A primeira cena começa com a preparação das barcas… O diálogo entre o Diabo e o seu
companheiro constitui o primeiro momento da acção do auto. O Diabo, eufórico, dá ordens ao
seu Companheiro para preparar rapidamente a caravela antes de chegarem os passageiros. O
Companheiro executa as ordens recebidas com rapidez e entusiasmo. O ambiente é de festa e
o Diabo anseia que tudo esteja preparado para o embarque das almas e para a partida rumo
ao Inferno. Assim, o Diabo está alegre, com a certeza de que receberá muitas almas e o anjo,
ao contrário, encontra-se sério e quieto.
O FIDALGO
Gil Vicente apresenta-nos o Fidalgo com toda a sua vaidade e presunção, “fumoso”, ricamente
vestido e seguido de um pajem que lhe soerguia a cauda do manto e lhe transportava uma
cadeira de espaldas. Habituado a gozar de privilégios especiais, o Fidalgo nem sequer pensa
que poderá ir para o Inferno. Assim, para justificar o seu direito a entrar na barca celestial,
apresenta apenas ao Anjo, como único argumento, a sua condição social:”Sou fidalgo de
solar / é bem que me recolhais”.
A sua altivez e jactância levam-no a exigir que todos o tratem por “Vossa Senhoria” de acordo
com os seus pergaminhos nobiliárquicos. Quando o Anjo lhe diz uma frase que ele considerou
pouco cortês (“Pera vossa fantesia / mui estreita é esta barca.”), o Fidalgo reage logo
violentamente: “Pêra senhor de tal marca / não há aqui mais cortesia?”. Mas o Diabo,
momentos antes, tratara-o por tu “Quem reze sempre por ti! / Hi hi hi hi hi hi hi hi!... / E tu
viveste a teu prazer, / cuidando cá guarecer / porque rezam lá por ti?”, sem qualquer reacção
da parte do Fidalgo. Porquê? Certamente porque este ficou tão espantado com a revelação do
Diabo que nem teve presença de espírito para o meter na ordem. Aliás é o próprio Diabo
quem, passado este breve momento escarninho e zombeteiro, passa prontamente para o
tratamento cerimonioso, depois de um verso de transição: “Embarcai! Hou! Embarcai” . Mas,
na cena seguinte, depois de ter sido humilhado e condenado, vemos o Fidalgo tão abatido e
deprimido que, quando o Onzeneiro o trata por vossa senhoria, o Fidalgo já reage de modo
inverso: “Dá ao demo a cortesia!”. Mas, nessa altura, já não era um fidalgo mas um pobre
condenado ao Inferno; o próprio Diabo ameaça espancá-lo: “Dar-vos-ei tanta pancada / com
um remo, que reneguês!”.
Ao Fidalgo parece-lhe a barca infernal um “cortiço”, isto é, uma barca muito ordinária e reles
para transportar um nobre tão poderoso e importante como ele. Mas o Diabo e o Anjo
formulam as suas críticas, que se podem resumir assim: que ele vivera a seu prazer, isto é, que
fizera tudo quanto quisera, que se entregara aos prazeres, fora tirano e, consequentemente,
desprezara os pequenos, ou seja, os elementos do povo. Para demonstrar que ele vivera a seu
prazer, analisa Gil Vicente a vida sentimental do Fidalgo, repartida entre duas mulheres: a
esposa e a amante. Mas o que o Fidalgo ignora e que o dramaturgo denuncia, para caracterizar
melhor a sociedade do seu tempo, é que tanto uma como a outra lhe eram infiéis e tinha cada
uma delas o seu amante.
Mas Gil Vicente não condena só aquele aristocrata, mas todos os seus antepassados, como
afirma expressamente o Diabo quando informa o Fidalgo que passará para o Inferno assim
como “passou vosso pai”, isto é, o autor generaliza e condena a nobreza como classe social. O
criado ou pajem que acompanha o Fidalgo não entra em nenhuma das barcas. Porquê?
Evidentemente que não representa ali um tipo, uma alma de um defunto, mas um simples
elemento caracterizador e distintivo, tratado a nível de objecto, que o dramaturgo risca do
palco assim que deixa de ser necessário. Mas a sua função simbólica é deveras importante na
medida em que representa um elemento do povo, a principal vítima da opressão da nobreza
que, manifestamente, não poderia acompanhar o Fidalgo na sua viagem para o Inferno.
Elementos alegóricos
Analisando com atenção, o cais, as barcas, o Diabo e o Anjo são elementos concretos mas
representam realidades abstractas, isto é, simbolizam determinados conceitos:
O Fidalgo traz consigo alguns elementos cénicos, os quais têm também um significado
abstracto e possibilitam identificar a classe social a que pertence:
Pajem = tirania
Cadeira = poder
Manto = vaidade
O Fidalgo constitui assim uma personagem-tipo, pois, na realidade, representa uma classe
social – a nobreza.