metapsicologia da metafísica, na forma como Freud enten-
dia, e onde ele se mostra mais livre e ousado. O que se segue é especulação, amiúde
especulação forçada, que o leitor tomará em consideração ou porá de lado, de acordo
com sua predileção individual (FREUD, 1995b, p. 39). O objeto dessa especula-
ção é a vida e a morte, e as referências feitas por Freud vão desde os mais antigos
Upanixades até as mais recentes teorias biológicas, passando por Platão, Goethe e
Schopenhauer.
Veja que interessante (ou desconcertante) a proximidade entre a concepção
exposta por Freud e a de Empédocles, apesar dos vinte e cinco séculos que os se-
param. Esse é o texto em que Freud está mais perto de realizar seu sonho de fazer
filosofia. Além do princípio de prazer (...) há o princípio de realidade, aprendemos
nós. O princípio de realidade era, até então, concebido como um princípio de
regulação psíquica que impunha à procura de satisfação, desvios, paradas, subs-
tituições e sobretudo renúncias. Ao caminho mais curto do princípio de prazer,
o princípio de realidade oferecia o caminho mais longo — mas de alguma forma
também gratificante — da renúncia. Não podemos falar numa oposição pura e
simples entre ambos os princípios; mais do que uma oposição, o princípio de rea-
lidade é um desvio do princípio de prazer.
Se articularmos os dois princípios com os dois modos de funcionamento do
aparelho psíquico — os processos primário e secundário —, poderemos com-
preender melhor a questão. Já sabemos que, do ponto de vista econômico, o pro-
cesso primário caracteriza um modo de funcionamento do aparelho psíquico,
segundo o qual a energia psíquica se escoa livremente para a descarga da manei-
ra mais rápida e direta possível, enquanto o processo secundário caracteriza um
modo de funcionamento segundo o qual a energia não é livre, mas “ligada”, sendo
o seu escoamento impedido ou retardado por exigência da autopreservação do

capítulo 5 • 120
ego. O processo secundário resulta, portanto, de uma modificação do processo
primário. Ao mesmo tempo em que se opõe ao processo primário, o processo
secundário se constitui a partir de um desvio daquele e, em última instância, está
a seu serviço. A relação entre o princípio de prazer e o princípio de realidade segue
o mesmo esquema. Na medida em que o princípio de prazer coincide com o pro-
cesso primário e que este tende à satisfação alucinatória (pelo caminho regressivo),
é o princípio de realidade que vai funcionar como bloqueador da frustração, im-
pedindo a alucinação ou permitindo-a dentro de certos limites.
Este é o ponto de vista do Projeto de 1895 e é o ponto de vista sustentado
no artigo de 1911: Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental
(FREUD, 1972, 204-5). A realidade é aqui concebida como o conjunto do meio
físico e social, e o princípio de realidade é o seu guardião contra as alucinações
do processo primário. Mas o predomínio do princípio de realidade sobre o prin-
cípio de prazer é ilusório, o princípio de prazer continua a reinar soberanamente.
Escreve Freud:

Na realidade, a substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade não im-


plica a deposição daquele, mas apenas sua proteção. Um prazer momentâneo, incerto
quanto a seus resultados, é abandonado, mas apenas a fim de ganhar, mais tarde, ao
longo do novo caminho, um prazer seguro. (FREUD, 2006, p. 283)

No texto de 1920, Além do princípio do prazer, somos conduzidos à pergunta:


há algo além do princípio de prazer? Logo ao início, Freud assina que seria in-
correto aceitarmos uma dominância pura e simples do princípio de prazer sobre
os processos psíquicos e que, se tal dominância existisse, a maioria dos processos
deveria ser acompanhada pelo prazer ou conduzir a ele, o que é contradito pela ex-
periência cotidiana. O máximo que se pode dizer, portanto, é que existe na mente
uma forte tendência no sentido do princípio de prazer, embora essa tendência seja
contrariada por certas outras forças ou circunstâncias, de maneira que o resultado
final talvez nem sempre se mostre em harmonia com a tendência no sentido do
prazer. (FREUD, 1996, p. 20)
Quais são, então, essas outras forças ou circunstâncias? Já vimos que não se
trata da realidade concebida como o conjunto do meio físico e social; o opositor
irredutível do princípio de prazer não é o princípio de realidade.
Podemos formular a pergunta de forma diferente: qual é a realidade que se
opõe ao princípio de prazer? Os sete capítulos de Além do princípio de prazer vão

capítulo 5 • 121
revelando pouco a pouco essa realidade por meio da análise de uma série de fatos
que conduzem o leitor até a hipótese da pulsão de morte. O primeiro desses fatos
apontados por Freud é o dos sonhos que ocorrem nas chamadas neuroses traumá-
ticas, os quais têm por característica conduzir o paciente de volta à situação em
que ocorreu o seu acidente.
Se um dos postulados fundamentais da traumdeutung é o de que os sonhos
são realizações de desejos, como explicar a existência de sonhos que repetidamente
fazem o paciente reviver uma situação traumática?
Em vez de responder a questão, Freud nos fala sobre a brincadeira das crianças
e nos conta uma história. A história que ele conta é a de uma criança de um ano
e meio que tinha o hábito de apanhar quaisquer objetos que estivessem ao seu
alcance e de jogá-los atrás dos móveis para em seguida apanhá-los. Essa atividade
era sempre acompanhada de um “o-o-o-ó” e de um “da” que foram identificados
como representando os advérbios alemães “fort” e “da” (que significam aproxima-
damente “ir embora” e “ali”).
Freud concluiu que a criança brincava de “ir embora” com os objetos, o que
foi confirmado no dia em que ela brincava com um carretel de madeira amarra-
do com um pedaço de barbante. Em vez de simplesmente puxar o carretel pelo
barbante como se fosse um carro, o menino segurava a ponta do barbante e arre-
messava o carretel por sobre a borda de sua cama de modo a fazê-lo desaparecer,
no que exclamava “fort” e em seguida puxava o carretel e, quando este aparecia,
exclamava alegremente “da!”, e isso se repetia incansavelmente. A brincadeira era
uma encenação que representava simbolicamente a saída e a volta da mãe. Não
podendo controlar as saídas e chegadas da mãe, às quais ela se submetia passiva-
mente, conseguia exercer um domínio simbólico sobre o acontecimento por meio
do distanciamento operado pela linguagem.
Não é aqui, porém, que vamos encontrar um além do princípio de prazer. A
repetição por parte da criança de uma experiência desagradável faz-se, em última
análise, em obediência ao princípio de prazer, pois é exatamente para superar e
dominar o desprazer que ela transporta para o plano simbólico a saída e a volta da
mãe. É ainda por um terceiro fato que Freud vai conduzir o leitor para além do
princípio de prazer: o da compulsão à repetição.
Sob o aspecto clínico, a compulsão se manifesta pela repetição por parte do pa-
ciente de uma experiência traumática em vez de recordá-la como algo pertencente
ao passado. A experiência é então vivida como estando ligada ao presente e não
ao material inconsciente que lhe deu origem. Essa experiência é vivida na relação

capítulo 5 • 122
de transferência que o paciente mantém com o analista, e caracteriza o que Freud
chama de “neurose de transferência” como sendo uma nova inscrição da neurose
clínica e que é a condição para que se estabeleça o tratamento psicanalítico.

RESUMO
Falar das pulsões não é falarmos de noções decifráveis descritivamente (como fonte,
pressão, objeto, meta). Os conceitos permitem uma descrição do real segundo, um tipo
de articulação que não pode ser retirado desse próprio real enquanto “dado”. São portanto,
autênticas ficções científicas.
Assim, a pulsão só é conhecida pelos seus representantes.
As representações são “presentação psíquica” da pulsão, isto é: inscrições das
pulsões nos sistemas psíquicos.
Concepção de apoio da pulsão sexual no instinto: ao mesmo tempo em que assimila
uma vinculação entre a pulsão e o instinto, marca também um momento de desvio da primeira
em relação ao segundo. Por isso, podemos falar que a pulsão é a desnaturalização do instinto.
No texto Sobre o narcisismo: uma introdução. Libido do Ego = libido narcísica (como
libido investida no ego).
Libido objetal faz referência ao objeto de investimento. Designa o investimento da libido
sobre objetos externos.
Conclui-se que a autoconservação nada mais seria do que um amor a si mesmo; portan-
to, toda pulsão é, em última instância, sexual.
Em Além do princípio do prazer:
Pulsões sexuais + pulsões de autoconservação = pulsões de vida
Pulsões de vida contraposta às pulsões de morte = tendência inerente a todo ser
vivo de retornar ao estado anorgânico com a eliminação completa das tensões.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, Sigmund. Publicações pré-Psicanalíticas e esboços inéditos (1886-1889) – Coleção
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – v. I, Rio de Janeiro: Imago, 2006c.
______________. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1901). Coleção Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud – v. VI, Rio de Janeiro: Imago, 1995a.
____________. Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905). Coleção Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud – v. VIII, Rio de Janeiro: Imago, 1995b.

capítulo 5 • 123
____________. Um caso de histeria, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos
(1901-1905). Coleção Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – v. VII, Rio de Janeiro:
Imago, 1996a.
____________. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros
trabalhos. (1914-1916). Coleção Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – v. XIV. Rio de
Janeiro: Imago, 2006a.
____________. O caso Schereber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913) Coleção
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – v. XII, Rio de Janeiro: Imago, 2006b.
____________. Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922).
Coleção Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – v. XVIII, Rio de Janeiro: Imago, 1996b.
____________. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos (1932-
1936). Coleção Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – v. XXII, Rio de Janeiro: Imago,
1976.
____________. Moisés e o monoteísmo, Esboço de psicanálise e outros trabalhos (1937-1939).
Coleção Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – v. XXIII, Rio de Janeiro: Imago,1975.
____________. O ego e o ID e outros trabalhos (1923-1925) Coleção Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud – v. XIX, Rio de Janeiro: Imago, 1972.
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. Lisboa: Martins Fontes Ed., 1970.

GABARITO
Capítulo 1

01. Histeria

02.
a) Charcot; c) Charcot; e) Breuer
b) Breuer; d) Charcot;

03. O aluno deverá construir um entendimento a respeito da descoberta do inconsciente


(melhor entendido como clivagem da subjetividade em dois sistemas: Ics e Pcs⁄Cs), e os
novos recursos de entendimento sobre as formas de sintomas.

capítulo 5 • 124
Capítulo 2

01. Não. A primeira tópica composta por inconsciente, pré-consciência e consciência se


mantém no segundo modelo das instâncias Isso, Eu e Supereu. Contudo, sofrem alterações:
o Isso é totalmente inconsciente, e nele vigora toda a lógica própria ao inconsciente. O Eu e
o Supereu são em parte conscientes e em parte inconscientes. Além disso, todo o modelo
que explica a existência da censura e do recalque se mantém, evidenciando que a resistência
vem do Eu, contudo, do Eu inconsciente.

capítulo 5 • 125
ANOTAÇÕES

capítulo 5 • 126
ANOTAÇÕES

capítulo 5 • 127
ANOTAÇÕES

capítulo 5 • 128

Você também pode gostar