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(01) A aula de hoje será um pouco trabalhosa, pois temos dois textos para ler e

comentar: (a) La Filosofia Actual. Pensar Sin Certezas, de Dardo Scavino (professor da
Universidade de Versailles, França), editado em Buenos Aires pela editora Paidós em
1999, reimpresso em 2000; e (b) A Filosofia Contemporânea. Introdução Crítica, de
Wolfgang Stegmüller, publicado pela EPU (Editora Pedagógica Universitária da
Universidade de São Paulo) em 1977.
Para introduzir a leitura desses textos, precisamos nos lembrar que com Hegel foi
inaugurada certa tradição de pensamento que iria se consagrar no uso
universitário geral, e se tornou quase que um pressuposto inconsciente de muito do
pensamento contemporâneo. Esse pressuposto diz que a evolução histórica do
pensamento é o desenvolvimento interno da própria filosofia, como se fosse uma
longa meditação filosófica que começa com os pré-socráticos e chega até o
presente, de modo que não haveria muita diferença entre a estrutura de uma
meditação filosófica e a estrutura da história do pensamento. Seriam mais ou
menos a mesma coisa: como se fosse a humanidade pensando. Ressalta-se aí o elo
de unidade e continuidade entre as várias escolas filosóficas tomadas, não como
fenômenos independentes ou como “produtos da cultura do seu tempo”, mas como
se fossem momentos de um longo pensamento filosófico. Tão logo Hegel ensinou às
pessoas a pensar assim, muita gente achou que era uma boa ideia, e continuaram
praticando isso ao longo do tempo.

(02) O desenrolar histórico da filosofia, ou de uma certa linha de investigações


filosóficas, adquire um valor paradigmático, ele é o modelo de raciocínio sobre um
determinado tópico, sobre um determinado assunto ou até sobre todos eles. Uma das
diferenças fundamentais entre o que é o conhecimento no seu sentido mais rigoroso e o
que é a acidentalidade da vida desaparece por completo, passa a não existir mais
acidentalidade, ou seja, a sucessão dos acontecimentos torna-se, ela mesma, uma norma.
Isto não deixa de ser uma técnica de raciocinar, mas apresenta muitos problemas. De
uns 30 ou 40 anos para cá, se consolidou um desses modelos históricos de
desenvolvimento da filosofia, como se fosse o padrão para todas as faculdades de
filosofia do mundo.
Tão logo dominamos esta seqüência, que é uma seqüência de autores, livros, temas e
propostas, e nos qualificamos como estudantes ou professores de filosofia, então
podemos examinar a coisa de fora e levantar alguns problemas. Primeiro: quem disse
que essa linha de desenvolvimento é a central? Quem escolheu esses autores e esses
tópicos? Quem determinou que esta linha de desenvolvimento fosse a principal? Para
vocês verem como esse negócio é problemático, entraremos na leitura do segundo texto
do Wolfgang Stegmüller, que mostra como a evolução da filosofia no século XX levou
a um estado de fragmentação no qual se tem escolas, correntes e grupos filosóficos que
não conseguem dialogar entre si porque um não sabe do que o outro está falando.

(03) Essa linha de desenvolvimento que é mostrada aos estudantes como se fosse a
filosofia do século XX, ou o conjunto de conhecimentos ou de experiências intelectuais
que têm de ser absorvidas para você ser um estudante qualificado, é apenas um grão de
areia no oceano e que, visto de outros ângulos, de outras abordagens possíveis que
ficam à margem desse estudo atualmente oficial, ela nada tem de necessário, nem uma
lógica interna; é apenas uma sucessão de opiniões como qualquer outra.

(07) Cá entre nós eu pergunto: se tudo quanto é objeto de [0:30] experiência está
continuamente mudando e não se pode admitir que elas tenham uma essência para além
das suas transformações temporais, então não apenas a ciência não pode obter nenhuma
lei universal e necessária mas também não pode obter nenhuma regularidade, pois a
regularidade é uma constância. Se uma lei científica é constante, isso significa
precisamente que ela não se aplica a nenhum objeto de experiência já que todos eles são
mutáveis. Conclui-se que isto foi uma falsa solução ou um mero jogo de palavras que
inventaram para justificar a existência da ciência depois de ter negado a existência de
essências permanentes. Se tudo é mutável, então nenhuma regularidade é regular; ela só
é regular sob certo aspecto, mas não se pode dizer que essa regularidade corresponde a
fatos de maneira alguma. Esses camaradas estavam tentando fundamentar a ciência por
um meio que a destruía completamente, mas essa parte destrutiva, implícita nos seus
argumentos, eles varreram para debaixo do tapete e fizeram de conta que não tinham
visto.

(10) Quando você entra na faculdade de filosofia, tem de estar à altura do status
quaestionis, que é determinado pela sua conclusão extraída por Derrida. A
consciência é sobretudo falsa consciência, então só podemos conhecer a consciência
através dos estudos obtidos sobre a falsa consciência, e os grandes estudiosos sobre
a falsa consciência são Marx, Nietzsche e Freud. Marx dizia que “toda forma de
consciência historicamente registrada é apenas uma projeção de interesses ou
necessidades sócio-econômicas numa determinada classe”, ou seja, o sujeito
imagina o mundo de determinado modo porque sua classe precisa disso para
sobreviver. Freud dizia que “a consciência é apenas uma aparência que surge no
topo de um conjunto de instintos inconscientes em conflito”, então a consciência é
eminentemente o disfarce dos instintos. E Nietzsche dizia que “a consciência não é
senão o disfarce da vontade de poder”, ou seja, você existir significa poder, e poder
significa querer mais poder, então aquilo que você pensa e acredita conhecer, não é
uma expressão do que as coisas são, mas do seu desejo de poder. Só resta estudar a
consciência sob estes três aspectos.

(11) Acontece que quando chegamos à escola analítica, temos o problema que já vimos:
se todos os objetos que podem chegar ao nosso conhecimento estão em constante
mutação e por trás deles não existe nenhuma essência permanente, então não adianta
nem mesmo a ciência desistir de conhecer leis eternas e permanentes e tratar de
conhecer apenas as regularidades estatísticas, porque até as regularidades estatísticas
não são regularidades estatísticas de maneira alguma. São apenas aparências
temporárias, momentâneas que podem ser desfeitas não pelo conhecimento dos novos
fatos, porque aí não há sentido falar em fatos. Nem pelo conhecimento de novas
experiências, porque não há nada que possa validar uma experiência mais que outra,
todas as experiências se equivalem, inclusive não se pode dizer que uma experiência é
mais científica que a outra. Sem confessar, esses camaradas haviam destruído a
possibilidade da ciência, e, no entanto, a filosofia analítica é tida como se fosse a
filosofia científica por natureza.

(12) Quando Descartes decidiu colocar em dúvida tudo aquilo do qual ele não pudesse
obter uma certeza ou uma prova, ele está apenas dizendo isso, ele não pode fazê-lo, na
verdade. Foi justamente aí, que quando li pela primeira vez (vai fazer 40 anos), esse
problema entrou na minha cabeça: ele não vai fazer o que está dizendo que está fazendo.
Vai apenas fingir. Ele pode apenas dizer isto, mas não pode fazê-lo. Então a dúvida
universal é um teatro, não é uma experiência real. No entanto, Descartes insiste que a
seqüência que ele está expondo nas meditações metafísicas não é uma seqüência de
raciocínios apenas, não é um raciocínio que ele está montando, mas é uma narrativa de
uma experiência interior. Eu vi que esse camarada se observou muito mal, porque ele
diz que está fazendo uma coisa que não fez, e no entanto ele não está mentindo, mas
está realmente equivocado a respeito de si mesmo. Existe em Descartes uma distância
entre o eu pensante e o eu existencial, e ele não sabe o que está fazendo, só sabe o que
está narrando. E foi aí que surgiu o negócio da paralaxe.

(13) Num livro com uma série de conferências que Edmund Husserl fez, que se chama
Meditações Cartesianas, ele diz claramente isso: “Descartes inventou o começo
absolutamente obrigatório da filosofia moderna. Todos nós temos que partir da dúvida
integral.” Se tudo é colocado em dúvida, só sobra no meio uma luzinha chamada
consciência, ou eu, que tem certeza da sua própria existência (sendo esta, segundo
Descartes, a primeira e a mais fundamental das certezas: eu sei que eu existo porque eu
estou pensando que eu existo ou eu estou negando que eu existo; para ambas as coisas
eu preciso existir). Todo o universo de Husserl é constituído do exame desta
consciência.

(14) se apresentamos a seqüência histórica dos pensamentos assim: Frege, escola


analítica, Husserl, (Heidegger – entre parênteses, pois a idéia foi dele) e Derrida, então
chegamos no ponto em que só nos resta estudar a falsa consciência usando para isto os
instrumentos criados por Marx, Freud e Nietzsche, que é exatamente o que se faz na
quase totalidade das faculdades na Europa e na América Latina (nos Estados Unidos
ainda se leva muito a sério a filosofia analítica, e também há alguns outros
desenvolvimentos que não interessa discutir aqui). Mas se você entrar em uma
faculdade no Brasil, ou na USP, por exemplo, é isto que você vai ter: esta seqüência e a
conclusão final. Só nos resta estudar Marx, Freud e Nietzsche (e seus auxiliares:
Foucault, talvez um pouco de Wilhelm Reich, um pouco de Herbert Marcuse, para fazer
um certo floreio em torno disso, mas a substância é essa). Porém, em primeiro lugar,
quem disse que essa seqüência de pensamentos é algo mais que uma seqüência de
acontecimentos, que ela é universal e necessária? Quem disse que a evolução interna da
filosofia tinha de ser esta? Em segundo lugar, será que não houve outros
desenvolvimentos paralelos completamente diferentes que escapam disso? É claro que
houve. Por exemplo, aqui nós não teríamos como encaixar o Xavier Zubiri, nem o
Bernard Lonergan. Então o que nós fazemos? Temos de sumir com alguns gigantes da
filosofia e nos ater a esta seqüência para poder chegar a essa conclusão.
Ou seja, a discussão dos filósofos entre si torna-se, para fins de pedagogia
universitária, como se fosse a exposição dos vários aspectos que esgotam a
realidade, porque o fato é que a realidade não entrou nessa discussão, só entrou o
que os filósofos dizem.
Ora, qualquer exame que
você faça de qualquer experiência é experimental, mas quem disse que qualquer
exame da
experiência reflete a estrutura da experiência na sua amplitude, e não somente um
aspecto dela,
selecionado [1:10] não por exigência da própria experiência, mas por exigência da
tradição
filosófica com a qual você vem armado e pré-moldado? Então, vejam que
praticamente em
toda essa tradição que inclui Descartes, Hume, Kant e Husserl o eu humano só
aparece como sujeito do conhecimento, a consciência só aparece como sujeito do
conhecimento ou como
objeto de si mesma.

(15) Eu acho isso uma das coisas mais extraordinárias da história da filosofia: cada
um desses filósofos se vê como se ele fosse o sujeito do conhecimento e diante dele
existisse só um negócio chamado “mundo” ou “objeto”; ele próprio, o filósofo,
jamais é objeto. O sujeito se pergunta “como eu conheço?”, mas nunca pergunta
“como os outros me conhecem? Como sabem que eu existo?” Esta pergunta nunca
foi feita, em toda a tradição moderna. Nem mesmo por Husserl, que era um
homem cuja integridade intelectual não podemos negar. Nem Husserl, nem Frege,
nenhum deles pensou nisto. Então eu pergunto: se eu não fosse conhecido
absolutamente, se ninguém me conhecesse, como poderia eu fazer qualquer exame
filosófico que fosse? Por exemplo, ao raciocinar, eu uso elementos de uma língua
que alguém me ensinou. Essas pessoas que me ensinaram a língua acreditavam que
eu existia, me viam, me tocavam, trocavam minhas fraldas, me davam comida, me
davam mamadeira, e daí eu cheguei até aqui. Ou seja, em nenhum momento eles se
perguntam: quais são as condições existenciais que preciso ter necessariamente
para colocar essas perguntas filosóficas? As perguntas filosóficas surgem no ar,
absolutamente imotivadas, exceto pela curiosidade do indivíduo, que a partir desse
momento se considera “o” sujeito do conhecimento, considerando que para ele
tudo o mais é objeto.
Dito de outro modo, para o puro sujeito não existe mundo. O mundo só existe na ação
que você exerce sobre as coisas em torno, as quais lhe respondem de algum modo.
Não existe esse conhecimento puramente passivo, do puro sujeito que só recebe as
informações. E no entanto, toda a filosofia moderna se construiu na base de examinar o
sujeito como se ele fosse puro sujeito. Inclusive o próprio Husserl cai nesse erro
monstruoso.

(16) E no entanto, toda essa filosofia examina um eu puramente cognoscente que,


primeiro, nunca é objeto de conhecimento para ninguém, nunca é conhecido, e está tão
desligado do seu corpo que pode supô-lo inexistente, de modo que só o eu cognoscente
existe, enquanto o corpo está colocado entre parênteses. É claro que, por este método,
[1:20] você só vai dar a cara a tapa, e vai vir um Derrida e dizer: “olha, tudo isto aí que
você está falando é um tremendo
autoengano!” Só que o autoengano em que caiu a filosofia moderna não se observa na
filosofia antiga, nem em Platão, nem em Aristóteles, nem nos escolásticos, e não se
observa numa série de outros filósofos contemporâneos como Xavier Zubiri, que diz
que não apenas nós conhecemos a realidade, mas que essa dimensão que nós chamamos
de realidade é própria do ser humano – não existe realidade para os demais entes. Só
existem impressões, estados deles.
Ele dá o famoso exemplo: quando faz frio, o cachorro sente frio, mas nós sabemos que o
inverno é frio. O cachorro não sabe disto, ele só sabe quando está sentindo. Também,
essa série de pensamentos não se aplica ao Eric Voegelin, que diz que a essência do
nosso conhecimento é participação na estrutura da realidade. Portanto não existe um
sujeito aqui e lá um objeto, ambos estão sempre dentro de um círculo de participação. E
essa participação é, por sua vez, a estrutura da realidade.
(17) O exemplo mais simples, então, nos mostra o seguinte: não é que nós só podemos
enxergar o objeto por determinados lados e não por todos aos mesmo tempo; ele
também não pode se exibir por todos os lados. O que seria o edifício que tivesse todos
os seus lados de um lado só?
Seria um painel, e não um edifício; e ninguém moraria lá dentro. Então esta limitação
do nosso conhecimento não é uma limitação nossa, ela é a forma de existência do
próprio objeto! Neste sentido, a consciência, se é feita de retenção e protensão, não é de
maneira alguma uma mentira, mas a perfeita adequação entre um ente, que é objeto e
sujeito, e outro entre, que também é objeto e sujeito. Qualquer ente que receba
informações é sujeito sob aquele aspecto, e é objeto enquanto transmite informações. É
possível conceber algum ente na realidade que jamais emitiu informação alguma para
nenhum outro ente, sob aspecto nenhum? Não, não é possível. Uma mera possibilidade
matemática tem um conjunto de relações lógicas necessárias com outras relações
matemáticas e, neste sentido, ela as está informando, ela está emitindo informação. Isto
é assim mesmo com entes puramente imaginários. E todos os objetos reais emitem e
recebem informação. Não há um só ente que esteja imune a este processo da troca.
Aqueles entes que existem no tempo e no espaço só podem ser conhecidos por retenção
e protensão porque eles só podem existir como retenção e protensão.

O que quer que tenha participado do ser por um único instante infinitesimal nunca mais
será um nada. Entendemos assim que não pode haver tempo nenhum se não existe
também a continuidade perfeita e a eternidade. É como dizia Santo Agostinho: “o tempo
é a forma móvel da eternidade”, é a aparência móvel da eternidade. Tudo que existe no
tempo existe na eternidade e existe eternamente, sob a forma limitativa que tem a sua
existência no tempo – ela é aquilo e nada mais do que aquilo, mas um nada jamais será.
Não podemos voltar ao nada, ninguém pode voltar ao nada, nada nunca pode voltar ao
nada! Só o nada mesmo que sempre esteve lá e que nunca foi nada pode continuar sendo
o nada eternamente, porque não é nada. Isto quer dizer que a existência temporal tem
fundamento no eterno, senão ela teria que existir por si mesma, boiando no nada, o que
é impossível.

(18) Ora, tudo o que existe tem necessariamente unidade, porque tem
continuidade. Se fosse instantâneo, um instante infinitesimal, não poderia ser
conhecido. Se pode ser conhecido, é porque é algo que persevera, ou no tempo,
portanto indiretamente dentro da eternidade, ou persevera diretamente dentro da
eternidade porque é eterno.
Vemos então que toda essa discussão foi apenas uma discussão técnica feita entre
pessoas não muito hábeis, [1:30] porque os erros de método que cometem são
enormes, imensos. Por que pessoas tão inteligentes cometem esses erros? Porque
estão comprometidas com uma tradição filosófica determinada, e se fecham a
outras tradições que poderiam corrigir os seus erros.

(19) Nós podemos dizer que o que falta a todas essas análises que vêm desde
Descartes, Hume, Kant, Husserl, Heidegger etc., é uma profundidade existencial,
no sentido que Gurdjieff falava do “quarto caminho” ou “quarta dimensão”, que
não é conhecida nem no mundo da ação, nem no mundo da devoção ou do culto e
nem intelectualmente, mas é conhecida através do ser; é conhecida, digo eu,
somente por confissão. Você tem de confessar que há uma quarta dimensão que é o
fundamento de todas as outras e que sempre esteve aí. É o tal do conhecimento por
presença. Não vejo outra saída.
(21) Somente a alma imortal age porque somente ela existe. Somente ela tem existência
substantiva. O resto é aparência ou funções. Somos almas imortais mesmo quando isso
está completamente fora do nosso círculo de atenção ou visão. Nossa dificuldade de nos
captar a nós mesmos como imortais vem de que isso requer uma modalidade específica
de conhecimento que cai fora do campo que a Filosofia tem tratado, mas que na
Filosofia Islâmica foi muito bem abordada como “conhecimento por presença” – um
termo que até eu pensei que tinha inventado, mas descobri depois que um filósofo do
século XII já tinha falado disso.

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