Você está na página 1de 17

Contexto histórico

Segundo a parte histórica, o romance surge, como o entendemos hoje em dia,


nos meados do século XVII: aparece com o Romantismo, revolução cultural originária
da Escócia e da Prússia.
O romance aparece, pois no século XVII, identificando uma “revolução
romântica”. No século XIX, o romance se faz dominador, às vezes confundido com a
novela ou dividindo com ela seu poder de influência, porém ainda no mesmo século,
apesar das diferenças e evoluções, cultivava-se um romance-padrão, obediente aos
moldes suscitados pela burguesia.
Como decorrência, a epopéia, considerada, na linha da tradição aristotélica, a
mais elevada expressão de arte, cede lugar a uma forma burguesa: o romance. A poesia
populariza-se, abandonando o exclusivismo dos salões aristocráticos e as cortes
amaneiradas. Com isso, o romance passa a representar o papel antes designado à
epopéia, e objetiva o mesmo alvo: constituir-se no espelho dum povo, a imagem fiel
duma sociedade.
Servindo à burguesia em ascensão, com a revolução industrial inglesa, na
segunda metade do século XVIII, o romance tornou-se o porta-voz de suas ambições,
desejos, veleidades, e, ao mesmo tempo, ópio sedativo ou fuga da mesmice cotidiana.
O romance, segundo o teórico húngaro George Lukács, se entende como a
forma mais desenvolvida de uma literatura, de uma arte em si:

“(...) a tendência a adequar a forma da representação da viva ao seu


conteúdo; a universalidade e a amplitude do material envolvido; a presença
de vários planos; a submissão do princípio da representação plástica, em que
os homens e acontecimentos agem, na obra, quase por si mesmos, como
figuras vivas da realidade exterior.”
(LUKACS, 2000. p. 89)

A obra Dom Quixote, de Miguel de Cervantes é, considera por muitos, como o


primeiro romance moderno. Angélica Soares, professora da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa e doutora em Teoria
Literária, enfatiza essa teoria em seu livro intitulado “Gêneros Literários”, onde afirma:
“É, (...), em Dom Quixote, de Cervantes, que podemos localizar o
nascimento da narrativa moderna que, apresentando constantes
transformações, vem-se impondo fortemente, desde o século XIX, quando –
quase sempre publicada em folhetins – se caracterizou sobretudo pela crítica
de costumes ou pela temática história.”
(SOARES, 2006. p. 42 – 43)

Na mesma obra, como parte de uma interpretação acerca de estudos expostos,


nota-se dois fatos a serem questionados. Um deles é uma “pequena” crítica aos
cavaleiros, remetendo-os a uma figura idealizada, possuindo ausência de medos e
temores, como se pode notar no trecho da obra:

“Ouviram uns golpes a compasso com um certo retinir como de ferros e


cadeias, que, juntos ao furioso estrondo da água, que lhes faziam
acompanhamento, poriam pavor a quem quer que não fora D. Quixote.”
(CERVANTES, 2002. p. 305)

Observa-se nesse ponto uma crítica a figura da personagem principal, onde a


mesma não teme nem mesmo o mais absurdo que possa parecer. Onde se encontra o
pavor diante de alguma criatura, D. Quixote se mostra indiferente a mesma, realidade
contraditória para a grande maioria dos seres humanos que, tanto naquela época como
agora, temeriam algo desse porte e descrição.
Outro trecho que merece um foco em particular é onde a presença da burguesia
é notada, ainda como crítica:

“Esta gentil moça, pois ajudou a donzela, e entre ambas engenharam uma
cama suficientemente má para D. Quixote, num sótão, que dava visíveis
mostras de ter noutro tempo servido de palheiro muitos anos.”
(CERVANTES, 2002. p. 245)

Em anos onde a presença dos cavaleiros era necessária, muitas estalagens não
cobravam suas estadias, porém, ao analisar o trecho em destaque, pode-se observar que
o dono daquele lugar havia preparado um quarto as pressas para D. Quixote. A vontade
de lucrar era maior do que a preocupação com o lugar onde as pessoas passariam a
noite, logo o dono da estalagem pouco estaria visando o conforto e satisfação de seus
hóspedes.

Com o passar dos anos, muitos autores surgiram e conta-se com uma série de
escritores notáveis, como Thomas Mann, Virgínia Woolf, Franz Kafka, etc. O romance,
graças ao papel que representa desde o romantismo e com o auxílio de alguns escritores,
é a forma literária que mais agudamente testemunha a metamorfose verificada nas
atividades artísticas modernas.

No Brasil o romance chegou tardiamente, e não raro mesclado de expedientes


novelescos: só com Joaquim Manuel de Macedo (A Morenina, 1844) começa de vez o
seu cultivo entre nós, mas é com José de Alencar (o Guarani, 1857) que passa a ser
largamente cultivado. Ligado a figurinos europeus ou americanos, propunham valorizar
os temas nacionais (indianismo, sertanismo, temas históricos e urbanos). Com o
Realismo, o romance vive um período de grandeza indiscutível, com Machado de Assis,
Aluísio Azevedo, Inglês de Sousa e etc. Mas é com o Modernismo que ele atinge sua
maior altura observada até hoje. A partir de 1930, vêm surgindo alguns nomes de
primeira categoria: Jorge Amado, José Lins do Rego, Clarice Lispector, Guimarães
Rosa, entre outros.
Conto, Novela e Romance.

O Gênero romance é conhecido como um gênero inacabado; em formação. Logo,


não se pode engendrar o gênero a um conceito fixo e acabado.

Neste presente trabalho, pretende-se explorar e procurar entender que traços uma
obra detém para ser considerado um romance. Para isso, iniciaremos uma abordagem,
sob a luz da teoria de Massaud Moisés, do que seria um conto e uma novela para que
possamos entender a diferença entre eles, para então partimos com segurança para o
romance.

Conto

Segundo o teórico Massaud Moisés:

“Conto é, do prisma da história e de sua essência, a matriz da novela e do


romance, mas isso não significa que deva poder necessariamente,
transformar-se neles. Como a novela e o Romance é irreversível: jamais
deixa de ser conto a narrativa de como tal se engendra, e a ele não pode ser
reduzido nenhum romance ou novela.”

(MÓISES, 2006. Pag.37)

Engendra. Cerca com grades. Fecha-se. A principal característica do conto é ser


conciso, fechado a uma unidade dramática. Busca-se focar a um só conflito, uma só
ação.

O fato de ter-se a existência de uma única ação ou conflito está ligado a um traço
importante do conto: ele “aborrece as digressões, as divagações, os excessos”
(MÓISES, 2006. Pag.41).

Os principais traços de um conto são:

• Unidade de ação, espaço e tempo;


• Poucas personagens;
• Diálogo (dominante)
• Descrição (variável)
• Narração (tende a brevidade)
• Dissertação (Na modernidade foi anulada)

Massaud Móises explicita que a meta do conto “não consiste em criar seres vivos
a nossa imagem e semelhança, complexos e quiçá múltiplos”, esse seria a meta do
romance, mas criar conflitos em que o leitor possa se espelhar.

O foco do contista é elaborar um drama, um conflito em torno de um sentimento,


em torno de uma unidade dramática, fechando sua história. Os personagens do conto
geralmente só protagonizam aquela situação, o que aconteceu em seu passado ou futuro
não se torna necessariamente importante. Visa-se focar, com uma visão ampliada aquele
único momento, a fim de gerar uma recepção equivalente no leitor, a partir daquela
ação.

Novela

Para Massaud Moíses a novela:

“é encarada como modo de conhecimento, a novela ilude e mistifica, por


imprimir aos episódios um movimento acelerado e cheio de novidades, que
não pode ser o do cotidiano. [...] Pressupondo que tudo se conheça, ou que se
converta em atos e acontecimentos visíveis, a novela contempla, não indaga,
finge, não questiona, fantasia, não interroga.”

A novela geralmente é tida com aquela visão de ser uma história com mais de 100
páginas e menos que 200, mas essa concepção não se torna abrangente para explicar o
que seria uma novela de fato.

Muitas novelas já foram chamadas de romance e vice-versa por levar em


consideração apenas o aspecto quantitativo e exterior de uma obra.

A novela ocupa uma posição menos relevante que a do conto e do romance. Ela
busca o deleite. Não se preocupa com o exame do dia a dia, o que nos leva à teoria de
Massaud Moisés quando diz que a novela contempla, finge e fantasia ao invés de
indagar, questionar ou interrogar.
Não é uma característica forte a profundidade dramática (o que cabe no romance e
pode estar presente no conto). Isso não significa que o novelista seja menor que
qualquer romancista, afinal há autores que podem e fizeram obras magníficas no gênero.

Ao contrário do conto o novelista “não esgota por completo o conteúdo de uma


unidade para depois efetuar o mesmo nas seguintes” (MOISES, 2006. Pag.114) como
exemplo podemos citar a obra “O Tempo e o Vento” de Érico Veríssimo, que busca
narrar cerca de 150 anos de uma geração, de uma única família. Visivelmente parece
tratar-se de uma sequência de contos, porém nesta é colocado sementes para um novo
conflito, mistérios... Essa é um traço marcante da novela.

Os principais traços da novela são:

• Pluralidade e sucessividade dramática;


• Número ilimitado de personagens;
• Liberdade de tempo e espaço;
• Diálogo;
• Narração
• Descrição (presente)
• Dissertação (presente)

A Novela, portanto, como Massaud Móises afirma não busca recriar a realidade,
“mas uma realidade a partir dos dados que o mundo concreto lhe oferece”. Busca mais
gerar um novo mundo com base no universo concreto, o que lhe diferencia do conto e
principalmente do romance.

Romance em Massaud Moisés

Romance, segundo Massaud Moises,

“Pode, mais do que o conto, a novela e a poesia [...] apresentar uma visão global
do mundo. Sua faculdade essencial consiste em recriar a realidade: não
fotografa, recompõe-na; não demonstra ou reduplica, reconstrói o fluxo da
existência com meios próprios, de acordo com uma concepção peculiar, única,
original.”

(MOISES, 2006. Pag. 1650)


O romance, assim, busca captar ou abarcar o máximo, em amplitude e
profundidade, da realidade. “Seu anseio mais intimo consiste em captar todas as formas
do mundo” (MÓISES, 2006. Pag. 166). O romancista acredita haver uma interação a
conduzir os seres e objetos, logo busca detectá-la e apresentá-la em suas páginas.

No trecho abaixo do romance americano, “A Menina que Roubava Livros” de


Marcus Zusak, podemos ver como o romancista busca dar uma visão ampla do mundo
que envolve a trama:

“Antes de acordar, a menina que roubava livros estivera sonhando com o


Führer, Adolf Hitler. No sonho, ela participava de um comício em que ele
fazia um discurso, e olhava para o repartido cor de crânio em seu cabelo e
para o quadrado perfeito do seu bigode. Ouvia contente a enxurrada de
palavras que jorrava da boca do homem. As frases dele rebrilhavam à luz .
Num momento mais calmo, ele até se abaixara e sorrira para ela. [...] Ela não
havia aprendido a falar muito bem, nem tampouco a ler, porque raras vezes
frequentara a escola. A razão disso ela descobriria no devido tempo.

Quando o Führer estava prestes a responder, a menina acordou.

Era janeiro de 1939. Liesel tinha nove anos, logo faria dez.

Seu irmão estava morto.”

(ZUSAK, Marcus. 2006 Pag. 18)

A história se passa durante o período da segunda guerra mundial. A obra tem


como principal foco o poder das palavras da vida das pessoas. No trecho acima
percebemos isso onde a narradora enfatiza que Liesel, protagonista da história, não
sabia falar bem, muito menos ler, pois não frequentara a escola e isso por certo motivo
especifico.

Dentro do trecho e de toda obra, percebemos o autor nos apresentando diversos


fatos históricos; o cotidiano da uma cidade durante a guerra, sendo influenciada por ela.
Dá evidência a nomes marcantes dentro do período histórico, neste caso Adolf Hitler. E
outro elemento inserido e este inteiramente marcante, que seria a morte. Que super é
destacada, a começar que obra traz como narradora a própria morte.
Podemos perceber que a obra não se fechará a único tema, apesar de haver um
foco, porém o romance tentará observar todo o mundo a sua volta e trará também
múltiplas vozes, como dirá Mikhail Bakhtin.

O romancista possui grande liberdade para aprofundar sua história, personagem


etc. Digressões são comuns. Não significa logicamente que o mesmo não possui
limitações. “O romancista obedece os limites da narrativa, seja qual for a magnitude do
espaço abrangido e seja qual for a técnica empregada”.

Para tornar clara a diferença entre os três gêneros, podemos estabelecer através do
gráfico baixo uma alegoria:

Dentro de uma imensa cidade há um autor que decidiu escrever três textos com
estruturas diferentes. Primeiramente o escritor andou pela cidade e viu uma situação
interessante a se passar com um casal de idosos e decidiu se ocupar a retratar todo
aquele único conflito, aquele único momento daquele casal. Ao terminar, sabia,
escrevera um conto.

Ao conversar com o casal de idosos descobrira que eles eram os matriarcas de


uma imensa e encantadora família. A História daquela família tornara-se para ele tão
interessante e bela, que sabia: precisava relatá-la, porém com tanto a contar, preferiu
dividir a obra em partes, como em pequenos contos, mas diferente deste, deixando
pontas soltas para introduzir os outros personagens seguintes, continuando a árvore
genealógica daquela família. Ao escrever, tinha em mente, a obra teria sucessividade de
eventos, então percebeu, escreveu uma novela.

Mas a mente do autor voou longe e decidiu que aquela cidade tinha muita história
a contar. Definiu um protagonista e se pôs escrever uma história tentando contemplar
uma visão global do mundo que o cercava. Preceitos, Moral, Contexto, Profundidade,
buscou assim ele ao escrever o que ele sabia ser um romance.

O Romance em Bakhtin

Bakhtin retrata o gênero romance como um gênero em evolução, um gênero onde


suas possibilidades plásticas ainda não podem ser totalmente previstas por seu aspecto
em ser atual e estar em processo de construção. Aliado a esse fato, ainda o temos como
um gênero que dialogiza com outros gêneros literários, ele ‘parodia os outros gêneros
(justamente como gêneros), revela o convencionalismo das suas formas e da linguagem,
elimina alguns gêneros’ e também integra outros gêneros à sua ossatura. Para Bakhtin,
há um plurilinguismo extraliterário, onde o gênero romance tem suas variações em suas
manifestações, ora pode ser um sermão moralizador, uma carta, um tratado filosófico,
demonstrando assim a derrubada de barreiras literárias entre diferentes gêneros.

“Construído na zona de contato com um evento da atualidade inacabada, o


romance frequentemente ultrapassou as fronteiras da arte literária específica,
transformando-se então ora num sermão moralizador, ora num tratado
filosófico, ora em verdadeira diatribe política, ora em algo que se degenera
numa obscura confissão íntima, primária, em ‘grito da alma’, etc.”

(BAKHTIN, Mikhail. 1998 – Pg. 422)

Assim, podemos dizer que o romance, como um gênero em evolução aliado á


realidade, pois a retrata de forma pura ou realiza uma alusão á ela, é o único gênero que
pode retratar essa realidade de forma mais substancial, mais sensível do que os outros
gêneros literários. Pois, o romance é um gênero que vai representar a realidade de forma
mais profunda que os outros gêneros; seus personagens irão trazer problemáticas da
vida real, não irão ser heróis acabados como os heróis da epopéia, mas sim personagens
educados pela vida, retratando na narrativa o presente inacabado, o que está em
evolução.
“O personagem do romance não deve ser heróico, nem no sentido épico,
nem no sentido trágico da palavra: ele deve reunir em si tanto os traços
positivos, quanto os negativos, tanto os traços inferiores, quanto os elevados,
tanto os cômicos, quanto os sérios. O personagem deve ser apresentado não
como algo acabado e imutável, mas como alguém que evolui, que se
transforma, alguém que é educado pela vida. O romance deve ser para o
mundo contemporâneo aquilo que a epopéia foi para o mundo antigo.”

(BAKHTIN, Mikhail. 1998 - Pg. 402)

Além de tais características, Bakhtin ainda trata sobre a introdução de si mesmo


no romance. O gênero retratando a realidade, o presente inacabado, com narrativas que
podem retratar nossas vidas ou aludir a uma determinada realidade, o leitor, como
apreciador das obras romanescas, poderá se identificar facilmente com a trama que está
lendo, com os personagens envolvidos em certas situações e períodos históricos,
justamente pelo romance ser fruto da era moderna e conseguir representar diferentes
realidades com diversas formas, através de variadas manifestações como gênero.

Como exemplificação para tais características do romance em Bakhtin, o best-


seller Jogos Vorazes da autora Suzanne Collins demonstra bem o que o teórico nos
expõe. A narrativa é distópica, retratando um futuro não muito longe de nossa sociedade
atual, onde o espaço é organizado por uma Capital, monopolizadora de Distritos (12
Distritos), onde cada Distrito tem suas particularidades ao fornecer uma matéria-prima
específica para a Capital. Após uma revolta contra a Capital alguns anos atrás, todo ano
ocorre os Jogos Vorazes, que consiste em sortear dois jovens ou crianças de cada
Distrito para disputarem por suas vidas em um campo de batalha. Katniss é nossa
protagonista e tem sua irmã escolhida no sorteio do ano atual, porém, ela se candidata
no lugar da pequena Prim e ao lado de Peeta, seu vizinho do Distrito, irá descobrir que
vencer os Jogos Vorazes não era o mais difícil de vencer, ainda há muitos obstáculos em
volta da vida na Capital e por trás dos Jogos.

O que podemos constatar no romance de Suzanne é a alusão que a autora faz com
nossa realidade em diferentes pontos da trama: a Capital, que contém todo o poder
perante os Distritos, explorando todo um povo, subjugando e rechaçando àqueles que
tentam ir contra seu poder, suas regras e suas leis.
O ‘Jogos Vorazes’, como forma de alienação da população da Capital e forma de
coerção para com a população dos Distritos. São Jogos televisionados para toda a
sociedade daquele território (que consistiria num País, atualmente), com crianças e
jovens levados a um estado animalesco para sua sobrevivência, cumprindo provas e
realizando atos que em nossas vidas particulares nós repudiamos.

Não é diferente do que ocorre atualmente, o Poder de toda uma nação centralizado
em um só país, com sua cultura, seus costumes e seu pensamento sendo impostos para
todo um povo alienado por reality-shows, jogos de futebol, promessas de governos
melhores, etc. Tais jogos sangrentos não diferenciam muito daqueles de gladiadores,
ocorridos na Antiguidade, onde a política do Pão e Circo era exercida com sucesso,
perante um povo carente e conseqüentemente, alienado.

"Levar as crianças de nossos distritos, forçá-las a se matar uma às outras


enquanto todos nós assistimos pela televisão. Essa é a maneira encontrada
pela Capital de nos lembrar de como estamos totalmente subjugados a ela.
De como teríamos pouquíssimas chances de sobrevivência caso
organizássemos uma nova rebelião. Poucos importavam as palavras que ele
utiliza. A mensagem é bem clara: ‘Vejam como levamos suas crianças e as
sacrificamos, e não há nada que vocês possam fazer a respeito. Se erguerem
um dedo, nós destruiremos todos vocês da mesma maneira que destruímos o
Distrito Treze”

(COLLINS, Suzanne. 2008. – Pág. 25)

Katniss como sendo a protagonista da estória, torna-se a heroína de todo um povo,


mesmo sendo mais uma dos indivíduos que eram rechaçados e subjugados pela Capital,
tendo que trabalhar ou caçar (às escondidas, pois era proibida a caça) para poder
conseguir o mínimo de alimento possível, já que os alimentos nos Distritos eram
limitados, ela ainda nos demonstra não ser totalmente corajosa em diferentes situações.

"Por que sou egoísta. Sou covarde. Sou o tipo de garota que, mesmo
podendo ser claramente útil em alguma coisa, fugiria para continuar viva e
deixaria para trás para sofrer e morrer aqueles que não tinham como segui-la.
Essa é a garota com que Gale se encontrou hoje na floresta. Não é surpresa
nenhuma eu ter vencido os Jogos. Nenhuma pessoa decente jamais consegue
essa proeza“
(COLLINS, Suzanne.Em Chamas, 2008 – Pág. 12)

Na verdade, nascida em um dos Distritos mais pobres de todo aquele território,


Katniss é uma personagem que precisará desprender-se dos seus medos, encorajar-se
nas situações difíceis que ela nunca viveu e precisará ser mais forte do que era em sua
vida familiar, pois vencendo os Jogos Vorazes com uma atitude desafiadora para com a
Capital, a garota terá que priorizar o que é o certo para ela: Salvar a si mesma e sua
família apenas ou salvar uma população inteira, que depende agora dela para a
esperança de condições melhores em suas vidas?!

Aqui vemos claramente dois aspectos sobre o romance em Bakhtin: A alusão à


realidade, no poder que a Capital exerce, nos Jogos Vorazes como política para
alienação do povo e forma de coerção e em Katniss, que não é personagem acabada,
totalmente heróica, com características específicas que não mudam ao longo do enredo,
mas sim um personagem que evolui junto aos acontecimentos vividos, um personagem
que é ‘educado pela vida’.

O Romance em George Lukács

Lukács, como filósofo nos expõe sua teoria sobre o Romance em configurações
baseadas em teóricos filósofos e concepções mais objetivas do que as de Bakhtin.

Para Lukács, o romance é a representação de momentos essenciais de um


determinado período histórico através das emoções, ações e relações que os destinos de
personagens individualizados estabelecem com a sociedade. O gênero irá representar a
realidade em sua totalidade, totalidade essa tida como todas as ações que ocorrem em
um determinado período histórico em uma sociedade.

Utilizando de pensamentos Marxistas, Lukács nos diz que ‘o pressuposto da


forma romanesca é, para Lukács, a representação das contradições que nascem no
interior da vida burguesa’. Como uma leitura marxista do mundo, o teórico nos diz
sobre o romance representar a luta das classes que possuem bens com aqueles
desprovidos destes.

No romance, o retrato da busca pela sua essência é latente no personagem. Ele irá
retratar a busca pela totalidade do ser; assim como Bakhtin nos expõe sobre o
personagem inacabado, Lukács também teoriza sobre esse personagem ‘desconstruído’,
que no romance, busca pela sua forma total. Não significando, porém, que esse
personagem irá conseguir tal ato.

“Sendo assim, o romance narra a trajetória da alma do protagonista


que, através do contato e das aventuras que trava com o mundo, põe a
si mesmo em prova para que sua essência seja encontrada.” 1

O personagem no romance, para Lukács, irá representar toda uma vida típica de
sua sociedade e do seu período histórico, mas ao mesmo tempo irá ser um uno, um
personagem ainda com suas singularidades. O personagem concentra em si as tensões e
contradições do mundo em que vive, porém, ele traz uma problemática que permeia sua
vida, sendo esta característica o seu singular, o seu diferencial.

"O personagem típico é aquele que concentra as tendências mais


essenciais (universais) de sua espécie e, todavia, é, ao mesmo
tempo, um uno, um singular- nas palavras de Hegel, um “este”-
.2

Em Jogos Vorazes, Katniss representa todo um povo subjugado, nascido em meio


a uma realidade imposta, a uma miséria no seu Distrito e nos demais em contraste com a
ostentação do povo da Capital. A personagem aqui, para Lukács, representa a classe
desprovida de bens que luta para com a classe mantenedora não só dos bens materiais
como do poder nas leis e regras impostas.

"aprendi a controlar a língua e a mascarar minhas feições de modo que


ninguém pudesse jamais ler meus pensamentos. Aprendi a fazer meu
trabalho calada na escola. Somente falar o mínimo necessário e de maneira
educada, no espaço público. Discutir apenas compra e venda no prego, o
mercado negro onde ganho parte do meu dinheiro. Mesmo em casa, lugar
que me incomoda, evito abordar assuntos problemáticos, tais como colheita,
ou a escassez de comida, ou os Jogos Vorazes"

(COLLINS, Suzanne. 2008 – Pág. 12)

1/2
GALLO, Renata Altenfelder G. Considerações acerca da concepção de romance nos escritos
"A Teoria do Romance" (1914-15) e "O Romance como epopeia burguesa". Pg. 380.
O Personagem no Romance

O personagem é tido como um dos elementos fundamentais mais importantes no


romance. Massaud Moisés conceitua personagem como um “ser de papel”, sem
identificação com a pessoa viva, muito embora eles possuem dentro de sua “mentira”
dimensões psicológicas, morais e sociológicas, e agem como atores das ideias do autor
que os criou e irão representá-las no desenrolar da trama. O número de personagens
num romance varia de acordo com a deliberação do autor, que ora pode povoá-lo com
uma miríade de personagens, ora pode reduzi-los ao mínimo necessário para se existir
uma trama. E nessa trama/enredo é possível perceber que existe uma hierarquia entre
esses personagens, um “grau de importância” na história que se desenrola:

1) Protagonista: o personagem principal na trama, quem geralmente ganha mais destaque


no desenrolar da estória;
2) Deutaragonistas: ou personagens secundários. Ora são aliados ou rivais do
protagonistas. Suas ações geralmente gravitam em torno do protagonista, de algum
modo, por mais distantes que possam ser;
3) Antagonistas: são os que se opõem ao protagonista de algum modo, assim
movimentando o desenrolar da trama.

Dada esta primeira identificação, o teórico Massaud Moisés assinala ainda que é
necessário classificar as personagens independente de sua importância na trama. De
acordo com seu argumento, dois protagonistas podem divergir bastante, agindo em
planos diferentes, apesar de assumirem o mesmo papel hierárquico no desenrolar da
trama.

Desse modo, Massaud apresenta os personagens tipo e/ou caricaturas. Este tipo
de personagem é moldada por seu ambiente social, recebe dele seus modos de
linguagem, gestos, hábitos, comportamento e até mesmo a maneira de pensar e sentir,
por isso tem uma individualidade um tanto precária ou quase inexistente. Massaud
Moisés defende que o tipo define-se por sua característica distintiva levada ao extremo,
diferenciando-o; por isso não se pode considerá-lo completamente não individualizado.
Esse tipo de personagem geralmente funciona como uma espécie de índice social.

Pode-se notar esse tipo de personagem tipo ou caricatura no Best-seller mundial


“Harry Potter”, de J.K Rowling. A história começa no mundo dos bruxos, que sempre
se manteve secreto em relação aos trouxas (aqueles que não são bruxos). Por muitos
anos, este mundo foi aterrorizado por Lorde Voldemort, que na noite da sua queda,
encontra o esconderijo da família Potter, e mata Lílian e Tiago Potter. Entretanto,
quando voltou sua varinha contra o bebê dos Potter, Harry, o seu feitiço voltou-se
contra ele. ‘Você-Sabe-Quem’ (como Lorde Voldemort é frequentemente chamado por
aqueles que o temem) desapareceu, enquanto Harry foi deixado com uma cicatriz em
forma de raio em sua testa. Harry tornou-se conhecido como "O Menino que
Sobreviveu" no mundo dos feiticeiros, por ter sido o único a sobreviver a maldição da
morte e por ter derrotado Lorde Voldemort. Para mantê-lo seguro, Harry ainda bebê é
deixado na porta de seus tios trouxas Válter, Petúnia Dursley, únicos parentes vivos
dele. Como já mencionado acima, no mundo bruxo, aqueles que não possuem magia
dentro de si, são considerados “trouxas”; e apesar de a família Dursley seguir
exatamente este padrão de personagem tipo ou caricatura, sendo moldados pela
sociedade que os cerca, sem apresentar grandes mudanças ao longo de toda série,
possuem uma individualidade que pode consistir no fato de que os Dursley, por saberem
que existe a magia, a negarem mais do que qualquer outro trouxa; são ao mesmo tempo
tipo e caricatura das “pessoas normais”.

“O Sr. e a Sra. Dursley, da Rua dos Alfeneiros, nº 4, se orgulhavam de dizer


que eram perfeitamente normais, muito bem, obrigado. Eram as últimas
pessoas no mundo que se esperaria que se metessem em alguma coisa
estranha ou misteriosa, porque simplesmente não compactuavam com esse
tipo de bobagem.”

(ROWLING, J. K - pág. 7)

Contrapondo-se a esse tipo de personagem, Massaud Moisés apresenta as


personagens símbolos ou caráter. Define esse tipo de personagem como
tridimensionais, ou seja, são personagens dinâmicas, com características internas
permutáveis ao desenrolar dos acontecimentos, podendo surpreender o leitor inúmeras
vezes no desenrolar da trama, tendo um perfil psicológico oscilante similar ao dos seres
vivos. É uma figura singular e concreta, formada pelo seu interior psicológico, dotadas
de maior sensibilidade. Por causa dessa disponibilidade psíquica, tanto faz para esse
tipo de personagem agir duma forma ou outra, pois os atos se equivalem perante sua
consciência e por ser tão carregada de humanidade e individualidade, não raro
transforma-se num símbolo: uma “possibilidade” humana por momentos elevada à sua
mais alta dimensão. Além do personagem símbolo, existe também o caráter, e é
considerado um pouco difícil distinguir ambos. Assim como o símbolo, o caráter
assume certa complexidade que apenas o leitor percebe, e que passa despercebido pelo
próprio personagem. Massaud os define como:

“são, por assim dizer, quimicamente puros; eis porque são frequentemente
tônicos, mesmo intoxicantes. Seu realismo é marcado pela intensidade,
singularidade, vivacidade.”

(MASSAUD, Moisés. 2006 – pág. 232)

Massaud frisa então que é esta disponibilidade psicológica do personagem


símbolo e caráter, que muitas vezes o torna uma “pessoa mista” – tornando difícil, em
alguns momentos, saber se ele é um herói ou vilão –, ele oscila entre os dois.

Na série de livros Harry Potter J.K apresenta muitos personagens que oscilam
entre a vilania (mesmo que parcial) e o heroísmo, mas aqui darei mais destaque ao
personagem Severo Snape, em que essa oscilação está mais presente. Desde o início,
Severo tem todos os traços e personalidade de um ser perverso:

“Snape, como Flitwick, começou a aula fazendo a chamada e, como


Flitwick, ele parou no nome de Harry.

— Ah, sim — disse baixinho. — Harry Potter. A nossa nova celebridade.(...)


Seus olhos eram negros como os de Hagrid, mas não tinham o calor dos de
Hagrid. Eram frios e vazios e lembravam túneis escuros.”

(ROWLING, J. K. – pág. )

No entanto, no desenrolar da estória, vão se revelando momentos em que, na


verdade, Severo cometera atos heróicos e salvara a vida do protagonista Harry Potter,
mesmo não gostando deste por motivos pessoais e que remetem também ao seu
passado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MÓISES, Massaud. A Criação Literária – Prosa 1. 20. ed. Editora Cultrix, São Paulo,
2006.

VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento: O Continente 1. Editora Globo. 34º edição.


São Paulo, 1997.

ZUSAK, Marcus. A Menina que roubava livros. Editora Intrínseca, 2006.

ROWLING, J.K. Harry Potter e a Pedra Filosofal.

CERVANTES, Miguel. Dom Quixote. São Paulo. Editora 34, 2002.

SOARES, Angélica. Gêneros Literários. São Paulo. Editora África, 2006.

LUKÁCS, Georg. “O Romance como Epopeia Burguesa”. In: Revista Ad Hominem,


São Paulo, n.1., 2000. Tomo II.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética – A Teoria do Romance.


São Paulo: Hucitec, 1975.

GALLO, Renata Altenfelder G. Considerações acerca da concepção de romance nos


escritos "A Teoria do Romance" (1914-15) e "O Romance como epopeia
burguesa" (1935) de Georg Lukács. Pag. 376-390.

Você também pode gostar