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Fichamento do segundo capítulo do livro “Lugares para a história”, de Arlette Farge.

FARGE, Arlette. Lugares para a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

Da violência

Os discursos acerca da violência são insatisfatórios porque, dada a sua incapacidade


para fornecer interpretações adequadas, mostram-se inaptos a restringir a violência (p.
25).

A despeito da aparente utopia contida na tentativa de refletir sobre a história da violência


de maneira crítica, é necessário fazê-lo, dada a riqueza de ensinamentos contida no
deslocamento de problemáticas a ser realizado para tal fim (pp. 25/26).

Faz-se necessário, para tanto, proceder-se a um questionamento acerca de eixos e


problemáticas tomados pela história, com a finalidade de avaliar a permanência ou não de
sua pertinência. A barbárie, que se acreditava extinta após o termino da Segunda Guerra,
se mostra presente na atualidade através da depuração étnica, violação sistemática e
genocídio de populações que ocorrem em Europa e África (p. 26).

Sobre a legitimidade de buscar outros tipos de interpretação histórica além


daqueles já utilizados

A interpretação, seja ela histórica e filosófica, deve ser continuamente reformulada e


repensada. Para Foucault, o importante na sociedade consiste certamente mais na
interpretação do que na coisa. Ela dá sentido às coisas e é a partir do sentimento e da
opinião surgidos dela que se darão novas interpretações e, logo, outros acontecimentos
(p. 27).

Ainda segundo Foucault, cabe à interpretação “inverter, revirar, despedaçar a golpes de


martelo” as interpretações já anteriormente estabelecidas”. Afirma também que existe “um
tempo da interpretação que é circular. Esse tempo é obrigado a repassar lá onde já
passou” (p. 27).

Um exemplo de como tais afirmações se dão em História são as interpretações levadas a


cabo na ocasião do bicentenário da Revolução Francesa. Constatou-se que tais
interpretações “eram muito mais importantes do que os próprios ‘fatos’, quase apagados
pelos discursos sobre eles” (pp. 27/28).

A partir da afirmação da primazia da interpretação em relação à coisa, é possível afirmar


também que cada movimento da história produz um sujeito novo. Tal sujeito é produto da
história e de sua interpretação e é em vista do surgimento de um sujeito novo que se
reorganizam interpretações e reinterpretações (p. 28).

A aceitação da ideia de que as interpretações e reinterpretações são constantes que o


surgimento de novos sujeitos também é constante, é possível tentar entender como se
institui, a cada momento histórico, a relação de uma sociedade com a violência (p. 28).

De algumas interpretações em história da violência

Norbert Elias afirma que o período entre a Idade Média e o século XX se caracteriza, no
Ocidente, por uma progressiva transformação da economia social (p. 28).
O progressivo cerceamento da violência que se dá durante o período mencionado leva,
segundo o autor, a uma progressiva pacificação social, possível graças ao monopólio da
violência por parte dos Estados absolutistas. Uma das práticas que contribui para isso é
também a do esporte, que se apodera das emoções, rivalidades e afetos. O espaço
público e o privado adquirem gradualmente o costume da não violência, ou ao menos de
uma violência controlada (pp. 28/29).

No interior dessas áreas, os mecanismos de transferência da violência são complexos e


sutis, de difícil estudo (p. 29).

O pensamento de Elias dá conta de estudos de história cultural, história da vida privada,


mas não contempla as grandes rupturas violentas que afetam o corpo social (guerras,
genocídios, massacres, atos de barbárie, levantes), que representam descontinuidades
que não se encaixam no sistema de causalidade e linearidade proposto pelo pensador (p.
29).

A proliferação de estudos sobre a violência nos anos 1970 se explica pela conjuntura da
época, na qual a violência é considerada um meio para o corpo social estabelecer uma
espécie de comunidade resistente em face do Estado (p. 30).

No plano intelectual, a história, utilizando-se de conceitos da etnologia e da antropologia,


promove uma ressignificação da violência, demonstrando também seu lado positivo, e
não apenas o lado negativo tradicionalmente trabalhado. Se considera que quando uma
sociedade se sente ameaçada, promover e executar a violência é algo que refunde o
corpo social e solidifica o laço social que parecia se desagregar. De acordo com Michel
Maffesoli e Alain Pessin, “a violência passa a ser compreendida em seu duplo desígnio de
destruição e de fundação da ordem social” (pp. 30/31).

A violência faz parte da vida social e se constitui de rupturas que consolidam possíveis
regulações do social (p. 31).

A teoria de que a violência cumpre um papel importante no estabelecimento da ordem é


bastante aceita atualmente. O historiador corre o risco, porém, de acabar tentando
associar ambas as coisas a todo custo, passando a deixar de lado as indicações que se
afastam do caminho linear: existência de uma comunidade social > ameaça a ela >
violência > corpo social ressoldado. O historiador deve tomar cuidado, portanto, para não
reinterpretar a ordem das coisas arranjando a história a seu resultado, exercendo uma
espécie de profetismo às avessas, pois se beneficia do fato de que conhece o fim da
história. Adverte Foucault que a aparente serenidade do historiador “o faz reduzir tudo ao
mais fraco denominador”. O historiador deve “ter por pátria a bastardia e a vilania” (p. 31).

A violência, portanto, nem sempre se adéqua ao “caminho linear” anteriormente


mencionado; muitas vezes a violência parece lacerar o simbólico e fazer de tal modo que
a ordem que se seguirá seja forçosamente estraçalhada por essa experiência traumática;
se aparenta à barbárie e nenhuma justificação posterior permite recolocá-la num sistema
coerente (pp. 31/32).

A interpretação “funcionalista” levada a cabo nos anos 1970, anteriormente descrita, pode
ser explicada pelo fato de que a violência que se dava naquele período parecia mais
“branda” do que a experimentada durante a Segunda Guerra (p. 32).

As perspectivas da história mudam nos anos 1980, durante os quais se evitam


explicações psicologizantes (p. 32).

Paralelamente ao surgimento de lógicas particulares e comportamentos específicos, os


atores sociais passaram a ser estudados em suas intenções e práticas (pp. 32/33).

A leitura dos Ditos e escritos

A obra Ditos e escritos, de Michel Foucault, contém, embora não de maneira sistemática,
reflexões acerca da violência (p. 33).

Erasmo de Roterdã, em sua obra Queixa da paz, afirma que “a natureza ensinou a paz e
a concórdia” e que dado tal estado natural não se acredita que “os homens que brigam e
se combatem são dotados da razão humana” (p. 33).

Foucault afirma, em sentido contrário, que “O mundo é sem ordem, sem encadeamento,
sem forma, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia” e que “O mundo ignora toda lei”.
De tal modo, ele coloca o conflito no coração da existência social, sendo que o homem é
o sujeito que inventa e constrói a partir desse disparate e dessa desordem (pp. 33/34).

A ilusão do progresso e de um processo de apaziguamento é aniquilada, mas a


capacidade do sujeito permanece intacta, numa série de descontinuidades e rupturas que
fazem sua história. A violência e o afrontamento estão presentes e é deles que nascerão
valores, liberdades e a capacidade de substituir as regras precedentes por outras regras
(p. 34).

A violência, para Foucault, é inerente à vida humana. Cabe ao historiador demarcar o


surgimento da violência em acontecimentos-chave que irão transformá-la em novas
regras e estruturas. Não se trata de um processo calmo que se dirige progressivamente
para o bem e para a felicidade; trata-se antes de lugares factuais onde existem
possibilidades de lutar contra a violência, pois, como afirma Foucault, “a regra permite que
violência seja feita à violência” (p. 34).

Os atores sociais estão num esquema que lhes permite inventar outros modelos, fazer
emergir outros mecanismos (pp. 34/35).

A partir dessas constatações, o historiador adota uma postura específica: pela introdução
do conhecimento indica os meios para a luta, para o combate (p. 35).
Foucault afirma que “entre violência e racionalidade não há incompatibilidade” e que não
se deve “combater a razão-desrazão dos homens no momento em que se exerce a
violência, mas analisar a natureza da racionalidade que produz essa violência a fim de
transformar eventualmente seu curso” (p. 35).

A violência, ou ao menos as formas de racionalidade que a regem, pode ser questionada


de maneira singular e única a cada momento da história, no momento de cada
acontecimento violento (pp. 35/36).

A relação de poder tem também por racionalidade instituir tanto liberdade quanto coerção
(p. 36).

À afirmação de Jaucourt de que “É um fenômeno inexplicável a extensão da imaginação


dos homens em termos de barbárie e de crueldade”, Foucault responde que “Inexplicável
talvez, mas certamente não irregular nem selvagem” (pp. 36/37).

Foucault, em A vontade de saber, se interroga sobre a maneira como “os massacres se


tornaram tão vitais” durante o século XIX, período no qual se atribui um maior valor à vida
(p. 37).

A tudo isso, Foucault responde de maneira a fazer ficar de pé situações que a opinião
acredita contraditórias (p. 37).

Desde o fim da Idade Clássica o poder não está mais em face de sujeitos sobre os quais
o domínio último é a morte, mas em face de seres vivos sobre os quais o domínio
exercido é a vida. E as guerras vão se realizar não mais em nome apenas do soberano,
mas em nome da existência de todos (pp. 37/38).

A razão de ser do poder não é um sentimento humanitário, uma suavização dos


costumes, mas uma lógica de seu exercício (p. 38).

A singularidade do Mal é tributária da singularidade de uma política (p. 38).

Em vez de ser considerada como uma consequência social, a violência pode ser
mostrada como o objeto ou tema principal de uma política. É preciso compreender as
formas de racionalidade que fazem jorrar a violência (pp. 38/39).

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