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() Discurso Popular na Construcdo de Brasilia A Fala do Povo ~~ Tracilda Pimentel Carvalho* Eu detxei o meu Nordeste dentro de um frnemé Ex cheguei em Goid 6 doidinko por oce Por cima dos pneus pilipe Vinham todas "imbulanga” trazendo no coragao Um FENEME D'Esperanca Natalino Cavalcante ‘a perspectiva da inteligibilidade de um momento histérico, afastando-se os ana~ cronismos conceituais, pretende-se aqui auscultar a trama de sentidos gerados por discur- sos que escapam a tipologia do politico propria- mente dito. Este corpus constituj-se do que cha- mamos discursos populares, ligados & construgio de Brasilia, buscando suas matrizes discursivas € tentando detectar a imagerie produzida pelos enunciados a serem zzalisados. As representagdes geradas pelos discursos permitem-nos penetrar na percepgdo ¢ construgao da realidade, articulando-se no imaginario os ele- mentos ordenadores, valorativos, mobilizadores, interpelativos, transformativos, veiculadores de construtos enunciativos com valor de verdade, aceitos como tal Para a formtacao desse corpus utilizei textos escritos a época da construgio de Brasilia: a) um discurso popular litarario, Difrio de um can- dango, de José Marques da Silva, um depoimento em forma de didrio sobre a realidade cotidiana de um candango na construgo de Brasilia; b) O candango na fundagio de Brasilia, de Sebastifo Varela, em forma de vordel, que apresenta um re~ lato da fundagdo de Brasilia do ponto de vista do candango; ¢) Piotarios e Pioneiros ou a epo| ee ragerate: de Marcilia, de Natalino Cavalcante, escritos em forma de panfleto, sitira sobre a construgio de Brasilia, também sob a dtica do candango. Interessa-nos nessa anilise nfio 2 voz do au- tor, sujeito-suporte do discurso, mas os sentidos veiculados pela fala, que compde a trama signifi- cativa relativa ao acontecimento em questi. Neste sentido, o autor aqui é contemplado em sua fungdo e posi¢o de sujeito, nfo em sua indivi- dualidade, mas em sua disperso; desta forma, os enunciados a serem analisados ndo sero separa- dos por autor, mas apresentados em conjuntos si- gnificantes. Partindo da afirmagdo de que o discurso ¢ uma dispersdo de texto ¢ 0 texto € uma dispersio do sujeito, Eni Orlandi acentua que o discurso € caracterizado duplamente pela dispersio: a dos textos e a do sujeito. Segundo ela, “trata-se desta vez de se considerar na dispersdo: de wm lado, a dispersdo dos textos ¢ a dispersdo do sujeito; do outro, a unidade do discurso e a identidade do autor, As dicotomias sao, pois: — discur- so/sujeito/autor. (...) Assim o conceito de discurso despossui 0 sujeito falante de seu papel central para integra-lo no fancionamento dos enunciados, cuja condigdes. de ~—possibilidade so sistematicamente articuladas sobre formagao ideolégicas." (Orlandi, 1988, p. 57/69). Nossa abordagem supée, portanto, uma no- gio de historia como “o estudo de processos com os quais se constréi um sentido", seguindo defini- gao de Roger Chartier. Os sentidos, entretanto, fazem-se na comunicagio e 0 mundo dado a ver, olhar ¢ onvir passa pela recepgao ativa dos inter- ocutores. Ou seja, os textos — nfo importando 0 tipo de sua materialidade -nao se imprimem nas consciéncias, mas sio por elas trabalhados. Se- gundo ele, "Rompendo com a antiga idéia que dotava os textos e as obras de um sentido intrin- seco, absolulo, tinico — 0 qual a erliica tinka a obrigacao de ideniificar— dirige-se (a histéria) 4s praticas que, pluralmente, contraditoriamente, dao significagdo ao mundo, Dai a caracterizagao das priticas discursivas como produtoras de or- denamento, de afirmagdo, de distancias, de divi- ses; dai 0 reconhecimento das priticas de apro- priagao cultural como formas diferenciadas de ‘nterpretacdo,"" (Chartier, 1990, p. 27/28) Nesta andlise nao consideramos a dicotomia tradicional cultura popular/erudita ou letrada,pois suas produges integram plenamente a nogao de discurso, emergentes em condigdes de produgdo especificas, tinico na emergéncia de sua positivi- dade. Abandona-se aqui a nogao de cultura popu- lar moldada pela produgao intelectual de uma elite, seguindo uma trilha jé marcada, instancia repetidora, hierarquica e naturalmente situada em posigao de inferioridade. Ginzburg discute esta questo em Os queijos e os vermes, trabalhando a questo da representatividade de um individuo em relagéo & cultura popular-camponesa de seu tempo: Menocchio nio era um camponés "tipico", um tipo "médio" de sua época, mas segundo este autor, “esta singularidade tinha limites bem preci- sos: da cultura do proprio tempo. (...) Assim como a lingua, a cultura oferece ao individuo um hori- zonte de possibilidades latentes — uma jaula fle- xivel e invisivel dentro da qual se exerciia a liber- dade condicionada de cada um." (Ginzburg, 1987, p.27) Para Roger Chartier, o que importa, no de- bate atual, nfo é saber se o "popular” é 0 criado pelo povo, ou para o povo; o que interessa é "identificar a maneira como, nas préticas, nas representagdes ou nas produgGes, se cruzam e se imbricam diferentes formas culturais." (Chartier, op. cit., p.56). As vozes populares, portanto, fa- zem parte das séries discursivas, no momento his- torico que nos interessa, o da construgaio de uma nova cidade no interior do pais, que se imbricam a rede semfntica erigida em torno deste novo objeto de discurso, Brasilia.A constituigaio deste corpus, assim,ndo pretende contrapor ao discurso politico dos letrados, 0 discurso “simplério" do popular; com Chartier, pretendemos que ambos participam de uma relagio que diz respeito & formas, contei- dos, cédigos de expresso e sistemas de represen- tagilo e assim, “estes cruzamentos ndo devem ser entendidos como relacdes de exterioridade entre dois conjuntos estabelecidos de antemdo e sobre- postos (um letrado, outro popular) mas como pro- dutores de "ligas” culturais ou intelectuais cujos elementos se encontram tdo solidamente incorpo- rados uns nos outros como nas ligas metélicas” (Chartier, op. cit., p.56) Assim, estes poctas populares traduzem em seu discurso os sentimentos dos primeiros can- dangos: suas desesperangas, tristezas, humores € sarcasmos, mas que aqui nos interessa nio é a representagio fiel dessa realidade, e sim as condi- goes de possibilidade de permanéncia de certas representagées do imaginério; considera-se, por- tanto, os efeitos de sentido dos acontecimentos discursivos que ensejam imagens, cuja organiza- do visa produzir mais do que mera descrigéo formal de uma realidade exterior,pois aqui consi- deramos que 0 real, segundo Chartier “assume um novo sentido: aquilo que é real efectivamente, néo € (ou ndto 6 apenas) a realidade visada pelo texto, ‘mas a prépria maneira como ele cria, na histori- cidade de sua produgdo e na intencionalidade de sua escrita.” (Chartier, op. cit., p.63). Da mesma forma, encontramos em Giles Deleuze o tratamento indissociavel do real e do imaginério. "Nao se sabe mais 0 que é imagindrio ow real, fisico ou mental na simagdo, ndo que seja confundido, mas porque ndo é preciso saber, e nem mesmo hd lugar para a pergunta. E como se 0 real ¢ 0 imagindrio corressem um atrds do ow tro, se refletissem um no outro, em torno de um onto de indiscernibilidade" (Deleuze, 1985, p.16) No dimbito do discurso popular, busquei de- tectar a ressurgéncia do mito, sua epifania em no- CADERN GO vas formulagdes, em novos enunciados que repe- tem o ja-dito, sem entretanto dizer exatamente a mesma coisa. O apelo ao mito, se existe, jé € um ‘outro, construindo uma inteligibilidade civada de novos sentidos ¢ representagdes, em torno da constante busca de uma utopia: um locus de feli- cidade, prosperidade e paz social. Nesse caso € 0 cotidiano dos candangos que extravasa sobre o real e se identifica como o insélito, o espetacular. E por falar em candango, antes de adentrarmos 0 discurso popular, concederemos uma fala a0 cons- trutor intelectual de Brasilia. "Os futuros intépretes da civilizagdo brasi- leira, ao analisar este perfodo da nossa histéria hao de deter-se com assombro ante a figura bron- zeada desse tiit@ andnimo, que é 0 candango, he- 16i obscuro e formiddvel da construgdo de Brasi- lia e para qual desejo ter neste discurso a palavra calorosa do merecido louvor. Enquanto os des- crentes sorriam da pretendida utopia da cidade nova que eu me dispusera a constituin os candan- ‘gos se encarregaram de responder por mim, tra- balhando dia e noite para que até ai se cumprisse, no meu governo, a letra da constituigao" (Kubitschek, 1961, p. 140). Nas imagens geradas pela fala do presidente Juscelino Kubitschek, constréi-se a figura de um novo heréi, sujeito coletivo, corajoso, determi- nado, identificado inteiramente ao idealizador de Brasilia, a ponto de se substituir a cle e trazer para © plano da materialidade o que era apenas um so- nho, um ideal, Uma descrigdo fisica ¢ psicolégica do candango, a imagem e semelhanca do serta- nejo, no dizer popular "antes de tudo um bravo", imagem moldada em toro da idéia de forga ¢ de terminagao. Por que candango? De acordo com Aurélio Buarque, é a "designacdo dada aos operdrios das grandes obras de construgao de Brasilia (DF), de ordind- rio vindos do Nordeste: por extensdo qualquer dos primeiros habitantes de Brasilia” (Holanda, 1986). Além da definig&o, o candango ganha en- tio, em Brasilia,a conotagio do cagador de so- nhos, domesticador do medo e dos espagos. O mito do heréi ¢ deslocado da pessoa do presidente LK. para a massa anGnima: ha um deslizamento de sentido, nesta perspectiva, na medida em que a énfase agora é dada aos homens, aos realizadores da obra ¢ nfo a cidade propriamente dita. Passa-se do mito da busca do Paraiso Perdido, ao mito do heréi-povo, construtor de seu destino, Vejamos os fragmentos discursivos que agrupamos em tomo de certos sentidos axiais: identificadores heréicos, apelo-mitico/integrag4o nacional, desamparo/esperanca, louvagdo do he- roi. Identificadores-Herdicos: "Nao demorou nao senhor foi gente de bor- botdo trés quartos pau de arara que vinham de caminhées vindo de todo 0 Nordeste o forte ma- cho candango acostumada emt todo aquele ser- 10”. (Varela, 1981, p. 57). “Homem acostumado ao labor de seis as seis, a pao e dgua, os candangos com um pouco mais de dinheiro e ragao, facilmente se adapta- ram ao trabalho de verdadeiro tité. Jornada ae vinte e mais horas foram realizadas por eles, mui- 10s jamais voltaram as suas terras— cairam debi- litados sobre o vermelho solo de Marcilia. Que fazer..-a grande obra deveria ser feita, mesmo ‘que para tal fosse necessdrio o juramento de san- gue de centenas,o suor de milhares e as lagrimas de muitos”. (Cavalcante, 1984, p. 21). “Nada lhes é adverso: se vem o vento e lhes derruba o barraco, Id estao eles no outro dia re- mendando o que a fatalidade obstruiu, assoviando alegremente uma miisica do Nordeste, ou can- tando uma cangao de Nelson Goncalves. (...) Eo candango? Jamais, mesmo passando fome e so- frendo privagdes perde o bom senso e o humor ‘que o caracteriza e o distinguem, como 0 sapa- teiro Baiano, que diz — © senhor ai da sanfona, sapeque um baido de Luis Gonzaga,que nds que- remos escutar ." (Varela, op. cit., p. 16/21). Estes enunciados trabalham a identidade ¢ a figura do candango, delimitando suas origens re- gionais ¢ suas qualidades: macho na voz popular seria quase sinGnimo de nordestino, maioria abso- Juta entre os candangos; viril no discurso politico representava a decisio, o ato da realizago de Brasilia. Uma unido de homens, em tomo de um ideal masculo, cujas dificuldades no s6 eram su- peradas, como o eram com alegria e desprendi- mento. De fato, na época de sua construgao, as mu- theres estiveram ausentes de Brasilia, a nao ser em locais especificos de prostituigéo — Cidade Livre — criando-se assim uma grande sociedade domi- nada por valores socialmente considerados mas- culinos, tais como a forga, a resisténcia, a capaci- dade de trabalho. A isto 0 discurso acresce a unifio em torno de um dever quase sagrado, que merece todo sacrificio, sangue, suor e lagrimas em troca de apenas um pouce mais de ragio. Animais de carga ou homens inquebrantiveis? A ambigitidade perpassa o texto, o trabalho é uma fatalidade, a mesma talvez que se revela na seca ou nos venda- vais, O tom mescla diferentes sentimentos, resi- gnagdo, uma alegria um pouco forgada,matizada de nostalgia, © candango ¢ identificado assim como o sujeito central na saga da construglo da nova cidade, que vai surgir de seu esforgo € von- tade. © estilo de miisicas cantadas por Nelson Gongalves, acima evocado, apela @ nostalgia, um vague a I'ime amoroso, caréncia afetiva, auséncit da familia, valor tio caro ao nordeste; Luis Gon- zaga, por sua vez, tipicamente nordestino reafirma a identidade no regionalismo, Construtores de Brasilia, sim; mas nordestinos Tanto na fala do presidente Juscelino Ku- bitschek, acima citada, como no discurso popular, a tOnica argumentativa ¢ @ mesma: coragem, bra- vura, destemor e fidelidade do candango. Sio enunciados que se repetem e criam cadeias de imagens cristalizadas na figura do homem bom, honesto € cumpridor do seu dever: nada Ihes adverso se tém coragem, esperanga ¢ um guia a conduzi-los para o seu destino: "yerdadeiros ti- tis", a sombra mitolégica delineia 0 perfil do candango. Bronislaw Baczko afirma que, “o social produz-se através de uma rede de sentidos, de ‘marcos de referéncia simbélicos por meio dos quais os homens comunicam- se dotam-se de uma identidade coletiva e designam as suas relacoes com as instituicées politicas etc. (..) Assim se define um cédigo coletivo segundo o qual se ex- primem as necessidades ¢ as expectativas, as es- perancas ¢ as angistias dos agentes sociais." Baczko, 1990, p.307). ‘A ousada obstinagao do presidente em cons- tmuir Brasilia, aliado a uma intensa propaganda oficial e ao apoio de uma corrente intelectual que Ihe fornecia embasamento tedrico na elaboragio da ideologia do desenvolvimento,a arrancada para © futuro, a eliminagio do subdesenvolvimento ere como etapa final fizeram da cidade um marco de- cisivo no imaginario social. De fato, o governo JK foi marcado por trans- formagSes de grande alcance, sobretudo na érea econémica, realizadas através do plano de metas (31 metas), entre as quais energia, transporte, ali- mentacdo, indisstria de base, educagio e a cons- trugdio da nova capital, considerada meta-intese de seu governo.Esta politica desenvolvimentista utili- zava © Estado como instrumento coordenador do desenvolvimento, estimulando 0 empresariado nacional,mas também criando um clima favoravel & entrada do capital estrangeiro, quer na forma de empréstimos, quer na forma de investimento di- reto, Seu apoio ao capital intemacional era na yerdade o trunfo de que dispunha para garantir 0 afluxo de capitais capazes de possibilitar a execu- gio de seu programa de metas, Neste pontoo discurso de JK ilustra bem seus propésitos: “provocar e criar prosperidade. E 0 concurso do capital e da técnica do esiran- geiro nos era indispensdvel." (Kubitschek, 1962, 190). Este discurso desenvolvimentista revigora um processo de internacionalizagio da economia brasileira, criando um clima mobilizador em toro da meta-sintese do programa govesnamental, ga- rantindo unidade e empenko em torno da grande obra, conseguindo transformar, de acordo com Miriam Limoeiro, “o objetivo de um grupo social restrito,de uma fragdo de classe,em aspiragéo coletiva, em motivacao. Os aspectos politico- ide- olégicos so apenas justificativas,pois a aco — pelo menos a agdo proposta- & decididamente econdmica.” (Cardoso, 1977, p. 340). Assim, a construgao de Brasilia assumia, dentro da’ politica desenvolvimentista, 0 carater simbélico das metas pretendidas, uma vez que esta incorporava o objetivo de crescimento e integra¢do nacional. A associagdo do candango a esta obra reforga uma identidade, ¢ sua imagem passa a ser um dos simbolos de Brasitia: 0 candango percebe- se ¢ é visto como pega fundamental, o tijolo necessario para edificagio dos sonhos do presidente ¢ da populagdo brasileira, imagem constituinte do discurso sobre Brasilia ("os candangos se encarregaram de responder por mim, trabalhando dia e noite...."). Apelo mitico/integracdo nacional "E assim esta noticia espathou neste Brasil; @ maior da construgdio em Goids era Brasilia, era @ cidade mals nova que no Planalto nascia em nosso Brasil central: a capital do pais” erela, op. cit., p.57). "A maioria dos que atendiam ao chama- mento vinha do Nordeste- efernos caminhantes na busca de melhores dias esses denodados paus-de- arara.(...) Atendendo 0 chamado do bandeirante teleguiado, de todos os recantos da pdsria, se des- Jocaram os candangos com o endereco de Marci- lia: do Arroio Chui do Prata, do Ailantico ao Pa- raguai, ouviu-se 0 chamamento do Novo Cabral. Diziam todos- 0 novo Eldorado agora esta insia- lado no coragdo da pétria e nao mais em Sao Paulo ou no Parané (..) Todos embarcaram em diregdo @ arca salvadora. Jornais de todos os re- cantos lancam manchetes escandalosas anunci- ando a nova era que surgiria para a integridade nacional” (Cavalcante, op. cit., p.21). E interessante notar a reinscricao do apelo mitico, desta feita, na cisio entre © sujeito da enunciagao (0 autor) e 0 sujeito dos enunciados (0 candango) utilizando-se a forma narrativa, nio interpelativa, ressemantizados assim,os enuncia- dos dos idealizadores de Brasilia, como vimos acima. Segundo Foucault, “Enquanto uma emunciagao pode ser reca- megada ou reatualizada, 0 enunciado tem a par- ticularidade de poder ser repetido: mas sempre em condigdes estritas. (...) Os esquemas de utili- zagdo, as regras de emprego, as constelagdes em que podem desempenhar um papel, suas virtuali- dades estratégicas, constituem para os enuncia- dos um campo de estabillzagdo que permite, ape- sar de todas as diferengas de enunciacdo, repeti- Jos em sua identidade. (...) se 0 contetido informa- tivo e as possibilidades de wtilizagdo sao as mes- mas, poderemos dizer que ambos 0s casos consti- tuem 0 mesmo enunciado.” (Foucault, 1987, 9. 121/119), A rede de sentidos instaurada assegura por- tanto a repeti¢fo dos enunciados miticos, apesar das insténcias de repetigao nao serem coinciden- tes. As lexias chamado/chamamento, atracio, bandeirante, eldorado, coracio da pitria, nova era, arca salvadora, integridade nacional com- pe uma constelagdo de sentidos delineadora do apelo mitico. Para Girardet, este apelo “exerce também uma fungdo explicativa, fornecendo certo ntimero de chaves para compreensio do presente, constituindo uma criptografia através da qual pode parecer ordenar-se 0 caos desconcertante dos fatos e dos acontecimentos.” (Girardet, 1987, p. 13). O papel da midia na construgao desta in- terpelago mitica é acentuado pelo discurso popu- lar: a historicidade do fato é suplantada pela cria- 40 do acontecimento através da midia, como ex- primem as expressdes "bandeirantes teleguiado, manchetes escandalosas", Segundo Baczko, “os novos circuitos ¢ meios técnicos amplificam ex- traordinariamente as fungdes performativas dos discursos difundidos e (...) dos imagindrios soci- ais que eles veiculam.(...) a informagdo estimula a imaginacda social e os imagindrios estimulam a informagao, contaminando-se uns aos outros mum amdlgama extremamente ativo, através do qual se exerce 0 poder simbdlico.” (Baczko, op. cit., p. 313/314). Por outro lado, percebe-se 0 mapeamento das regities de promessas, a mével localizagao do Eldorado deslocando-se de Sao Paulo e Parané para o centro do pais. De fato, nos anos 60 esgo- tara-se a fronteira agricola paranaense,Estado que acolhera milhares de migrantes entre 1940/60, desbravadores/ destruidores de matas e pinheirais, obstinados/abcecados pelo ouro negro vegetal: 0 café (a esse respeito, ver Swain, 1979). As inces- santes migragdes verificadas no século XX no Brasil no cessaram de obedecer a apelos miticos, sejam eles de ordem econdmtica — riqueza facil, Eldorado — sejam de ordem renovadora, mistica, Paraiso, Canad, Terra Prometida. Dessa forma, nfo ¢ dificil entender a dispo- sigdo do sertanejo que, contagiado pelo mito Bra- , vislumbra a pespectiva de mudanga em sua vida, numa terra da qual se ouvia maravilhas, aquelas que perseguia em seus sonhos. O apelo era forte demais ¢ a realizagdo, a vinda para a participagao efetiva na construgao do sonho estava ao alcance de todos os homens. De onde vinham? De toda parte, todos os re~ cantos, todas as moradas, determinados a enfren- tar qualquer barreira. Se a corrida para 0 ouro na California mol lizou 350 mil pessoas entre 1848 e 1869, ou seja, em vinte anos, em apenas trés anos quase a me- tade deste contingente dirigiu-se para Brasilia, Tumo ao canteiro de obras; entre 1957/60 cerca de 145.276 migrantes vieram a Brasilia oriundos de: Goiis, 44.943; Minas Gerais, 20.725; Guanabara, 15.403; Piaui, 8.616; Bahia, 61.601; Sio Paulo, 8.618; Paraiba, 7.886; Cearé, 7.338; Pernambuco, 7.336, Rio de Janeiro, 3.517; Rio G. do Norte, 3.672; outros estados, 9.702; estrangeiros, 918 (CODEPLAN, 1973, p.35). Como chegavam? A pé, de trem, de pau-de- arara, de Fenemé (caminhdo), transporte ndo importava, o que importava mesmo, era chegar € tomar parte no " mutirdo nacional”. Desamparo/esperanca “Hoje 0 candango é esquecido e vive sem prote¢ao perderam a mocidade nesia grande construgéio vivem nas cidades satélites porém sem satisfagdo ( Sao estas cenas passadas especiais de Brasilia Bolando plano e projetos a flor do nesso Brasil ssonetos de acalento também deles denegritos (sic) isto aqui foi uma luia aqui se foi muttas vidas 0 candango haje & esquecido.” (Varela, op. cit. p.15/175) "O candango nunca deve saber quanto vale, nasceu pra burro de carga e como tal deve continuar. Onde existe uma obra de grandeza nacional Id estdo eles, alimentando sempre uma esperanca de melhores dos." (Cavalcante, op. cit, p.30). "Bu ndio tenho onde morar! E verdade leitores, o candango deve cantar isso, pois sua casa é 0 mundo, 0 seu te10 é 0 teto do céu. (...) Os candangos néio mais reclamam nada; esido mesmo pobres, pobres como j6! Brasilia os despojara de tudo o que tinham,deixando -os ao léu." (...) E Brasilia candango? Hé dle methorar mais tarde. Quando ‘melhorar, aqui estaremos de novo com aquela mesma disposigdo que sempre nos distinguiu."” (Silva, s/d, p. 138/144). Longe de constituir uma ilusdo ou um dis- curso ilusério mistificador, dissimulador de uma exploragao do individuo, a interpelagdo mitica é constitutiva da realidade, uma vez que os agen- tes/atos e suas representagdes sio, como afirma Baczko, indissociaveis. Entretanto, na perspectiva de Maffesoli, o imaginario constréi um fantastico cotidiano que mescla, na elaboragao do social, 9 duplo iluminado/obscuro da realidade material ¢ de suas percepgdesirepresentacdes. De acordo com ele autor, “se ndo houvesse uma carga ma- gica na vida de todo dia, 0 aspecto mortifero da automatizagao venceria a pulsdo do querer vie ver imagem estranha, fantéstica, prospectiva, utépica vale pelo que possui de banal." (Maffesoli, 1984, p. 73). De fato, o discurso popular fala de uma rea- lidade que € oposta a certas descrigées, Por exemplo: os acidentes cram frequentes nas “viradas” que, segundo Nair Bicalho, eram jorna- das de trabalho atingindo 14 a 18 horas diarias dando um ritmo incansavel as maquinas, dia noite e os domingos ¢ feriados eram dedicados as horas extras (cf. Bicalho, 1983, p. 36-37), De acordo com a mesma autora, registros de morado- res antigos descrevem um cenério pouco conforté- vel nos acampamentos, que incluiam alojamentos compostos por galpdes com dez a quinze quartos, com beliches de dois a trés andares; os colchdes eram de capim e a falta de higiene nos alojamen- tos favorecia a presenga de percevejos, pulgas ¢ piothos. O sanitario era uma ‘casinha’ com porta de Iona ou um simples buraco cavado no cho. ‘Segundo Maingueneau, "A comunidade se estrutura pelo mesmo mo- vimento que gera os enunciados, suscetiveis, por sua vez, de tematizar, por vezes sutilmente, as ins- tituigées na qual eles estéo implicados ¢ sua pré- pria interagae com estas iiltimas. Este elo crucial entre o fazer e o dizer de uma comunidade repre- senta 0 ponto cego do discurso, a evidéncia pri- meira que funda a crenga." (Maingueneau, 1989, p.70). Entretanto, as praticas néo-discursivas fazem parte deste universo de sentidos, ja que o trabalho em Brasilia. era_—rigorosamente —_—orde- nado/regulamentado em setores, zonas, punigdes, deportagdes, interditos. Uma rigida organizagao do trabalho, moradia, diversio ¢ circulagio nega a identidade que o discurso constr6i ¢ justamente rea- firma para nfo perdé-la. Os discursos populares em questiio descons- troem a perspectiva mitica, apenas para melhor re- atualizé-la na enfatizagao da esperanga, ou, como sublinha Baczko, "uma sociedade desencantada, ‘mas nem por isso desprovida de sonho e do sew proprio sistema de representacdo imagindria.” (Bazcko, op. cit., p. 395). O contetido arguments tivo destes fragmentos discursivos poderia consti- tuir, segundo Osakabe, “uma espécie de operagdo que visa fazer com que o ouvinte ndo apenas se inteire da imagem que 0 locutor faz do referente, mas principalmente que 0 ouvinte aceite essas imagens.” (Osakabe, 1979, p.82). Louvagdao do Heréi "Juscelino néio inventou porém foi quem construiu se ele ndio executa outro ndo se alreveria pois de sessenta pra cd 36 se vé é carestia (...) Quando Juscelino chegava todos mudavam a feigao era o chefe do governo cheio de satisfagaio Sentia-se que seu prazer era esta construgao (...) Um cidadao sorridente complementava os candangos dizia estdo satisfeitos isto agui é um sertao mais tarde vai ser a redia a capital da nagiio Enire todas os presidentes ‘foi ele o mais popular ‘a sua politica foi ‘sd mesmo de irabalhar se um dia ele desaparecer todos tem que se lembran." (Varela, op. cit.37/156) "Vez por outra Umbelino aparecia para dar conforto moral & candangada, candango na frente do regente fiea todo fofo." (Cavalcante, op. cit,, p. 21). Nestes fragmentos discursivos fundem-se as imagens do herdi-presidente e do heréi-povo, em uma identificagao tal que apaga mesmo as dificul- dades pela emogdo do encontro e do sorriso, 0 sorriso do Nond, como era chamado carinhosa- mente Juscelino. Havia mesmo uma misica, & época, que era cantada por todos e identificada a Juscelino: “Como pode um peixe vivo, viver fora da dgua fria? como poderei viver, como poderei viver, Sem a tua, sem a tua, sem a tua companhia?" JK consegue atingir sua meta de construir Brasilia e transferir a capital e sua imagem perma- nece ligada a cidade em um de seus monumentos, o Memorial JK, que abriga seus restos mortais € todo um acervo ligado a sua vida e suas realiza- g6es.A imagem do presidente sobrepde-se a qual- quer desencanto; hi como que uma incorporagao da figura do herdi aos prdprios valore’ do can- dango e um bom indicador dessas imagens coleti- vas € a propria maneira como 0 discurso popular registra o momento de emogo diante da presenga do presidente. "Quando Juscelino chegava todos mudavam a feigdo...", "Candango na frente do regente fica todo fofo".., "Um cidadéo sorridente complemen- tava os candangos"..., "Entre todos os presidente ‘foi ele o mais popular"... Nele o povo encontra conforto, abrigo, refigio, protegao, gerando uma situagio de cumplicidade entre o candango e seu presidente-herdi; € 0 mito fortalecido, enraizado no imaginario ¢ na realidade histérica. De acordo com Raoul Girardet, "Toda a questdo esté evidentemente em sa- ber como se opera a passagem do histérico ao mitico, como se opera,em outras palavras, esse misterioso processo de heroificagdo, que resulta na transmutagdo do real e em sua observacdo no imagindrio.” Girardet, op. cit., p. 71) Reafirmando o mito, essas imagens nio sé abrigam esperangas, mas superam o discurso da conveniéncia e trilham pelos caminhos de um. destino inevitavel, determinado. Para Baczko, “ao longo da histéria o poder carismdtico assenta em imagindrios sociais que 0 grupo social profetava sobre 0 chefe carismético, Este iltimo amplifi- cava-os e redistribuia-os, oferecendo ao grupo uma certa identidade coletiva, orientando e cana- lizando as suas esperangas e angiistias." (Baczk0, op. cit, p. 314), Satisfacao, prazer, alegria, conforto ‘A presenga do presidente-cidadio ameniza 0 cotidiano, trazendo até ele, a seu nivel, a imagem simbélica do poder maior, do governante, regente, (que orquestra a execugo do sonho Brasilia, De certa forma a forga mégica do mito integra o dispositive do poder disseminando-o pelo social obtendo assim uma forga de impulsio e de controle de cariter muito mais persuasivo do que repressivo, A despeito da precariedade das condigdes de trabalho ¢ alojamento dos candangos, do grande nimero de mortes por acidente de trabalho, do isolamento separagio das familias, o entusiasmo nfo arrefecia. Segundo Mafffesoli, existiria uma relagdo orginica que une 0 fantistico ¢ 0 cotidiano ¢ esta perspectiva ilumina a relagao "ambigua e inquietante que wne 0 individuo ao {dolo e ao icone." (Maffesoli, op. cit, p73). A identificagio, a familiaridade, a proximidade com 0 idolo ou o chefe alimentam os sonhos e as fantasias, inserem no cotidiano a dimenso do fascinio, agregando-lhe valor. ‘A busca de um Paraiso Perdido, de um locus de abundancia e felicidade reemerge coordenando as mais diferentes agdes em épocas/locais completa- mente distanciados: seja, por exemplo, com 0s puri- tanos do século XVIL, chegando na América do Norte e visando a re-construgio do paraiso, seja com os candangos refazendo o mundo em Brasilia no século XX, revela-se a pregnancia do mito da reno- vagiio ¢ do re-encontro. O herdi mitico ¢ 0 canaliza- dor, o recepticulo das emogies, 0 executor dos so- nos coletivos, 0 condutor dos homens, o homem, ideal-tipo de qualidades e virtudes, encarnagdo de todos os valores sociais desejaveis, atualizados. Dessa forma, habitando o mito, o poder insti- tucional entrelaga-se, enreda-se na vida cotidiana, penetrando as motivagdes e os impulsos coletivos. A este respeito, Paul Veyne sublinha: "Nao quero dizer de forma alguma que a imaginagdo anunciaria as futuras verdades e que deveria estar no poder, mas que as verdades jé sao imaginagies e que a imaginagdo esté no poder desde sempre; ela, e nao a realidade, a razao ou 0 longo trabalho do negativo.” (Veyne, 1984, p. 10). * Iracilda Pimentel Carvalho — Professora do Depar- tamento de Teoria e Fundamentos — FE/UnB. Bibliografia BENEVIDES, Maria Viléria. O govermo Kubitschek: desea- volvimento econémico ¢ estabilidade politica, 1986-1961, Rio de Janeiro, Paz.e Terra, 1979. BICALHO, Nair Heloist. Construtores de Brasilia. Petrépolis, ‘ares, 1986, CARDOSO, Miriam Limociro, Ideologia do desenvolvimento (Brasil: JK-JQ), Rio de Janeiro, Paz ¢ Terra, 1977. CAVAUCANTE, Natalino. Piotirios e pionciros, Brasilia, Liquia, 1984. CHARTIER, Roger. Historia Culturalsentre priticas e represen- tapies. Rio de Janeiro, Dife, 1990. ‘CODEPLAN. Anusrio de Brasilia, Brasilia, 1973. 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