Você está na página 1de 4

Interdependência ventricular 1

Os ventrículos direito e esquerdo são interdependentes, uma vez que eles estão confinados
dentro do mesmo saco pericárdico, têm uma parede em comum, o septo interventricular, e são
circundados por fibras miocárdicas comuns a ambos. Dessa forma, a sobrecarga de pressão ou
volume do ventrículo direito afeta a função do ventrículo esquerdo; e esta, por sua vez, pode afetar
o funcionamento do ventrículo direito. O VD, portanto, atuaria como um modulador da função do
VE, tanto em condições fisiológicas quanto patológicas.
Em condições normais, no repouso, a função do ventrículo direito interage de forma pouco
significativa com a do ventrículo esquerdo. Porém, durante o exercício, o ventrículo direito
contribui de maneira significativa para o aumento do débito cardíaco do ventrículo esquerdo. De
forma similar ao que ocorre no exercício, na presença de doenças pulmonares e condições que
alteram a mecânica respiratória, a inspiração aumenta os volumes do VD e reduz os do VE; já a
expiração reduz os volumes de ambos os ventrículos.
Define-se a interdependência ventricular diastólica como a relação direta entre a mudança no
volume de um ventrículo e a complacência diastólica do outro ventrículo (lusotropia). A dilatação
ventricular desloca a curva pressão x volume diastólica do ventrículo oposto para a esquerda, ou
seja, a mesma pressão final de enchimento ventricular corresponde a um volume diastólico final
menor; enquanto a redução do volume ventricular desloca a curva do outro ventrículo para a
direita. Esse conceito pode ser visto na figura abaixo.

Incidência ecográfica paraesternal de eixo curto e gráfico pressão x volume na diástole em indivíduos
com insuficiência cardíaca direita (figura superior), função cardíaca normal (figura do meio) e
insuficiência cardíaca esquerda (figura inferior). EDP = End Diastolic Pressure; EDV = End Diastolic
Volume.
Define-se interdependência ventricular sistólica como a contribuição que contração de um
ventrículo exerce sobre a contração do ventrículo adjacente. O ventrículo direito é uma bomba de
volume que possui paredes finas. Dessa forma, ele contribui pouco para a função do ventrículo
esquerdo em condições em que a demanda metabólica periférica e, consequentemente, o débito
cardíaco, estão normais ou pouco aumentados.
A interdependência ventricular sistólica ocorre de tal forma que 20 a 40% da pressão sistólica
do ventrículo direito resulta da contração do VE; enquanto 4 a 10% da pressão sistólica do
ventrículo esquerdo resulta da contração do VD. Essa interação ventricular é reduzida na presença
de um septo enrijecido, aumentada pelo enrijecimento das paredes livres ventriculares e é
relativamente independente da presença de um pericárdio íntegro.
Obs.: Em 1971, Fontan e Baudet realizaram a primeira anastomose cavopulmonar, com by-pass do
ventrículo direito, como uma intervenção paliativa para a cardiopatia congênita de ventrículo único.
Essa intervenção mostrou que um único ventrículo é suficiente, sob determinadas condições, para
manter as circulações pulmonar e sistêmica. A chamada circulação de Fontan permite aos
pacientes a manutenção de uma vida sedentária por vários anos. Porém, a função cardíaca desses
pacientes deteriora rapidamente em caso de aumento da pressão da artéria pulmonar, como
ocorre com exposição a altitude ou quando as pressões de enchimento ventriculares aumentam.
Em pacientes com sobrecarga de volume do ventrículo direito, ocorre redução da
complacência diastólica do ventrículo esquerdo. Isso é verdade tanto nos casos de aumento agudo
do volume do VD, causado por uma redução significativa da pressão intratorácica; como nos casos
de aumento crônico, os quais ocorrem na presença de hipertensão pulmonar, shunt esquerda-
direita (ex. defeitos do septo atrial) e insuficiência tricúspide e/ou pulmonar. Porém, deve haver um
aumento considerável do volume do VD para que a função do VE seja afetada e esse efeito é
fortemente dependente da presença de um pericárdio intacto.
Na sobrecarga de volume do VD, com pouca ou nenhuma alteração de pressão, a fração de
ejeção do VD fica preservada; já a complacência diastólica do ventrículo esquerdo fica
comprometida, com redução do seu volume diastólico final, e a sua fração de ejeção também é
reduzida, mas não há alteração intrínseca de contratilidade em nenhum dos ventrículos (as
propriedades contráteis dos cardiomiócitos estão mantidas). A explicação proposta para a redução
da FE do VE nesses casos é que o movimento paradoxal do septo (retificação ou inversão na
diástole e retorno ao normal na sístole) poderia reduzir a eficiência da contração do VE, enquanto
mantém a do VD.
Já a sobrecarga de pressão do VD, como ocorre na vasoconstrição pulmonar aguda e no
embolismo pulmonar, está associada aumento do VD com redução da sua FE, ao mesmo tempo em
que há redução do volume do VE, mas com sua FE inicialmente preservada.
Obs.: Note que a FE do VE se mantém na sobrecarga de pressão do VD, mas é reduzida na
sobrecarga de volume do VD. Isso se deve principalmente ao movimento específico do septo
interventricular em cada caso. Mas no caso de hipertensão pulmonar grave, um fator que pode
contribuir para a preservação da FE do VE é uma maior contribuição da contração do VD para a
função sistólica do VE.
Obs.: A hipertensão pulmonar está associada com um aumento na contratilidade do VD que ocorre
antes mesmo da adaptação hipertrófica, o que permite a preservação do volume sistólico e das
dimensões desse ventrículo na fase inicial da doença. Porém, quando há elevação rápida da pressão
da artéria pulmonar ou hipertensão pulmonar prolongada, essa resposta adaptativa deteriora e
ocorre aumento do VD. Mas mesmo nesse ponto, a função sistólica do VD permanece aumentada,
quando comparada com o normal, até fases avançadas da doença.
Esses efeitos diferenciais são modulados pela adaptação da função sistólica do VD ao aumento
da pré e da pós-carga e eventual adaptação da função sistólica do VE à redução da pós-carga.
A presença de um pericárdio íntegro intensifica a interdependência ventricular diastólica, mas
não exerce influência significativa sobre a sistólica. Por outro lado, a interdependência ventricular
sistólica aumenta na presença de enrijecimento da parede livre do VD e reduz com o enrijecimento
do septo interventricular. Porém a interdependência ventricular ocorre mesmo na ausência da
influência do pericárdio, da mecânica respiratória e da ativação neuro-humoral, ou seja, pela
influência das fibras miocárdicas em comum. Mas ela é muito mais forte na presença desses
fatores.
Estudos recentes mostram que as interações interventriculares, sistólica e diastólica, são
negativamente afetadas pela heterogeneidade regional do VD e pelo prolongamento da contração
deste ventrículo, o que ocorre com o aumento na pressão da artéria pulmonar. A relevância clínica
desses achados ainda está sendo investigada.
Vamos fazer um resumo dos conceitos de insuficiência ventricular direita e interdependência
ventricular. A sobrecarga de pressão ou volume do VD está associada à diminuição da fração de
ejeção do VD (FEVD), ao aumento do volume diastólico final do VD (VDF VD) e a uma interação
diastólica negativa, com a queda precoce da fração de ejeção do VE (FEVE) em caso de sobrecarga
de volume do VD e preservação da FEVE em caso de sobrecarga de pressão do VD. Em ambos os
casos, a relação pressão / volume diastólico final do VE está aumentada (LV EDP/V) e ocorre
eventual diminuição da FEVE com a remodelação atrófica, redução da contratilidade, hipotensão e
isquemia do VD, todos resultando em uma interação sistólica negativa e piora da falência do VD. A
interação diastólica negativa é potencializada pela restrição provocada pelo pericárdio intacto.
Ambas as interações diastólica e sistólica são afetadas negativamente pela dissincronia e/ou
assincronia do VD. A interação sistólica é aumentada por uma parede livre rígida do RV, e diminuída
por um septo rígido.

REFERÊNCIAS
1. Naeije R, Badagliacca R. The overloaded right heart and ventricular interdependence.
Cardiovasc Res. 2017;113(12):1474–1485. doi:10.1093/cvr/cvx160

Você também pode gostar