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Ter e Ser na Experiência Cotidiana

Devido ao fato de que a sociedade em que vivemos está.


empenhada em adquirir propriedade e obter lucro, raramente per-
cebemos prova de um modo ser de existência, e a maioria das
pessoas vê o modo ter de existência como o mais natural, e até
mesmo o único modo de vida aceitável. Tudo isso dificulta às
pessoas apreender a natureza do modo ser, e mesmo compreender
que o ter não passa de uma das orientações possíveis. Contudo,
esses dois conceitos estão enraizados na experiência humana. Ne-
nhum dos dois deve, nem pode, ser examinado abstratamente, de
modo puramente cerebral; ambos estão refletidos em nossa vida
cotidiana e devem ser tratados de maneira concreta. Os exemplos
seguintes de como ter e ser são demonstrados na vida cotidiana
podem ajudar os leitores a compreender esses dois modos alter-
nativos de existência.

Apre nden do
, . <?s estu~antes, no modo ter de existência, ouvirão_ ~ n -
f ~re_!!__cia, . º~~mdo -~ _p~lavras e ~ompreendendo- sua- estrutura ló-
g~ signi~ ado e, da melhor mane ira possível, anot ar.i~ ª
e~~essao_ num caderno_Ee folhas -destãcáveis - de modo que,
maisT arâe,_possJlD!_memorízar -súás- anota ções e assim. _p_assaJ n~s
~me s ..~co nte ~]ião -se parte
CO]!ye~t~ ~m- _de_seJl_prÓcpt:~
51ste~a. ~ div_!dJI~l.::::4~ -~e1as_, enriquecendo-o e ampli ando~ . ~e
contrano, eles trans fo~a~ as -pal_ãvras õuviaas e~-~ ~ix. o~
.de-::Pensame~tQ,_º~~ as mteiras, que~ eles-armazenam. Estudan
tes e conteudo das conferências pêrmanece1ifesir"anhos UJJl ao
TER E SER NA EXPERIÊNCIA CoTIDIANA 47

outro, exceto quanto a que cada estudante tomou-se proprietário


de um acervo de enunciados feitos por alguém ( que os criou
ou tomou-os de outra fonte).
Os estudantes, no ~odo ter, só têm ~ - Qbjetivo: contemplar
o que eles "aprenderam", ou f!X~ndo-:_Q_firmemente __na memória
ou c~nse_rvan~.o ~uidadosam.ente suas anotações. Não têm que pro-
duzir ou criar algo de novo. De fato, o indivíduo do tipo ter sente-
se até perturbado por novos pensam.entos ou idéias sobre um
assunto, porque o que é original põe em questão o acervo fixo
de dados que ele possui. Na realidade, para aquele cuja princi-
pal forma de relacionamento com o mundo é o ter, as idéias que
não possam facilmente ser enfeixadas ( ou anotadas) * são as-
sustadoras - con10 tudo o mais que aumenta e se transforma,
e seja dessa maneira incontrolável.
O .J~r<1:_c_~~so d~ aprendizagem tem uma qualidade totalmente
diferente para estudantes n ~ o ser de relacionamento com o
mundo. De início, eles não vão a uro ciciO oe cónferências, nerii à
pnmeira de uma série, como tapulae r_psae. Eles pensa_!"_a m -ªntes
nos prQ\>Jemas de que tratarão as conferências e levam em mente
algumas qu_estões e problemas próprios. Ocl!p_arc!_m-se do tópico
e_ ele __ lhes interessa. Em vez de serem receptáculos passivos de
palavras e idéias, eles prestam atenção, ouvem, e, mais importante,
recebem e reageni ativamente, de modo produtivo. A_@ilo q_ue
ou~~m estimula sieus próprio~ p~ocessos -de- pensar. Novas ques-
tões, novas idéias e novas perspectivas -surgem em suas mentes.
Sua atenção é um processo vivo. Eles ouvem com interesse, es-
cutam o que o conferencista diz, e espontaneamente voltam à vida
em reação ao que ouvem. Eles não apenas adquirem um conhe-
cimento que podem obter em casa ou memorizar. Cada estudante
foi atingido e modificou-se: cada um deles ou delas é diferente
após a conferência em relação ao que era antes dela. Evidente-
mente, esse modo só pode prevalecer caso a conferência ofereça
material estimulante. Não se pode reagir a mero palavreado no
modo ser, e em tais circunstâncias os estudantes no modo ser
acham melhor nern mesmo ouvir, mas concentrar-se em seus .pró-
prios pensamentos.
Pelo menos de passagem, devemos fazer uma referência aqui
à palavra "interesse'', que na linguagem corrente tomou-se uma
expressão pálida e gasta. Contudo, seu significado essencial está
contido na sua raiz: do latim, inter-esse, "estar em ( ou) entre".
Esse interesse ativo era expressô - em inglês medieval pelo termo
• O autor faz aqui um trocadilho, irreproduzível na tradução, com
pinned down e penned down (N. do T.).
48 TER ou SER?

to list (adjetivo, listy; advérbio listily). No inglês modero .


usa-se apenas em sentido espacial: a ship lists (ademºa'ç!º 11st
. . 'f. d . . 1 .
navio); temos o s1gm 1ca o ongma , no sentido psíquico aao do
na forma nega!1va· 1·zs~l ess ( neg1·1~en~e! desc~~'d ' penas
ado, relaxado, indi-
ferente). To lzst, antigamente, s1gmficava lutar denodadament
por", "estar verdadeiramente interessado em". A raiz é a mesm:
de lust ( cobiça, desejo, lascívia, luxúria, concupiscência, sensuali-
dade, impudicícia), mas to list (catalogar, registrar, tabelar, fatu-
rar, etc.) não é uma forma de cobiça pela qual se é dirigido,
mas o livre e ativo interesse em alguma coisa, ou luta por alguma
coisa. To list é uma das expressões-chaves do autor anônimo
(meados do século XIV) de The Cloud of Unknowing (Evelyn
Underhill, editores). É característico da mudança de espírito na
sociedade, do século XIII ao século XX, que a língua só tenha
retido da palavra o seu sentido negativo.

Lembrando

A lembrança pode ocorrer tanto no modo ser como no modo


ter. O que mais importa quanto à diferença entre as duas formas
de lembrança é a .espécie de li.@.ç_fuLfeita. No mQ.çlo J er d~ le~-
brar, a ligação é inteiramente mecânica, como quandq_ -ª !_!ga~~o
entre uma palavra e a seguinte toma-se firmemente. es.tahel~Ll
pela freqüência com qlJe é feita. Ou as conexões podem ser pura-
mente lógicas, tais como -a conexão entre contrários, ou entre
.
conceitos convergentes, ou com tempo, espaço, d'imensa . ,.,o cor ou
, '
dentro de dado sistema de idéias. 'd ''as
No modo ser, leIJ}brar é recordar ativamente pal~vras, 1 e\e;
paisagens, pinturas1-~~sic_a; isto é, ligando o dado s1fl:1Ples
lembrado e às-outros muitos dados com que se cof1:elacJona. pura-
:ssas
ligações no modo ser nem são puramente mecâmcas nem outro
men~e lógicas, mas viya~. Um conceito interlig.a-se e~~ posto
media~te um am _p_ro.dutiv__o g~ pensa~ ~~ - ~ent~ !lm Josffn-
em açaQ _quando se procura a palavra certa. 1Jm exe ~ ''dor
,- ''r ples: se eu- assocío "dor" ou -"aspirina" com a expr~ssa~ Mas
/- - de cabeça"' trata-se de uma as~ociação-1ógic.a_c_oJ1-venc1ona i,e_ç~",
) r~ r;c;, s~ associo a palavra "t~ _ qu _"i_ra"_ :~?-m. _"Qo~ ~~
~-' -_/(/ ~!Sº ce~o dado _com suas p.oss1ve1s _consequenc1as,---.Jntie1DbranǪ
J, ri · ' chegueL ao- estudar o fenômeno Este último tipo de
),,, . ,- co~stitm
. . . em s1. '!!!!__ ato
~ . os
<;l_e_~ n t o__P - r ~- ''associa-
exe.,.,pJos
w .

-~ Ó ".~a1s ~ontu,~de.ntes aêsse tipo de lemlir.ao_ç_a_ vjya__ sa_Q _~


1
.., çoes li~res_ vislumbradas por Freud.
r ' r
r 1
TER E SER NA EXPERIÊNCIA CoTIDIANA 49

Pessoas que não sejam principalmente tendentes a guardar.


dados acharão que suas memórias precisan1 de um forte e ime-
diato interesse para que funcionem bem. Por exemplo, sabe-se
que as pessoas lembram palavras de uma língua estranha há muito
esquecida quando é de vital importância que assim seja. E na
minha experiência pessoal, já que não sou dotado de memória
muito boa, ocorre-me lembrar o sonho de uma pessoa que ana-
lisei, até_d:q_as QU _cin~o - semanas depois, quando -de novo -me
vejo face _a face com el~ e me coticeõtro err1 t õaaa persõifâlídade
daquela pesso.a. Contudo,_cinco minutos anf~, como se-e-stives-se
~ êu_seria absolutamente TO-capaz âe lembrar aquele sonhO.
Lembrar, no __ modo- se~, -implica trazer à vida algo visto _ou
ouvido - antes. Podemos experimentare sta lemorança- prócfutiva
tentando antever o rosto de uma pessoa ou a cena que antes
vimos. Não seremos capazes de lembrar imc~diatamente em ambos
os casos; devemos recriar o assunto, trazê-lo à vida em nossa
mente. Essa espécie de lembrança nem sempre é fácil; para sermos
capazes de recordar plenamente a face ou o cenário devemos· antes
tê-los visto com suficiente concentração. Quando se consegue ple-
namente essa lembrança, é como se a pessoa cuja face recordamos
estivesse viva, e a cena recordada fosse verdadeira, como se aquela
pessoa ou aquela cena estivessem na realidade concretamente
diante de nós.
A_µianeira pela qual uma pessoa, no mQ90 ~~r, lembra um
rosto ou uma cena, é caracterizada pelo · moâõ êomo a maioria
das pessoas olha para uma fotografia. A fotografia serve apenas
como um auxílio para a sua memória na identificação de um
~sto ou cena, e a reação comum que se verifica é: "sim, é ele";
-'/~/1/~ou
'
"sim, estive aqui". Para a maioria das pessoas,- a- fotografia
. . - -
"_, torna-se uma memória alienada.
--- - ~mQria _c~nfiada ao _papel é __outra forma d~ ~!!}~Ç-ª
-ª1k-nada. ._Ao anotar o que quero lembrar, estou certo de ter aquela
informação, e não tento gravá-la em meu cérebro. Estou certo
de minha posse - exceto que, quando tenha perdido minhas
a.notações, perdi também minha lembrança das informações. Mi-
nha capacidade de lembrar abandonou-me, porque meu banco de
lembranças tomou-se uma parte posta fora de mim, sob a forma
de minhas anotações.
Considerando a multidão de dados que as pessoas, na socie-
dade contemporânea, precisam lembrar, é ilnevitável que se faça
alguma notação e que certos dados sejam lançados em livros.
Pode-se observar melhor e mais facilm1ente conosco mesmos que
50 TER OU SER?

ao anotar coisas ,diminui nossa capacidade de lembrar, embora


, .
. t
alguns exemplos t1p1cos possam mos rar-se ute1s.
Um exemplo cotidiano
, ocorre
. em lojas. Atualmente, um ven-
dedor raramente f ara uma s1mp1es soma de dois ou três artio
de cabeça, mas usará imediatamente a máquina de somar. A s~1!
de aula nos dá outro exemplo. Os professores observam que os
estudantes que anotam cuidadosamente cada frase da aula com
toda probabilidade compreenderão e lembrarão menos .9!1~ ~_s_es-
~ e_s_que confiam_em sua capacidade de compreender- e,__por
c~@inJe.,_ lembram pelo menos o essencial. Além disso, os
músicos sabem que os que mais facilmente. lêem à primeira vista
têm mais dificuldade em lembrar a música sem a partitura.*
(Toscanini, cuja memória era notoriamente extraordinária, é um
bom exemplo de músico no modo ser.) Como exemplo final,
observei no México que as pessoas analfabetas ou que pouco es-
crevem têm memória muito superior à dos habitantes muito lidos
dos países industrializados. Entre outros fatos, isso sugere que a
alfabe_t~ não i_ d~ ~odo algum a bênção que se proclama,
sobretudo quando é utilizada meramente para ler matérias que
empobrecem a capacidade de vivenciar e imaginar.

Conversando

A diferença entre os modos ter e ser pode ser faci~ente


observada em dois exemplos de diálogos. Tomemos um dialogo
típico em que A tem a opinião X e B tem a opinião Y. Cada
um se identifica com sua própria opinião. O que importa ª ctª
um é achar argumentos melhores, isto é, mais sensatos, par~ ... e-
fender sua opinião. Nenhum dos dois espera mudar sua oprniao,
ou que a opinião do seu adversário venha a mudar. ~ada u:e
teme mudar sua própria opinião, precisamente porque e ~ma 0
suas posses, e porque sua perda significaria um empobrecimen~~
qu~ ºªde
A situação é um tanto diferente numa conversação '"neta
·
pretende ser um debate. Quem não passou pela ex~ene f ma
ter recorrido a uma pessoa destacada pela proeminência ou ª s~
ou mesmo por qualidades reais ou a uma pessoa de quem ad-
· como um bom
· a1guma c01sa
d~se1a ' emprego, ser am ado ' ser
d 111 a
mirado? Em circunstâncias como essas , muitas pessoas,, ten e Ill''
f' repara
tear pelo menos. um tanto ansiosas, e n~o raro se ~·nteressa-r-- -
para o encontro importante. ~~ _l!_a_ql:_lilo que- pode 1
• Esta informação me foi dada pelo Dr. Moshe Budmor.
TER E SER NA EXPERIÊNCIA CoTIDIANA 51

a~~~~~o~; p~~sall]. ~!!t~s ~O.II).Q p_~deriam iniciar a --conversa-


ça9; algu!_l~ chegaµi a delinear ~r escrito toda a conversa, ._ qu_anto
ao__q_ue pr~_t_~ndem dizer. Ou podem ~scorar-se pensando no que
têm: _seu ex1to passado, sua personalidade encantadora _(oll .sua
~analidade intimidadora se este papéf for mais eficaz), sua po-
sição social, suas relações, sua aparência e modo de vestir. Numa
palavra, fazem um balanço mental de seu valor, e baseados nessa
avaliação exibem suas mercadorias no curso da conversa. A pessoa
que seja muito boa nisso de fato impressionará muita gente, em-
bora a impressão criada ,seja apenas parcialmente devida ao de-
sempenho do indivíduo e amplamente devida à pobreza de julga-
mento da maioria das pessoas. Se o executante não for tão destro,
porém, o desempenho parecerá desajeitado, inautêntico, maçante
e não suscitará muito interesse.
Em contraste, há aqueles que enfrentam uma situação seJ)l
nada preparar de antemão, não se apoiando absolutamente em
coisa alguma. Pelo contrário, t.e_a~. e~onti}ne.amente--e-.de -modo
p__rodutivo-;- esqu~cem-_se _de si mesmos, :do __çon_becjm_ento_e__da__po-
sição- que_têm. Seu§ ~go~ nã..o se situam _110 centro, e precisamente
por_est-ª__razão estão aptas a reagir plename_nt~--ª. ~o~trãs pessóas
e às idéia_s_ de óütrem. Geram idéias originais, porque não- se
estão agarrando a coisa alguma e podem assim produzir e dar.
Eng~antg -ª~ pessoas _do modo ter confiam no q_u~ Jj m.,___as_pes-
~oas do modo ser confiam no fato d-~ que -são, _que estão vivas
~_gu~ al guma coi~a nova nasce~á, bastando para isso__que-t enham
c~_!agelJ! para deixar-se_ir e reagir. Chegam __plenamente vivas -ª-º
diálogo, porque não se sufocam pela ansiedade com respeito ao
que têm. Sua própria vivacidade é contagiante e não iaió cõntri-
biiip ara que a outra pessoa supere sua egocentricidade. Desse
modo, o diálogo deixa de ser uma troca de mercadorias (infor-
mações, conhecimento, status) e toma-se um diálogo em que não
importa mais quem esteja certo. Os adversários começam a dan-
çar juntos, e despedem-se não com triunfo ou derrota - que são
igualmente estéreis - mas com alegria ( o fator essencial na te-
rapia psicanalítica é a qualidade vivificadora do psicanalista. Nada
na interpretação psicanalítica terá efeito se a atmosfera for pe-
sada, inerte e tediosa).

Lendo
O que dissemos sobre o diálogo vale igualmente para a lei-
tura que é - ou deve ser - um diálogo do autor com o leitor.
Evidentemente, na leitura (como no diálogo ,pessoal), aquele de
"7
52 TER ou SER?

quem lemos ( ou com quem falamos) é importante. Ler um


novela_senLart~ barata, é u_l!l~ forma de devaneio. Não permit:
reação produtiva; _o fexto é engolido como um programa de· tele-
vi~ª~' ou batata~_ fritas que se comem enquanto se conversa ou
se vê t~leyisão. Mas_ uma novela como as de Balzac pode ser
lida ç_om _íntima participação, criativamente - isto é, no modo
ser. _Contudo, talvez a maior parte do tempo seja também--ltãa
no modo ter - tipo consumo. Tendo suscitada a curiosidade, os
leitores querem saber o enredo: se o herói morre ou vive, se a
heroína é seduzida ou resiste; querem saber as respostas. Um
romance serve como uma espécie de amostra para excitá-los; o
fim infeliz ou feliz culmina sua expenência: quando sabem o
fim, têm toda a história, quase tão real quanto se tivesse sido
desenterrada da sua lembrança. Mas não vitalizaram seu conhe-
cimento; não compreenderam o personagem no romance e assim
não aprofundaram seu conhecimento da natureza humana, nem
ganharam conhecimento sobre si mesmas.
Os modos de leitura são os mesmos com respeito a um livro
cujo tema seja filosofia ou história. O modo como se lê um livro
de filosofia ou história forma-se - ou melhor, deforma-se -
pela educação. A escola tem em vista dar a cada estudante certa
quantidade de "propriedade cultural", e no fim do curso os, ~tu-0
dantes recebem um certificado de terem pelo menos o mm1Dl
exigido. Ensina-se aos estudantes a ler um livro de modo que
possam repetir os principais pensamentos do autor. Assim é _como
os estudantes "conhecem" Platão Aristóteles, Descartes, S.pm~~'
· ' , · rove1s
Leibniz, Kant, Heidegger, Sartre. A düerença entre vanos do
de educação, desde o segundo grau à universidade, é sobretu de
na quantidade de propriedade ou.Itural adquirida, que C?rrespon os
aproximadamente à quantidade de propriedade matenal que tu·
estudantes podem esperar possuir mais tarde. Os chamados esre-
dantes excelentes são aqueles que podem mais cuidadosa~ente mo
petir o que cada um dos diversos filósofos teve a dizer. S~o coé 0
um guia de museu bem inform~o. o que el~s não a~en e;
que está por trás dessa espécie de conhecimento tipo P pIes ·
rie-

d!de. Não aprendem a. discutir os filósofos, c~v:rsar coruós:fo:


nao aprendem a tomar consciência das contradiçoes do 5
olu·
d? s~u ...3bandono de ce~~s problemas ou da fuga. ~e su~0 que
çoes, nao aprendem a distinguir entre o que era ongtnal . 111"
os autores não puderam fazer contra o que era "senso co:t11Us a
d~ ~ua ~a; não aprendem a ouvir de modo a estarem a:%t~or11
di st mgwr quando os autores falam apenas do que ~ns . 0 ão -
0 cérebro e quando seu cérebro e coração falalll Juntos,
TER E SER NA EXPERIÊNCIA CoTIDIANA 53

aprendem a descobrir se os autores são autênticos ou falsos; e


muitas outras coisas.
Os leitores do modo ser não raro chegarão à conclusão de
que até mesmo um livro altamente apreciado é inteiramente sem
valor ou de valor muito restrito. Ou podem ter plenam.ente com-
preendido um livro, às vezes melhor que o autor, que pode ter
considerado tudo o que escreveu como sendo igualmente impor-
tante.
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Exercendo Autoridade I i 1
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Outro exemplo da diferença entre os modos ter e ser é o


exercício da autoridade. O _ponto __ cruc~ªl é ex!!!~s~o na _.9iJere1!_Ç~
entre ter autoridade e ser uma autoridade. Quase todos nós exer-
cemos alltoridade pelo menos em alguma fase de nossa vida.
Quem educa os filhos deve exercer autoridade - queira ou
não - a fim de protegê-los dos perigos e dar-lhes pelo menos
alguns conselhos quanto a como agir em diversas situações. Numa
sociedade patriarcal, também as mulheres são objeto de autori-
dade pela maioria dos homens. A maior parte dos membros de
uma sociedade organizada burocrática e hierarquicamente como a
nossa também exerce autoridade, exceto os que se situam no
nível mais baixo, que apenas são sujeitos à autoridade.
Nossa compreensão de autoridade nos dois modos depende
do reconhecimento de que "autoridade'' é um termo amplo, com
dois significados totalmente diferentes: ela pode ser ou "racional"
ou "irracional". A ªº~qridªde _ra_çipnal baseia-se na competência,✓~:) -
_ _.)
- - -- 1
e ajuda a pessoa que nela se ampara a crescer. A autori_da_g~-;,,
ir_gcional baseia-se na força e serve :Qªra explQr_ar_a_:pessoa $_.Ujeita_~ ---<
a.__da. ( Analisei essa distinção êni meu livro O Medo à Liber-
dade.)*
Nas sociedades mais primitivas, isto é, a dos caçadores e co-
letores de alimentos, a autoridade é exercida pela pessoa em
geral reconhecida como sendo competente para a função. Que
qualidades são essas em que repousa a competência, depende
muito de circunstâncias específicas, embora se tenha impressão
de que elas englobem experiência, prudência, generosidade, des-
treza, "presença", coragem. Não existe qualquer autoridade ,per-
manente em muitas dessas tribos, mas surge uma autoridade em
caso de necessidade. Ou então há diferentes autoridades para di-
ferentes ocasiões: guerra, prática religiosa, conciliação de confli-
• Publicado no Brasil por Zahar Editores. (N. do T.)
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54 TER ou SER? ,_ )C~· I ~· ·-(_

tos. Quando desaparecem ou enfraquecem as qualidades .


a autoridade repousa, a própria autoridade acaba. Umae~ que
muito semelhante de autoridade pode ser observada em . o~ma
soc1e · ··
· dades prm11t1vas, em que a competencia é, não raro muitas t A

belecida não pela força física, mas por qualidades tais co~oes ª:
periência e "sabedoria". Numa experiência muito bem elabor:~
com macacos, J. M. R. Delgado ( 1967) demonstrou que, se 0
animal dominante, mesmo momentaneamente, perder as qualida-
des que constituem sua competência, perderá sua autoridade.
Autoridade_,_noJI1ooo_s_er ~nda!llenta-s(?_n_ão apenas Jla com-
p_e! ência do indivíduo para preencher certas funções sociais, mas
igualmente,·-tanü5ém, na própria essência de uma personalidade
que atingiu alto grau de aperfeiçoamento e integração. Tais _pes-
so)ls irr.adiam_a_u.torida<J~_ e não têm que dar ord@s·, ameaçar,
subom~r. São indivíduos altamente evoluídos que demonstram
p elo que são - e não pelo que fazem ou dizem - o que os
seres humanos podem ser. ··os grandes Mestres da-Vfda-eram au-
toridades como essa, e emmeóor grau- de -perfeição, indi_víd~os
como esses podem -·ser encontrados em todos os níveis ed~cac~o-
nais e nas mais diversas culturas. ( O problema da. educaça_o gira
em torno dessa questão. Se os pais fossem mais desenvolvidos.. e
permanecessem em seu próprio centro, a oposição entre edu~aça~
autoritária e livre dificilmente existiria. Faltando essa autondad...
no modo ser a criança reage a ela com grande ardor; por
, ou o~tro
, ex- • A •

lado, a criança se rebela contra a pressão, neghgencia


, · conduta que
cesso" por pessoas que demonstram por sua propna . ero
elas mesmas não fizeram o esforço que esperam da cnança
crescimento.) hierár-
Com a formação de sociedades baseadas numa 0rdemdores e
quica e muito maiores e mais complex~s que as de ..caç~oridade
coletores, a autoridade pela competência cede luga_r ªd ªºexistente
pela posição social. Isso não significa que ª. ~uto nd ªr eto que a
não tenha necessariamente competência; signific~., de ; iidanios
competência não é elemento essencial da auton~ade. eenes de-
com autoridade monárquica - em que a loteria dos grinúnoso
(termina qualidades de competência - ou co~ um cio crit11e
1
sem escrúpulos que tem êxito em obter autondade_ ~roodern 3,
·,~',-\\ ou traição, ou, como freqüentemente na democra~ia fotogênica
'
1
com auto~da~es eleitas com base em sua !i~ononua todos esses
ou pelo dmhe1ro que podem gastar nas ele1çoes, e%icia e auto-
casos quase não deve haver relação entre coropet
ridade.
TER E SER NA EXPERIÊNCIA COTIDIANA 55

Mas há, inclusive, sérios problemas nos casos de autoridade


estabelecida com base em alguma competência: um líder pode
ter sido competente num campo, incompetente em outro - por
exemplo, um estadista pode ser competente no comando da guerra
e incompetente em tempos de paz; ou um líder que é honesto e
corajoso no início de sua carreira perde essas qualidades pela
sedução do poder; a idade ou distúrbios físicos podem levar a
certa deterioração. Por fim, deve-se considerar que é muito mais
fácil para os membros de uma tribo pequena julgar a conduta
de uma autoridade do que o é para milhões de pessoas em nosso
sistema, que conhecem seu candidato apenas pela imagem artifi-
cial criada pelos especialistas em relações públicas.
Sejam quais forem as razões para a perda das qualidades
constituintes da competência, na maioria das sociedades maiores e
mais hierarquicamente organizadas ocorre o processo de alienação
da autoridade. A real ou pretensa competência inicial é transfe-
rida para o uniforme ou mero título da autoridade. Se a autori-
dade veste o uniforme adequado ou tem o título adequa.do, este
sinal externo de competência substitui a competência verdadeira
e suas qualidades. O rei - uso esse título como símbolo para
esse tipo de autoridade - pode ser obtuso, cheio de vícios, mau,
isto é, inteiramente incompetente para ser uma autoridade, e con-
tudo tem autoridade. Na medida em que tem o título, supõe-se
ter as qualidades de competência. Mesmo que o imperador esteja
nu, todos acreditam que use belas roupagens.
Não acontece por si mesmo que o povo tome uniformes e
títulos pelas reais qualidades de competência. Quem use esses
símbolos de autoridade e quem se beneficie deles deve iludir o
pensamento crítico e realista de seu povo e obrigá-lo a crer na
ficção. Quem quer que pense sobre ela saberá das maquinações
da propaganda, os métodos pelos quais o julgamento crítico é
destruído, como a mente é levada à submissão por clichês, como
o povo é empulhado porque se tornou dependente e perdeu ~"lla
capacidade je confiar nos próprios olhos e no próprio julgamento.
O povo torna-se cego à realidade pela ficção em que acredita.

Ter Conhecimento e Conhecer


l( t,c_l , _. (
/~ _ ~
1
A diferença entre o modo ter e o modo ser na esfera do
t~.J 2 ~cbnhecimento expressa-se em duas formulações: "tenho conheci-
:P ~·~·. \•.~p.J9" e "conhe.ç.o,:. Tlit:. _conhecimento é tomar_~ conservar pos_se .
, de conhecime~to _ ~ise_o_n!ve! __(jnfo.r mação) ;- conhecer é f.u.nci~nal
' ,, ~ ·
1

Jv -· e_s~~~ ªJ?énas C(?)J;!O meio I)o___P-roce_sso de _pensamento produtivo.


56 TER ou SER?

Nossa compre ensão da qualida de do conhecimento no mod


ser de existência pode ser fortale cida pelos enfoques de pensado~
res como Buda, os profeta s hebreu s, Jesus, ~estr~ _E~khart, Sig-
mund Freud ~-- K~rl Marx. ~o ':er ~e~es, o conhec1menfüc omeça
com a consc1encia do carater Ilusono de nossas percepções do
senso comum, no sentido de que nosso quadro da realidade con-
creta não corresp onde ao que é "verda deiram ente real'' e, sobre-
tudo, no sentido de que a ·maiori a das pessoas está meio desperta
. . . parte
meio sonhad ora, e 1nconsc 1ente de que a maior do que con-'
sidera verdadeiro e evidente por si é ilusão produzida pela in-
fluência sugestiva do mundo social em que vive. C_9_11_hece!,_J1_ois,
começ- ª-çQ_m_o de_st_rQÇ11me_nJo das ilusões, com o desilusLo_naro.ento
(En t tauschu ng). Conhec er significa penetr ar através dél sugerfí-
cie, a fim de chegar às raízes, e, por conseguiQ.te, ~s_ ~as;
conhecer significa Hver'' a realida de em sua nudez. Conhec~r nfül
significa estar de posse da verdad e; significa penetra r além da
superfície -e lutar critica e atillamente a fim de se aproxi~ ar cad~
vez n1ais da verdade.
Essa qüaIRlaâe de penetra ção criativa é expressa na jadoa
hebraica, que significa saber e amar, no sentido de penetração
ª~
sexual masculina. Buda, o Desper to, ~onclama o poyo des12..erta~
e libertar-s{) . da 1lusão que faz ansiar por coisas que_1eyem a
felicidade. Os profetas hebreu s exortam 6 povo a que desperte e
saiba que seus ídolos não passam de obras de suas mãos, são
ilusões. E Jesus diz: "A verdad e vos liberta rá!'' Mestre Eckhart
exprimiu seu conceito de conhec imento muitas vezes; .por ex~m-
plo, ao falar de Deus, diz ele: "O conhec imento não cons 15te
de certo pensamento, mas sim um descas cament o [de todos os
envoltórios], é desinte ressado e corre desnud o para Deus, até qu~
o toca e o apreen de" (Blakn ey, p. 243). ("Nude z'' e "desnudo
- ex.pres:oes
sao - pre d'l · co mo de. seu
1 etas de ~estre Eckhar t, assim .)
contemporaneo, o autor anônim o de The Cloud of Unknowm~
De acordo com Marx, é preciso destrui r as ilusões a fim de cr~atr
. - , .
as con d 1çoes para que as ilusões sejam desnec essanas . O conce1. ·ro
de autoconhecimento para Freud baseia- se na idéia de deSlf\ll _
a s 1·1 usoes
- (" rac1on
· ahzaçõ
· es") a fim de tomar consc1e· nte a .rea
.
lidade inconsciente. (Sen~o o último dos pensad ores d~
mo, Freud pode ser consid erado um pensad or revolucioná!
il~:in;;
os
termos de filosofia iluminista do século XVIII, não em ~erlll
de século XX.) _. bU-
Todos esses pensad ores estavam interes sados na salvaçao ·tos,
mana; todos criticar am os padrõe s de idéias socialmente ac~~er-
Para eles, o objetivo do conhec imento não é a certeza da
-
TER E SER NA EXPERIÊNC IA CoTIDIANA 57

dade absoluta", algo de que se pode estar certo, mas o processo


de au'to-afirmação da razão humana. A ignorância, para aquele
que sabe, é tã~ boa qu~nto o conhecimento, pois ambos, igno-
rância e conhecimento, sao parte do processo do conhecer, muito
embora ignorância deste tipo seja diferente da ignorância do não
pensar. O conhecimento ideal no modo ser é conhecer mais pro-
fundamente. No modo ter é ter mais conhecimento.
Nosso processo eaucátivõ, e-in geral~ tenta acfe-strar as pes-
soas a terem conhecimento como uma posse, geralmente comensu-
rável com a .quantidade de propriedade ou prestígio social que
ele deve proporcionar mais tarde. O mínimo que recebem é a
quantidade necessária a fim de funcionar adequadamente em seu
trabalho. Além disso, dá-se-lhes uma "embalagem de conhecimento
de luxo" para fortalecer seu sentimento de valor, sendo o ,tama-
nho da ~mbalagem de acordo com o provável prestígio social da _/
.pessoa..· As escolas são as fábricas em que a embalagem desse ;~-, ; r '
conhecimento completo é produzida - embora as escolas em ,.:-_·,_ -___.,
geral aleguem que pretendem levar os estudantes ao encontro - - ·-3--:_,;-
dos mais elevados feitos do espírito humano. Muitas ·instituições .; ~ _~
de ensino superior são hábeis em nutrir essas ilusões. Desde o _>~ ----.·
pensamento e artes hindus ao existencialismo e surrealismo, um - .3 · j
vasto amontoado de conhecimento é oferecido, dos quais os estu- - -- J - 2- -
dantes colhem um pouco aqui, um pouco ali, e em nome da-:~
espontaneidade e liberdade não se insiste em que se concentrem ~ --;<·

num assunto, nem mesmo que acabem a leitura de um livro in- -J


teiro. (A crítica radical que Ivan Illich faz sobre esse sistema
escolar traz à tona muitas dessas falhas.)


Num sentido religioso, político ou pessoal, o conceito de fé
pode ter dois significados inteiramente diferentes, dependendo de
ser tomado no modo ter ou no modo ser.
_A fé, no mcxio ter, é a posse de uma resposta àquilo para
o que nãõ se tem quãlquer prova racional. Ela-consiste de-- Iormü-
1~ criadas por outros, que se aceita -porque se aceita sujeição
a~os - em geral uma burocracia. Ela traz consigo o-senti-
mento de certeza devido ao poder concreto ( ou apenas imagi-
nário) da burocracia. 8 .o bilhete de ingresso Pé\!~ junJ_a~~~ a um
~_gr.a_nde de _pessoa~. ;Éla alivia da árdua_tar.efa_d~ __P-en~r. -
e~omar decisões __P-rópti!s1'-K-pessoa toma-se um dos beati possi-
~os felizes proprietários da verdadeira fé. A fé, no modo
l r í
íJ ,,~, ._
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TER ou SER?
58
defini-
t~r, dá ~ertez~; ela reivi_!ldic! prom~lgar o conhedmentoeles
tivo e mabalavel, que e cnvel devido ao poder daqu
qu~ue
promulgam e protegem a fé parecer inabalável. Na verdade
nc~
não preferiria a certeza, se tudo o ~que ela exige é que se r~nu e
à própria independência? ·
Deus, originariamente símbolo para o mais alto valor que
ter um
podemos experimentar dentro 'de nós, toma-se, no modo
nós
ídolo. No conceito profético, um ídolo é aquela coisa que'
po-
mesmos fabricamos e na qual .projetamos nossos próprios
etemos
deres, e desse modo nos empobrecendo. Depois nos subm
to co-
à nossa criação e por nossa submissão entramos em conta
ter um
nosco mesmos numa forma alienada. Embora eu possa
ele ao
ídolo porque ele é uma coisa, por minha submissão a ele,
ídolo,
mesmo tempo tem a mim. Uma vez que Ele se tomou um
minha
as pretensas qualidades de Deus pouco têm a ver com
adas.
experiência pessoal, como fazem as doutrinas políticas alien
e no
O ídolo pode ser louvado como Senhor de Misericórdia,
, as~im
entanto qualquer crueldade .pode ser cometida em seu nome tar
como a fé alienada na solidariedade humana pode sequer susci
modo
dúvidas sobre a prática dos ·atos mais desumanos. A fé, no
z?,
ter, é uma muleta para aqueles que querem estar na certe
ra-
aqueles que querem uma resposta para a vida sem ousar procu
la por si mesmos. o
/ No modo ser, a fé é um fenômeno to.talmente _diJerente. Acas
ter
podemos viver sera fé? Acaso .não deverá a criança de peito
fé no seio materno? Acaso não devemos ter fé em outro
s se!es,
viver
naqueles a quem amamos e fé em nós mesmos? Podemos
, se!11
sem fé na validez das no~ as para a nossa vida? De fato,
propno
fé tomamo-nos estéreis, desesperançados, temerosos do
nça
núcleo do nosso ser. -
A.lér-D-Q_modo- -ser..,- não é, em primeiro lugar, uma cr~en
~;,á na
em _cei:a~ idéias ( em~r_~___ poss~ també~ ser ~sto), 1J1-ª.utm f' qÜe
taçjQ_mtima, ~ma aJzt,gle. -·$ena prefenvel d1zer-s~-que se
fi_em_vez ?e que_ ~-e 1 tem_U. (A distinção teológica entreu:-~ fé
cre-
da
é. crença [fides ,1:/Jg!jf¼:reditur] e fé como crença [/ideMQ0 co""
. dztu r] reflete uma distinção semelhante entre o -conte - ·ar~- lP
'
.-·- 1
o ou P oeus.
, - - , e do ato de fé.) Pode-se estar em fé consigo mesm
co~egação
( ~ !\-OU-fro s,e a pessoa religiosa pode estar em fé para r 80 a-
O Deus do Velho Testamento é, antes de tudo, ~roa a si
de ídolos, de deuses que podemos ter. Embora concebido ~e
e deve
logia com um rei oriental, o conceito de Deus trans...cen5
mesmo desde o início. Deus não deve ter nome; nao
fazer qualquer imagem de Deus.
,_
.- ·)
~
-
, '
Mais tarde, no drsenvolvimento judaico e cristãÕ, tenta~s·e
conseguir comp!eta desidolatração de Deus, ou antes, lutar contra
o perigo de converter ·Deus em ídolo, postulando-se que nem mes-
mo as qualidades de Deus ,podem ser enunciadas. Ou mais radi-
calmente, no misticismo cristão - desde Dionísio Areopagita
(pseudo Dionísio) até o autor desconhecido de The Cloud of
Unknowing e Mestre Eckhart - o conceito de Deus tende a ser
o de único, o "Espírito " (Aquele que não é coisa), reunindo
assim modos de ver contidos nos Vedas e no pensamento neopla-
tônico. Essa fé em Deus é testemunhada por experiência íntima
das qualidades divinas na pessoa; é um processo de autocriação
contínuo e ativo - ou, -como o diz Mestre Eckhart, de Cristo
eternamente nascendo dentro de nós mesmos .
.L Nossa fé em nós mesmos, em outro, na humanidade, em
nossa capacidade de tornarmo-nos plenamente humanos, também.
implica certeza, mas certeza baseada em nossa própria experiên-
cia, e não em nossa submissão a uma autoridade que dita certa
crença. É certeza de uma verdade que não pode ser demonstrada
por evidência racionalmente obrigante, contudo, verdade de que
estou certo devido à minha evidência vivencial e subjetiva. (A
palavra hebraica para fé é emunah, "certeza"; amen significa "cer-
tamente" .)
Se estou certo da integridade de um homem, não poderia
comprovar sua integridade até seu último dia; estritamente falan-
do, se sua integridade permanece imaculada até a época de sua
morte, mesmo isso não excluiria o ponto de vista positivista de
que ele a podia ter violado se tivesse vivido mais tempo. Minha
certeza repousa no conhecimento em profundidade que eu tenho
de outrem e de minha própria experiência de amor e integridade.
Esta espécie de conhecimento só é possível na medida em que
poS!iO mergulhar em meu próprio ego e perceber o outro homem
tal qual ele é, reconhecer a estrutura de forças nele, vê-lo em
sua individualidade e ao mesmo tempo em sua humanidade uni-
versal. Então sei o que outrem pode fazer, o que não pode,
e o que não fará. Evidentemente, não pretendo com isso dizer
que poderia prever todo o seu comportamento futuro, mas apenas
as linhas -gerais de conduta que estão enraizadas em traços bási-
cos de caráter, tais como a integridade, a responsabilidade, etc.
(Veja-se o capítulo scbre "Fé como um traço do caráter" em
Análise do Homem.
Essa fé baseia-se em fatos; daí ser racional. Mas os fatos
não são identificáveis ou "comprováveis'' pelo método da psico-
)
60 TER ou SER?

logia convencional positivista; eu, a pessoa viva sou O único ins..


trumento que pode ''registrá-los". '

Amor_ , .[,, ·_ ~ -, 1 j
1

O amor tem também dois significados, dependendo de se


falar dele no modo ter ou no modo ser.
Pode-se ter amor? Se pudéssemos ter amor, ele deveria ser
uma coisa, uma substância que possamos ter, possuir, adquirir.
A verdade é que não existe algo como "amor". "Amor'' é abs-
tração, talvez uma deusa ou ser estranho, embora jamais alguém
tenha visto essa deusa. Na realidade, existe apenas o ato de amar.
Amar é uma atividade criadora. Implica cuidado, conhecimento,
ajuste, afirmação, gozo: a pessoa, a árvore, a pintura, a idéia.
Significa trazer à vida, aumentar a vida. É um processo, auto-
renovador e autocrescente.
Quando o amor é vivido no modo ter, ele implica confina-
mento, aprfsionamento ou controle do objeto que se "ama". B
sufocante, debilitante, emperrante, mortificante, estéril. O que se
chama amor é quase sempre um emprego equivocado da _palavra,
a fim de ocultar a realidade do desamor. O quanto os pais amam
seus filhos é ainda uma questão inteiramente discutível. _Ll?~d
de Mause demonstrou que nos dois mil anos passados da hi 5lona
ocidental houve relatos de crueldade contra crianças, desde ª
tortura física e mental até o descuido, possessividade· cruel e
dismo, tão . chocantes que se é levado a crer que o amor 0
Jª;
pais é exceção mais que regra. · amento
O mesmo se pode dizer do casamento. Quan?~ 0 ~asdo as-
é baseado no amor ou, como nos casamentos tradicionais d d!ra-
sado, na conveniência social e costume, o ca~al qu~ ver :Suune,
~ente ama pa~e~ exce,ção. ? que é conveniê~cia social fbos, d~-
6
1nteresse econom1co mutuo, mteresse compartilhado. em ente vi-
pendência mútua ou ódio e medo mútuos, é conscientemu aIJ1bOS
venciado como "amor'' - até o momento em que . um . ~á aillor
os cônjuges reconhece ou reconhecem que nao rogresSO
entre eles, e que nunca houve. Pode-se notar boj~ algum ~brias, e
nesse sentido: as pessoas tornaram-se mais realistas e 5 significa
muitos já percebem que não é a atração se~ual q~e stação de
amor, nem que·um relacionamento amistoso seJa ~andee __ assi111
amor. Esse novo modo .de ver leva a maior bones~da ·goifica que
como a mais freqüente mudança de cônjuges. Na~ ~~ges podetJJ
tenha levado a amor mais freqüente, e os novos conJ
amar-se tão pouco quanto antes.
TER E SER NA EXPERIÊNCIA CoTIDIANA 61

A mudança de "estar amando'' para a ilusão de "ter'' amor


pode, não raro, ser observada em pormenore s concretos na his-
tória de casais que "caíram de amor". (No meu livro A Arte de
Amar,• assinalei que a palavra "cair" na expressão "cair de amor"
é uma contradição em si mesma. Uma vez que amar é uma ati-
vidade criativa, só se pode estar em amor ou andar no amor;
não se pode "cair" no amor, porque cair denota passividade.)
Durante a corte, nenhuma pessoa está ainda certa quanto à
outra, mas cada qual tenta conquistar. Ambos são vivos, atraen-
tes, interessantes, sempre belos - tanto mais que a viveza sempre
embeleza a face. Nenhum tem ainda o outro; daí. a energia de
cada um dirigir-se a ser, isto é, a dar e estimular o outro. Com
o casamento, a situação freqüentemente muda de modo funda-
mental. O contrato de casamento dá a cada sócio a posse exclu-
siva do corpo, dos sentimentos e do cuidado. Ninguém mais .tem
que conquistar, porque o amor tomou-se alguma coisa que se
tem, uma propriedade. Ambos deixam de se esforçar por ser amá-
veis e produzirem amor, daí tomarem-s e entediados, e daí desapa-
recer a beleza. Ficam desapontad os e perturbados. Já não serão
mais as mesmas pessoas? Terão cometido um erro essencial? Cada
qual em geral procura a causa da mudança no outro, e sente-se
enganado. O que não vêem é que não mais são a mesma pessoa
que quando se amavam um ao outro; que o erro de que se pode
ter amor levou-os a deixar de amar. Agora, em vez de amar um
ao outro, ajustam-se para ,possuir o que possuem juntos: dinheiro,
posição social, casa, filhos. Desse modo, em certos casos, o casa-
mento iniciado na base do amor converte-se numa propriedad e
amigável, uma empresa em que os dois egoísmos juntam-se num
interesse: o da "família".
Quando um casal não pode vencer o anseio de renovação
do antigo sentimento de amor, um ou outro do par pode ter a
ilusão de que um novo sócio satisfará sua carência. Sentem que
tudo o que querem é amar. Mas para eles o amor não é uma
expressão do seu ser; é uma deusa a quem querem se submeter.
Falham inevitavelmente no seu amor porque "o amor é filho da
liberdade" (como o diz uma velha canção francesa), e o adorador
da deusa do amor torna-se de fato tão passivo quanto entendiado
e perde o que quer que tenha tido da antiga atratividade.
O que dissemos não pretende implicar que o casamento ~~o
possa ser a melhor solução para as pessoas que se amem. A difi-
culdade não reside no casamento, mas na estrutura possessiva exis-

• Publicado no Brasil por Zahar Editores. (N. do T.)


L-

62 TER ou SER?

soe·
tencial de ambos os cônjuges e, em última análi.se, de sua 1e-
dade . Os defensores d as f orma s mo d ema s, tais como de vi'd
ai d " .uges, sexo grupal, etc.,a
conj unta e casamen to grup , troca e c~nJ
de suas
tanto quanto percebo, tentam apenas evitar o problema
ulos
dificuldades em amar, mediante a cura do tédio com estím ser
que
sempre novos e pela vontade de_ ter mais "aman~es'' do
se da
capazes de amar mesmo que seJa a um só. (VeJa-se análi
capí-
distinção entre estímulos "ativadores'' e "passivadores'' no )•
tulo 10 do meu livro Anatomia da Destrutividade Hum
ana.

• Publicado no Brasil por Zahar Editores. (N. do T.)

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