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INSTITUTO DE ARTES - IdA/UnB

ProfArtes - MESTRADO PROFISSIONAL EM ARTES 2020

DISCIPLINA: Etnocenologia
DOCENTE: Prof. Dr. Jorge das Graças Veloso
DISCENTE: Eloisa de Fátima Cunha – 19/0124385
(mestranda em Psicologia do Desenvolvimento Humano e Escola – PGPDE – IP/UnB)

RESENHA

PARADOXOS E PARADIGMAS: A ETNOCENOLOGIA, OS SABERES E SEUS LÉXICOS

Esse artigo, escrito pelo Prof. Dr. Jorge das Graças Veloso (Graça Veloso), é fruto de
uma Conferência realizada no I Encontro Nacional de Etnocenologia, de 12 a 15 de abril/2016,
Salvador – Bahia – Brasil. Além de apresentar a contextualização da origem epistemológica da
Etnocenologia, que estuda as Práticas e Comportamentos Humanos Espetaculares
Organizados– PCHEO, o autor nos propõe discutir a questão do uso de léxicos próprios de cada
manifestação espetacular investigada como um caminho de reconhecimento das identidades
espetaculares, centradas no conceito de alteridade.

Transcorridos 25 anos desde o colóquio realizado na Maison des Cultures du Monde,


em Paris, em 1995, evento que se configurou um marco para um novo olhar sobre a cena
contemporânea e reuniu importantes pesquisadores de diferentes saberes, tais como Jean
Duvignaud, Cherif Khazanadar, Jean-Marie Pradier, Rafael Mandressi e Armindo Bião, pode-se
dizer que o corpus teórico metodológico da etnocenologia já se diferenciou muito, frente à
pluralidade dos saberes humanos. No cenário brasileiro Armindo Bião se consagrou o maior
defensor da etnocenologia, trazendo para a cena os fenômenos espetaculares da rotina social,
e vem formando novos pesquisadores, dentre os quais a produção de Graça Veloso se destaca.

Para ele há quatro maneiras diferentes para classificar/estudar os saberes e fazeres


humanos nos fenômenos cotidiano:

1. Saberes direcionados à sobrevivência – estudos relacionados à produção do


trabalho, melhoria dos processos de saúde, longevidade e tecnologias;
2. Saberes destinados à folgança e à vadiagem – ações e fenômenos voltados para o
lazer, o prazer e o ócio;
3. Saberes voltados para a sagração – ações relacionadas à adoração, oração e
gratidão às diversidades de fé em divindades.
4. Saberes para o estar juntos – relacionam-se a ações e práticas de conhecimento de
si na relação com o outro.

O autor alerta que o lugar de fala da etnocenologia está além de paradoxos e


paradigmas pois a arte permite o diálogo poético com as diferenças e dicotomias dos saberes e
práticas. A arte é aberta aos paradoxos, alimenta-se dialogicamente entre opostos
complementares, convive com diversas poéticas, inclusive contraditórias. Os saberes estéticos
artísticos são saberes que se diferenciam dos científicos e dos sagracionais religiosos não
somente na forma que agrega seu objeto de pesquisa, ma, sobretudo, porque traz para dentro
do processo dialógico com a alteridade a imaginação, a simbologia e a cultura. Nas artes o
fenômeno estético possibilita visões e perspectivas de compreensão diversas, tanto para o
fazedor quanto para o espectador. Para a etnocenologia os saberes sagracionais, artísticos e
estéticos estão incluídos nos fenômenos e ritos sociais e não são excludentes, ao contrário,
formulam complementariedades agregadoras de alteridades.

Ainda no processo de definição do objeto da etnocenologia Graça Veloso coaduna com


a proposta de Armindo Bião: investigar os corpos em teatralidade e espetacularidades, nos
ritos cotidianos, nos ritos espetaculares e nos espetáculos propriamente ditos, representados
nos estados conscientes de quem faz e para quem faz. Os conceitos de teatralidade e
espetacularidade relacionam-se com a alteridade, nos processos de interações humanas
cotidianas, mas diferenciam pela consciência da relação entre atores e espectadores. Para Bião
“ a consciência reflexiva de que cada um aí presente age e reage em função do outro pode
existir de modo explicitamente compactuado – ou convencionalmente explicitado o tempo
todo” (BIÃO, 2009). Na teatralidade o nível dessa consciência reflexiva é menor que na
espetacularidade.

Graça Veloso complementa essa discussão e propõe organizar as definições de Ritos


Cotidianos, Ritos Espetaculares e Espetáculos propriamente ditos em três subgrupos e os
relaciona à condição de serem objetos substantivos, adjetivos e adverbiais:
1. Artes do espetáculo – são objetos substantivados a produção artística do teatro,
da dança, da ópera, do circo, da música cênica, do happening, da performance e
do folguedo popular.
2. Ritos espetaculares – são objetos adjetivados os ritos sociais que mesmo tendo
formas espetaculares não precisam do espectador para acontecer, normalmente
encontra-se espetacularidade complementar nos ritos religiosos ou políticos e nos
festejos públicos representativos ou comemorativos.
3. Formas cotidianas espetacularizadas pelo olhar do pesquisado r – são objetos
adverbiais os fenômenos da rotina social que vistos de forma diferente pelo
estudante ou pesquisador torna-se evento espetacular.

A partir desses grupos e do seu lugar de fala (saberes artísticos) Veloso faz alguns
dizeres sobre os lugares de narrativa geralmente usados para se ver e falar dos fenômenos do
campo das tradições:

a) Narrativas histórica-folcloristas – manifestação popular é tida como “cultura do


povo”, vista de fora deve permanecer como é para se manter a identidade dos
grupos folclóricos, geralmente as pesquisas trazem um discurso eurocêntrico.
b) Narrativas ideológicas – usada para demarcação de espaço da “cultura popular”
geralmente defendida por ideólogos que colocam no discurso termos e referências
europeias e norte americanas e fazem as pesquisas relacionando conceitos de arte
com termos da manifestação cultural estudada.
c) Narrativas da alteridade – os saberes e fazeres culturais são vistos de forma plural,
os termos usados nas pesquisas contemplam a fala interna usada pelo próprio
fazer da manifestação cultural.

Graça Veloso recomenda que o pesquisador da etnocenologia deve ter cuidado com
narrativas hegemônicas, evitar realçar a visão unificada de colonizador. No mergulho ao objeto
de pesquisa é necessário ver de DENTRO DO RITO ESPETACULAR, USAR OS LÉXICOS DE QUEM
FAZ OS RITOS ESPETACULARES NA ROTINA SOCIAL para reconhecer o direito da alteridade de
exercer a sua própria narrativa. É imperioso respeitar a singularidade do lugar pesquisado –
cada local tem suas particularidades e diferenças, cabe ao pesquisador ver o fenômeno por
esse local, evitando ter uma só narrativa e pontuar seu lugar de fala.

Considerações:
Ao ler o artigo fui fazendo associações com alguns conceitos que tive acesso em
estudos para minha pesquisa no mestrado em psicologia do desenvolvimento, os quais
considero importantes para um pesquisador da etnocenologia. A primeira questão é sobre a
relação da arte com a cultura e com a formação do self, a partir da visão sócio histórica do
desenvolvimento humano. Para Vygotsky (2003) a estrutura dos processos psicológicos
humanos emerge da atividade prática mediada simbolicamente e culturalmente por meio da
linguagem, conforme os materiais e condições de produção de determinada sociedade. Se a
pessoa se constitui nessa relação dialógica com suas atividades práticas e com os outros, em
mediação simbólica cultural por meio da linguagem, é possível pensar que os fenômenos dos
ritos espetaculares trazem um conjunto de valores e crenças que mediam a produção de
signos e significados pela pessoa que participa dessas manifestações espetaculares? Por
exemplo, um cantador de folia de reis nasce em uma família que cultiva essa ação espetacular,
e vai se tornar um cantador de folia durante sua trajetória de vida, a partir das escolhas que vai
fazendo e experiências nas interações sociais. É no caminhar que se desenvolve o artista, o
brincante, o mestre, a pessoa se faz na relação com as alteridades.

A segunda questão é que a arte tem um modo singular de conhecimento, de ação e


fruição e percepção da estética. Ela desperta nos sujeitos envolvidos (atores e espectadores)
as mesmas emoções que se observa em uma descoberta científica, porém ela difere da ciência
pelo método, pela forma como é vivenciada. É interessante pensar que as escolhas estéticas
estão atravessadas pelos contextos sócios históricos de cada sujeito, que são por ele
internalizadas, reestruturadas e socializadas por meio das espetacularidades produzidas na
manifestação dos ritos e espetáculos propriamente ditos. Caberia aqui refletir as formas de
análise da espetacularidades produzidas nas categorias dos objetos substantivos, adjetivos e
adverbiais, partindo do pressuposto de que o estudo das formas criadas em cada uma delas,
também suscitaria diferentes significados dados aos objetos, contidos ou não em suas formas,
entres eles os significados sociais e estéticos que atravessam o pesquisador. Por mais que se
queira a pesquisa não é imparcial, ela apresenta-se repleta de saberes, fazeres e valores do
pesquisado, do pesquisante, das situações vivenciadas e recortadas e dos processos de
mediação simbólica pelos quais os sujeitos envolvidos passaram. A Etnocenologia vai registrar
essa pluralidade social e simbólica dos fazeres espetaculares.
Bibliografia:

BIÃO, Armindo. (2009a). Um léxico para a etnocenologia: proposta preliminar. In: ____
Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos. Prefácio Michel Maffesoli. P&A Gráfica e
Editora, 389 p. Salvador.

VELOSO, J.G (2016). Paradoxos e Paradigmas: A Etnocenologia, os saberes e seus


léxicos. Repertório, n. 26, p. 88-94. Salvador.

VYGOTSKY, L.S. (2003). A formação social da mente: o desenvolvimento de processos


superiores. 6ª edição – Ed. Martins Fontes. São Paulo.

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