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A formação na sociedade do espetáculo

Espaço Aberto

A formação na sociedade do espetáculo:


gênese e atualidade do conceito*

Maria Luiza Belloni


Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Educação

Na pura historicização da dialética, esta constata- 1999). Falta-nos, no entanto, acesso a suas outras cria-
ção se dialetiza mais uma vez: o “falso” é um momento ções poéticas, filosóficas ou cinematográficas, bem
do “verdadeiro” ao mesmo tempo enquanto “falso” e como a informações sobre o contexto cultural e polí-
enquanto “não-falso”. tico que permite compreender seu verdadeiro signifi-
Georg Lukács, História e consciência de classe cado. Sua obra é vasta e variada, ousada e revolucio-
nária, e completamente fora dos padrões acadêmicos.
Prólogo, como não poderia deixar de ser Aliás, Debord detestava tudo o que é estabelecido,
abominava a “recuperação”, pelo sistema mercantil,
Apresentar Debord e sua obra, tão complexa e de formas e conceitos artísticos arrojados, como o
polêmica, é um grande desafio que só se explica pela surrealismo, por exemplo, e pregava a superação da
convicção de que é extremamente importante evocar própria arte.
a radicalidade de seu pensamento e de suas ações e Então, o prazer de revisitar as propostas revolu-
pôr em evidência seu caráter autenticamente revolu- cionárias de Debord e seus companheiros da Interna-
cionário, na tentativa de lembrar a permanência e va- cional Situacionista foi temperado por um vago sen-
lidade das idéias subversivas que o espetáculo quer a timento de culpa, por recuperar Debord para o
todo custo nos fazer esquecer. “sistema” das mercadorias e trazê-lo à academia. A
Os leitores brasileiros já dispõem das duas prin- certeza, porém, de que este é um fórum legítimo de
cipais obras de Debord (1991, 1997) e também do discussão, que busca compreender o processo de for-
melhor livro publicado na Europa sobre ele (Jappe, mação de pessoas livres, no contexto da sociedade do
espetáculo, redime esta autora do pecado de traição.
Intelectual irrecuperável pelo sistema midiático,
* A autora agradece ao professor Jean-Luc Rosinger pelo crítico ferrenho do marxismo oficial economicista e
acesso à sua biblioteca situacionista. determinista, que ele pretendia superar ressignificando

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as idéias do jovem Marx, Debord liderou um grupo te como inspiração da prática de transformação da
de intelectuais ultra-radicais que acreditavam na for- vida pelo sujeito emancipado. É o caráter revolucio-
ça das idéias para transformar o mundo. Esta é sem nário do conceito de espetáculo que precisamos recu-
dúvida sua mais importante contribuição: lembrar-nos perar, de uso crítico e radicalmente criativo, e das fer-
de que, assim como a ideologia dominante tem ramentas mais importantes do espetáculo, as
materialidade – no espetáculo –, as idéias de mudan- Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) ou
ça podem ter potência política. mídias, porque são elas que produzem a imagem dele.
Não se pretende, com esse trabalho, fazer uma re-
senha do autor e sua obra, mas apenas contextualizar o Internacional Situacionista:
surgimento de sua contribuição teórica mais notável: o a gênese do conceito
conceito de sociedade do espetáculo. Trata-se de uma
tentativa de apresentar uma leitura ou interpretação que, Contexto histórico:
embora se fundamente em argumentos teóricos (valor Europa no período pós-guerra
heurístico do conceito de espetáculo), permanece irre-
mediavelmente muito pessoal. É mais um retrato Durante a década que se seguiu à derrota do na-
impressionista historicamente contextualizado do que zismo na Europa e do império japonês no Oriente, a
uma resenha ou análise teórica. hegemonia americana consolidou-se inapelavelmente
A atualidade do conceito de sociedade do espe- em nível planetário. A ameaça nuclear pairava sobre
táculo é incontestável: recuperado pelas mídias que o planeta como uma sombra sinistra. O modo fordista
Debord tanto criticava, como vitrines mais visíveis de produção industrial tornava-se o paradigma domi-
do espetáculo, “sua manifestação superficial mais nante que, triunfante, iria servir de modelo para o Pla-
esmagadora”, o conceito passou para o uso comum, no Marshal de reconstrução da Europa. A propagan-
corrente, sem determinar fontes. Isso demonstra o su- da americana difundia alegremente a era fordista e a
cesso da idéia. Embora seu autor tenha continuado ilusão de que os conflitos sociais seriam substituídos
durante toda a vida como marginal ao sistema, a so- pela harmonia das classes, com o desaparecimento
ciedade foi se tornando tão espetacular que o conceito do proletariado tradicional.
foi se impondo como evidente para a compreensão e Na onda criada pela ajuda dos Estados Unidos, o
elaboração de uma teoria da sociedade contemporâ- American way of life invade a velha Europa devastada
nea. O espetáculo é de tal forma eficaz que conseguiu pela guerra, trazendo consigo os símbolos da cultura
recuperar esse conceito e reduzi-lo a mais uma teoria capitalista do novo mundo, no bojo de um complexo
sobre as mídias, esvaziando-o de seu caráter revolu- processo de reorganização política e socioeconômica
cionário de explicação da totalidade. caracterizado pela prosperidade econômica, estabili-
Conceituar o espetáculo como relação social sig- dade geopolítica e a promessa de uma vida melhor,
nifica uma compreensão premonitória da fase atual baseada na intervenção reguladora do Estado (welfare
do capitalismo e do esgotamento do modelo socialis- State).
ta e de seus fundamentos teóricos marxistas como teo- A (relativa) estabilidade geopolítica repousava
ria da práxis que pode levar à transformação. Nossa então num equilíbrio precário entre as duas superpo-
perspectiva visa problematizar a seguinte questão: o tências vitoriosas, que se enfrentavam no terreno ideo-
que no conceito serve para a formação na sociedade lógico, diplomático e econômico, fenômeno conhe-
contemporânea? Para isso é preciso retomar o con- cido como “guerra fria”, que opunha dois modelos de
ceito em seu sentido original de teoria e práxis: não sociedade: capitalismo versus comunismo. O primei-
só categoria com valor heurístico, de compreensão ro se apresenta como modelo democrático e liberal
dos fenômenos sociais, mas também e principalmen- baseado num modo de produção industrial eficiente,

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caracterizado pelo fordismo, taylorismo e liberalis- mento, evidenciado pela invasão do cinema de
mo econômico (também relativo, já que a presença Hollywood nos países europeus e pelo progresso do
do Estado americano, principalmente militar mas tam- cinema italiano e francês. Nos meios culturais das
bém econômica, é significativa) e consolida sua principais capitais européias (Paris, Londres, Bruxe-
hegemonia na Europa e América Latina. O comunis- las), as vanguardas artísticas do entre-guerras foram
mo, caracterizado por regimes ditatoriais, poder ab- sendo radicalizadas nos anos 1950, com a reestrutu-
soluto de um Estado centralizado, impondo uma eco- ração de movimentos como o Bauhaus Imaginista, o
nomia voltada para o fortalecimento do Estado e para Surrealismo e o Dadaísmo, entre muitos outros. Es-
a guerra, disputa com o islamismo a hegemonia ideo- sas vanguardas, todavia, perdem seu ímpeto de críti-
lógica nos países africanos, recém-descolonizados, e ca radical, para se ir integrando ao novo sistema de
na Ásia, fazendo surgir curiosos sincretismos. produção cultural de caráter industrial, midiático e de
A Europa, traumatizada pelas guerras e ameaçada massa.
pelas intenções expansionistas do império soviético, Das vanguardas dos anos 1920 e 1930 ressur-
abre suas portas para a democracia no modelo ameri- gem, fortalecidos pelo clima de reconstrução, a ar-
cano, ou seja, liberal e competitiva. Na França, a guer- quitetura, o urbanismo e o design funcional. O urba-
ra de descolonização da Argélia acrescenta um gran- nismo revolucionário arrojado, inspirado em Le
de complicador ao quadro político extremamente Corbusier, que vai influenciar Lúcio Costa na con-
instável da 4ª República, resultante da guerra, e favo- cepção de Brasília, bem como a arquitetura moder-
rece a ascensão de um regime autoritário de cunho nista de linhas curvas e puras com que Niemeyer vai
nacionalista, liderado pelo General De Gaulle, chefe marcar a nova capital brasileira, reflorescem no cli-
militar do exército rebelde francês, que havia resisti- ma fértil da cultura parisiense. Nos enfumaçados ca-
do ao nazismo e rejeitado o armistício e a colabora- fés de Paris, intelectuais e artistas, inspirados pelo
ção com os alemães durante a guerra. existencialismo, sonham em mudar radicalmente o
mundo, com a liberdade de criadores, na esteira da
Movimentos culturais destruição física e moral deixada pela guerra.
No contexto da França saída dos traumas da guer-
O período pós-guerra caracteriza-se, tanto Euro- ra, da ocupação alemã e da colaboração, surge em
pa quanto nos Estados Unidos, por uma grande efer- 1952 um pequeno grupo de intelectuais e artistas de
vescência cultural, com características realmente no- vários campos que se associam num movimento de-
vas, como o surgimento de uma cultura de massa, que nominado Internacional Letrista, que está na origem
fugia completamente aos padrões estabelecidos da da Internacional Situacionista, movimento artístico,
“alta cultura” européia. Nas artes e nas letras obser- político e poético criado e liderado por Debord, e que
va-se uma grande vitalidade, que busca afirmar-se pro- iria ter significativa importância no imaginário polí-
pondo uma ruptura radical com os cânones estéticos. tico da juventude européia nos anos 1960.
Na Europa, uma espécie de euforia criativa prega a
revolução de formas em todas as artes, ruptura e re- Movimentos políticos (maio de 1968):
volução que revelam uma grande influência america- les enragés et les situationnistes
na. As artes voltadas para o lazer (entretenimento),
como a música (jazz, centro-americana), o teatro e o A vitória dos aliados fortalecera politicamente
cinema, são as estrelas do momento, canalizando para todos os grupos que haviam participado da resistên-
o show business as energias comemorativas do fim cia ao nazismo. Ao lado da reconstrução econômica
da guerra e da nova prosperidade. Esses setores da no modelo capitalista, observou-se um crescimento
produção cultural conhecem um grande desenvolvi- da esquerda na Europa: os partidos comunistas e so-

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cial-democratas destacavam-se na reorganização po- Vaneigem e outros companheiros. Esses grupos eram
lítica e na luta pela descolonização. Nos anos 1960, muito mais radicais do que os grupos e líderes políti-
na França, a clivagem entre esquerda e direita, ainda cos de estudantes e operários, mais conhecidos e mais
sob a sombra sinistra da colaboração com os nazis- importantes na liderança do movimento, como o gru-
tas, se aprofunda na questão da guerra da Argélia. O po “Movimento 22 de Março”, de Daniel Cohn-
Partido Comunista Francês, no entanto, embora com Bendit, mas tudo parece indicar que foram eles que
um quarto dos votos e grande prestígio por seu papel forneceram as bases teóricas e os slogans mais radi-
na Resistência e seu nacionalismo, não atrai os jo- cais e inovadores do Movimento das Ocupações, que
vens, em virtude, sobretudo, de sua fidelidade abso- foi o grupo que durou mais tempo.
luta à URSS de Stalin e seu dogmatismo delirante. Se o movimento de maio de 1968 em Paris, en-
Nos EUA, após os anos dourados de triunfo do volvendo jovens de todas as classes sociais na Fran-
American dream, os jovens do movimento hippie, na ça, foi tão importante para a compreensão daquele
esteira da famigerada beat generation, vêm decep- momento histórico, não é tanto pelas transformações
cionar a geração dos heróis de guerra, e adentram os políticas que ele desencadeou, como a queda do ge-
anos 1960 pregando uma contracultura contrária aos neral De Gaulle um ano após, por exemplo, mas so-
mais caros valores da sociedade americana: movimen- bretudo porque essa explosão social revestiu-se de um
to pacifista contra a guerra do Vietnã; paz e amor li- caráter emblemático portador da mensagem ideoló-
vre; lugar ao sol para minorias, sem preconceitos (mo- gica mais avançada que a época podia produzir. Como
vimentos negro, feminista, gay); e, pecado dos os arautos da contracultura americana haviam forne-
pecados, trabalho artesanal e vida simples, alternati- cido os argumentos e os ideais para a revolta da ju-
va, isto é, sem consumo. ventude contra uma guerra insensata e uma forma alie-
Na Europa “libertada” (França, Alemanha, Itá- nada de vida, os situacionistas forneceram as palavras
lia), a fúria juvenil contra um sistema que só se fazia de ordem mais radicais que iriam embalar o movi-
fortalecer com a prosperidade econômica e que inva- mento e que permaneceram como registro das mani-
dia a orgulhosa cultura local com produtos de quali- festações de maio de 1968 na França e na Europa.
dade duvidosa, vai desembocar em movimentos e Os situacionistas buscavam expressar sua per-
manifestações diversas de rebelião nos meios estu- cepção, ainda que confusa e fragmentada (de certa
dantis e operários. Tais movimentos – reunidos no forma ingênua), da importância de um novo fenôme-
termo Maio/1968, mas que se estenderam por todo o no no campo cultural que iria transformar radicalmente
primeiro semestre daquele ano – tinham como princi- a vida cotidiana e as estruturas simbólicas da socie-
pal traço comum o fato de escaparem ao controle das dade: a produção industrial da cultura, potencializada
forças organizadas nos sindicatos e partidos políticos pelo avanço tecnológico, que iria possibilitar uma
e de criticarem as ideologias estabelecidas tanto de “organização das aparências no estágio espetacular
direita quanto de esquerda, atacando-se a todos os da sociedade mercantil” (Viénet, 1968, p. 13).
partidos políticos e grupelhos esquerdistas. Em Paris, Ao criticar a sociedade, os situacionistas ataca-
o movimento de maio de 1968 vai se radicalizar no vam tanto a esquerda quanto a direita, denunciando
Movimento das Ocupações, que reunia estudantes e não só o capitalismo triunfante do Ocidente como a
operários numa luta comum contra todo poder cons- burocracia estalinista constituída em classe na Rússia
tituído – na família, na empresa, na universidade ou e depois em outros países do leste europeu, pela to-
na política – e em favor de propostas mais radicais de mada do poder do estado totalitário. Queriam mos-
mudança. Dentre os muitos grupos políticos que par- trar a possibilidade e iminência de uma nova volta da
ticipam ativamente desse movimento destacam-se os revolução. Sua teoria revolucionária começa por uma
“enragés” e os “situacionistas”, formados por Debord, crítica das condições de existência inerentes ao capi-

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talismo superdesenvolvido: a pseudo-abundância da os maoístas, coabitavam nas paredes sem serem rasgados
mercadoria e a redução da vida ao espetáculo, o ur- ou recobertos: somente os estalinistas do PCF preferiam
banismo repressivo e a ideologia – entendida, como abster-se. As pichações apareceram um pouco mais tarde.
sempre, a serviço dos especialistas em dominação. Nesta primeira noite, a primeira pichação, feita sobre um
Suas propostas de revolução mundial contra ca- afresco – a famosa fórmula “A humanidade só será feliz no
pitalismo e estalinismo, com base em uma perspectiva dia em que o último burocrata tiver sido enforcado com as
internacionalista e crítica da sociedade de consumo e tripas do último capitalista” – levanta alguma agitação. Após
do “capitalismo de Estado” dos países comunistas, um debate público, a maioria decidiu apagá-la. O que foi
forneciam aos jovens estudantes e operários uma al- feito. (Viénet, 1968, p. 75, minha tradução, grifo meu)
ternativa sedutora ante o estalinismo rígido e ultra-
passado dos aparelhos políticos burocratizados do René Viénet, situacionista muito ativo no movi-
sindicalismo e dos partidos. Sua crítica às artes, às mento das ocupações, explica em nota de rodapé ter
ciências, aos intelectuais, ao establishment em geral, sido ele mesmo o autor dessa primeira pichação, que,
isto é, a crítica sem concessões ao status quo, apare- de tão revolucionária, foi censurada e apagada por seus
cia como uma utopia quase ao alcance da mão. Ao próprios companheiros de luta. Viénet ressalta o cará-
deslocar a luta de classes do terreno da economia para ter inovador dessa prática, o “desvio” (détournement)
o da cultura e da vida cotidiana, por meio dos novos de obras famosas com a inscrição de slogans ou dese-
meios técnicos colocados a serviço da arte e da cultu- nhos que as ressignificam, atribuindo-lhes novo sen-
ra, os situacionistas acenavam com algo verdadeira- tido revolucionário contraditório com seu sentido ori-
mente novo no cenário político: a revolução das sub- ginal. Tal prática, originária do surrealismo (sob o
jetividades. Suas propostas de revolução como busca nome de colagem, por exemplo, desenhar um bigode
por identificar os desejos e lutar para realizá-los é im- no retrato da Mona Lisa), foi muito controvertida no
batível no imaginário político dos jovens europeus. primeiro momento de Maio/1968, mas abriu caminho
Os slogans situacionistas pichados nas paredes da para uma “tão fértil atividade”, e é hoje prática co-
Sorbonne exprimem muito bem o estado de espírito mum tanto nas artes estabelecidas como nos grafites
lá reinante, de que era possível mudar o mundo, de de rua (Viénet, 1968, p. 75).
que tudo era possível. Os situacionistas propunham formas novas de
Os estudantes tomaram a Sorbonne e a abriram luta que escapavam dos padrões tradicionais da pan-
para os trabalhadores e para os jovens rebeldes das fletagem política e tinham sua origem nas artes plás-
periferias, identificados como os “jaquetas negras”, ticas. Um texto publicado na revista Internationale
por se vestirem de couro preto. De slogan abstrato Situationniste n° 11, de outubro de 1967, com o título
para as passeatas, a solidariedade operários-estudan- Les situationnistes et les nouvelles formes d’action
tes se transforma em prática política inovadora. Rei- contre la politique et l’art, assinado por René Viénet,
na uma atmosfera de liberdade total de debate que propõe “ligar a crítica teórica da sociedade moderna
impede qualquer ação de controle por parte de líderes à crítica em atos desta sociedade [...] desviando as
e grupos estabelecidos. O que se passava na Sorbonne próprias propostas do espetáculo, daremos as razões
torna-se bússola para os operários de todo o país. Pa- das revoltas de hoje e de amanhã”. O autor fornece
recia construir-se ali, espontaneamente, uma nova alguns exemplos: experimentação do “desvio” de
proposta de democracia direta. fotonovelas ou de fotos “ditas pornográficas”, substi-
tuindo os textos dos “balões” por textos subversivos;
A completa liberdade de expressão se manifesta na promoção da guerrilha nos mass media, considerada
apropriação das paredes tanto quanto na livre discussão em mais eficaz do que a guerrilha urbana; produção de
todas as assembléias. Cartazes de todas as tendências, até comics situacionistas, já que as histórias em quadrinhos

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são a única forma realmente popular de literatura; reali- Os situacionistas orientam suas pesquisas e re-
zação de filmes situacionistas, pois o cinema é o meio flexões na perspectiva de uma superação da arte, le-
de expressão mais novo da época, sendo pois preciso se vando às últimas conseqüências as propostas das
apropriar das técnicas dessa nova linguagem, especial- vanguardas futurista, dadaísta e surrealista. Como
mente seus exemplos mais bem-sucedidos, como os esses movimentos, pregam o fim das práticas artísti-
cinejornais, anúncios publicitários e traillers. cas clássicas e a eliminação de todos os cânones que
Dois livros de autores situacionistas publicados as estruturavam. Buscam realizar a arte na vida, ou
no ano anterior foram retomados pelos estudantes como seja, superar a própria arte e fazer dela uma prática
fonte de inspiração para palavras de ordem a serem participativa, eliminando a separação entre artista-
gritadas nas assembléias permanentes e pichadas nas criador e sujeito-espectador. Isso os levou a conceber,
paredes e muros de Paris e das principais universida- com base em pesquisas “psicogeográficas”, propos-
des francesas: La société du spectacle, de Debord, e Le tas de um urbanismo experimental que possibilitasse
traité de savoir-vivre à l’usage des jeunes générations, a experimentação de comportamentos lúdicos e a
de Raoul Vainegem. Além desses textos fundadores, construção de situações efêmeras e poéticas. Tal como
foram também importantes outros textos publicados na os dadaístas e os surrealistas, os situacionistas usam
revista Internationale Situationniste (IS), especialmente e abusam de armas como o escândalo, a carta de in-
um longo panfleto de mais de 20 páginas, publicado sulto, as expulsões e as rupturas violentas. São gran-
em 1966 e republicado muitas vezes nos anos seguin- des utilizadores da pichação como forma de divulgar
tes, escrito por membros da Internacional Situacionista seus slogans, entre os quais cabe lembrar um de auto-
e por estudantes de Strasbourg, cujo longo título diz ria do próprio Debord, inscrito por ele mesmo numa
muito de suas intenções revolucionárias: De la misère parede da rua de Seine, em Paris: “Não trabalhem nun-
en millieu étudiant considérée sous ses aspects ca”. Assim, embora sejam poucos e marginalizados
économomique, politique, psychologique, sexuel et dos fóruns estabelecidos da cultura e das artes, os si-
notamment intellectuel, et de quelques moyens pour y tuacionistas conseguem significativa repercussão de
remédier (“Sobre a miséria no meio estudantil, consi- suas idéias, especialmente entre os jovens intelectuais
derada em seus aspectos econômico, político, psicoló- e estudantes revoltados com o autoritarismo político
gico, sexual e notadamente intelectual, e sobre alguns e a invasão do American way of life.
meios para remediar isto”) (IS, n° 10, 1966). Os situacionistas não se limitam a propor uma
revolução meramente política ou mesmo puramente
Internacional Situacionista (1958/1969) cultural: pretendem e lutam por uma nova civilização
e uma transformação radical das sociedades huma-
O programa da Internacional Letrista, apresen- nas, uma “real mutação antropológica” (Jappe, 1999,
tado no primeiro número da revista Potlatch (1954), p. 90). Nesse sentido, visam atuar na transformação
é claramente radical: “Nós trabalhamos para o es- da vida cotidiana e da cultura, fazendo da “batalha do
tabelecimento consciente e coletivo de uma nova lazer” o palco privilegiado da luta de classe. A parti-
civilização”. Essa mesma proposta revolucionária cipação de todos na construção das situações se opõe
será confirmada mais tarde (1957) por Debord e ao espetáculo e à não-participação que ele implica.
seus companheiros, na formação da Internacional As possibilidades infinitas de desenvolvimento da
Situacionista: “Pensamos que antes de mais nada é consciência humana, uma vez libertada da alienação
preciso mudar o mundo. Queremos a mudança mais do trabalho, estão no centro das preocupações dos
libertadora da sociedade e da vida nas quais estamos pensadores mais avançados e revolucionários da época
presos” (Rapport sur la construction des situations, e têm sua origem em Marx, como bem revela a se-
junho de 1957). guinte afirmação dos situacionistas: “Numa sociedade

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sem classes, pode-se dizer, não haverá mais pintores, juventude, que adere à continuação do surrealismo
mas situacionistas que, entre outras coisas, pintarão” (cujo sucesso burguês foi deformador), não pode su-
(Debord, 1957), paráfrase de um trecho da Ideologia perar a contradição entre a exigência revolucionária
alemã: “Numa sociedade comunista, não há pintores, e a imobilidade desse pseudo-sucesso e se “refugia
mas, no máximo, seres humanos que, entre outras nos aspectos reacionários que o surrealismo trazia em
coisas, pintam” (apud Jappe, 1999, p. 90). si desde sua formação (magia, esoterismo, crença
Os situacionistas se exprimem sobretudo através numa idade de ouro que poderia estar fora da história
da revista Internationale Situationniste, cujo primei- etc.)”. Trata-se, pois, de ir além do surrealismo e fa-
ro número, de junho de 1958, começa com uma críti- zer a revolução, não só das formas das artes, mas das
ca acerca do surrealismo, segundo eles “recuperado e formas da vida. Trata-se de identificar os desejos e
utilizado pelo sistema repressivo que ele combatia”. lutar para realizá-los numa perspectiva coletiva onde
Essa crítica se explicita na análise dos aspectos for- todos são criadores e parceiros na construção de si-
mais, recuperados e transformados em apelos merca- tuações, conceito central no projeto situacionista.
dológicos (símbolos da mercadoria) pelo sistema, e A partir da crítica do “funcionalismo, que é uma
na denúncia do abandono dos ideais revolucionários expressão necessária do avanço técnico e que busca
de mudança radical do mundo. No centro da discus- eliminar inteiramente o jogo” (o lúdico, o brinquedo),
são estão os avanços técnicos e científicos. e do design industrial (“que estimula a criação artística
aplicada a novos desenhos de geladeiras”), os situa-
O mundo moderno alcançou o avanço formal que o cionistas fazem a crítica da vida cotidiana e propõem,
surrealismo tinha sobre ele. As manifestações da novidade contra todas as formas regressivas do jogo e das artes,
(do novo) nas disciplinas que progridem efetivamente (to- realizar as formas experimentais de um jogo revolu-
das as técnicas científicas) tomam uma aparência cionário, cujas principais definições são apresentadas
surrealista: fez-se escrever, em 1955, por um robô da Uni- no primeiro número da revista Internationale
versidade de Manchester, uma carta de amor que poderia Situationniste:
passar por um ensaio de escrita automática de um surrealista
medíocre. Mas a realidade que comanda esta evolução é • Situação construída: Momento da vida, con-
que, uma vez que a revolução não foi feita, tudo o que cons- creta e deliberadamente construída pela or-
tituiu para o surrealismo uma margem de liberdade foi re- ganização coletiva de uma ambiência unitá-
tomado e utilizado pelo mundo repressivo que ele comba- ria e de um jogo de eventos.
tia. (Amarga vitória do surrealismo, IS, n° 1, p. 3, 1958). • Situacionista: O que se relaciona com a teo-
ria ou a atividade prática de uma construção
Na mesma revista, cujas regras de ouro eram a das situações. Aquele que se dedica a cons-
redação coletiva e o estímulo à livre reprodução de truir situações. Membro da Internacional
seus textos, os situacionistas atacam tanto a rebeldia Situacionista.
da juventude americana e escandinava que se • Psicogeografia: Estudo dos efeitos precisos
comprazem no consumo das formas falsamente do meio geográfico conscientemente organi-
“surrealistas” (leia-se revolucionárias), quanto os in- zado ou não, que age diretamente sobre o
telectuais dessa geração, “abusivamente chamada de comportamento afetivo dos indivíduos.
existencialista pelos jornais”, que incluía os nomes • Deriva: Modo de comportamento experimen-
famosos de Françoise Sagan, Roger Vadim e Robbe- tal ligado às condições da sociedade urbana:
Grillet, entre outros, considerados pelos situacionis- técnica de passagem rápida através de ambiên-
tas como ilustrações excessivas da resignação (O ru- cias variadas. Designa também a duração do
ído e o furor, IS, n° 1, p. 4, 1958). Segundo eles, a exercício contínuo desta experiência.

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• Urbanismo unitário: Teoria do emprego con- preocupações materiais – para se tornar uma imagem ob-
junto de artes e técnicas que se conjugam na sessiva no imediato. Entre o amor e a coleta automática de
construção integral de um meio ambiente di- lixo a juventude de todos os países fez sua escolha e prefe-
namicamente ligado a experiências de com- re a coleta de lixo. Uma reviravolta completa do espírito
portamento. (mente) tornou-se indispensável, pelo desvelamento dos
• Cultura: Reflexo e prefiguração, em cada mo- desejos esquecidos e a criação de desejos inteiramente
mento histórico, das possibilidades de orga- novos. E por uma propaganda intensiva em favor destes
nização da vida cotidiana; complexo da esté- desejos. (Gilles Ivain, Formulaire pour un urbanisme
tica, dos sentimentos e dos costumes, pelo nouveau, IS, n° 1, p. 17-18, 1958, minha tradução)
qual uma coletividade reage sobre a vida que
lhe é objetivamente dada por sua economia. Fundador do movimento, Debord publica, nesse
• Decomposição: Processo pelo qual as formas primeiro número, um pequeno texto sobre a revolu-
culturais tradicionais destruíram a si próprias, ção cultural, que não se refere à China mas à deca-
sob o efeito do aparecimento de meios supe- dência das velhas estruturas culturais européias ante
riores de dominação da natureza, permitindo os novos acontecimentos, no qual ele responde a Henri
e exigindo construções culturais superiores. Lefebvre (que, aliás, era o único intelectual do
Distingue-se entre uma fase ativa de decom- establishment, amigo de Debord, tolerado pelos si-
posição, demolição efetiva das velhas supe- tuacionistas), rebatendo a crítica que este fazia aos
restruturas – que cessa nos anos 30 –, e uma situacionistas como “românticos-revolucionários”.
fase de repetição, que domina desde então. O Nesse texto, que fará estragos nos meios da esquerda,
atraso na passagem da decomposição a cons- Debord propõe uma associação internacional de
truções novas está ligado ao atraso na liqui- situacionistas que seria uma “união dos trabalhado-
dação revolucionária do capitalismo (IS, n°1, res de um setor avançado da cultura” ou como uma
p. 13, 1958). “tentativa de organização de revolucionários profis-
sionais da cultura” (Debord, Thèses sur la révolution
Ainda nesse primeiro número da revista IS, os culturelle, IS, n° 1, p. 21, 1958).
situacionistas atacam as características alienantes da Encontramos, ainda nesse primeiro número, um
vida nas grandes cidades propondo um novo urbanis- artigo do artista plástico dinamarquês Asger Jorn so-
mo e uma arquitetura voltados para a transformação bre a automação, que coloca, de modo embrionário,
radical da vida cotidiana. Os avanços técnicos não muitas das questões relacionadas com o avanço téc-
são percebidos como entrave, muito pelo contrário, nico ainda hoje não resolvidas, alertando contra os
eles devem estar a serviço da mudança. Seus gritos perigos de um progresso tecnológico não discutido e
de alerta contra os perigos da banalização, lançados não apropriado conscientemente pela sociedade:
nos anos 1950, tomam agora contornos premonitórios,
como é possível perceber no texto a seguir, que reto- Se, como pretendem os cientistas e técnicos, a auto-
ma um relatório adotado pela Internacional Letrista, mação é um novo meio de libertação do homem, ela deve
já em 1953: implicar uma superação das atividades humanas prece-
dentes. Isto obriga a imaginação ativa do homem a supe-
Uma doença mental invadiu o planeta: a banalização. rar a realização da própria automação. Onde encontramos
Todos estão hipnotizados pela produção e pelo conforto – tais perspectivas, que fazem do homem mestre e não es-
esgotos, elevador, banheiros, máquina de lavar. Este estado cravo da automação?. (Asger Jorn, Les situacionnistes et
de fato, que nasceu de um protesto contra a miséria, extra- l’automation, IS, n° 1, p. 22-23, 1958, minha tradução,
pola seu objetivo longínquo – libertação do homem de suas grifo meu)

128 Jan/Fev/Mar/Abr 2003 Nº 22


A formação na sociedade do espetáculo

A preocupação com os perigos e benesses trazi- de interesse das primeiras propostas dos letristas, re-
dos por tecnologias novas e de poder desconhecido tomadas e aprofundadas pelos situacionistas, está no
se revela ainda maior quando se relaciona com a cul- fato de que eles estão entre os primeiros a perceber
tura e arte e, por conseqüência, com a política. O ci- questões inéditas colocadas pelo progresso técnico e
nema é percebido como o “substituto passivo da ati- pelas transformações do trabalho, criando maior tem-
vidade artística unitária que se tornou possível”, pois po livre e uma nova dimensão da vida social: o lazer,
ele traz “poderes inéditos à força reacionária e gasta em sua dupla acepção de tempo livre e divertimento.
do espetáculo sem participação”. O revolucionário A questão estava em saber, ante as possibilidades da
deve então, ao mesmo tempo, combater no cinema a técnica, se o homem poderia viver plenamente seu
“tendência a constituir a anticonstrução de situações tempo livre, realizando seus desejos e exercendo sua
(a construção de ambiência do escravo, a sucessão de criatividade, ou se, ao contrário, os meios técnicos
catedrais)” e reconhecer os aportes positivos das no- serviriam para aprofundar a exploração e criar novas
vas aplicações técnicas. Trata-se de se apropriar do formas de alienação.
cinema, visto como meio extremamente importante, Revelando uma filiação hegeliana que os sustenta
pois ele traz “meios superiores de influência” e por na crença idealista de uma revolução nascida na di-
isso acarreta necessariamente seu controle pela clas- mensão cultural, impossível de ser pensada no qua-
se dominante. O anticinema de Debord é talvez o me- dro do marxismo ortodoxo vigente na época, que re-
lhor exemplo prático desta vontade radical de denun- duzia a cultura a mera superestrutura determinada pela
ciar a dimensão alienante do cinema industrial, economia, os situacionistas se propõem a transformar
baseado na passividade distraída dos espectadores. É o mundo com as armas da arte, incluídas as novas
provável que ele tenha sido o primeiro cineasta mal- mídias:
dito, se não o único.
Evidentemente, a decadência das formas artísticas,
No cinema, Debord sempre se propôs a não fazer nada embora se traduza pela impossibilidade de sua renovação
do que nele se fazia, e de fazer tudo o que aí não se fazia. criativa, não acarreta imediatamente seu verdadeiro desa-
Durante todo um período de vinte e cinco anos, cada um de parecimento prático. Elas podem se repetir com diversas
seus filmes, bem concebidos para agravar seu caso, confir- nuances. Mas tudo revela o “abalo deste mundo”, para fa-
mou esta detestável ambição. [...] O negativo tendo sido lar como Hegel no prefácio da Fenomenologia do espírito.
menos experimentado no cinema que em outras partes, tal- [...] Nós devemos ir mais longe, sem nos vincularmos a
vez não tivesse existido nenhum cineasta maldito se Debord nada da cultura moderna, nem tampouco de sua negação.
não tivesse realizado seus filmes. (Comentário irônico na Nós não queremos trabalhar para o espetáculo do fim do
“orelha” do livro Oeuvres cinématographiques complètes, mundo, mas para o fim do mundo do espetáculo. (IS, n° 3,
Debord, 1978) p. 8, 1959, minha tradução, grifo meu)

A recusa do trabalho e a luta revolucionária, em Os situacionistas se colocam contra a cultura em


termos diametralmente opostos aos da esquerda or- sua forma convencional, mas não contra a cultura em
ganizada, baseadas na afirmação da subjetividade e si. Ao contrário, eles estão a favor ao outro lado da
na prática cultural, revelam suas origens surrealistas cultura: “Não antes dela, mas depois. Dizemos que é
e aproximam os situacionistas do existencialismo, que necessário realizá-la, superando-a enquanto esfera
eles criticam e desprezam, mas do qual representam separada” (IS, n° 8, 1963, p. 21). Os situacionistas
bem uma versão mais radical, pois compartilham com não querem pôr a poesia a serviço da revolução, como
os existencialistas uma oposição extremada da subje- propõe o realismo-socialista, mas “pôr a revolução a
tividade do sujeito à objetividade do mundo. O gran- serviço da poesia”, porém de uma poesia sem poe-

Revista Brasileira de Educação 129


Maria Luiza Belloni

mas, já que a obra de arte deixa de ter sentido na so- determinismo econômico, que acaba por aceitar como
ciedade sem classes e sem trabalho, de realização dos “natural” a autonomização da economia que submete
desejos, sonhada por eles. Isso lhes valeu críticas de a vida humana à sua lógica, que modela todas as esfe-
todos os lados, presentes e póstumas, como a de ras do mundo vivido. Debord pretende construir uma
Anselm Jappe (1999): alternativa revolucionária, ir além do marxismo orto-
doxo, com uma teoria que supere a separação entre a
No entanto, é curioso observar o quanto a condena- teoria e a prática.
ção situacionista da obra de arte se assemelha à concepção
psicanalítica que vê na obra a sublimação de um desejo Com os instrumentos de Marx e de Lukács, Debord
irrealizado. Segundo os situacionistas, dado que o progres- tentará, na seqüência, construir uma teoria que possa com-
so eliminou todo o entrave à realização dos desejos, a arte preender e combater essa forma particular de fetichismo
perde sua função, pois esta é, de qualquer modo, inferior que nasceu nesse meio tempo, que ele chama de espetácu-
aos desejos. Este é, sem dúvida, um dos pontos mais discu- lo. (Jappe, 1999, p. 17)
tíveis da teoria situacionista da arte. (p. 996)
Jappe ressalta também que, para entender
A sociedade do espetáculo: Debord, é preciso “analisar as fontes, às quais deve
a atualidade do conceito mais do parece à primeira vista”. De fato, a inspiração
marxiana do pensamento de Debord é declarada logo
As idéias revolucionárias discutidas à exaustão no primeiro aforismo de A sociedade do espetáculo:
nas intermináveis reuniões situacionistas iriam fazer
brotar do gênio de Debord uma das obras mais im- Toda a vida das sociedades nas quais reinam as con-
portantes para a compreensão do mundo ocidental, dições modernas de produção se anuncia como uma imen-
no final do século XX. Debord, intelectual “maldi- sa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente
to”, cineasta radical do anticinema, filósofo das “si- vivido se afastou numa representação. (SdE, §1)
tuações e “doutor de nada”, escreveu, aos 26 anos, A
sociedade do espetáculo, na qual prenuncia o século Tal afirmação categórica é simplesmente uma pa-
XXI, povoado de máquinas “inteligentes” que nos per- ráfrase da primeira frase de O capital: “A riqueza das
turbam. A sociedade do espetáculo (1967)1 condensa, sociedades em que domina o modo de produção capi-
em poucas páginas, na forma de aforismos, num esti- talista aparece como ‘imensa acumulação de mercado-
lo impecavelmente elegante e claro, inspirado nos fi- rias’”, na qual Marx (1983, v. 1, p. 43) se refere à sua
lósofos moralistas e nos memorialistas do século XVII, obra anterior, Contribuição à crítica da economia po-
uma reflexão original sobre a sociedade contemporâ- lítica. Esse início audacioso revela de saída o caráter
nea, que revisita, “desvia” e ressignifica – radicali- do personagem, inclinado à provocação intelectual e
zando – as categorias fundamentais do marxismo ao radicalismo das opiniões, mas também diz muito da
hegeliano dos jovens Marx e Lukács: alienação, falsa época e da ambiência dos anos 1950 e 1960, de pro-
consciência, reificação, fetichismo da mercadoria, gresso técnico, econômico e social e muita agitação
forma-mercadoria, valor de troca, trabalho abstrato. política, quando tudo parecia possível, quando a
Trata-se, para Debord, de levar às últimas conseqüên- irreverência e a iconoclastia começavam a extrapolar
cias a crítica ao marxismo oficial (dos partidos, das os limites das vanguardas artísticas para inspirar a re-
universidades), preso na armadilha estruturalista do beldia de grande parte da juventude na Europa, nos
Estados Unidos e nos países do Terceiro Mundo.
Sua inspiração marxista, no entanto, está na
1
Doravante referida como SdE. contracorrente tanto do marxismo dos partidos comu-

130 Jan/Fev/Mar/Abr 2003 Nº 22


A formação na sociedade do espetáculo

nistas, que se havia tornado a ideologia legitimadora cindiu em realidade e imagem” (SdE, § 7). Essa ci-
da modernização tardia do capitalismo de Estado dos são faz o espetáculo aparecer como finalidade do
regimes totalitários do leste europeu, quanto dos ou- modo de produção reinante, quando na verdade o es-
tros partidos de esquerda, críticos do estalinismo so- petáculo é muito mais seu modo de funcionamento:
viético, mas tão ortodoxos e ideológicos quanto os o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma
partidos comunistas (Maoísmo, Trotskismo etc.). relação social entre pessoas, mediatizada por imagens
Debord se colocava também contra os universi- (SdE, § 4).
tários de todas as correntes da esquerda que se deixa- A vitrine do espetáculo, sua face mais visível,
vam fascinar pelo marxismo científico, irrefutável seu monólogo ininterrupto e auto-elogioso, é com-
porque científico, professado nas academias, a quem posta por esse complexo sistema de mídias que Debord
os situacionistas dirigiam suas mais acerbas críticas. pressentia como modelo socialmente dominante,
Alain Touraine, Abrahan Moles, Edgar Morin e, evi- como “afirmação onipresente” da lógica da produ-
dentemente, Louis Althusser são alguns dos nomes ção industrial e do consumo de massa, “presença per-
muito conhecidos hoje e que na época eram os alvos manente” das justificações do sistema ocupando o
preferidos das flechas teóricas dos situacionistas, que tempo livre do indivíduo, das mais variadas formas
os acusavam de defender concepções estruturalistas de produtos espetaculares: informação, lazer, publi-
negadoras da história e de desfrutar as benesses do cidade (SdE, § 6).
estruturalismo oficial, entre outros pecados menores. O conceito de “sociedade do espetáculo” não
Debord vai concentrar seus esforços teóricos num deve, pois, ser entendido como uma mera referência
tema central da obra de Marx, deliberadamente igno- aos meios de comunicação de massa, que Debord con-
rado pelo marxismo oficial: a crítica radical ao sidera como “o aspecto restrito” do espetáculo, sua
fetichismo da mercadoria, conceito tão difícil de en- “manifestação superficial mais esmagadora”. Essa
tender quanto de operacionalizar como palavra de or- manifestação, todavia, faz parte da totalidade e é a
dem de mobilização das massas trabalhadoras. O con- mais espetacular e, por isso, parece invadir a socieda-
ceito de espetáculo é central para compreender essa de como “instrumentação que convém a seu automo-
proposta teórica que se quer revolucionária. Nele es- vimento total” (SdE, § 24).
tão contidas as idéias fundamentais de Debord sobre A comunicação unilateral, típica desses meios, é
a sociedade contemporânea: a separação, o afastamen- absolutamente funcional ao sistema, à lógica domi-
to do mundo vivido em imagens que o representam, nante, de tal modo que a satisfação das necessidades
criando um mundo de imagens autonomizadas, que sociais, a “administração desta sociedade e todo o
escapam ao controle do homem, da mesma forma que, contato entre os homens já não se podem exercer se-
segundo Sfez (1994), a criatura (TICs) escapa ao con- não por intermédio deste poder de comunicação ins-
trole do criador. O espetáculo é uma inversão da vida tantâneo” (SdE, § 24).
e, enquanto tal, “é o movimento autônomo do não- O conceito de espetáculo foi gestado na Inter-
vivo” (SdE, § 2). nacional Situacionista nos anos 1950 e aparece pela
A separação é outro dos conceitos fundamentais primeira vez na revista em 1958, influenciado pela
da teoria do espetáculo. Da mesma forma que o tra- leitura surrealista e vanguardista do mundo e por pro-
balhador, separado não só do produto de seu trabalho postas revolucionárias: a construção de situações –
como do processo de produção, perde a visão unitá- novas – de arte como participação, tendo superado a
ria sobre sua atividade, o indivíduo perde, na socie- separação artista/espectador – começaria depois do
dade do espetáculo, a visão da totalidade, da unidade desmoronamento da noção de espetáculo, cujo prin-
do mundo. Segundo Debord, a separação faz parte cípio está ligado ao conceito de alienação, ou seja,
dessa unidade, pois a própria “práxis social global se de não-participação.

Revista Brasileira de Educação 131


Maria Luiza Belloni

A ressignificação do conceito marxista de alie- tuacionistas, que enfatizam as categorias de falsa cons-
nação é central para a compreensão do que é espetá- ciência e reificação, que Lukács relaciona, de forma
culo para Debord e os situacionistas, que destacam a mais clara que Marx, com a divisão do trabalho, agora
evolução histórica desse fenômeno, caracterizado tornada muito mais complexa e planejada, com o taylo-
como uma degradação que vai do “ser” pré-moderno rismo e o fordismo. O “otimismo ingênuo de Lukács”
ao “ter” capitalista, típico da modernidade, para che- inspira os jovens intelectuais situacionistas, pois lhes
gar ao “parecer” do espetáculo. Essa evolução signi- permite construir uma utopia: a idealização de um su-
fica o empobrecimento da vida cotidiana (mundo jeito irredutível à reificação, capaz de se apropriar das
vivido), fragmentado em esferas cada vez mais sepa- técnicas e colocá-las a serviço da poesia e da arte vivi-
radas. Tudo o que antes era vivido afasta-se em ima- das por todos os seres humanos. O sonho do sujeito
gens e representações. Ficam muito claros os tons ide- emancipado, reatualizado e radicalizado pelos situa-
alistas do pensamento de Debord: de um lado por cionistas, um dos eixos básicos da teoria do espetáculo
idealizar um passado não-alienado, uma idade de ouro, de Debord, inscreve-se na “linha de continuidade e da
e de outro, por buscar inspiração e argumentos nos autocrítica do iluminismo, isto é, da “dialética do
textos mais hegelianos de Marx, justamente aqueles iluminismo” (Jappe, 1999, p. 201).
considerados “filosóficos”, logo, pouco científicos, A razão iluminista, no entanto, que devia liber-
pelos exegetas do marxismo (SdE, § 1, 30, 32). tar os homens do medo e dos mitos e torná-lo sobera-
No espetáculo das mídias, as vedetes têm a fun- no, isto é, emancipado, tinha se transformado em ra-
ção de viver e representar todos os aspectos importan- zão instrumental, submetendo o espírito humano ao
tes da vida dos quais os indivíduos reais estão separa- trabalho alienado. Trata-se, pois, de superar as novas
dos, incapacitados de viver diretamente. “O espetáculo formas de alienação, criando novas formas de intera-
é o momento em que a mercadoria chega à ocupação ção, idéias que remetem a Habermas e à sua proposta
total da vida social” (SdE, § 41), ou seja, a lógica mer- de ação comunicativa como razão alternativa à lógi-
cantil tomou conta de todas as dimensões da vida hu- ca instrumental do capital.
mana: “Neste ponto da ‘segunda revolução industrial’, Além do jovem Lukács, essa filiação idealista e
o consumo alienado torna-se para as massas um dever hegeliana de Debord o aproxima de outro pensador
suplementar à produção alienada” (idem). que, na mesma época, construía uma visão semelhante
A inspiração em Lukács é clara na reapropriação da sociedade industrial: Herbert Marcuse, um dos
das categorias essenciais de História e consciência membros da Escola de Frankfurt e filósofo inspirador
de classe (1960), a obra mestra do jovem Lukács: to- do movimento hippie americano. O indivíduo típico do
talidade, consciência de classe, fetichismo da merca- capitalismo, o homem unidimensional de Marcuse –
doria, falsa consciência e separação. A idéia de sepa- completamente determinado pela lógica do trabalho
ração, fundamental em Lukács, é característica básica e estabelecendo “relações libidinosas com a merca-
da sociedade do espetáculo e corresponde à proposta doria” como forma de realizar a felicidade e satisfa-
dos situacionistas de superação da arte como duali- zer instintos –, está terrivelmente próximo do indiví-
dade entre criador e espectador. duo preso a papéis falaciosos e miseráveis, dos
O espetáculo é um fenômeno total, que só pode indivíduos isolados e das massas atomizadas que são
ser compreendido pela categoria da totalidade, inter- a base da sociedade do espetáculo (SdE, § 60, 62 e
pretação hegeliana da dialética, em oposição a uma 221; Marcuse, 1968).
concepção mais “científica” (estruturalista ou positi- No centro da concepção de espetáculo está a tec-
vista) do materialismo dialético, que enfoca mais a nologia, com seus desafios à criação artística e cientí-
determinação econômica, entendida como uma con- fica e seu poder potencializador da separação generali-
tradição entre estruturas. Lukács é retomado pelos si- zada, típica do espetáculo e fundamento da alienação –

132 Jan/Fev/Mar/Abr 2003 Nº 22


A formação na sociedade do espetáculo

nexo a fazer com Habermas (1973, 1976), que na mes- do sucesso hierárquico, em uma infinidade de objetos e
ma época, na Alemanha, buscava estabelecer as rela- gadgets que exprimem, real e ilusoriamente, signos de per-
ções entre interesse e conhecimento e entre ideologia, tencimento a estratificações da sociedade de consumo [...].
ciência e técnica e construir as bases de sua teoria da O espetáculo dos objetos múltiplos que estão à venda con-
ação comunicativa. A crença na possibilidade de do- vida a assumir papéis múltiplos, porque ele obriga cada um
minar (maîtriser) o avanço técnico e colocá-lo a servi- a se reconhecer, a se realizar, no consumo efetivo desta pro-
ço do desenvolvimento humano pleno, emancipado, dução difundida por toda a parte. (IS, n° 10, p. 45, 1966)
acha seu fundamento na crença em um sujeito capaz
de escapar da alienação, inspirada em Lukács. A críti- Para ilustrar a idéia de espetáculo concentrado,
ca de Jappe, trinta anos depois, é arrasadora, conside- os situacionistas, curiosamente, recorrem aos exem-
rando o incrível avanço das TICs: plos do Terceiro Mundo; não diretamente ao império
soviético, mas a suas encarnações periféricas. Segun-
Parece ausente de História e consciência de classe, do eles:
bem como de A Sociedade do espetáculo, a suspeita de que
o sujeito possa ser corroído em seu próprio interior pelas Na zona subdesenvolvida do mercado mundial, reú-
forças da alienação que, condicionando também o incons- ne-se na ideologia e, no caso extremo, num só homem, tudo
ciente dos sujeitos, os faz identificarem-se ativamente com o que é garantido pelo estado como admirável, indiscutí-
o sistema que os contém. (1999, p. 46) vel, que se trata de aplaudir e de consumir passivamente. A
fraca quantidade de mercadorias realmente disponíveis ten-
Embora muitos situacionistas acreditassem que de a reduzir este consumo a um puro olhar. A imagem do
bastaria os sujeitos interagirem para construir o con- poder, na qual este olhar deve achar toda sua felicidade, é
senso revolucionário, Debord provavelmente é me- pois um conjunto das qualidades socialmente reconheci-
nos ingênuo e enfatizava o poder do espetáculo e de das. Sukarno (o ditador indonésio) devia ser ao mesmo tem-
suas técnicas. Ele está longe, no entanto, de acreditar po um genial condutor do povo e um irresistível sedutor de
na potência autônoma da técnica: a separação entre a cinema. (idem, p. 44)
ação social real e sua representação cristalizada nas
mídias não é, de modo nenhum, para Debord, uma Para Debord, a forma concentrada do espetáculo
conseqüência inexorável da evolução técnica, mas de é típica do “capitalismo burocrático”, no qual a dita-
uma certa apropriação de seus resultados: o poder dura da economia não deixa “nenhuma escolha às
econômico e político, isto é, o capitalismo e sua (nova) massas exploradas”, devendo pois ser “acompanhada
forma espetacular. de violência”. Essa violência é simbólica quando o
O conceito de espetáculo se refere tanto à socie- espetáculo apresenta a imagem imposta do bem que
dade capitalista como à comunista, considerada pe- “concentra-se num único homem, que é a garantia de
los situacionistas como uma forma subdesenvolvida sua coesão totalitária”. Na falta de mercadorias a con-
de capitalismo “de Estado”. Duas formas diferentes sumir, consome-se a imagem do líder, num sentido
de espetáculo caracterizam uma e outra: o espetáculo aceitável para a exploração absoluta: “Se cada chinês
difuso, típico das sociedades de consumo, e o espetá- deve aprender Mao, e assim ser Mao, é que ele não
culo concentrado, dos países socialistas não-demo- tem mais nada para ser”. Por outro lado, ela baseia-se
cráticos, seja o império soviético, sejam as novíssimas na violência física, como adverte Debord: “Lá onde
repúblicas da África ou da Ásia. No espetáculo difuso, domina o espetacular concentrado domina também a
polícia” (SdE, § 64, grifo do autor).
[...] o capitalismo, chegado à etapa da abundância das mer- O espetacular difuso é baseado na satisfação “que
cadorias, dispersa suas representações da felicidade e, pois, a mercadoria abundante já não pode dar no uso” e que

Revista Brasileira de Educação 133


Maria Luiza Belloni

terá de ser buscada em signos abstratos de prestígio unidade básica a que tudo se resume, do capitalismo
atribuídos a ela pela publicidade, nos quais se pode re- “pós”: a informação, que o autor trata em seus dois
conhecer a manifestação de “um abandono místico à aspectos modernos; a informação secreta, dos “servi-
transcendência da mercadoria” (SdE, § 67). O indiví- ços de inteligência”, e a informação pública, cons-
duo reificado se perde nas relações animistas e íntimas truída e difundida pelos meios de comunicação de
com os objetos e o “fetichismo da mercadoria” se asse- massa para formar a “opinião pública”, essa última
melha ao velho fetichismo religioso, com seus arreba- tendo como função principal a desinformação:
tamentos e convulsões: “O único uso que ainda se ex-
prime aqui é o uso fundamental da submissão” (idem). Ao contrário do que seu conceito espetacular inverti-
A sociedade hegemônica domina o planeta en- do afirma, a prática da desinformação só pode servir o Es-
quanto sociedade do espetáculo, impondo uma “divi- tado aqui e agora, sob sua direção direta, ou por iniciativa
são mundial das tarefas espetaculares” (SdE, § 57). dos que defendem os mesmos valores. De fato, a desinfor-
Mesmo “lá onde a base material ainda está ausente, a mação reside em toda a informação existente; é como seu
sociedade moderna já invadiu espetacularmente a su- caráter principal. Ela só é nomeada quando é preciso man-
perfície social de cada continente”. Ou seja, nos paí- ter, pela intimidação, a passividade. Quando a desinforma-
ses periféricos, sem mercadorias em abundância, o ção é nomeada, ela não existe. Quando existe, não é nome-
espetáculo confirma e reitera sem cessar a legitimi- ada. (Debord, 1997, p. 204)
dade daquela divisão mundial do trabalho, na qual
esses países consomem mas não produzem objetos Com a alienação tendo sido sempre o foco de sua
técnicos de que não precisam (idem). reflexão, Debord percebe com clareza as enormes po-
Com a fim da guerra fria, após a queda do impé- tencialidades das mídias no sentido de potencializar
rio soviético e o triunfo do capitalismo, a hegemonia ao máximo os aspectos enganadores, isto é, produto-
americana em sua fase pós-fordista vai impor um novo res de falsa consciência, da sociedade do espetacular
espetáculo: o espetacular integrado. Essa nova for- integrado. Suas análises sobre o complô como modo
ma, Debord já a anunciava em 1988, um ano antes da regular de participação política efetiva e sobre as fal-
queda do Muro de Berlim, quando ainda muitos inte- sificações tão terrivelmente perfeitas que são mais
lectuais ocidentais acreditavam nas promessas de verdadeiras que os originais, são aspectos importan-
Gorbatchev de um comunismo mais humano. Ao te- tes de seu pensamento crítico radical da sociedade
cer seus comentários sobre a sociedade do espetácu- contemporânea. Para demonstrar a atualidade e a im-
lo, Debord (1997) define com clareza as principais portância desses conceitos, ele próprio retoma, 30 anos
características das sociedades contemporâneas de eco- depois, a famosa paráfrase de Hegel encontrada no
nomia globalizada e cultura mundializada: parágrafo 9 de A sociedade do espetáculo:

A sociedade modernizada até o estágio do espetacu- Invertendo uma frase famosa de Hegel, eu observava,
lar integrado se caracteriza pela combinação de cinco as- já em 1967, que no mundo realmente invertido, o verdadeiro
pectos principais: a incessante renovação tecnológica, a é um momento do falso. Os anos que transcorreram desde
fusão econômico-estatal, o segredo generalizado, a menti- então mostraram os progressos desse princípio em cada do-
ra sem contestação e o presente perpétuo. (p. 175) mínio específico, sem exceção. (Debord, 1997, p. 206)

Dessas características, as duas primeiras se refe- O que vale a pena resgatar do pensamento de
rem à “base material da sociedade”, enquanto as ou- Debord e das propostas situacionistas são algumas li-
tras três dizem respeito à dimensão cultural, que nos ções que nos orientem na compreensão do que deve
interessa mais. Debord prenuncia, nesse texto, a nova ser a formação na sociedade atual e nosso papel nela.

134 Jan/Fev/Mar/Abr 2003 Nº 22


A formação na sociedade do espetáculo

Contra o realismo socialista, que “coloca a poesia a autora, Loyola, 2002) e Ensaio sobre a educação a distância no
serviço da revolução”, nossos jovens situacionistas Brasil (Revista Educação e Sociedade, Cedes/Unicamp, nº 78,
pregavam a apropriação revolucionária do cinema, da abril de 2002, p. 117-142). E-mail: malu@intergate.com.br

arquitetura, da fotografia, da arte e da técnica, armas


da burguesia, não para colocá-las a serviço da revolu- Referências bibliográficas
ção, mas para, por meio delas, pôr a revolução a ser-
viço da poesia e da realização dos desejos. ARENDT, H., (1972). La crise de la culture. Paris: Gallimard.
Em tempos de realidade virtual, de ciberespaço
BAUDRILLARD, J., (2001). Télémorphose. Paris: Sens&tonka.
e cultura da simulação, pode parecer ingênuo falar
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de revolução, especialmente tendo em vista a reali-
Autores Associados.
dade da violência e da morte lá fora. Mas é justa-
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como diz Baudrillard, 2001); o jornalismo eletrôni- cussões, de autoria de G. Debord, adotada na Conferência de
co (news all time, on line), uma proposta excessiva Unificação da IS, em julho de 1957, na Itália, reproduzida no
que lembra a pergunta tropicalista de Caetano Veloso: catálogo da exposição sobre a IS no Centro Georges-Pompidou,
Quem lê tanta notícia?; os modelos de corpos per- em 1989).
feitos que mostram cruelmente a obsolescência dos
, (1978). Oeuvres cinématographiques complètes. Pa-
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GONZALEZ, S., (1998). Guy Debord ou la beauté du négatif.


MARIA LUIZA BELLONI, doutora em Ciências da Edu-
cação pela Universidade Paris V, com pós-doutorado em Comuni- Paris: Mille et Une Nuits.

cação Política no CNRS (França) e em Educação a Distância pela HABERMAS, J., (1973). La technique et la science comme
Universidade Aberta de Portugal, é professora do Programa de idéologie. Paris: Denoël-Gonthier.
Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Univer-
, (1976). Connaissance et intérêt. Paris: Gallimard.
sidade Federal de Santa Catarina, onde coordena o grupo de pes-
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publicações: O que é mídia-educação (Autores Associados, 2001); Champ Libre (1975) (Reimpressão da coleção completa da Re-
A formação na sociedade do espetáculo (coletânea organizada pela vista, do nº 1, de junho de 1958, ao nº 12, de setembro de 1969)

Revista Brasileira de Educação 135


Maria Luiza Belloni

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136 Jan/Fev/Mar/Abr 2003 Nº 22

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