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A importância da família e suas relações: um estudo de caso

A IMPORTÂNCIA DA FAMÍLIA E SUAS RELAÇÕES:


UM ESTUDO DE CASO

The importance of the family and its relations: a case study

Daiana de Souza Milani1


Daniele Bezerra Rodrigues2
Renate Brigitte Vicente3

Resumo
Este artigo tem a finalidade de expor um estudo de caso a partir da abordagem sistêmica de Palo Alto,
relatando um casal que busca atendimento psicológico para uma de suas filhas, porém, a partir da queixa
inicial percebe-se que o casal discute a sua própria relação. A partir disso, mostra-se os objetivos de uma
terapia familiar sistêmica e os métodos utilizados, bem como o papel do psicólogo nesse processo. O principal
requisito é o reenquadramento, mudando-se o foco da família que centra sua atenção no paciente trazido
à sessão e considera seu problema como uma fraqueza individual, para uma visão na qual se considere as
redes de relacionamento, suas formas de adaptação e falhas de comunicação.
Palavras-chave: Terapia infantil; Terapia familiar sistêmica; Caso clínico.

Abstract
This essay has the goal to exhibit a case study of the systemic approach by Palo Alto, it describes a couple
that look for a psychological assistant for one of their daughters, however after the initial complaint we
realized that the couple discuss their own relation. After this we show the objective of a family therapy and
the methods used, as well as the role of the psychologist in this process. The main requisite is re-squaring,
then we change the family focus which center their attention in the patient that was brought to the session
and her problem that is consider by the family as a personal weakness, to a new view that consider the
relationship nets, their mode of adaptation and fault of communication.
Keywords: Childish therapy; Family therapy; Clinical case.

1
Psicóloga formada pela PUCPR. Rua Nossa Senhora de Nazaré, n.º 1845, sob 01. Bairro Boa Vista. Curitiba – PR CEP 82560-000.
E-mail: daiana_milani@yahoo.com.br
2
Psicóloga formada pela PUCPR. Rua José Palu, n.º 683, bloco 1, ap 303. Bairro Novo Mundo. Curitiba – PR CEP 81020- 050.
E-mail: dani.dbr@gmail.com
3
Psicóloga, Professora do curso de Psicologia da PUCPR, Mestre em Educação pela UFPR. E-mail: renate.vicente@pucpr.br

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Daiana de Souza Milani; Daniele Bezerra Rodrigues; Renate Brigitte Vicente

O presente artigo trata-se de um estudo ciente identificado (PI)6 . Entretanto, a partir da


4
de caso analisado a partir da abordagem sistêmi- discussão do casal sobre sua filha, eles se permi-
ca5 , especificamente a partir da escola de Palo Alto. tem discutir sobre sua relação conjugal. Com a
Neste estudo serão utilizados nomes fictícios para proposta teórica, entende-se que a comunicação é
facilitar a interpretação e reflexão sobre o caso clí- o ponto ênfase, ou seja, propõe mudar a pauta
nico. Especificamente, o caso se refere a uma fa- comunicacional entre os membros a fim de alterar
mília que traz como queixa à terapia a quarta filha o sintoma, não focalizando a terapia no PI e nos
do casal – Jaqueline. Ela era a penúltima filha, de determinismos intrapsíquicos, mas sim na rede re-
um total de cinco filhos. Atualmente tem quatro lacional da pessoa ou do sistema familiar.
anos de idade e a queixa era direcionada à dificul- Durante o desenvolvimento humano, em
dade alimentar da criança. determinadas fases da vida, como a infância, ado-
Sabe-se pelos dados do caso que quando lescência, fase adulta e idosa, ocorrem algumas
ocorreu a gestação de Jaqueline, sua mãe, que de- crises características de tais fases, sendo essas con-
nominaremos de Ana, estava muito preocupada sideradas “comuns e normais”. Entretanto, a ma-
com a sua vida profissional e não desejava ter mais neira como cada pessoa age e lida com tais cir-
filhos. Seu desejo era permanecer apenas com os cunstâncias irá variar conforme a singularidade e
seus três filhos já existentes. Após a gravidez de personalidade de cada um.
Jaqueline, Ana passou por um período de depres- Na fase adulta, por exemplo, com o ad-
são pós-parto, o que levou a sua separação da vento do casamento, ocorre uma série de expecta-
criança. Quando a menina completa seis meses de tivas em relação à nova família, principalmente se
idade, Ana reintegra-se ao lar e retoma a sua vida a esposa trabalha fora. Há preocupações quanto à
profissional, mas pouco tempo depois engravida renda familiar, aquisição de novos bens, manuten-
novamente. Então, por sua decisão, seus dois fi- ção da casa, etc. Com a gravidez, fase de extrema
lhos mais novos ficaram morando com uma babá importância e significação para o casal, principal-
e eventualmente visitam a mãe. Ana vive em uma mente para a mulher, há várias modificações nes-
cidade isolada e possui um marido ausente, que se sistema familiar. Inicia-se a preocupação com a
só vai a casa duas vezes por semana. criança que está por vir e um questionamento pes-
Jorge, o pai das crianças, é órfão desde soal se os cônjuges conseguirão desempenhar a
muito cedo, sendo muito amoroso especialmente função materna e paterna, juntamente com as fun-
com Jaqueline, fazendo tudo que ela quer. Ele teve ções de manutenção de seu lar. Cada cônjuge,
uma infância infeliz, com a perda de um pai e de geralmente, começa a assumir o papel que lhe é
uma tia inválida que ocupou o lugar de uma mãe imposto socialmente, sendo necessário que o ca-
pouco afetuosa. Jorge relata censurar sua esposa sal esteja apto a enfrentar tais modificações e, con-
por não amar seus filhos e não dar a devida aten- seqüentemente, as cobranças que lhes são impos-
ção quando estes os vêem visitá-los. Sente que tas. Carter e Mc Goldrick (1995, p. 208) explicam
sua mulher é uma mãe má por não querer nunca que a herança herdada ao longo dos tempos, com
mais ter filhos – a exemplo de sua própria mãe. relação aos papéis sociais e as tradições quanto ao
Para ele, foi Jaqueline quem provocou a desunião gênero masculino e feminino, faz parecer que cons-
do casal. tituam a base pela qual cada pessoa organiza seu
Sob o foco da abordagem sistêmica e com relacionamento e distribui as responsabilidades da
articulação teórica de Palo Alto, compreende-se educação dos filhos e do ganho de dinheiro.
que o casal vem à terapia a partir de uma queixa Se retomarmos o contexto histórico, é
inicial em relação à Jaqueline, ou seja, ela é o pa- possível fazer um paralelo entre a relação pai-fi-

4
Este caso está narrado e estudado de forma psicanalítica por Maud Mannoni na obra Primeira Entrevista em Psicanálise. A
criança tem o nome de “Noele”.
5
Este caso foi um dos casos trabalhados no PA Laboratório de Práticas no Contexto Clínico na PUCPR (Psicologia) pelos
professores: Marisa S. Silva, Renate B. Vicente, Cloves Amorim, Rosa M. M. Mariotto e Jussara Carvalho, nas perspectivas
psicodramáticas, sistêmica, comportamental, psicanalítica e analítica junguiana.
6
PI significa paciente identificado – o bode expiatório da família, ou seja, aquele que apresenta sintomas de perturbação física
e/ou psíquica. A abordagem sistêmica acredita que o psiquismo de um indivíduo não é apenas um fenômeno interno, mas
oriundo de um processo interpessoal, isto é, diretamente envolvido e modificado pela interação com o seu ambiente.

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A importância da família e suas relações: um estudo de caso

lho e senhor-escravo. O pai tinha todo o poder social para com a mãe, cobrando dela a obrigação
sobre os filhos, da mesma forma que o senhor do amor materno. Mas por sua história de vida ele
sobre seus escravos. Eles lhe pertenciam como se também repete o sistema familiar de seus pais, onde
fosse uma propriedade (simplesmente porque eles existia uma mulher má e um pai bonzinho e au-
os fizeram), porém não deviam nada a eles. Com sente. Satir (1980, p. 49 a 51) ilustra tal questão
o passar do tempo, essa visão passou a ser modi- familiar quando afirma que a revolução industrial
ficada. Na sociedade contemporânea, o fato dos afetou diretamente a vida das pessoas, principal-
pais serem os procriadores de seus filhos confere- mente na família moderna. De maneira ambiva-
lhes mais deveres do que, propriamente dito, di- lente, simultaneamente eliminou certas sobrecar-
reitos sobre eles. (Flandrin in Ponciano & Féres- gas (o homem deixa de ser o chefe da casa e a
Carneiro, 2003, p. 60). mulher a única responsável pela administração do
Após a Segunda Guerra Mundial houve a lar e da criação dos filhos) e passou a inserir no-
necessidade das mulheres se inserirem no merca- vas tensões e preocupações, com relações aos
do de trabalho. Entretanto, mesmo trabalhando novos papéis e funções delimitadas.
fora, as atividades domésticas ainda lhe são atri- De acordo com Ponciano (2002) os pais
buídas. A busca de igualdade entre homens e assumem a responsabilidade do amor e do poder
mulheres fica bem distante no nascimento de um sobre o filho. Cada atitude voltada para a criança
filho, pois ainda cabe à mãe a administração da transmite-lhe as normas, regras e valores estabele-
casa e o cuidado do bebê. A sociedade ainda es- cidos pela sociedade, muitas vezes de maneira in-
pera que a mulher abra mão de sua vida profissio- direta e independente de suas intenções. A mani-
nal e de sua independência para cuidar de seu festação da cultura se dá involuntariamente, pois
filho e manter o seu lar. O nascimento de um filho se estabelece na constituição da personalidade do
envolve questões como o espaço que a criança irá sujeito, sendo transferida de geração a geração.
ocupar na família e se ele é ou não objeto de de- O nascimento de Jaqueline trouxe a tona
sejo dos pais. É preciso que o bebê seja desejado, questões importantes que estavam mal resolvidas,
amado e bem vindo pelos seus pais, mesmo tra- como às expectativas de vida de sua mãe e pro-
zendo consigo várias modificações na estrutura blemas de relacionamento entre a família de seu
familiar. Necessita de dedicação, atenção, cuida- pai. Tanto Ana quanto o Jorge uniram-se sem fle-
do, zelo, etc. Tais aspectos influenciam na relação xibilizar os seus próprios valores. Trouxeram as
conjugal, pois, muitas vezes, com a chegada do suas expectativas e experiências anteriores sem
filho, inicia-se uma experiência do cônjuge sentir- planejarem e estabelecerem objetivos em comum.
se ignorado, isolado e, principalmente a mãe, so- Ficaram próximos um do outro, porém não havia
brecarregada com a maior complexidade das tare- intimidade e a cumplicidade necessária para um
fas e relacionamentos, impedindo a privacidade relacionamento saudável e adequado. Os pais uti-
do casal, e principalmente na intimidade sexual. lizam Jaqueline para trabalhar os seus próprios
De maneira unânime, no casamento, cada problemas, isto é, a criança está como intermediá-
cônjuge começa a atuar conforme os seus padrões ria nessa relação, porém de maneira inconsciente.
e valores preestabelecidos, com as aprendizagens É como se até este momento tal família fosse como
adquiridas desde a infância na sua família de ori- um vulcão adormecido e a gravidez culminou a
gem, nos relacionamentos interpessoais, nos con- erupção. Com isso houve a quebra da homeostase
vívios familiares e também influenciados por ca- existente até o momento.
racterísticas culturais. Cada um traz consigo as suas A família é o agente transmissor da cultu-
expectativas e sua forma de avaliar o mundo e ra, bem como a responsável pela consolidação de
precisam adequar às duas diferentes formas de vida tais características na personalidade do sujeito. Para
na nova família que está sendo constituída. No que isso ocorra é preciso haver duas fontes de
caso exemplificado percebe-se que Ana vivencia tensão: uma originada da nova relação com a in-
um conflito em se dedicar à família e ter um espa- fância e a outra de uma transformação no papel
ço para si, o que acarreta em pressões sociais para feminino. A partir do século XIX passam a haver
que ela aja de acordo com que é esperado pelos mudanças, pois os papéis masculinos e femininos
valores sociais, ou seja, cuidar de seus filhos. Quan- existentes até o momento não se enquadram mais
to a Jorge, nota-se que ele faz parte dessa pressão ao que está sendo exigido de ambos após as mu-

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danças tecnológicas/industriais. A criança passa a vezes, é a responsável por inúmeros conflitos. Os


ser de responsabilidade dos pais, gerando uma maiores estresses são experimentados pelos pais
sobrecarga. Com relação à mulher, anteriormente que tentam coordenar os seus respectivos empre-
era educada para criar seus filhos, precisando ser gos com a responsabilidade da administração da
companheira de seu marido e executar as tarefas casa e do cuidado com os filhos. Percebe-se que
domésticas. Com o feminismo passa a ocorrer uma na relação familiar, no caso citado, os pais de Ja-
“desordem”, surgindo novas aspirações ao cresci- queline mantêm suas fronteiras7 tendendo ao fe-
mento pessoal e posteriormente profissional. A chamento, não havendo trocas e crescimento, as
estas aspirações a união conjugal e a família não quais possibilitam a manutenção da identidade do
podiam mais satisfazer, gerando uma crise no ca- grupo, lealdade e sigilo. Além disso, há uma rela-
samento (Ponciano & Féres-Carneiro, 2003, p. 62). ção simétrica8 entre o casal, que se baseia na igual-
Por outro lado, Bradt in Carter e Mc Gol- dade, ou seja, tanto Jorge quanto Ana estão com
drick (1995, p. 213; 215) afirma que o fracasso de suas preocupações voltadas a si próprios, não es-
qualquer um dos cônjuges, na execução de seus tabelecendo uma relação de intimidade e proximi-
papéis conjugais e parentais, contribui para a de- dade conjugal.
sigualdade dos relacionamentos e ameaçam a inti- É preciso perceber o ambiente em que as
midade do casal. Quando há intimidade num ca- crianças nascem, podendo este ser determinado
samento é possível acertar no desafio que a pater- por inúmeros fatores. Pode existir ou não espaço
nidade estabelece, integrando adequadamente as para elas (pode já estar sendo preenchido por
mudanças ocorridas. Para isso é preciso haver um outros relacionamentos ou atividades) ou apenas
reequilíbrio das responsabilidades do marido e da existir um vácuo que devam preencher (Bradt in
mulher. Em algumas famílias passa a ocorrer da Carter & Mc Goldrick, 1995, p. 210). Quando se
mulher deixar de trabalhar fora. No caso exempli- percebe que uma criança está sendo usada indire-
ficado, os pais de Jaqueline dizem estar separa- tamente e de maneira disfuncional deve-se questi-
dos, porém ainda estão muito ligados e preocupa- onar qual dos filhos o casal escolhe inconsciente-
dos com a maneira como cada um se comporta. mente para servir aos propósitos do PI e se esse
Eles estão próximos, mas não possuem intimida- filho mantém tal papel e função. Deve-se estar aten-
de. Relacionam-se com críticas e trocas de ofen- to para a posição desse filho na família, bem como
sas, não conseguindo crescer nessa relação. Dessa o seu sexo e idade e as diferentes características
forma, sentem dificuldades para se adaptarem às de todos os filhos. Tais características podem in-
mudanças surgidas pelo nascimento de um novo duzir conflitos no casal e a disponibilidade do fi-
filho. lho de exercer o papel de PI (Satir, 1980, p. 61-
Ainda segundo os mesmos autores (1995, 65), pois cada uma dessas características interage
p. 206), não há nenhum estágio no desenvolvi- diferentemente no casal, nas suas funções paren-
mento humano que ocasione tantas alterações e tais, correspondendo ou não as expectativas cons-
de significado tão profundo quanto uma gestação. truídas.
Ser um progenitor resulta em vencer um grande Bradt in Carter e Mc Goldrick (1995, p.
desafio, é resultante de interações biopsicossoci- 211; 220) defende a idéia de que a intensidade da
ais, bem como de modificação da homeostase no preocupação dos pais com uma criança tem duas
trabalho, no relacionamento com amigos e famili- origens: primeiramente é o relacionamento histó-
ares. Socialmente é exigido da mãe o cuidado pela rico ou atual de cada progenitor com seus pais e
criança. Sua intenção de retornar ao mercado de posteriormente é a fragilidade nos diferentes rela-
trabalho e reencontrar-se como pessoa torna-se um cionamentos interpessoais (cônjuge, familiares,
ponto crítico e decisivo no âmbito familiar. A mo- amigos). Ana soube agir com habilidade até o ter-
tivação que a leva tentar recuperar o seu eu e rea- ceiro filho, rejeitando a gravidez e a criação de
dequar os seus relacionamentos adultos, muitas Jaqueline. Ela assumiu esse papel de “mãe má”

7
Fronteiras são regras internalizadas que direcionam as formas de funcionamento dos sistemas e subsistemas, estabelecendo
quem são os seus membros. Tem como função a proteção e diferenciação dos indivíduos.
8
É caracterizada uma relação simétrica quando os cônjuges tendem a refletir sobre as atitudes si e do outro, buscando melhorias
no relacionamento

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A importância da família e suas relações: um estudo de caso

desde o princípio e o marido apresentou uma iden- Numa terapia só é possível rever a pro-
tificação com a filha, com sua história de vida, prin- blemática trazida pela família a partir da modifica-
cipalmente no que tange à rejeição. No entanto, ção do significado atribuído ao comportamento
Jorge diz que ama Jaqueline, porém não a levou sintomático do paciente. Este comportamento deve
para morar consigo durante a separação decorren- ser avaliado como uma forma de adaptação, fa-
te da depressão pós-parto, e ainda a culpa pelo lhas da comunicação, nas redes relacionais e não
fim de seu casamento. Surge aí uma mensagem como reflexo de uma fraqueza individual (Andol-
antagônica, ou seja, um sistema familiar disfuncio- fi, Ângelo, Menghi, Corigliano, 1984, p. 44 & Elka-
nal, hipotetizando-se o estabelecimento do duplo- im, 1998, p. 216).
vínculo9 . Satir (1980, p. 79; 93) afirma que muitas Por outro lado, Reyna e Trujano (2000,
vezes os casais acham que as funções parentais p.05) citam que a indicação do sintoma como
não são influenciadas pelo seu próprio relaciona- pretexto é o que evidencia que ainda faz falta
mento conjugal problemático. Os pais disfuncio- muita informação necessária para resolver o pro-
nais não têm consciência do fato de que estão blema ou que é um passo inicial para seu con-
destruindo com uma mão aquilo que constroem trole definitivo. Neste caso, a queixa inicial em
com a outra. Então, pode-se compreender que Ana terapia era um distúrbio alimentar em Jaqueli-
e Jorge não têm a consciência das questões que ne, que logo em seguida se despotencializa e o
afligem a dinâmica do seu sistema nuclear, e que enfoque se faz presente no casal. O fardo que
influenciam seus filhos. Complementando essa a criança carrega consigo é extremamente pe-
idéia, Bradt in Carter e Mc Goldrick (1995, p. 211; sado, pois sobre ela estão lançadas as expecta-
220) relata que a superproximidade existente nos tivas de seus pais para a resolução de seus pró-
relacionamentos pais-crianças geralmente resulta prios problemas. Elkaim (1998, p. 203) cita que
no preenchimento de vácuos existentes de perdas a maneira como o paciente percebe a realidade
importantes, podendo ser de relacionamentos de de suas interações contribui para a manuten-
gerações anteriores. Isso gera sobrecarga nos rela- ção de suas dificuldades, atualizando condutas
cionamentos parentais e falta de clareza da sua diferentes, sendo essas que possibilitam as mu-
origem. Os filhos podem ser usados para preen- danças. Os aspectos cognitivo e comportamen-
cher um vazio na vida dos adultos por diversos tal definem as duas grandes categorias de in-
motivos, sendo freqüentemente pela perda dos tervenções terapêuticas: as injunções compor-
próprios pais, da falta de intimidade conjugal ou tamentais e as técnicas de redefinição. Toda
da falta de participação em outras esferas de vida mudança significativa gerará uma resposta na
que não seja a doméstica, seja por simples opção pessoa que visa restabelecer (ou manter) um
ou devido a fracassos. Isso reafirma que Jorge re- estado satisfatório.
pete seu antigo sistema familiar, onde ele se apega De acordo com Elkaim (1998, p. 196),
à filha, que é abandonada e rejeitada, por ele ter no início de um processo terapêutico é necessá-
sido rejeitado por sua mãe, e também devido ao rio que o psicólogo trace seu diagnóstico a partir
fato do casal não ter estabelecido uma intimidade. de algumas identificações: quem é o paciente
Cada gravidez ocorre de formas diferen- (quem sofre mais com a situação e está mais dis-
tes, com demandas desiguais. Para Prado (1996, p. posto a modificá-lo, podendo ser também quem
101), filhos de uma mesma família têm destinos e reforça a homeostase); qual é o problema (o te-
expectativas diferentes. É preciso entender as re- rapeuta não aceita simplesmente a história conta-
lações familiares e o contexto em que ocorre o da, mas busca as informações sobre a maneira de
nascimento. Os pais não são os mesmos para cada pensar dos envolvidos e como eles se relacio-
filho ao longo do ciclo familiar. Dessa forma, os nam); quais as tentativas feitas para lidar com o
filhos também não são os mesmos para os seus problema (informações sobre os recursos que a
pais, de acordo com o sexo, idade, características família possui, quais as características mais co-
genéticas, etc. Cada uma dessas características in- muns dessas tentativas e o que fazem para evitá-
terage de forma diferente com o casal, correspon- las); qual é o objetivo mínimo (objetivo concreto
dendo ou não as expectativas. que se deseja buscar).
9
Duplo vínculo são as falhas ocorridas na comunicação, com antagonismo, onde, muitas vezes, a comunicação verbal não condiz
com a não verbal.

Psicol. Argum., Curitiba, v. 24, n. 47 p. 29-34, out./dez. 2006. 33


Daiana de Souza Milani; Daniele Bezerra Rodrigues; Renate Brigitte Vicente

Numa terapia, o principal objetivo é au- Referências


xiliar as pessoas a solucionarem os seus proble-
mas mediante algumas modificações que lhes per- Andolfi, M., Angelo, C., Menghi, P., & Nicolo Cori-
mitam optarem por outras formas de resolução gliano, A. M.(1984). Por trás da mascara fa-
de seus problemas, em vez de continuarem re- miliar: Um novo enfoque em terapia da fa-
correndo às mesmas tentativas anteriores. Outro mília. Porto Alegre: Artes Médicas.
objetivo é fazer com que percebam de maneira
diferente a situação da problemática. Para isso é Carter, B., & Goldrick, M. C (1995). As mudanças
necessário haver calma e respeito ao tempo de no ciclo de vida familiar: Uma estrutura para
adaptação do paciente (Reyna & Trujano, 2000, a terapia familiar. (2a ed.) Porto Alegre: Artes
p.10). O psicólogo que trabalha na abordagem Médicas.
sistêmica não avalia prioritariamente o sintoma Elkaim, M. (1998). Panorama das terapias fa-
do sujeito, mas sim o que faz ocasioná-lo e as miliares. São Paulo, SP: Summus.
relações que o mantém. Dessa forma, a doença
deixa de ser considerada conseqüência de um Ponciano, E. L. T. (2002). Família Nuclear e terapia
psiquismo individual perturbado, mas sim um de família: conexões entre duas histórias. Re-
problema de comunicação surgido no interior da vista Estudos e Pesquisas em Psicologia, 2(2).
célula familiar. A pessoa que apresenta o sinto- Recuperado em agosto de 2005: http://
ma, nessa visão, não é visto como doente, mas www2.uerj.br/~revispsi/v2n2/sumariov2n2.html
como o “bode expiratório” da família, o que de- Ponciano, E. L. T., & Feres-Carneiro, T. (2003).
monstra à sociedade os problemas envolvidos Modelos de família e intervenção terapêutica.
nessa interação. Para trabalhar com esta questão Revista Interações do Programa de Pós-gra-
é necessário modificar a estrutura relacional do duação em Psicologia da Universidade São
sistema familiar, enfatizando menos a origem do Marcos, 8(16).
problema e o conteúdo trazido pela família. O
fato essencial é a estrutura atual e a relação entre Prado, L. C. (1996). Famílias Terapeutas: cons-
eles. A maior dificuldade é fazer com que os truindo caminhos. Porto Alegre: Artes Médi-
membros do sistema se comportem de maneira cas.
diferente para modificar as interações, de tal for-
Reyna, J., & Trujano, R. (2000). Terapia familiar
ma que o sintoma se torne inútil ou inadequado.
sistemica: el modelo interaccional y su aplicaci-
É priorizado o que as pessoas fazem e não como
ón a un caso de ansiedad. Revista Eletrônica
interpretam as suas próprias ações. É preciso que
de Psicologia Iztacala, 3(1). Recuperado em
a família consiga focar o problema presente, bem
agosto de 2005. http://www.iztacala.unam.mx/
como o terapeuta avaliar a dinâmica familiar e os
carreras/psicologia/psiclin/principal.html
recursos utilizados para a resolução da questão e
mostrar a direção da mudança desejada (Elkaim, Satir, V. (1980). Terapia do grupo familiar (2a
1998, p. 196- 197). ed.). Rio de Janeiro, RJ: Livraria Francisco Al-
É preciso estar atento para o fato de mu- ves.
dar as idéias das pessoas representa colocar em
perigo seus conceitos sobre si, sobre os outros e
sobre o que a cerca. E todo esforço do terapeuta
Recebido em/Received in: 22/05/2006
que vise modificar o sistema de pensamentos acar-
Aprovado em/Approved in: 19/06/2006
retará, portanto, reações de defesa, contra-argu-
mentos, etc., isto é, retorno ao sistema habitual
(Elkaim, 1998, p. 208). Então, um processo inter-
vencionista no caso Jaqueline deve considerar es- .
sas possibilidades de mudanças, não deixando
de lado o aporte emocional das pessoas indivi-
dualmente e como grupo, para que o sistema entre
novamente em homeostase, tendo resolvido suas
questões.

34 Psicol. Argum., Curitiba, v. 24, n. 47 p. 29-34, out./dez. 2006.

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