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ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 687

Trajetórias assistenciais de mulheres entre


diagnóstico e início de tratamento do câncer
de colo uterino
Health assistance path of women between diagnosis and treatment
initiation for cervix cancer

Priscila Guedes de Carvalho1, Gisele O´Dwer2, Nádia Cristina Pinheiro Rodrigues3

DOI: 10.1590/0103-1104201811812

RESUMO O estudo se propôs a analisar as trajetórias na assistência das mulheres residentes no


Município do Rio de Janeiro diagnosticadas com câncer de colo uterino que foram encaminhadas
para tratamento em unidade de referência na atenção oncológica. Na primeira etapa do estudo,
avaliou-se o prazo entre a confirmação do diagnóstico e o início do tratamento das mulheres ma-
triculadas no ano de 2014, tomando como referência o prazo de até 60 dias fixado pela Lei Federal
nº 12.372/2012 para início de tratamento do câncer no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Na
segunda etapa, analisaram-se as narrativas de cinco mulheres sobre os caminhos percorridos na as-
sistência desde a descoberta do diagnóstico até a primeira intervenção terapêutica, a partir de aspec-
tos do cuidado integral em saúde. Observou-se que 88% dos tratamentos se iniciaram após o prazo de
60 dias e que 65,5% das mulheres foram diagnosticadas com doença avançada. A média para início de
tratamento foi de 115,4 dias. Os principais problemas apreendidos na análise das trajetórias foram os
relacionados à disponibilidade dos serviços e à integração das ações nos diversos níveis de atenção,
bem como a falta de informação sobre a doença e o objetivo da realização do exame preventivo.
1 Instituto
Nacional de
Câncer José Alencar PALAVRAS-CHAVE Neoplasias do colo do útero. Detecção precoce de câncer. Serviços de saúde da
Gomes da Silva (Inca) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil. mulher. Acesso aos serviços de saúde.
Orcid: https://orcid.
org/0000-0001-8360-
3146 ABSTRACT This study aims to analyze the health assistance pathway of women living in Rio de Janeiro
pguedes79@gmail.com city diagnosed with cervix cancer who were referred for treatment in a referral oncology unit. In the
2 Fundação Oswaldo Cruz first stage of the study, we evaluated time elapsed between the cancer diagnosis and the treatment
(Fiocruz), Escola Nacional initiation of women enrolled in 2014, taking as reference the time limit of 60 days established by the
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de Brazilian Federal Law 12,372/2012 for treatment initiation at the Unified Health System (SUS). In the
Janeiro (RJ), Brasil. second stage, we analyzed the narratives of five women regarding their paths towards health services
Orcid: https://orcid.
org/0000-0003-0222- since the diagnosis up to the first therapeutic intervention, taking into account the aspects of compre-
1205 hensive health care. It was observed that 88% of the treatments started after the 60-day legal period
odwyer@ensp.fiocruz.br
and that 65.5% of the women received a diagnosis in an advanced stage of the disease. The treatment
3 Fundação Oswaldo Cruz initiation mean was 115.4 days. Main problems seized in path analysis concern the availability of ser-
(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio vices and the integration of actions throughout the different levels of health care, as well as the lack of
Arouca (Ensp) – Rio de information on the disease and the purpose of PAP smears.
Janeiro (RJ), Brasil.
Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-2613- KEYWORDS Uterine cervical neoplasms. Early detection of cancer. Women’s health services. Health
5283
nadiacristinapr@gmail.com services accessibility.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. 118, P. 687-701, JUL-SET 2018
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Introdução Excluindo-se os tumores de pele não me-


lanoma, o câncer de colo uterino é o pri-
O câncer de colo uterino é uma das mais meiro mais incidente na região Norte. Nas
graves ameaças à vida das mulheres. regiões Centro-Oeste e Nordeste, ocupa a
Estima-se que mais de um milhão de mu- segunda posição e nas regiões Sudeste e
lheres sofram da doença no mundo, e a Sul, a quarta posição5.
maior parte delas encontra-se em países Os elevados índices de incidência e
subdesenvolvidos e em desenvolvimento. mortalidade no Brasil justificam a implan-
Ao longo das últimas três décadas, as taxas tação de ações nacionais voltadas para a
da doença têm caído na maioria dos países prevenção e o controle. Dessa forma, é de
desenvolvidos, em grande parte como re- fundamental importância a elaboração,
sultado dos programas de rastreamento aprimoramento e implantação de políticas
e tratamento das lesões precursoras. Em públicas na AB, com ênfase na atenção inte-
contraste, as taxas da maioria dos países em gral à saúde da mulher6. A Estratégia Saúde
desenvolvimento têm permanecido inal- da Família (ESF) assume papel fundamen-
teradas ou mesmo aumentaram1. A doença tal nesse contexto, uma vez que a prática de
afeta principalmente as mulheres de nível articulação entre prevenção e promoção da
socioeconômico mais baixo e com dificul- saúde gera um cenário favorável ao rastrea-
dades de acesso aos serviços de saúde. É um mento. A atuação dos agentes comunitários
reflexo de iniquidade em saúde, uma vez de saúde torna-se essencial, contribuindo
que configura representação de morbimor- para a identificação da população-alvo e a
talidade evitável e injusta2,3. captação das mulheres que deixam de reali-
A infecção persistente pelo Papilomavírus zar o exame preventivo7,8.
Humano (HPV) é a principal causa do de- A estratégia definida pelo Ministério da
senvolvimento de neoplasia intraepitelial Saúde (MS) para rastreamento do câncer
cervical (lesões precursoras) e do câncer de colo uterino e suas lesões precurso-
do colo uterino. Estima-se que haja 200 ge- ras é o exame citopatológico, ou teste de
nótipos do HPV, dezoito dos quais intima- Papanicolaou, direcionado às mulheres a
mente relacionados com o desenvolvimento partir de 25 anos que já iniciaram ativida-
do câncer, com destaque para os genótipos de sexual, prosseguindo até os 64 anos e
16 e 18, responsáveis por 90% dos casos4. interrompidos após essa idade, se houver
Sendo assim, trata-se de doença sensível às pelo menos dois exames negativos consecu-
ações de Atenção Básica (AB), visto que as tivos nos últimos cinco anos5,9. No entanto,
tecnologias para o controle – diagnóstico e observa-se que no Brasil a maior parte das
tratamento de lesões precursoras – já estão mulheres que realizam o exame está abaixo
estabelecidas e permitem a cura em aproxi- de 35 anos, apesar de o risco para a doença
madamente 100% dos casos detectados nas ser maior a partir dessa faixa etária. Esse
fases iniciais4,5. padrão de rastreamento é considerado
No Brasil, o câncer de colo uterino é o oportunístico, ou seja, o exame é realizado
terceiro tumor mais frequente na popu- apenas quando a mulher procura o serviço
lação feminina, após apenas do câncer de de saúde por outras demandas.
mama e do colorretal. De acordo com o A consequência dessa lógica é a realiza-
Instituto Nacional do Câncer José Alencar ção de exames em mulheres fora da faixa
Gomes da Silva (Inca), a estimativa de etária alvo, equivalendo a 20% a 25% dos
novos casos no Brasil é de 16.370 para cada exames realizados9. Além disso, aproxi-
ano do biênio 2018-2019, com risco estima- madamente metade deles é realizada com
do de 15,43 casos a cada 100 mil mulheres. intervalo de um ano ou menos, quando a

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recomendação do MS é o intervalo de três do diagnóstico em laudo patológico ou em


anos para os casos de dois exames anuais prazo menor para que o paciente com neo-
sem alterações. Esse perfil de rastreamento plasia maligna inicie o tratamento no SUS14.
revela um contingente de mulheres que rea- Diante do exposto, este estudo teve como
lizam controle além do recomendado pelas objetivo verificar se os tratamentos para o
diretrizes nacionais e outro, que não realiza câncer de colo uterino em uma unidade de
controle algum9. referência em atenção oncológica do SUS
O prognóstico no câncer de colo uterino no município do Rio de Janeiro ocorreram
depende da extensão da doença no momento em momento oportuno. O estudo se propôs
do diagnóstico, estando sua mortalidade ainda a caracterizar as trajetórias na assis-
fortemente associada ao diagnóstico em tência das mulheres que estavam em trata-
fases avançadas. Embora o acesso ao exame mento da doença, identificar os possíveis
preventivo tenha aumentado no Brasil, não motivos interferentes na detecção precoce
foi suficiente para diminuir a tendência de e os fatores que determinaram o tempo para
mortalidade. O diagnóstico tardio revela, o início do tratamento.
sobretudo, carência na quantidade e quali-
dade de serviços oncológicos. Essa realida-
de é atribuída a dificuldades no acesso aos Metodologia
serviços e programas de saúde; pouca ca-
pacidade do Sistema Único de Saúde (SUS) Este estudo tem caráter qualitativo e quan-
em absorver a demanda; e dificuldades dos titativo, sendo desenvolvido em duas fases.
gestores municipais e estaduais quanto à A primeira teve como propósito avaliar, por
definição de fluxos na assistência que pos- meio da revisão de prontuários, se a pri-
sibilitem encaminhamento adequado das meira intervenção terapêutica ocorreu em
mulheres com exame alterado10,11. tempo oportuno a partir da data do diag-
Outro aspecto a ser considerado é o tempo nóstico. O parâmetro adotado foi o prazo de
entre o diagnóstico e o início do tratamento 60 dias fixado pela Lei nº 12.732/2012.
efetivo. A disponibilidade e a qualidade dos A partir dos dados gerenciais da institui-
serviços de saúde influenciam diretamente ção de referência em oncologia, realizou-se
a sobrevida dos pacientes, que é aumentada o levantamento de todas as mulheres matri-
ou diminuída conforme o acesso aos servi- culadas no Serviço de Ginecologia no ano
ços de saúde, a existência de programas de de 2014 portadoras de patologia associada
rastreamento, a eficácia das intervenções ao Código Internacional de Doenças (CID
e a disponibilidade de meios diagnósticos 10) C53, ou seja, neoplasia maligna do colo
e de tratamento12. Em 2011, o Tribunal de do útero, bem como a identificação dos mu-
Contas da União (TCU) divulgou relató- nicípios de residência das usuárias com tal
rio técnico baseado nos dados do Sistema perfil. Para o cálculo do tempo entre diag-
de Informações Ambulatoriais (SIA) e nos nóstico e início de tratamento, seleciona-
Registros Hospitalares de Câncer (RHC), ram-se todos os prontuários das mulheres
indicando que os tratamentos oncológicos que informaram residência no Município
providos pelo SUS não ocorriam no tempo do Rio de Janeiro. Extraíram-se dos pron-
adequado13. Visando a estabelecer prazos tuários informações referentes à idade, data
que garantam o tratamento dos pacientes da matrícula na instituição, data de diagnós-
diagnosticados com câncer em momento tico, data da revisão do laudo pela Anatomia
oportuno, foi publicada a Lei Federal nº Patológica da unidade de referência, esta-
12.732/2012 fixando prazo de até 60 dias diamento clínico da doença, data de início
contados a partir da data da confirmação do tratamento efetivo e tipo de tratamento

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prescrito – cirúrgico, radioterapia e quimio- Tendo em vista a complexidade dessa


terapia conjugados, radioterapia exclusiva abordagem, que é transversal às áreas da
ou quimioterapia paliativa. antropologia, da psicologia, da sociologia
Para a descrição dos dados, calcularam- e da saúde, optou-se por redimensionar a
-se as frequências absolutas e médias. metodologia e realizar apenas a descrição
Tabelas e mapas ilustraram as análises e das trajetórias das mulheres com o uso da
utilizaram-se os softwares ArcGIS (10.4) e teoria dos itinerários terapêuticos como
Excel (2013) para construção dos mapas e apoio. Dessa forma, apesar de seus limites,
banco de dados respectivamente. a descrição das trajetórias na assistência
A segunda fase caracterizou e analisou torna-se oportuna, uma vez que as informa-
o percurso das mulheres diagnosticadas ções oferecidas são úteis e contribuem para
com câncer de colo uterino na assistência. o debate acerca desses percursos quando
Realizaram-se entrevistas com a aplica- os usuários procuram e são submetidos aos
ção de questionário semiestruturado, que cuidados dentro dos serviços16.
abordou a regularidade no uso de serviços De acordo com as condutas definidas pelo
de saúde e tipo de serviço utilizado; expe- MS, a linha de cuidado do câncer de colo
riência com exame preventivo e consulta de útero é composta por quatro diretrizes:
ginecológica; experiência na descoberta do prevenção e detecção precoce; Programa
câncer; tempo de espera para confirmação Nacional de Qualidade da Citologia; acesso
diagnóstica; qualidade do atendimento nos à confirmação diagnóstica; e tratamento
diversos serviços; acesso aos diversos ser- adequado e em tempo oportuno. A refe-
viços; participação e autonomia na decisão rida linha de cuidado tem o objetivo de
sobre tratamento; e expectativa de melho- assegurar à mulher o acesso humanizado
ria nos serviços. e integral às ações e aos serviços qualifica-
O uso das metodologias qualitativas tem dos para promover a prevenção, o acesso
o propósito de analisar os significados atri- ao rastreamento das lesões precursoras, o
buídos pelos sujeitos aos fatos, relações, diagnóstico precoce e o tratamento adequa-
informações, vivências e práticas relacio- do e em tempo oportuno6. A condução da
nadas ao programa ou serviço que se avalia análise das trajetórias assistenciais das mu-
e que nele interagem. Esse propósito é lheres entrevistadas foi realizada a partir de
evidentemente compreensivo, ou seja, de duas dessas diretrizes da linha de cuidado:
reconstrução dos sentidos atribuídos pelos prevenção e detecção precoce e tratamento
sujeitos com o apoio de suas experiências e adequado e em tempo oportuno.
representações, que são delimitadas por um Os critérios de elegibilidade para a en-
conjunto de interações, numa dada situa- trevista incluíram mulheres com idade a
ção social e cultural, e que configuram um partir de 18 anos, diagnóstico de neoplasia
contexto único e não generalizável. Além maligna de colo de útero a partir de 1 de
disso, tais experiências estão associadas a janeiro de 2014, residência no Município
um projeto político de garantir voz e empo- do Rio de Janeiro e estar em boas condi-
derar os diversos segmentos que participam ções clínicas.
da avaliação15. A construção dos itinerários Este estudo foi submetido ao Comitê
terapêuticos como prática avaliativa propõe de Ética em Pesquisa das instituições
entrevistas em profundidade, uma vez que envolvidas e aprovado sob o CAAE
se constitui de um conjunto de ações que nº40510215.0.0000.5240. As mulheres que
configuram as opções dos usuários, suas cumpriam os critérios de elegibilidade
experiências, frustrações e sucesso na reso- foram convidadas para a entrevista e as que
lução das suas demandas16. aceitaram, informadas quanto aos objetivos

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e finalidades do estudo, bem como a seus de Janeiro (ou 62%) também sugere uma
riscos e benefícios. sobrecarga nas unidades do SUS ou deficit
no número de unidades especializadas
que realizam o tratamento desse tipo
Resultados e discussão de câncer no interior do Estado, dentre
outras causas. Tendo em vista que o tempo
é primordial para o início de tratamento,
Análise do tempo entre data de con- o encaminhamento das usuárias por meio
firmação do diagnóstico e início de do sistema de regulação para a capital,
tratamento por ser a região com maior número de
unidades habilitadas para o tratamento,
Em 2014, foram matriculadas 1587 usuá- é necessário para garantir que esse início
rias no serviço de Ginecologia da unidade ocorra no menor tempo possível.
de referência em atenção oncológica. As 360 mulheres que informaram como
Desse total, 839 mulheres tiveram diag- local de residência o Município do Rio de
nóstico enquadrado no código CID 10 Janeiro habitam em 91 bairros diferentes
(Código Internacional de Doenças-10) C53 (figura 1 – B). Dessa forma, foi possível deter-
– Neoplasia maligna do colo do útero. Após minar o número de usuárias encaminhadas
identificação dos locais de residência in- por Área Programática (AP) (figura 1 – A). A
formados pelas 839 mulheres, constatou-se Área Programática 3.3, que compreende os
que a instituição de referência deste estudo bairros da região de Madureira e adjacên-
atendeu, em 2014, 838 usuárias de 57 muni- cias17, encaminhou o maior número de mu-
cípios do Estado do Rio de Janeiro. A capital lheres em 2014. Porém, os cinco bairros que
encaminhou 360 usuárias, equivalentes a concentraram o maior número de mulheres
43% do total de mulheres encaminhadas à encaminhadas encontram-se na Zona Oeste
unidade de referência com o CID C53. do Rio de Janeiro e são Campo Grande com
O fato de a instituição de referência lo- 21 usuárias, Bangu, Realengo, Santa Cruz
calizada na capital ter atendido usuárias com 17 usuárias em cada bairro e Guaratiba
de 57 dos 92 municípios do Estado do Rio com 14 usuárias.

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Figura 1. Distribuição do número de casos de mulheres encaminhadas para tratamento do câncer de colo do útero na
unidade de referência em 2014 segundo o local de residência. (A) Número casos segundo área programática de residência;
(B) Número casos segundo bairro de residência

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Para o cálculo do tempo entre a confirma- Cervical (NIC), como são denominadas as
ção do diagnóstico e o início do tratamento, lesões precursoras do câncer4-6; e o segundo,
verificaram-se os registros eletrônicos da as 174 mulheres com câncer do colo uterino
instituição de referência e os prontuários invasor. Para a análise do tempo entre con-
físicos das 360 usuárias que informaram firmação do diagnóstico e início de trata-
residência no Município do Rio de Janeiro. mento não se consideraram os prontuários
Excluíram-se da análise 139 prontuários por das mulheres diagnosticadas com NIC, uma
não conterem as informações necessárias vez que as lesões pré-invasivas evoluem mais
ao cálculo de tempo entre a confirmação do lentamente, além de as condutas para trata-
diagnóstico e início do tratamento. Sendo mento serem mais simples e demandarem
assim, selecionaram-se inicialmente 221 menor complexidade da assistência, diferen-
prontuários, equivalentes a 61,4% dos pron- temente do que acontece quando já existe
tuários identificados inicialmente. um processo invasor em curso4-6. Dessa
Os 221 prontuários foram divididos em forma, restaram para análise os 174 prontuá-
dois grupos, segundo o resultado do diag- rios de mulheres diagnosticadas com câncer
nóstico. O primeiro inclui as 47 mulheres invasor, conforme figura 2.
diagnosticadas com Neoplasia Intraepitelial

Figura 2. Seleção dos prontuários para realização do cálculo de tempo entre confirmação de diagnóstico e início de
tratamento

Total de mulheres matriculadas pelo serviço de Ginecologia em 2014: 1587

Matrículas associadas ao CID C53: 839

Prontuários das mulheres residentes no Município do Rio de Janeiro: 360

Prontuários excluídos por não atenderem aos critérios do estudo: 139

Prontuários desconsiderados pelo diagnóstico de lesões precursoras (NIC): 47

Total de prontuários utilizados para a análise do tempo entre confirmação de


diagnóstico e início de tratamento: 174

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Das 174 mulheres diagnosticadas com das lesões precursoras impede que progri-
câncer invasor, 114 (65,5%) apresentaram dam para câncer invasor.
doença localmente avançada no momento da A média de idade das mulheres portado-
avaliação inicial para a definição da conduta ras de câncer invasor foi 49,9 anos, estando a
de tratamento. O dado é preocupante, dada mais nova com 23 e mais velha com 93 anos.
a redução da possibilidade de cura nesses A média de idade das mulheres diagnostica-
casos. O diagnóstico tardio resulta em tra- das com Neoplasia Intraepitelial Cervical foi
tamentos mais agressivos e menos efetivos, 38, 9 anos, estando a mais nova com 22 anos
aumenta o comprometimento físico e emo- e a mais velha com 76.
cional da mulher e de sua rede de apoio, Para o cálculo do tempo entre a data do
eleva os índices de mortalidade pela doença, diagnóstico e início do tratamento, conside-
além de aumentar os custos com interna- rou-se a data da confirmação do diagnóstico
ções e uso de medicamentos11. Tal realidade e a data da primeira intervenção terapêuti-
evidencia a pouca capacidade do sistema de ca. A tabela 1 apresenta a média de dias para
saúde de promover o rastreamento e o con- início de tratamento de acordo com cada
trole da doença, uma vez que o tratamento tipo de intervenção.

Tabela 1. Tempo médio em número de dias para início de tratamento a partir da data de confirmação do diagnóstico das
mulheres residentes no Município do Rio de Janeiro em 2014
Tempo médio para início de
Tipo de tratamento Número de usuárias
tratamento (dias)
Cirúrgico 48 104,8
Conjugado (radioterapia e quimioterapia) 86 116,8
Radioterapia exclusiva 17 142,6
Quimioterapia paliativa 03 71,3
Total 174 115,4

Fonte: CID C53 – mulheres residentes no Município do Rio de Janeiro matriculadas na unidade de referência, 2014.

A média de tempo para início de trata- (71,3 dias). A espera pelo tratamento cirúrgi-
mento foi de 115,4 dias, aproximadamente 56 co e pelo tratamento conjugado – principais
dias após o prazo de 60 dias fixado por lei. intervenções terapêuticas recomendadas18 –
Esse achado revela que o sistema de saúde ultrapassou 100 dias. Em relação ao atraso no
não atendeu à demanda da maioria das usuá- tratamento das pacientes que necessitaram
rias portadoras da doença no que diz respeito de radioterapia, o ano de 2014 foi marcado
ao início de tratamento em tempo oportuno. por inúmeros problemas relacionados à
Apesar de a Lei nº 12.732/2012 ter entrado falta de disponibilidade do serviço tanto no
em vigor em maio de 2013, verificou-se que estado como no Município do Rio de Janeiro.
apenas 21 tratamentos (12%) do total de 174 Decisão judicial determinou que, a partir
casos foram iniciados em até 60 dias da data de 10 de julho de 2014, todos os pacientes em
da confirmação do diagnóstico. tratamento com radioterapia nos hospitais
O atraso foi observado em todos os tipos localizados no Município do Rio de Janeiro
de intervenção para o tratamento do câncer deveriam ser cadastrados em fila única
do colo do útero. O menor tempo de espera no Sistema de Regulação (Sisreg)19. Ficou
foi verificado com a quimioterapia paliativa sob responsabilidade exclusiva do gestor

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municipal tomar as providências quanto ao aceitaram participar da pesquisa e duas se


agendamento das avaliações iniciais junto recusaram. Uma das mulheres que aceitou
aos prestadores de radioterapia. A iniciativa a participação, apesar de ter declarado resi-
de organizar a fila de espera para reduzir o dência no Município do Rio de Janeiro, infor-
tempo para início de tratamento não foi su- mou que toda a trajetória na assistência até o
ficiente para atender à demanda da maioria encaminhamento para a unidade tinha sido
das mulheres encaminhadas para a unidade realizada fora desse Município, para o qual
de referência. mudou-se menos de três meses antes da en-
trevista, vivendo em casa de familiares, para
Trajetórias das mulheres diagnosti- estar mais próxima do local de tratamento.
cadas com câncer de colo de útero na Por esse motivo, a entrevista não foi conside-
assistência rada para a análise. Assim, analisaram-se as
trajetórias assistenciais de cinco mulheres,
As entrevistas foram realizadas de setembro a identificadas nesta pesquisa como M1, M2,
dezembro de 2015 no setor de quimioterapia M3, M4 e M5. Seguem os quadros 1 e 2 com o
da unidade de referência, em seu consultório perfil das mulheres entrevistadas e a carac-
multidisciplinar. No período disponível para terização de cada percurso na assistência.
a realização das entrevistas, seis mulheres

Quadro 1. Perfil das mulheres entrevistadas na unidade de referência em oncologia em 2014

Mulher Idade Naturalidade Escolaridade Estado civil Filhos Bairro Ocupação atual Último preventivo
M1 35 RJ Segundo grau Solteira 1 Realengo Empresária 2011
completo
M2 31 RJ Segundo grau Casada 2 Senador Técnico Adminis- 2012
completo Camará trativo
M3 58 RJ Segundo grau Divorciada 4 Pilares Do lar Não soube informar, refere ‘mui-
completo to tempo’ por estar há 11 anos
sem relações sexuais.
M4 60 RN Primeiro grau Divorciada 4 Ramos Pensionista e Be- 2005
incompleto neficiária do Bolsa
Família
M5 42 CE Analfabeta Solteira 2 Vila Kennedy Do lar 2013

Quadro 2. Percurso na assistência das mulheres atendidas na unidade de referência em oncologia em 2014

Tempo em dias entre


Cobertura Sintoma Estadiamento Tempo em dias entre
Acompanhamento confirmação de diagnóstico
Mulher da saúde ginecológico do tumor no confirmação de diagnóstico
pela ESF e matrícula na instituição
suplementar prévio diagnóstico e início de tratamento
de referência
M1 Não Sim Sim IIB 130 259
M2 Sim Não Sim IB2 7 34
M3 Sim Não Sim IIB 2 44
M4 Não Não Sim IIB 20 167
M5 Não Sim Sim IIB 12 136

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Concepções das mulheres entrevis- A experiência de realização do exame pre-


tadas sobre a prevenção e detecção ventivo na saúde suplementar relatada por
precoce M2 também demonstrou baixa qualidade no
atendimento: “...todas as vezes eu sangrava,
A dificuldade no acesso ao exame preventivo por isso eu tinha um trauma, um pânico dessa
no SUS foi o primeiro aspecto relacionado à experiência. Sempre me machucou...”. Além
organização dos serviços de saúde da AB e da dor física durante a realização do procedi-
tem impacto direto nas ações de prevenção mento, a usuária também relata ter passado
e detecção precoce. Os relatos de M1 e M2 por situações de constrangimento, causando
representam exemplo de barreira de acesso desmotivação pelo atendimento ginecológi-
ao exame preventivo no SUS: co de forma regular.
Os relatos de M2 corroboram achados de
[...] eles pediam para fazer o preventivo, tinha diversos estudos sobre fatores que interferi-
que ir para a palestra e não dava, não tinha como ram negativamente na regularidade da reali-
ir. Aí eu falava: ou eu vou trabalhar, ou eu vou zação do exame preventivo. Experiências de
para a palestra. (M1). maus tratos ou humilhações sofridas durante
a realização do exame associadas à falta de
informação sobre o objetivo do preventivo
[...] o atendimento está a cada dia mais precá- e acesso restrito aos serviços de saúde são
rio. Moro numa área considerada de risco, por fatores que contribuem para a manifestação
qualquer motivo eles fecham o posto. E aí, como de sentimentos como vergonha, dor, medo e
é muito difícil, você vai deixando pra lá. (M2). constrangimento. Os aspectos subjetivos são
determinantes na adesão à rotina de preven-
Outras barreiras relatadas pelas mulheres ção e cuidado, uma vez que experiências ruins
para a realização do exame preventivo foram e dolorosas afastam e desestimulam a conti-
a inserção no mercado de trabalho e a res- nuidade da rotina de cuidados2,20-22. Nesse
ponsabilidade de criar os filhos e sustentar a sentido, todos os profissionais envolvidos no
família. Longas jornadas diárias de trabalho rastreamento da doença, seja no SUS ou na
e a sobrecarga do cotidiano podem desesti- saúde suplementar, devem estar qualificados
mular a realização do exame com regulari- para reconhecer e tratar tais questões.
dade2,20-22. De acordo com Mattos, quando se Uma característica comum a todas as
procura a organização dos serviços na pers- mulheres entrevistadas foi a procura pelo
pectiva da integralidade, “busca-se ampliar atendimento com o ginecologista após o
as percepções das necessidades dos grupos, surgimento de sintomas indicativos de alte-
e interrogar-se sobre as melhores formas de rações ginecológicas. Esse comportamento
dar respostas a tais necessidades”23(62). Sendo é comum e expressa concepções de cuidado
assim, a organização dos serviços de saúde à saúde pautadas na doença. Alguns dos
deve contemplar as mulheres que não podem principais sintomas ginecológicos como dor,
comparecer dentro do horário normal de fun- corrimento, prurido são abordados como
cionamento das Unidades Básicas de Saúde indicação para o exame preventivo, refor-
(UBS). Brito-Silva et al.10 reforçam que a di- çando a atribuição da conduta preventiva
ficuldade de acesso à AB está relacionada à a uma queixa, principalmente relacionada
dinâmica de atendimento caracterizada pela às doenças infecciosas22. Em contrapartida,
baixa flexibilidade no agendamento de con- sintomas mais graves apresentados pelas
sultas e pela burocratização. Essas restrições mulheres entrevistadas como sangramento
contribuem para dificultar e desmotivar a vaginal e corrimento de odor fétido podem
procura do serviço pelas mulheres. estar relacionados ao estágio avançado da

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doença, evidenciando um diagnóstico tardio, os profissionais priorizam suas orientações


com possibilidades mais restritas de cura9,11. no ato da realização do preventivo, dando
A AB, em especial a ESF, deve prover menor importância à informação sobre sua
atenção especial às mulheres com histórico finalidade. Tal fato associa a realização da
de infecção pelo HPV, além de outros fatores ação preventiva ao cumprimento de metas,
de risco associados, como o tabagismo, mul- tornando a atividade meramente obrigatória.
tiparidade, imunossupressão e início precoce Outra questão envolvida na adesão à
da vida sexual, conforme preconizado pelas prática preventiva está relacionada aos
diretrizes brasileiras de rastreamento da valores morais inseridos nos significados e
doença. As campanhas são importantes pelo nas práticas relacionadas à doença. Torna-se
horário diferenciado e agilidade no atendi- mais difícil a visualização do câncer de colo
mento, porém não são suficientes, uma vez uterino como risco potencial para mulheres
que estão direcionadas a responder somente com parceiro fixo, idade avançada e ausência
às demandas das mulheres que procuram de atividade sexual. Dessa forma, as estraté-
pelos serviços21,22. gias informações acerca da doença e do obje-
Em relação às práticas preventivas, apesar tivo do preventivo são recomendadas a esse
de duas das cinco mulheres terem sido enca- grupo de mulheres em especial2.
minhadas para tratamento pela ESF (M1 e M5), Diante desse cenário, é necessário mas-
elas relataram que não receberam orientações sificar a informação junto às mulheres da
dos profissionais de saúde sobre prevenção. A faixa etária alvo sobre a infecção pelo HPV,
falta de informação das mulheres sobre a fina- o rastreamento da doença por meio do pre-
lidade do exame e a periodicidade da rotina de ventivo e a periodicidade recomendada para
cuidado também foi outro destaque: a realização do exame. Campanhas midiáti-
cas são importantes, mas não minimizam a
Porque eu tinha a ideia de que preventivo era só responsabilidade do profissional de saúde
para ver inflamação e hoje em dia eu sei que não de realizar um atendimento humanizado,
é desse jeito [...] principal objetivo é ver se exis- com abordagem educativa e compreensiva
tem células cancerígenas. (Entrevistada M2). durante as consultas, que atente para o pro-
cesso saúde-doença do câncer, os sentimen-
tos da mulher em relação ao exame e sua
Eu demorava a buscar exatamente por não ter situação socioeconômica e cultural21.
nenhum corrimento, [...] há onze anos que eu
não tinha mais relação sexual. (Entrevistada Concepções das mulheres entrevista-
M3). das sobre tratamento adequado e em
tempo oportuno
Esses relatos confirmam achados de
estudos reveladores da falta de conhecimen- A narrativa das trajetórias das mulheres na
to das mulheres em relação ao objetivo do assistência demonstrou que a AB atuou ati-
exame preventivo, que é erroneamente asso- vamente nos encaminhamentos das usuárias
ciado à prevenção de Doenças Sexualmente M2 e M3. Nesses dois casos, houve partici-
Transmissíveis (DST) e outras doenças gine- pação direta da direção da UBS nos encami-
cológicas2,20-22,24. O desconhecimento acerca nhamentos. Neste estudo, os percursos na
do exame pode comprometer a ida ao serviço assistência de M2 e M3 foram exemplos de
de saúde, uma vez que o Papanicolaou não é coordenação do cuidado efetiva, uma vez que
associado a uma prática preventiva. Andrade as duas mulheres iniciaram o tratamento no
et al.22 destacam ainda que essa realidade prazo de 60 dias fixado por lei. Percebeu-se,
é observada nas práticas em saúde quando pelo relato das usuárias, o empenho desses

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profissionais em agilizar o encaminhamento ter que percorrer grandes distâncias à procura


delas junto ao sistema de regulação de vagas. do tratamento. Com frequência, ela saiu da
No entanto, cabe ressaltar que, no caso de clínica de radioterapia por volta de meia-noite,
M3, o encaminhamento foi priorizado em quando há menor oferta de transporte público,
consequência de o diagnóstico ter sido re- e chegou em sua residência em torno das duas
velado após a realização de procedimento horas da manhã. No entanto, M3 esclareceu
cirúrgico indicado por profissional não espe- que não havia escolha, mas a única opção para
cialista, o que agravou sua condição clínica. iniciar o tratamento mais rapidamente.
As principais questões relacionadas à As narrativas das trajetórias confirmaram
organização dos serviços de saúde a partir que as desigualdades de acesso expressam
da descoberta do diagnóstico do câncer en- um dos principais problemas a serem en-
volvem o tempo de espera para a realização frentados para que o SUS funcione segundo
dos procedimentos de confirmação de diag- os princípios e as diretrizes estabelecidos25.
nóstico pela biópsia e o agendamento para o Particularmente, as narrativas das mulheres
início tratamento. O relato de M1 expressou M3 e M5 evidenciaram as principais dificul-
as dificuldades encontradas: dades desse percurso. Além do diagnóstico
de doença localmente avançada, da prescri-
Consegui marcar a biópsia uns dois ou três meses ção de tratamento que envolve sessões de
depois [...] aí eu tive que ir para Irajá. Porque aí radioterapia, quimioterapia e braquiterapia,
quando você descobre, você já fica na pressa de lhes foi imposto também que cada parte do
querer o tratamento. Eu acho que o tratamento tratamento ocorresse em unidades de saúde
tinha que começar mais rápido, porque demora diferentes, distantes entre si e de suas re-
muito. Uma trajetória muito longa, de meses. sidências. A fragmentação do tratamento
Eu cheguei aqui em fevereiro (2015) e come- compromete a integralidade do cuidado e
cei a tratar semana passada. (entrevista em faz com que a trajetória dessas mulheres já
28/09/2015). fragilizadas pelo diagnóstico da doença seja
ainda mais dolorosa.
Os resultados da primeira parte do estudo
revelam que a maioria dos tratamentos do
câncer de colo de útero das mulheres diagnos- Conclusões
ticadas com câncer invasor (88%) ocorreu após
o prazo de 60 dias. Tal situação foi verificada Os achados deste estudo corroboram uma
nas trajetórias de três mulheres dentre as cinco contradição entre as estratégias de rastrea-
entrevistadas. O início tardio do tratamento mento e controle do câncer de colo uterino
compromete a sobrevida das mulheres, uma preconizadas pelo MS e a forma de organi-
vez que a progressão da doença limita as possi- zação dos serviços de saúde responsáveis
bilidades de tratamento11. por essas ações. As percepções das usuárias
Outra questão importante destacada pelas sobre o acesso ao exame preventivo e as di-
usuárias M3 e M5 foi a dificuldade de ter que ficuldades relatadas durante a trajetória na
realizar a radioterapia em unidade diferen- assistência reforçam o paradoxo. A análise
te daquela em que foi realizada a quimio- realizada a partir da verificação do cumpri-
terapia. No caso dessas duas mulheres, em mento do prazo de 60 dias para início do
virtude da fila de espera, foi necessário enca- tratamento da doença se mostrou pertinente
minhá-las para outras unidades da rede SUS para afirmar que são necessárias melhorias
e conveniada para agilizar o início do trata- na articulação dos serviços em seus diferen-
mento com sessões de radioterapia. O relato tes níveis de complexidade para garantir que
da trajetória de M3 mostrou o desgaste de todas as mulheres diagnosticadas tenham

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acesso às formas de tratamento que necessi- comunidade. A ESF precisa se responsabili-


tam em tempo oportuno. zar pela busca ativa das mulheres assintomá-
A caracterização do percurso das mu- ticas e acompanhamento da periodicidade
lheres na assistência suscitou reflexões da realização do preventivo pela popula-
acerca das dificuldades observadas na linha ção alvo do território. Além da busca ativa,
de cuidado do câncer de colo uterino no também é papel da AB colocar em prática as
Município do Rio de Janeiro. Cumpriu a ações de educação em saúde para esclarecer
proposta de dar voz às mulheres afetadas a população feminina sobre os objetivos do
pela doença, possibilitando a identificação exame de rastreamento.
das principais questões que influenciaram A ESF no Município do Rio de Janeiro
os caminhos percorridos pelas mulheres. O permanece em expansão, embora a cobertu-
diagnóstico tardio das mulheres que partici- ra atual esteja em torno de 50%26. A implan-
param do estudo revelou alguns fatores que tação do Programa de Melhoria do Acesso
impediram a detecção precoce da doença. e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-
Esses fatores se relacionam, principalmen- AB) em 2012 pelo MS induziu à ampliação
te, com as dificuldades de acesso ao exame do acesso da população aos serviços e da
preventivo no SUS em virtude da burocrati- melhoria na qualidade do atendimento por
zação dos serviços e da pouca flexibilidade meio do repasse de recursos vinculado ao
na agenda de atendimento das UBS para as desempenho das equipes. A cobertura do
mulheres que têm rotinas de longas jornadas exame citopatológico é um dos indicadores
de trabalho. Há a percepção por parte das de qualidade da assistência contemplados
usuárias que os serviços no SUS possuem pelo programa. Assim, a tendência é que a
baixa resolutividade. Outros achados estão cobertura entre as mulheres da faixa etária
relacionados à falta de informação sobre a alvo aumente de acordo com o avanço da
doença e a finalidade do exame, além dos cobertura da ESF no Município do Rio de
fatores subjetivos como medo e constrangi- Janeiro. A expansão da AB é desafiadora,
mento em relação ao exame. visto que a rede de atenção deve estar or-
Dessa forma, para melhorar as ações de ganizada para absorver a demanda de um
prevenção e detecção precoce da doença, número maior de mulheres submetidas ao
os esforços também devem se concentrar rastreamento e encaminhar os casos altera-
no fortalecimento da AB, principalmente dos para o tratamento adequado e em tempo
na ESF, modelo assistencial que privilegia oportuno, visando à diminuição da incidên-
o cuidado integral e está mais próximo da cia de câncer de colo uterino. s

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