Você está na página 1de 4

AZEVEDO, Ricardo. As três noites do papagaio In: No meio da noite escura tem um pé da maravilha.

São Paulo:
Ática, 2008. Pp. 99-107

As três noites do papagaio

Era uma vez um vendedor ambulante casado com uma moça muito bonita. Os dois se adoravam e viviam
bem felizes.
Um dia, o vendedor precisou viajar. Chamou a mulher. Disse a ela que tomasse cuidado. Pediu a ela que não
saísse muito de casa.
Em seguida, beijou e abraçou a mulher, pegou suas coisas e foi embora.
Na tarde daquele mesmo dia, o filho de um fazendeiro precisou passar pela cidade. Veio montado num
cavalo vermelho. Por acaso, atravessando a rua, viu a mulher do vendedor ambulante na janela.
O filho do fazendeiro ficou apaixonado.
Aquele dia, comprou mercadorias, fez negócios, assinou contratos, visitou pessoas, mas dentro, na sua
cabeça, só havia um pensamento: a mulher bonita da janela.
O rapaz voltou para a fazenda mas não conseguia dormir. Fechava os olhos e a moça bonita aparecia. Virava
de lado e enxergava a moça bonita. Acordava e via a mulher do vendedor ambulante nos cantos e recantos da sua
imaginação.
Então, o filho do fazendeiro teve uma ideia.
Voltou à cidade e procurou uma certa velha. Pediu ajuda. Garantiu que daria muito dinheiro. Contou a ela
que a mulher bonita era casada, mas que seu marido estava viajando. Explicou seu plano. A mulher escutou, pensou
no dinheiro, deu risada e aceitou.
- Quero aquela moça de qualquer jeito! – disse o filho do fazendeiro.
No outro dia, era fim de tarde, a velha bateu na casa da mulher do vendedor ambulante. Pediu licença.
Mentiu. Disse que era tia do dono da casa.
- Tia? – estranhou a moça. – Meu marido nunca falou tia nenhuma!
A velha explicou que era irmã da mãe dele mas tinha viajado e sumido no mundo, era por isso.
A moça bonita acreditou. Sorriu. Convidou a mulher para entrar.
- Cadê meu sobrinho?
- Tá viajando!
- Não diga! – exclamou a outra, fingindo surpresa. – Faz tempo?
A moça disse que sim. Confessou que estava morrendo de saudade. Confessou que ficava preocupada. Disse
que as estradas eram perigosas. Contou que amava o marido. Tinha medo de assalto. Tinha medo de alguma coisa
ruim.
Era o que a velha queria ouvir.
- Conheço uma vidente! – disse ela, com voz venenosa.
Explicou que a tal vidente, infelizmente, só atendia à meia-noite.
Mentiu maravilhas.
- A mulher é famosa. Sabe de tudo – garantiu a velha. – Ela pode adivinhar como vai seu marido, como vão
indo os negócios e até se também sente saudade.
Os olhos da moça bonita brilharam de alegria.
- Se você quiser, a gente vai lá esta noite mesmo! – propôs a velha.
A mulher do vendedor ambulante aceitou.
O plano do filho do fazendeiro era este. Encontrar a moça bonita sozinha no meio da noite escura.
O tempo passou. As duas mulheres ficaram conversando. Quando deu as onze e meia e as duas já estavam
prontas para sair, veio uma voz da cozinha.
- Ai, minha garganta!
- Era o papagaio do vendedor ambulante.
O bico tossia aflito com as asinhas em volta do pescoço.
- Me dá um chá senão eu morro!
A moça bonita ficou preocupada. Explicou que o papagaio era que nem um filho. O bichinho era o xodó dela
e do marido.
Disse para esperar um instantinho.
A velha não gostou mas achou melhor ficar quieta.
A moça preparou o chá.
O tempo estava passando.
O papagaio agradeceu mas disse que o chá estava pelando.
- Enquanto esfria, vou contar uma história – disse o bicho.
- Mas a gente está atrasada! – resmungou a velha.
- É só um pouquinho – respondeu o papagaio.
E contou que era uma vez um rei que tinha uma filha mais linda do que as frutas do campo, as conchas do
mar e as estrelas brilhantes do céu. Um dia, o rei chamou a filha. Disse que ela já estava na idade de se casar. A moça
sacudiu os ombros. Respondeu que nem estava pensando nisso. Sorriu. Contou ao pai que todas as noites sonhava
com um jovem muito bonito. Era como se fosse um príncipe encantado que andava num cavalo branco cavalgando
pela paisagem da cabeça dela. A princesa confessou que estava apaixonada pelo cavaleiro.
O papagaio disse que no começo o rei achou graça.
- Que lindinha a minha princesa – comentava ele. – Gostar de um príncipe imaginário! Que doce maravilha!
Quanta criatividade!
Com o passar do tempo, entretanto, o pai da moça deu para ficar preocupado. A menina era sua única filha.
O rei precisava de um herdeiro que um dia, no futuro, assumisse seu lugar e comandasse os destinos do reino.
E o papagaio falava sem parar. Entrou nos mínimos detalhes. Descreveu o que havia e não havia. De repente,
o galo cantou. A madrugada já estava raiando.
A mulher do vendedor bocejou:
- Nossa! Ficou muito tarde. Acho melhor deixar nossa consulta para amanhã.
Aquela que se dizia tia do vendedor ambulante resmungou mas foi obrigada a concordar.
Combinou que voltaria no dia seguinte às dez horas da noite.
No outro dia, a velha apareceu no horário marcado. Entrou e ficou conversando com a moça bonita.
- Hoje a gente vai de qualquer jeito – disse a velha sorrindo. – Hoje você vai ter notícias frescas do seu
marido!
- Tomara! – disse a moça suspirando. – Estou com tanta saudade!
Quando deu as onze e meia e as duas mulheres já estavam prontas para sair, veio uma voz da cozinha.
- Ai, minha cabeça!
Era o papagaio do vendedor ambulante.
O bicho esfregava a cabeça com as asinhas.
- Me dá um chá senão eu morro!
A moça bonita ficou preocupada.
A velha não gostou mas achou melhor ficar quieta.
A moça preparou o chá.
O tempo estava passando.
O papagaio agradeceu mas disse que o chá estava pelando.
- Enquanto esfria, vou continuar a história que comecei a contar ontem – disse o bicho.
- Mas a gente está muito atrasada – resmungou a velha.
- É só um pouquinho – respondeu o papagaio.
E contou que o rei, um dia, chamou a princesa e deu um ultimato:
- Convidei três príncipes para visitar o castelo. Eles vêm amanhã cedo. Os três são jovens, bonitos e ricos.
Quero que você escolha um deles para casar.
A moça arregalou os olhos.
- Mas pai! Eu amo o príncipe da minha cabeça!
- Chega de fantasia! Basta de invencionice! Preciso de um herdeiro de verdade! Preciso que você se case
com um príncipe de carne e osso!
A princesa chorou e soluçou mas o rei não estava para brincadeiras.
- Chega de ficar inventando príncipe imaginário que nem existir existe!
Naquela noite, contou o papagaio, a moça teve um sonho. O príncipe montado no cavalo branco apareceu,
chegou perto dela e disse:
- Acordei! Vá até a janela! Venha atrás de mim!
A princesa acordou e correu até a janela. No meio da noite escura, lá longe, enxergou um cavaleiro vestido
de branco acenando para ela.
- É ele! – gritou a princesa.
E a menina não pensou duas vezes. Trocou de roupa, saltou a janela, pegou uma cavalo na estrebaria e
partiu galopando atrás do cavaleiro imaginário.
E o papagaio falava sem parar. Entrou nos mínimos detalhes. Descreveu o que havia e não havia. De repente,
o galo cantou. A madrugada já estava raiando.
A mulher do vendedor bocejou:
- Nossa! Ficou muito tarde. Acho melhor deixar nossa consulta para amanhã.
Aquela que se dizia tia do vendedor ambulante resmungou mas não teve jeito, foi obrigada a concordar.
Combinou que voltaria no dia seguinte às dez horas da noite.
No outro dia, a velha apareceu no horário marcado. Entrou e ficou conversando com a moça bonita.
- Hoje a gente vai de qualquer jeito – disse a velha com voz firme. – Hoje você vai ter notícias frescas do seu
marido!
- Tomara! – disse a moça suspirando. – Estou morrendo de saudade!
Quando deu as onze e meia e as duas mulheres já estavam prontas para sair, veio uma voz da cozinha.
- Ai, minha barriga!
- Assim não é possível – gritou a velha zangada.
Era o papagaio do vendedor ambulante.
O bicho esfregava a barriga com as asinhas.
Me dá um chã senão eu morro”
A moça bonita ficou preocupada.
A velha ficou furiosa:
- Assim a gente não vai ver a vidente nunca!
- Faço o chá num minutinho – prometeu a moça bonita.
O tempo estava passando.
O papagaio agradeceu mas disse que o chá estava pelando.
- Enquanto esfria, vou continuar a história que comecei a contar antes de ontem – disse o bicho.
- Mas, gente, assim não dá! – gritou a velha.
- É só um pouquinho – respondeu o papagaio.
E contou que a princesa saiu galopando no meio da noite, seguindo o cavaleiro branco. Que os dois
atravessaram florestas. Subiram e desceram montanhas. Saltaram sobre perigosos despenhadeiros.
No começo da madrugada, os dois acabaram chegando numa cidade. Foi quando o cavaleiro branco
desapareceu.
O papagaio arregalou os olhos. Contou que a tal cidade era muito estranha. Parecia um mausoléu. Havia
muita gente nas ruas, cavalos, carroças e carruagens. Mas nada ali se mexia. Tudo naquela cidade era de pedra.
A princesa ficou perdida entre as ruas silenciosas, cruzando com aqueles homens, mulheres e crianças
parados feito estátuas. Depois de muito andar, chegou a um castelo. Desceu do cavalo e entrou.
No castelo havia gente, havia soldados, havia criados. Mas também ali, tudo e todos eram de pedra.
Por sorte, a princesa encontrou uma mesa posta, com comida de verdade, fresquinha e deliciosa. A viagem
tinha sido longa. A menina estava com fome. Sentou-se na mesa e comeu.
Mais tarde, ficou circulando pelo castelo, olhando aquelas pessoas elegantes e paradas. Quando a noite caiu,
encontrou um quarto e uma cama macia e aconchegante. A princesa não tinha outro jeito. Entrou debaixo das
cobertas, apagou a luz e dormiu.
- Está ficando tarde – reclamou a velha.
- Calma aí! – disse o papagaio.
E contou que durante aquela noite, a princesa teve um sonho. Sonhou com o príncipe imaginário. No sonho,
o moço sorriu. Contou que o destino dela era salvar aquela cidade de pedra. E explicou direitinho o que ela devia
fazer.
Na manhã seguinte, a menina pulou da cama e fez o que o cavaleiro branco tinha mandado. Andou pelo
castelo, subiu escadas, cruzou andares, procurou e encontrou uma porta no fundo de um corredor. Era um quarto.
O papagaio disse que a princesa abriu a porta e viu um moço de pedra deitado na cama. A moça chegou mais
perto e arregalou os olhos. Era ele. Era o príncipe imaginário. Era o cavaleiro branco que aparecia sempre nos seus
sonhos!
A princesa então fez o que o moço tinha pedido no sonho chegou perto da cama e beijou os lábios de pedra.
Foi uma maravilha, disse o papagaio batendo as asas. Tudo começou a se mexer. Tudo voltou ao normal. A
vida parecia ter renascido naquele reino!
O papagaio já se preparava para entrar nos mínimos detalhes e descrever o que havia e não havia, quando
bateram na porta.
A moça bonita abriu um sorriso luminoso. Era o vendedor ambulante que tinha acabado de chegar!
A esposa correu para abraçar o marido. O homem estranhou. Perguntou quem era aquela visita tão tarde da
noite.
Quando a velha disse que era sua tia, o vendedor ficou furioso. Gritou. Chamou de mentirosa. Expulsou a
mulher de sua casa. Disse que se ela voltasse, chamava a polícia.
O papagaio na cozinha deu muita risada.
Desmascarada e assustada, a velha saiu correndo e sumiu no mundo.
O filho do fazendeiro desistiu de ficar esperando e foi embora no seu cavalo vermelho.
O vendedor ambulante e sua bela esposa viveram felizes por muitos e muitos anos.

A vida é cheia de não


A vida é cheia de sim
Tudo o que um dia começa
Cedo ou tarde chega ao fim.

Você também pode gostar