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O INTERACIONISMO E O ENSINO CONTEMPORÂNEO DE LÍNGUAS

Elaine Ferreira do Vale BORGES


(UNICAMP)

Resumo
Este artigo pretende discutir os tipos de interação subjacentes às abordagens psicológicas,
piagetiana e vygotskyana, para uma melhor compreensão da relação entre essas concepções e o
de ensino contemporâneo de línguas estrangeiras.

Palavras-chave: abordagem psicológica; ensino de língua estrangeira; interação.

1. Introdução

Quando falamos em interacionismo devemos, inicialmente, pensar no filósofo alemão


Immanuel Kant (1724-1804), que com a elaboração de seu sistema filosófico propôs a junção de
dois elementos para o desenvolvimento da nossa concepção do mundo: a razão (interno / sujeito)
e as experiências dos sentidos (externo / meio); unindo, dessa forma, os pensamentos filosóficos
racionalista (razão) e empirista (experiências dos sentidos).
Na história da filosofia, os considerados racionalistas (filósofos da razão) enxergavam
que a base de todo o conhecimento estava na consciência do homem. Por outro lado, os
chamados empíricos (filósofos da experiência) visualizavam que todo o conhecimento do mundo
derivava das nossas impressões dos sentidos.
A partir desses pressupostos filosóficos e do interacionismo kantiano, este artigo pretende
avançar em sua discussão sobre interação mostrando a relação desses pensamentos com as
abordagens psicológicas da aprendizagem e, em contra partida, como essas vertentes
psicológicas servem de referências para o ensino de línguas.
No entanto, este trabalho pretende dar maior destaque à interação sujeito-objeto
subjacente às teorias piagetiana e vygotskyana da aprendizagem e desenvolvimento na
construção do conhecimento; e à convergência funcional das mesmas na constituição das
abordagens instrumental e comunicativa de ensino de língua.
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Concluiremos este artigo com uma reflexão sobre a relação entre a abordagem
psicológica da aprendizagem e a abordagem de ensino de língua inseridas nos PCN de Língua
Estrangeira – Ensino Fundamental (PCN-LE).

2. A relação sujeito-objeto em diferentes vertentes da construção do conhecimento

De acordo com Matui (1995), o racionalismo valorizava a razão ou o pensamento como


fonte do conhecimento, visão compartilhada pelos chamados “inatistas”, em uma versão do
racionalismo moderno. A teoria das “idéias inatas”, então, acaba por atribuir uma importância
exagerada à razão ou ao sujeito que traz consigo uma “bagagem hereditária” capaz de
amadurecer mais tarde no contato com o objeto. Essa concepção influenciou os
encaminhamentos da Gestalt ou psicologia da forma. Por outro lado, o empirismo enxergava o
conhecimento como algo que vem de fora, do objeto ou meio, e á aprendido por meio dos
sentidos, das experiências ou de estímulos externos. Esse pensamento influenciou teorias
psicológicas como o behaviorismo e o associacionismo, pela valorização do condicionamento e
das associações estímulo-resposta.

RACIONALISMO inatistas behavioristas EMPIRISMO


(filósofos da razão) (filósofos da experiência)
SUJEITO OBJETO SUJEITO OBJETO
o conhecimento está na razão o conhecimento vem do estímulo

INTERACIONISMO construtivistas
(KANT: a razão e a experiência dos sentidos são as bases do conhecimento humano)

SUJEITO OBJETO

a construção do conhecimento ocorre na interação sujeito-objeto

Teoria PIAGETIANA Teoria VYGOTSKYANA


(cognitivismo) (sociointeracionismo)

SUJEITO OBJETO SUJEITO OBJETO

Fig. 1 - A relação sujeito-objeto em diferentes vertentes da construção do conhecimento

Ao contrário dos racionalistas e empíricos, os chamados interacionistas conceberam a


construção do conhecimento em função da interação sujeito-objeto, ou seja, atribuíram igual
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importância aos fatores internos e externos que se inter-relacionam continuamente.
Compartilhando dessa visão interacionista temos a concepção construtivista (psicologia
cognitiva), tanto a de linha mais cognitiva (construtivismo ou cognitivismo) quanto a de linha
mais social (sócio-construtivismo ou sociointeracionismo) (cf. Fig. 1).
No construtivismo, de acordo Matui (1995: 46), o sujeito e o objeto não são estruturas
separadas (como acontece no racionalismo e no empirismo, que privilegiam um em detrimento
do outro), mas constituem uma só estrutura pela interação recíproca. O sujeito não existe sem o
objeto nem o objeto (meio) sem o sujeito.

3. A interação sujeito-objeto nas teorias piagetiana e vygotskyana

No entanto, as visões de interação sujeito-objeto na construção do conhecimento


divergem nas teorias piagetiana e vygotskyana (cf. Fig. 2)
Piaget, de acordo com Davis & Oliveira (1994), definiu o desenvolvimento como sendo
um processo de equilibrações [adaptações ao meio] sucessivas. O desenvolvimento cognitivo
ocorreria através de constantes desequilíbrios e equilibrações. Nesse processo, os mecanismos da
assimilação1 e da acomodação2 são utilizados para se conseguir o equilíbrio. Essas etapas de
desenvolvimento acabam por determinar os momentos em que a aprendizagem vai ocorrer na
criança, o que nos faz compreender que a aprendizagem [fatores externos] subordina-se ao
desenvolvimento [fatores internos] e tem pouco impacto sobre ele. Com isso, Piaget acaba por
minimizar o papel da interação social e por privilegiar a maturação biológica, constituindo uma
visão de que a construção do conhecimento ocorre do individual para o social.
Nesse aspecto, sobre o papel do desenvolvimento e da aprendizagem, Davis & Oliveira
(1994: 56) nos explicam que Vygotsky postulou que desenvolvimento e aprendizagem são
processos que se influenciam reciprocamente, de modo que, quanto mais aprendizagem, mais
desenvolvimento. Dessa forma, Vygotsky acaba por privilegiar o ambiente social (ao invés da
maturação biológica, como o faz Piaget), constituindo uma visão de que a construção do
conhecimento ocorre do social para o individual.

1
A assimilação é o processo pelo qual os elementos que compõem o meio (objeto) são modificados pelo sujeito, de
modo a serem incorporados à estrutura do organismo. Dizemos, então, que o indivíduo assimilou os elementos do
meio que passam, a partir daí, a fazer parte dele. (Nogueira & Pilão, 1998: 22)
2
A acomodação significa mudanças, transformações de um esquema já existente para que o objeto possa ser
assimilado, ou criação de um esquema novo a fim de que o objeto seja incorporado. (Nogueira & Pilão, 1998: 11).

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Com relação ao papel da linguagem no desenvolvimento e a sua relação com o
pensamento, Piaget nos propõe que o pensamento aparece antes da linguagem, sendo apenas uma
das suas formas de expressão. Sendo assim, a formação do pensamento depende, basicamente,
da coordenação dos esquemas3 sensoriomotores e não da linguagem. Esta só pode ocorrer
depois que a criança já alcançou um determinado nível de habilidades mentais, subordinando-
se, pois, aos processos de pensamento (Davis & Oliveira, 1994: 56).

Teoria PIAGETIANA Teoria VYGOTSKYANA


(cognitivismo) (sociointeracionismo)

SUJEITO SUJEITO palavra

D A
Interrogatório
D A
Indivíduo Meio
• estruturas mentais (método • experiências
• intrapessoal clínico-crítico) • interpessoal MEDIAÇÃO
• conflito cognitivo Indivíduo • instrumentos Meio
• reelaboração • palavras • sócio-histórico
• internalização e cultural
Assimilação ORGANIZAÇÃO Acomodação
• intrapessoal • interpessoal
(hipóteses, (mudanças na Dialogicidade
internalização) ADAPTAÇÃO estrutura cognitiva)

esquema OBJETO OBJETO

pensamento Î linguagem
intrapessoal Î interpessoal
D desenvolvimento Î aprendizagem A
≠ linguagem Î pensamento
interpessoal Î intrapessoal
A aprendizagem ÍÎ desenvolvimento D

Fig. 2 - A interação sujeito-objeto nas teorias piagetiana e vygotskyana

O pensamento vygotskyano sobre a inter-relação entre pensamento e linguagem se difere


do piagetiano, uma vez que é no significado da palavra que o pensamento e a fala se unem em
pensamento verbal. Nesse sentido, o significado é ao mesmo tempo um ato de pensamento e
parte inalienável da palavra como tal, e dessa forma pertence tanto ao domínio da linguagem
quanto ao domínio do pensamento (Vygotsky, 1987: 4). Assim, pensamento e linguagem, na
teoria vygotskyana, são considerados como processos interdependentes desde o nascimento.

3
Os esquemas podem ser entendidos como os responsáveis por nossa maneira de perceber, compreender e pensar
determinadas ações, ou seja, são estruturas que organizam nossa atividade mental, como referência para
interpretar o objeto. (Nogueira & Pilão, 1998: 52).
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Em linhas gerais, os termos “assimilação”, “acomodação” e “esquema” são termos
celulares no cognitivismo piagetiano, assim como os termos “mediação”, “palavra” e
“dialogicidade” os são para o sociointeracinonismo vygotskyano.

4. Abordagens psicológicas da aprendizagem, o ensino de língua estrangeira e os PCN-LE

Segundo Taglieber (1988), até o final da década de 40 o principal objetivo de


aprendizagem de uma LE era a leitura (métodos da gramática-tradução ou de leitura) dando
maior destaque à escrita. A partir daí (décadas de 50 a 60), as influências da psicologia
tradicional (behaviorismo) e da lingüística (estruturalismo) no ensino de línguas resultaram nos
princípios e fundamentos do método audiolingualista que passou a dar maior ênfase na fala.
Mas o foco apenas na oralidade foi questionado, principalmente pelos estudos nos
campos da psicolingüística e da psicologia cognitiva (década de 70) que se dedicavam à
observação do comportamento do leitor. Essas pesquisas acabaram por influenciar as
metodologias de ensino de línguas que privilegiavam o ensino de habilidades (bottom-up / de
baixo para cima ou do particular para o geral) ou estratégias de leitura (top-down / de cima para
baixo ou do geral para o particular), que, segundo Brown (1994), são classificadas como
estratégias de compreensão e podem ser utilizadas em fases diferentes da leitura (pré-leitura,
leitura e pós-leitura). Essas pesquisas marcariam a volta da ênfase na habilidade da leitura que
fora relegada a segundo plano com o advento do método áudio-lingual.
Para o ensino de línguas esses novos movimentos na psicologia cognitiva e na lingüística
(pós-estruturalista) contribuíram para a nucleação de um novo paradigma: o movimento
comunicativo de línguas4
No Brasil, o movimento comunicativo inicia-se a partir de 1978 e mais abertamente na
década de 80, com a implementação do Projeto de Inglês Instrumental nas universidades
brasileiras, coordenado por Celani, na PUC-SP; e com as publicações de Almeida Filho. Nesse
contexto, à volta da ênfase na habilidade da leitura no cenário internacional dos anos 70,
marcaria também uma nova visão sobre como ensinar uma LE enfatizada principalmente na
abordagem de ensino para fins específicos.

4
Conforme Almeida Filho (1998), o movimento comunicativo de línguas inicia-se a partir da década de 70 com os
estudos de D. A. Wilkins (notional syllabuses) e colaboradores e, posteriormente, com os de H. G. Widdowson (use
e usage).
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De forma, a abordagem de ensino para fins específicos e ou, mais recentemente
denominada, abordagem instrumental é entendida no Brasil como centrada apenas na habilidade
da leitura (com uso da língua materna) e na aprendizagem de estratégias de leitura (com ênfase
no conhecimento prévio, na ativação de esquemas e na interação leitor-texto-escritor), que teria
como referência um aspecto mais essencialmente cognitivo, inserido no construtivismo
piagetiano. Por outro lado, a abordagem comunicativa enfatiza o uso das quatro habilidades na
língua-alvo (ler, escrever, falar e ouvir), com um foco fortemente marcado na interação oral
(entre pares e/ou pequenos grupos), compartilhando de um conceito de comunicação em um
sentido mais situado – daí sua ligação maior com o sociointeracionismo vygotskyano.
De posse dessas reflexões podemos agora refletir os encaminhamentos sobre o ensino de
língua estrangeira dispostos nos PCN-LE (SEC/MEC, 1998), com sua visão sociointeracionista
da aprendizagem e orientações didáticas fundamentadas na abordagem instrumental.
Se considerarmos, como disposto anteriormente, que a abordagem instrumental teria
essencialmente como referência o cognitivismo piagetiano e que a abordagem comunicativa teria
essencialmente como referência o sociointeracionismo vygotskyano, então a concepção
psicológica da aprendizagem de base nos PCN-LE deveria ser o cognitivismo e não o
sociointeracionismo (cf. Fig. 3).

Teorias psicológicas e a localização funcional no ensino de línguas


Final déc. 40 Déc. 50 e 60 A partir da déc. de 70 A partir da década de 80

LEITURA e ORALIDADE LEITURA LEITURA LEITURA,


ESCRITA ESCRITA e
Método influências: ABORDAGEM ORALIDADE
Métodos da Áudio- Psicologia Cognitiva DE ENSINO
Gramática- Lingual e Psicolingüística PARA FINS ABORDAGEM
Tradução ESPECÍFICOS COMUNICATIVA
e de Leitura Métodos que privilegiam o ensino
de habilidades / estratégias
INTERAÇÃO:
bottom-up top-down negociação do significado
(particular Î geral) (geral Î particular)
pares e/ou
• conhecimento prévio leitor-texto-
pequenos
• bagagem experimental lingüística escritor
grupos
e do mundo em geral

• skimming • fases de leitura:


• scanning pré-leitura, leitura PCN-LE
• guessing ... e pós-leitura

BEHAVIORISMO COGNITIVISMO SOCIOINTERACIONISMO

Fig. 3 - Teorias psicológicas, ensino de línguas e PCN-LE

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5. Considerações finais

Tendo como referência os PCN-LE, que privilegiam implicitamente uma interação


sujeito-objeto mais essencialmente prevista no cognitivismo piagetiano, embora explicitam uma
interação sujeito-objeto mais essencialmente inserida no sociointeracionimo vygotskyano, este
artigo pretendeu levantar a questão da interação em diferentes concepções psicológicas de
construção do conhecimento e suas implicações para o ensino de língua.
Com isso este trabalho objetivou chamar a atenção para os aspectos da interação (em
relação às vertentes psicológicas da aprendizagem) previstos no ensino de língua estrangeira e
subjacentes às diferentes abordagens de ensino, principalmente às atualmente em destaque no
contexto brasileiro: a instrumental e a comunicativa.
6. Referências bibliográficas

ALMEIDA FILHO, J. C. P. 1998 Dimensões comunicativas no ensino de línguas. Campinas:


Pontes.
BROWN, H. D. 1994 Teaching Reading. In: Teaching by Principles: An Interactive Approach to
Language Pedagogy. Englewood Cliffs, NJ.
DAVIES, C. e OLIVEIRA, Z. 1994 Psicologia da Educação. São Paulo: Cortez, 2. ed., Coleção
magistério. 2o grau. Serie formação do professor.
MATUI, J. 1995 Construtivismo: teoria construtivista sócio-histórica aplicada ao ensino. São
Paulo: Moderna.
NOGUEIRA, E. J. & PILÃO, J. M. 1998 O construtivismo. Coleção 50 palavras, SP: Loyola.
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL (1998) Parâmetros curriculares nacionais:
terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua estrangeira.Brasília: MEC/SE.
TAGLIEBER, L. K. 1988. A leitura na língua estrangeira. In: BOHN, H. I. e VANDRESEN, P.
(orgs.) Tópicos de Lingüística Aplicada: O Ensino de Línguas Estrangeiras. Florianópolis: Ed.
da UFSC, pp. 237-257.
VYGOTSKY, L. S. 1987 Pensamento e Linguagem. Trad. Jeferson Luiz Camargo. São Paulo:
Martins Fontes.

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