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01/09/2020 Kalunga e o direito: a emergência de um direito inspirado na ética afro-brasileira – Justificando

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Terça-feira, 1 de setembro de 2020

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CRIVELLI CONVIDA

Sérgio São Bernardo


Professor Assistente da Universidade do Estado da Bahia

Quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Kalunga e o direito: a emergência de


um direito inspirado na ética afro-
brasileira RECENTES

Total: 0 a 0 d 0 v 0 J * Deus, armas e família: a tragédia


anunciada
“gingar é ir de encontro ao outro”! 1 de setembro de 2020

As organizações políticas, comunitárias e tradicionais no continente africano e Consequências políticas da


corrupção estrutur...
na diáspora[1] atestam uma forma costumeira e conciliadora de lidar com os
1 de setembro de 2020
con itos – em relação à natureza e a sociedade – nos in uenciando numa
dimensão contingencial da experiência civilizatória africana no Brasil e nos Tirando a constituição das
mesmas mãos de sem...
dando um caminho de como articular novas bases ético-jurídicas para pensar
1 de setembro de 2020
o direito numa ótica emancipatória. Observamos, logo, de início, que a
tentativa aqui, é tanto mais epistemológica tanto quanto de produção cultural Crença, poder teológico-político
e democracia
e, que, estas perspectivas serão sempre trazidas como um discurso de origem e 1 de setembro de 2020
não de nalidade.
Entre Lulinha “paz e amor” e
Os Bacongos, aqueles povos do antigo Reino do Congo que, hoje, estão Ciro, considerem...
localizados nas regiões onde se encontram os países: Angola, Congo, 1 de setembro de 2020
Brazaville e Gabão, nos apresentam uma narrativa de mundo e uma
As 1001 mortes do
consciência cósmica extremamente valiosa para interpretação da realidade neoliberalismo
dos africanos e seus descendentes em todo o mundo. Esta mandala 1 de setembro de 2020
cosmológica ou o cosmograma Bakongo[2] referencia-se na travessia do
Podcast Justi cando desmonta
Kalunga, como uma linha que atravessa oceanos e continentes além das a falsa Reforma...
30 de agosto de 2020

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montanhas do Oeste e permite o diálogo entre os mundos dos vivos e mortos Defender a democracia e
proteger os direitos ...
além de outras possibilidades simbólicas que delas se extraem. 27 de agosto de 2020

Por que é importante partir da


leitura de um ...
27 de agosto de 2020

Pau que nasce torto nunca se


endireita
26 de agosto de 2020

Cosmograma Bakongo

No mundo dos espíritos Ku mpemba é onde residem diversas forças que


determinam as ações humanas. Este pode ser um pressuposto para pensar o
comportamento, os modos de resolução de con itos e os mecanismos que
acionamos para respondermos a muitas das nossas questões de verdade e
justiça. Esta proto-narrativa civilizatória nos convida a pensarmos questões
contemporâneas sobre humanidade, ética, direito e justiça; já que o direito
hegemônico, através de suas lógicas e equações, não consegue responder as
aspirações dos novos sujeitos subalternizados da sociedade moderna.

É possível a rmar um direito africano ou afro-brasileiro? Existe um repertório


comum que informa e uni ca este direito? Este direito pode ser universalizável
como pressuposto de justiça a outras comunidades não africanas? Estas são as
indagações que proponho tematizar para sugerir a possibilidade de um debate
nos campos da antropologia jurídica, da loso a africana e da loso a do
direito.

René David alerta que a experiência africana se assemelha ao processo


assimilacionista romano quando teve que elaborar um jus gentium para
reconhecer as culturas e valores dos não-romanos. Entretanto, nos países
africanos colonizados abriu-se a uma conformação para um direito ocidental
formal, importado, quase que, literalmente, dos países de origem.

O congolês Kunzika dá uma elevada amplitude aos usos dos provérbios


Kikongo na vida comunitária e institucional do Congo e ainda nos presenteia
com suas possibilidades linguísticas em outras línguas, nada diferindo do que
sempre foi apresentado como senso comum teórico eurocêntrico respaldado
numa liturgia jurisprudencial de base germano-românica e, mais
recentemente, reforçado com a doutrina consuetudinária do Common Law do
empirismo anglo-saxônico. Este sistema de referência ou repertório tópico
possui forte poder sobre os critérios de resolução dos con itos, ainda, na
contemporaneidade.[3]

As expressões: “mfumu ka dianga ngulu a kutu dimosi ko”, assim traduzida para
o português: “o chefe não ouve só por um ouvido” tratando do direito ao

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contraditório e “mvumbi mvula tembo kina kawene kikanatumunanga” – “a
morte é como uma chuvada, ela leva o que encontra”, tratando da isonomia
para todos, localizam alguns dos pressupostos ético-jurídicos do costumem da
lei e da obediência fundado em elementos naturais, religiosos ou tão somente
convencionais praticados há séculos naquele continente, e, em especial, no
Brasil.  

Como podemos entender as diversas formas de lidar com os costumes


originados do processo civilizatório africano em confronto com o direito
germano-românico, fenomenológico, positivista e culturalista do direito
brasileiro? As comunidades tradicionais e as referências mais ancestralizadas
das nossas experiências comunitárias (Candomblé, Capoeira, Quilombo,
Comunidades Tradicionais etc.) dão conta de que os valores e noções de justo
têm sempre acompanhado as noções de integração e comunhão com a
natureza, uso comunitário e coletivo da propriedade, restituição no lugar de
retribuição de pena, famílias extensas etc. 

Nessa travessia do Kalunga, a visão cosmogônica e comunitária dos conceitos


de lei e crime dos Bacongos estudados por Fukiao deve ser revisitada à luz
dessa moderna tendência de um direito que renasce preservando as
autoridades tradicionais africanas na África e na diáspora. Na mesma
trajetória, analisaremos, à luz de Ramose e Wiredu, os elementos da
cosmovisão Ubuntu, as perspectivas de restauração e equilíbrio como
comportamento ético vital e sua relação com os processos de consensualidade
exaustiva nessas comunidades.  

A positividade formal do direito resulta injusta e iníqua. Como buscaremos


novas invenções originais que respondam às nossas perguntas existenciais e
práticas? Temos produzido um sem-número de projetos de extra judicialidade
como orientadora de acesso ao direito e à justiça re etida nas propostas de
mediação de con itos e suas diversas abordagens. Experiências, as mais
variadas, tem tomado conta da agenda dos órgãos estatais (arbitragens,
mediações, mutirões conciliatórios, etc.) e das organizações sociais no Brasil
afora como saída para um direito dogmático e elitista que muito pouco nos diz
através de seus “provérbios” e “modos de fazer” ético-jurídico. Será que esta
potencialidade resolutiva em se equacionar os con itos no interior da
comunidade e sem responsabilizar a pessoa isoladamente nem retirá-lo do seu
meio, buscando saídas na coletividade, não é uma tradição africana esquecida
pelas novas gerações?   

A Convenção 166 da ONU se apresenta nesse contexto o qual critérios


hermenêuticos mais complexos e heterogêneos tiveram que ser adotados pelas
cortes internacionais e pelos países do sistema para localizar modos de
aplicabilidade de resolução de con itos preservando-se a autonomia e os
costumes das comunidades e povos tradicionais. Nesse aspecto, a área penal
foi a que mais teve que se acomodar com os métodos de mediação para o
tratamento dos con itos.

“ Qual lei aplicar em casos de condutas antissociais nos


países colonizados, o common law, o sistema latino, as
medidas de legislação de cada localidade ou os
costumes?


Um exemplo mais próximo da experiência com os indígenas originários da
América Latina nos chama para a leitura sempre ampliada das diversas cargas
semiológicas que o conceito de etnicidade exige. No caso da América Latina, os

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repertórios ancestralizados das diversas etnias se valem de um “capital
étnico” poderoso para a a rmação de direitos em nome de uma “potência
plebeia”[4] na Bolívia. O autor vaticina que “ ca bastante claro que, a Bolívia
é, a rigor, uma coexistência de várias nacionalidades e culturas regionais
sobrepostas ou moderadamente articuladas”. A existência de uma sociedade
multiétnica impõe que o modelo de estado e de sua base jurídica seja também
pluralista. Esta possibilidade foi materializada através da carta constitucional
binacional na Bolívia que adota critérios de autonomia política local, equidade,
proporcionalidade, solidariedade etc. O reconhecimento de uma comunidade
política multinacional e multicultural pode caracterizar-se enquanto
referência bastante proveitosa para os nossos debates e em nome de uma
pluralidade jurídica pode ser experimentada, também, no Brasil.

O tema da diversidade étnico-racial no sistema normativo brasileiro é algo


novo no debate sobre as juridicidades. Podemos encontrar fontes esparsas,
nada muito elaborado ou aprofundado no repertório livresco nas livrarias e
bibliotecas. Entre estas poucas obras quero referir-me ao livro Ordem Jurídica
e Igualdade Étnico-Racial, organizado por Flávia Piovesan e Douglas Martins
(2006), através do Instituto Pro Bono[5] que pode ser considerado um estudo
inaugural sobre o direito à igualdade étnico-racial, o confronto a uma suposta
norma jurídica neutra e universal e a necessidade de uma cultura jurídica
pluri-normativa.

Nesse momento diversas mudanças estão ocorrendo nos países africanos e em


especial, no Brasil. Todos se preparam para o futuro e buscam modelos que
combinam direito moderno e direito tradicional. Este é o desa o do século XXI
para os africanos e a diáspora. A Cosmovisão afro-brasileira proporcionada
pelo “mundo da vida” (moralidade, eticidade e juridicidade) embora
subalternizada e criminalizada pode inspirar elementos de uma nova
juridicidade original emancipatória.

Nessa travessia de avanços e reversibilidades, o cosmograma Bacongo pode


nos servir de base para compreendermos nossa realidade afro-brasileira como
pressuposto para pensar o direito. Nesse caminho, cabe a construção de uma
nova cultura a qual funde uma loso a jurídica de natureza descolonial,
original e emancipatória para, en m, vislumbrarmos novos caminhos para o
Kalunga!

Sérgio São Bernardo é Professor de Filoso a do Direito da Uneb-Ba, Mestre em


Direito-UNB, Doutorando do Programa Difusão do Conhecimento-UFBA.

Referências

[1] Aqui, nos referimos às grandes civilizações africanas anteriores ao processo colonizatório e

que, ainda, in uenciam modos peculiares de instituir valores religiosos, morais e éticos no

Continente e na diáspora.

[2] Clyde W. Ford nos apresenta pelo menos seis dimensões interpretativas da cosmologia Congo

traduzidas na imagem do Kalunga: a primeira um diagrama com uma elipse que se inicia a leste e

representa o nascimento, depois ascendência e maturidade ao norte, logo depois ao poente a

morte por m, ao sul a existência no outro mundo, o renascimento. Ao centro da Elipse estão as

aguas míticas do Kalunga; que divide as águas do mundo comum (Ntoto) e a terra dos mortos

(Mputu). Estas águas tanto simbolizam uma travessia tanto quanto uma barreira; a segunda-

lembra o transporte dos negros escravizados através do Atlântico e corresponde à viagem mítica

através da montanha do oeste e do herói que retorna ao seu lar; a terceira, o kalunga seria o eixo

do mundo, o desenho do mundo no chão, uma mandala onde se encontra o ponto absoluto da

eternidade, também, pode ser associada a cruz cristã,  a porta do sol por onde desce a divindade

renascida do céu; a quarta, a dimensão feminina, a matriz da criação, o útero cósmico, localizado

na parte inferior do desenho e que está associada à morte consagrando a desintegração do círculo

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sagrado e do Útero Cósmico; a quinta onde o Kalunga é apresentado por pares de opostos, esta é

mais conhecida das leituras dicotômicas de leitura do mundo; a sexta, o cosmograma representa

linhas de movimento e renascimento de vida e progressão de consciência, a suástica aqui

entendida como sinal auspicioso para a busca do divino dentro de si, por m Ford nos fala da forte

presença desses desenhos míticos no Caribe, Cuba, Nova York e na América do Sul, inscritos em

vasos rituais (prendas) e em amuletos sagrados. (Clyde Ford, O Herói com Rosto Africano, 1999,

pags.268/275).

[3] Ver II Encontro Nacional sobre as Autoridades Tradicionais em Angola, IFAL, Instituto de

Formação da Administração Local, X Lex Data: Luanda, 2007.

[4] Ver Àlvaro Garcia Linera e o livro A Potência Plebeia: ação coletiva e identidades indígenas,

operárias e populares na Bolívia; organização e prefácio de Pablo Sefanoni, tradução Mousar

Benedito e Igor Ojeda- São Paulo: Boitempo, 2010.

[5] Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial, organizado por Flávia Piovesan e Douglas Martins,

através do Instituto Pro Bono, 2002.

ALTUNA, Raul Ruiz de Asua, Cultura Tradicional Banto, Ed Paulinas, 2006. 

GARCIA LINERA, Álvaro, a Potência Plebeia: ação coletiva e identidades indígenas, operárias e

populares na Bolívia; organização e prefácio de Pablo Sefanoni, tradução Mousar Benedito e Igor

Ojeda – São Paulo: Boitempo, 2010.

DAVID, René, os grandes sistemas do direito contemporâneo, tradução: Hermínio A. Carvalho, –

4ª ed.-São Paulo: Martins Fontes, 2002. 

FU-KIAU Bunseki, African Cosmology of the Bantu-Kongo: Tying the Spiritual Knot, Principles of

Life & Living, Paperback, 2014 

MOGOBE RAMOSE, Globalização e Ubuntu. In: B. S. Santos; M. P. Meneses. Epistemologias do Sul.

São Paulo: Cortez, 2010, p. 211-213.

OLIVEIRA, Eduardo D.A, Ancestralidade na Encruzilhada: dinâmica de uma tradição inventada.

Dissertação de Mestrado. Curitiba: UFPR, 2001.

Cosmovisão Africana no Brasil: elementos para uma loso a afrodescendente. Fortaleza: LCR,

2003.

PIOVESAN, Flávia; MARTINS DE SOUZA, Douglas (Coords.). Ordem jurídica e igualdade étnico-

racial. Brasília: Seppir, 2006.

SÃO BERNARDO, Sérgio, Xangô e Thémis – estudos sobre loso a, direito e racismo. Salvador:

J.Andrade, 2016.

SICA, Leonardo, Bases para o modelo brasileiro de Justiça Restaurativa. Revista Jurídica do

Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, N. 12, 411-447, 2009.

KWASI, Wiredu, Democracia e consenso na política tradicional africana. Tradução para uso

didático de WIREDU, KWasi. Democracy and Consensus in african Politics.A plea for a Non-Party

Polity. Polylog: Forum for Intercultural Philosophy. (2000), disponível em http:// loso a-

africana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/kwasi_wiredu_democracia_e_consenso_na_po

l%C3%ADtica_tradicional_africana.pdf. Por Marcio Moreira Viotti.

KUNZIKA, Emanuel, Dicionário de Provérbios Kikongo traduzidos e explicados em português,

francês e inglês. Luanda: Editorial Nzila, 2008.

II Encontro Nacional sobre as Autoridades Tradicionais em Angola, IFAL, Instituto de Formação

da Administração Local, X Lex Data: Luanda, 2007.

 cosmograma Bacongo ética afro-brasileira integração Kalunga Religião

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