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TÉDIO E TEMPO

MARCO CASANOVA
Assistimos à avidez por papéis e identidades fixas
que definem e orientem os modos de ser, sempre volá­
teis e substituídos rapidamente. Notamos com preocu­
pação a ascensão de ideais e regimes autoritários e de
extrema direita no Brasil e pelo mundo, que acreditáva-
mos estarem extintos, como objetos arqueológicos que
ora ganham vida. Vemos estarrecidos/as a difusão de
discursos preconceituosos assumidos à luz do dia, con-
comitamente à prática de violências raciais, de gênero,
de orientação sexual. Acompanhamos a demarcação
de lugares sociais e políticos, o poder desmedido dos
bancos e grandes corporações, o encarceramento em
massa, a incitação a andar armado, o desmatamento
acelerado, a proliferação de fake news. Estamos online
24h e pautamos nossas vidas pelas imagens e foto­
grafias das redes sociais. Compomos as malhas de um
mundo imparável, acelerado, hiperativo e ocupado.
Vivemos em disparada.

O que se passa conosco em nosso tempo? Qual a


tonalidade afetiva que nos transpassa? O fato é que nos
tornamos desinteressantes para nós mesmos e somos
transpassados pelo tédio.

O fenômeno, tão grave quanto despercebido, é


analisado por Marco Casanova com a acuidade de sem­
pre no livro que o leitor e a leitora têm agora em mãos.

Leitor, tradutor, intérprete e interlocutor crítico


de Heidegger há mais de 40 anos, Casanova nos desa­
loja mais uma vez com o seu olhar e a sua pena afiados
e afinados com a época em que nos movimentamos in-
sofreavelmente no vazio do termo-nos tornado desin­
teressantes para nós mesmos. A tarefa de despertar a
insignificância na qual mergulha o ser-aí na época atual,
deixando-se em tudo substituir pela técnica, faz resso­
ar os idos de 1929 e 1930, em que o filósofo alemão já
se debruçava clinicamente para escutar a voz da época,
velada pelo ruído ensudercedor da composição técnica.

Tarefa análoga é assumida pelo autor do presen­


te livro: a de despertar o nosso filosofar atual, afinado
pelo tédio. Mas Casanova não somente considera o
COLEÇÃO AFETOS
PROF. DR. MARCO CASANOVA

TÉDIO E TEMPO:
SOBRE UMA TONALIDADE AFETIVA FUNDAMENTAL
FÁTICA DE NOSSO FILOSOFAR ATUAL

OUTRA COUSA que também me parece


metafísica é isto: - Dá-se movimento a
uma bola, por exemplo; rola esta, encon­
tra outra bola, transmite-lhe o impulso,
e eis a segunda bola a rolar como a pri­
meira rolou. Suponhamos que a primeira
bola se chama... Marcela, - é uma simples
suposição; a segunda, Brás Cubas; a tercei­
ra, Virgília. Temos que Marcela, recebendo
um piparote do passado rolou até tocar
em Brás Cubas, - o qual, cedendo à força
impulsiva, entrou a rolar também até es­
barrar em Virgília, que não tinha nada com
a primeira bola; e eis aí como, pela simples
transmissão de uma força, se tocam os ex­
tremos sociais, e se estabelece uma cousa
que poderemos chamar-solidariedade do
aborrecimento humano. Como é que esse
capítulo escapou a Aristóteles?

(Machado de Assis, Memórias Póstumas de


Brás Cubas, "Que escapou a Aristóteles")
1. O tédio sem movimento ou o enfado no
coração do mundo.

Nossas compreensões medianas do tédio tendem nor­


malmente a tomá-lo como um sentimento que produz o despontar
imediato de uma certa experiência de letargia, uma sensação mui­
tas vezes paralisante de enfado e modorra. Nós denominamos,
a princípio, entediante aquilo que não é capaz de atiçar nosso
interesse e cativar nossa vontade, aquilo que se mostra como por
demais arrastado, aquilo que deprime nosso movimento e nos
lança em uma imensa monotonia do espaço e do tempo. Com
isso, o tédio parece estar essencialmente ligado à quebra de um
determinado ritmo existencial, à incapacidade de prosseguirmos
a dinâmica de nossos afazeres cotidianos, à interrupção de nosso
movimento automático de preenchimento dos momentos com
ações - sendo que essa quebra, essa incapacidade e essa inter­
rupção são pensadas como completamente externas à existência,
como traços subsistentes de certas coisas ou estados de coisas.
Em nossas vidas cotidianas, plenamente presentes em meio aos
caminhos mais diversos, envoltos na miríade de negócios do
mundo ôntico, parecemos livres de todo tédio e distantes de
toda situação na qual ele poderia nos visitar. Assim, para que
nos vejamos entediados, é preciso, antes de tudo, que algo deter­
minado aconteça e perturbe abruptamente a dinâmica de nossos
empreendimentos rotineiros. Cotidianamente, portanto, nós só
nos vemos entediados quando algo se interpõe em nossa existên­
cia e nos obriga a abandonar temporariamente o salto incessante
de uma atividade para a próxima. Se tal interposição não ocorre,
supomo-nos livres de todo ser entediado e capazes mesmo de
orientar nossas vidas para além de todo e qualquer contato com

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seu campo de aparição. Em suma, nós nunca supomos aqui a
nós mesmos como entediantes, mas sempre assumimos o tédio
como vindo de fora. Nesse sentido, soa maximamente estranha a
afirmação de Heidegger em sua preleção do semestre de inverno
de 1929/30, Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo,
finitude, solidão, de que a tarefa da preleção seria despertar o
tédio como uma tonalidade afetiva fundamental de nosso filo­
sofar atual; e essa estranheza acirra-se ainda mais no momento
em que nos damos conta de que essa tonalidade se confundiría,
para ele, não com um tédio cotidiano, mas com algo denominado
tédio profundo. Tal como se encontra formulado no tópico a do
parágrafo 16:

A tarefa fundamental consiáte agora no


despertar de uma tonalidade afetiva fun­
damental de nosso filosofar. Eu digo inten­
cionalmente: de nosso filosofar, não de um
filosofar qualquer ou mesmo da filosofia
em si, que nunca há. Cabe a nós despertar
uma tonalidade afetiva fundamental, que
deve suátentar nosso filosofar12.

E ele prossegue no tópico c do parágrafo 18: “Será que


as coisas se dão de tal modo conosco, que um tédio profundo
atravessa de cá para lá os abismos do ser-aí como uma névoa
silenciosa?'’'’- Filosofia e despertar de uma tonalidade afetiva

[1] heidegger, Martin. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, fini­


tude, solidão. Obra completa 29/30, 1998, p. 89.
[2] Idem,igg8 p. 115. Por mais que a passagem assuma a forma interrogativa, o
contexto deixa claro que se trata de uma pergunta meramente retórica, que

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fundamental - mundo contemporâneo, filosofar atual e tédio
profundo. Esse é o estranho nexo estrutural do qual parte a pre-
leção de inverno de 1929/30. Mas as coisas não param por aí.
Toda essa estranheza ganha novos contornos, ao vermos o autor
se lançar não simplesmente em direção a um empenho crítico
ante o tédio, mas estabelecer como meta explícita despertar essa
tonalidade afetiva fundamental. O que importa a Heidegger,
desde o princípio, aqui não é buscar modos de afugentar o tédio
ou de escapar de sua presença, mas, antes, expressamente se
lançar em um modo próprio de relação com o tédio, em uma
descrição do acontecimento radical que tem lugar em meio a tal
relação. A tarefa da preleção é, nas palavras do próprio filósofo,
deixar que o tédio que dormita em nosso horizonte histórico
enquanto tal venha à tona e nos afine. Não que ela busque nos
entediar: isso colocaria a obra, como veremos mais à frente,
em uma relação superficial com o tédio. Não, obviamente não.
O que ela procura empreender é, sim, enraizar nossa experiên­
cia de mundo no tédio como tonalidade afetiva fundamental.
Assim, uma série de perguntas parece se impor como que por
si mesma e guiar nossa investigação: em que medida é possível
sustentar o tédio como uma tonalidade afetiva fundamental de
nosso ser-aí atual? O que constitui propriamente uma tonalidade
afetiva e o que a toma fundamental? O que significa no presente
contexto a afirmação de que ela é uma e não a tonalidade afeti­
va fundamental de nosso filosofar atual? Essa afirmação retira
o lugar paradigmático do tédio para pensar o nosso tempo e o
mundo que é o nosso? Até que ponto é possível superar o caráter
marcadamente extrínseco e contingente da compreensão mais

pode tranquilamente ser tratada como uma afirmação: um tédio profundo cla­
ramente atravessa de cá para lá os abismos do ser-aí.

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imediata do tédio e aprofundá-lo, aproximando-o do que mais à
frente interpelaremos como os abismos do ser-aí? O que há de
propriamente filosófico nesse movimento? Há diferenças entre
figuras determinadas do tédio? Elas são completamente dife­
rentes ou possuem, em verdade, algumas estruturas originárias
em comum, que tomam possível descrever o tédio na chave dos
fenômenos existenciais de Ser e tempo? Supondo que elas sejam
diferentes, em que medida é possível pensar tal diferença a partir
de algo assim como níveis diversos de profundidade - algo que
está diretamente insinuado pela menção a um tédio profundo? O
que há de propriamente fenomenológico e hermenêutico no modo
heideggeriano de lidar com o tédio profundo como tonalidade
afetiva fundamental? Heidegger acena com uma primeira via de
resposta a essas questões em uma passagem do parágrafo 20 de
Os conceitos fundamentais da metafísica'.

Pois exatamente isso permanece obs­


curo para nós: em que medida o tédio
deve ser nossa tonalidade afetiva fun­
damental, e, evidentemente, uma tona­
lidade afetiva fundamental essencial.
Através dessa afirmação, talvez não
ressoe em nós absolutamente nada: é
possível que essa afirmação não nos
evoque mesmo nada. Por que será que
isso acontece? Talvez não conheça­
mos eéie tédio, porque não entende­
mos o tédio em geral em sua essência.
Talvez não conheçamos a sua essên­
cia, porque ele jamais se tornou es­
sencial para nós. E o tédio não pode,
por fim, tomar-se essencial para nós,
porque ele pertence àquelas tonalida­
des afetivas que não apenas afugen­
tamos cotidianamente, como também

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não deixamos frequentemente que nos
afinem como tonalidades afetivas;
mesmo quando elas eátão aí.3

A passagem acima articula explicitamente a estranheza


diante da afirmação do tédio como tonalidade afetiva fundamen­
tal de nosso filosofar atual (o que pode ser lido em Heidegger
como um sinônimo de nosso ser-aí atual) com o nosso desco­
nhecimento da essência do tédio, assim como com a nossa difi­
culdade de deixar que ele se tome essencial para nós. Ao mesmo
tempo, Heidegger acentua ao final que esse desconhecimento e
essa dificuldade estão enraizados no modo cotidiano de existên­
cia, naquilo que em Ser e tempo aparece como o modo de ser de
saída e na maioria das vezes do existir humano. Por um lado, o
tédio claramente não se mostra como um fenômeno desconhecido
para o ser-aí cotidiano: ele está evidentemente entre as experiên­
cias mais comuns do dia a dia do ser humano de nosso tempo,
mobilizando todo um conjunto enorme de estratégias próprias ao
campo da diversão e do entretenimento tanto quanto caracteri­
zando o afa da vida cotidiana na busca por coisas sempre e cada
vez mais interessantes. Ele não é apenas o demônio do meio-dia,
que se aproxima de nós em nossos momentos de sonolenta in­
terrupção de atividades, mas se mostra hoje muito mais como
o amigo de todas as horas, quer notemos ou não sua presença.
Todavia, todas as experiências cotidianas do tédio acompanham
a tendência estrutural da cotidianidade para superficializar de
maneira reificadora a existência em meio ao automatismo das
atividades utensiliares, atividades que se mantêm no ritmo in­
cessante da sucessão infinita dos agoras. De saída e na maioria

[3] Idem, 1998, p. 98.

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das vezes, é o que não cansamos de acompanhar nas diversas
preleções e textos heideggerianos da década de 1920: ninguém
concebe propriedades por si subsistentes dos entes em geral,
mas todos sempre lidam a cada vez de maneira circunvisiva com
utensílios em meio a campos conformativos, ou seja, em meio
a campos que se sustentam a partir da articulação entre totali­
dade significativa (significância) e sentido, nos quais se impõe
constantemente aquilo que respectivamente precisa ser feito. No
cotidiano, dá-se originariamente o domínio quase irrestrito da
lógica da ocupação no interior da mediania do existir. De saída
e na maioria das vezes, não nos compreendemos plenamente a
partir de nossas possibilidades mais próprias de ser, mas, sim, a
partir de caminhos impessoais desde o princípio dados à mão4.
Jogados em um mundo fático específico, vemo-nos incessante­
mente absorvidos por uma miríade de referências utensiliares,
que viabilizam as escolhas das diversas ações em geral e promo­
vem ao mesmo tempo as nossas interpretações cotidianas tanto
de nós mesmos quanto dos outros. Assim, nosso ser e o ser dos
entes intramundanos como um todo se determinam aí em função

[4] H. G. Gadamer chama em Hegel, Husserl, Heidegger esse movimento


empreendido por Heidegger na década de 1920 de “virada prática no interior
da hermenêutica”, contrapondo a fenomenologia hermenêutica heideggeriana
à hermenêutica das ciências do espírito de Dilthey. Aqui, a compreensão perde
0 seu caráter de faculdade teórica, deixando de ser a capacidade de descobrir
0 eu no tu e de se mostrar como o traço estrutural do método das ciências do
espírito, para se mostrar como a determinação propriamente dita do modo do
dar-se originário e intencional da existência. Existir é aqui compreender, na
medida em que 0 acontecimento existencial originário traz sempre consigo o
descerramento de um campo de sentido, em virtude do qual e com vistas ao
qual apenas é possível pensar algo assim como uma possibilidade de ação.
De saída e na maioria das vezes, porém, seguindo uma tendência estrutural
da existência para a decadência, para a absorção esquecida nos campos de
sentido e de significado já sedimentados no mundo fático, esse modo com­
preensivo da existência é obscurecido, o que dá ensejo ao surgimento de uma

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de orientações fornecidas pelo próprio mundo fático, em que
nós nos achamos imediatamente inseridos. Essa determinação
produz, por sua vez, uma homogeneização radical de todas as
nuanças ontológicas entre os entes, além de uma confusão es­
trutural entre o ser-aí (Dasein - Existenz) e os entes dotados do
caráter de subsistência em si (Vorhandenseiriy, homogeneização
essa que sustenta, por outro lado, o automatismo da existência
cotidiana. Heidegger descreve de maneira paradigmática essa
homogeneização em outro trecho de Os conceitos fundamentais
da metafísica, na medida em que mostra como ela toma possível
o movimento incessante da cotidianidade:

De início e na maioria das vezes, na cotidianida­


de de nosso ser-aí, deixamos muito mais o ente se
aproximar de nós em uma estranha indislinção e ser
um ente por si subsiáfente. Não que todas as coisas
confluam umas para as outras indislintamente - ao
contrário, somos sensíveis à multiplicidade de con­
teúdos do ente que nos envolve, nunca eátamos
satisfeitos com as mudanças e somos ávidos por no­
vidades e por alteridade. No entanto, o ente que nos
envolve eétá aí homogeneamente manifesto como o
juáfamente presente enquanto um subsiSiente no sen­
tido mais amplo possível', há terra e mar, montanhas

determinação ontológica do sentido de ser da existência a partir de uma con­


fusão entre existência e subsistência em si, a partir de uma incompreensão da
diferença estrutural da existência, a partir de uma desarticulação da existên­
cia de seu sentido de ser propriamente dito que é o “tempo”. Eu comento essa
tendência em meu livro de 2009, Nada a caminho: impessoalidade, niilismo e
técnica na obra de Martin Heidegger, e em meus dois livros, de 2017 e 2020,
respectivamente, Mundo e historicidade: leituras fenomenológicas de Ser e
tempo — Volume 1 - Existência e mundaneidade, e Volume 2 - Tempo e histo­
ricidade. Neste, a questão da desarticulação cotidiana da essência temporal
do cuidado é tratada de maneira detida. Günter Figal critica esse gesto hei-
deggeriano, por ele chamado de ontologização da compreensão, em sua obra
Oposicionalidade: o elemento hermenêutico e a filosofia.

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e floreátas, e, em tudo isso, há animais e plantas; há
homens e obras humanas, e, no interior de tudo isso,
nós mesmos também. Esse caráter do ente enquanto
o ente por si subsiálente no sentido mais amplo pos­
sível não poderia ser jamais indicado de maneira su­
ficientemente insiálente: ele é com efeito um caráter
essencial do ente, tal como esse se difunde em nossa
cotidianidade. A amplitude dessa difusão é tal que
nós mesmos somos incluídos aí. É o fato de o ente
poder ser manifeálo nessa homogeneidade nivelada
dos entes por si subsiálentes, que dá à cotidianidade
do ser humano a própria segurança, firmeza e quase
automaticidade. E esse fato que assegura a facilida­
de, necessária para o cotidiano, da passagem de um
ente para o outro, sem que aí o respectivo gênero
ôntico do ente tenha grande importância em toda a
sua essencialidade. Nós pegamos o trem, falamos
com outros homens, chamamos o cachorro, olhamos
para as eálrelas - tudo isso com o mesmo eálilo. Nós
lidamos com homens, meios de transporte, outros
homens, animais, corpos celeáles - tudo a partir da
homogeneidade do ente por si subsiálente. Esses são
caracteres do ser-aí cotidiano, que a filosofia até aqui
negligenciou. E ela os negligenciou, porque essas
coisas por demais óbvias são o que há de mais pode­
roso em nosso ser-aí e porque o mais poderoso é, por
isso mesmo, o inimigo mortal da filosofia. Com isso,
o modo segundo o qual a multiplicidade indiálinta do
ente vem a ser de início a cada vez acessível de ma­
neira predominante é o começo da aprendizagem na­
quele sentido indiferente, no qual se fala das coisas e
se propagam informações sobre elas. Isso diz: acon­
tece a assunção de uma atitude em relação ao ente,
sem que eáteja anteriormente desperta uma re/ação
fundamental do ser humano com o ente - seja essa
uma relação com o inanimado, com o vivente ou
com o próprio ser humano -, tal como o ente mesmo
a cada vez requer. A assunção cotidiana de atitu­
des em relação a todo o ente não se movimenta em

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meio às relações fundamentais, que correspondem
ao modo próprio dos entes em queátão. Ao contrá­
rio, viáta a partir dessas relações fundamentais, ela
aponta muito mais para a assunção de uma atitude
desenraizada, que, por isso mesmo, moátra-se como
extremamente ativa e eficaz.'

Absorvidos no mundo fático em sua cotidianidade me­


diana, perdemos de vista, ao mesmo tempo, as nuanças ontológi-
cas entre os entes em geral (sentidos de ser), na mesma medida
em que tendemos imediatamente a nos tomar ontologicamente
a partir do modo de ser dos entes com os quais lidamos de saída
e na maioria das vezes, a partir do modo de ser do ente dotado
de propriedades, ou seja, a partir do sentido de ser próprio à
subsistência em si ( Vorhandenheitf. Tudo aparece constante­
mente sob o caráter dominante da subsistência em si e mesmo o
existente não chega a escapar dessa determinação. Nós lidamos
aí com uma série inumerável de utensílios e não possuímos, em
momento algum dessa lida, uma relação com o nosso ser que
seja marcada pela experiência de que, sendo, colocaríamos o
nosso ser em jogo em meio à assunção de cada um de nossos
modos possíveis de lida. Exatamente isso produz, então, o sur­
gimento de um certo ritmo particular nas atividades cotidianas,

[5] heidegger, Martin. Os conceitos fundamentais da Metafisica: mundo, fini-


tude, solidão, oc 29/30,1998 pp. 315-6.
[6] Uma análise primorosa da homogeneização ontológica do mundo e da pos­
sibilidade de uma ampliação dos campos de sentido pode ser acompanhada
em Aspectos da modalidade: a noção de possibilidade na fenomenologia her­
menêutica. Antes de tudo, nas partes 4 e 6: “Possibilidade e verdade” e “A
justificação na hermenêutica da possibilidade”.

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que não apaga, como Heidegger explicita na passagem acima, as
diferenças entre os entes, mas reduz essas diferenças à sua mera
diversidade ôntica. Jogado em campos de sentido já disponíveis
no mundo e justamente por isso desde o princípio supostos como
positivos, o ser-aí se deixa absorver nesses campos e conquista
em sintonia com eles a possibilidade de simplesmente seguir
as orientações significativas normativas do seu mundo fático
sedimentado. Não se questiona aqui às últimas consequências o
que se precisa fazer, uma vez que o sentido suporta tacitamente
a obviedade dessa questão; tampouco se questiona o que cada
utensílio exige de nós, uma vez que questionar tal exigência
seria radicalmente questionar a normatividade do próprio campo
fenomênico, no qual ele conquista seu significado em meio a uma
rede referencial determinada. Assim, jogado no mundo, o ser-aí
se deixa absorver em campos específicos de ação, na mesma me­
dida em que a autonomização desses campos vai paulatinamente
promovendo uma desarticulação entre o ser-aí e o seu primado
ôntico-ontológico, para usar uma expressão de Ser e tempo, isto
é, uma desarticulação entre o ser-aí e o fato de que ele é origi-
nariamente os seus modos de ser. Desarticulado de tal unidade
entre seu ser e seus modos de ser, porém, o ser-aí pode tanto mais
agir obedecendo automaticamente àquilo que é requerido pelo
campo de ação em sua configuração a cada vez presente, uma vez
que nenhum anúncio de sua nadidade ontológica originária, de
seu caráter de poder-ser, perturba tal obediência. O que significa
dizer que a absorção no campo de ação sedimentado favorece
a autonomização dos campos de ação, na mesma medida em
que a autonomização dos campos de ação potencializa o obs-
curecimento do primado ôntico-ontológico do ser-aí humano,
abrindo espaço para o surgimento e a intensificação da assunção

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inicial do ser-aí como um ente por si subsistente. Quanto mais,
portanto, o ser-aí segue simplesmente, de maneira automática,
as orientações normativas dos campos sedimentados nos quais
age, tanto mais também ele se vê tranquilizado em relação à
sua indeterminação ontológica7, em relação ao fato de que ele

[7] E preciso explicitar aqui um pouco mais o que compreendo por “indetermi­
nação ontológica”. Ao ouvir tal expressão, alguém poderia retrucar que, na
medida em que o ser-aí humano é determinado originariamente por seu cará­
ter de jogado, eleja sempre teria deixado para trás tal indeterminação e assu­
mido determinações específicas em meio à realização de suas possibilidades
fáticas de ser. Ao mesmo tempo, como seria possível afirmar a indeterminação
ontológica do ser-aí humano, uma vez que todo o exercício de Ser e tempo e
mesmo das preleções que gravitam em torno da obra capital do pensamento
heideggeriano na década de 1920, antes e depois de 1927, caracteriza-se jus­
tamente por explicitar os existenciais que determinam 0 modo de ser do ente
que nós mesmos somos, 0 ente que é sempre a cada vez meu?!? Em primeiro
lugar, quanto à menção à facticidade, parece-me imprescindível ter em vista
que as possibilidades fáticas de ser do ser-aí humano jamais suprimem 0
caráter de poder-ser que é o dele. Heidegger chega mesmo a explicitar esse
fato diretamente por meio da noção de diferença ontológica em sua preleção
Prolegômenos a uma história do conceito de tempo. Diferença ontológica é
um termo para designar então 0 fato de que o ser-aí jamais se torna os seus
modos de ser, como se esses modos de ser pudessem ser pensados na chave
da ontologia da subsistência em si, mas sempre retém o modo do ser possível
em todas as suas possibilidades de ser. É isso, por outro lado, que viabiliza
a conexão entre ser e tempo (Cf. Prolegômenos a uma história do conceito
de tempo, ga 20, pp. 148-92). Em segundo lugar, a objeção, segundo a qual
a indeterminação ontológica do ser-aí humano seria incompatível com a sua
determinação enquanto existente, ou seja, enquanto totalidade do todo estru­
tural dos existenciais, também me parece desconsiderar que os existenciais
determinam justamente a indeterminabilidade última do ser-aí humano: eles
não descrevem senão o modo de ser de um ente que não tem nenhuma deter­
minação para além de suas possibilidades de ser no tempo finito de ser essas
possibilidades. Assim, chamar os existenciais de determinações do ser do
ser-aí me parece algo que atenua justamente 0 significado último da noção
de poder-ser: a impossibilidade de transformar um modo de ser no modo de
ser do ser-aí. Por fim, não é demais lembrar que o próprio Heidegger acentua
essa indeterminação, utilizando, inclusive, uma variante interessante em ale­
mão, Unbestimmtheit, que poderiamos traduzir antes por “indeterminidade”,
em uma passagem paradigmática que cito aqui: “A decisão transparente para

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é constituído originariamente por uma nadidade estrutural. A
segurança e a estabilidade de tais atividades repousam, por con­
seguinte, fundamentalmente sobre a dita homogeneização do ser
dos entes e propiciam a possibilidade de uma articulação inces­
sante de nossas mais diversas ações. Nós saímos de casa para
o trabalho e o caráter dado das referências utensiliares fáticas
viabiliza o uso impessoal e irrefletido do carro. Nós seguimos
prontamente a série infinda de orientações presentes no trân­
sito. Mas não paramos por aí. Logo chegamos ao escritório e
começamos o uso igualmente impessoal de uma gama enorme
de outros utensílios. Assim, saltamos incessantemente de um
uso para o outro, sem que qualquer quebra venha a se instaurar
entre eles. A questão, porém, é que, exatamente na medida em
que o ritmo cotidiano tende a se manter estável em função da dita
homogeneização ontológica característica da lida utensiliar, não
há nenhum espaço aqui para pensar quebras senão de maneira
igualmente ôntica. De acordo com a plena imersão no horizonte
mediano da ocupação, tendemos desde o princípio a experimentar

si mesma compreende que a indeterminidade do poder-ser só é a cada vez


determinada no estar decidido para a respectiva situação. Ela sabe da inde­
terminidade, que impera sobre um ente que existe. Esse saber, porém, precisa
emergir ele mesmo, caso ele queira corresponder à decisão propriamente dita,
de um descerramento próprio. A indeterminidade do poder-ser próprio, que,
contudo, já sempre se tornou a cada vez certo no estar decidido, só se mani­
festa, porém, completamente no ser para a morte. A antecipação traz o ser-aí
para diante de uma possibilidade, que permanece constantemente certa e, no
entanto, indeterminada a todo instante quando a possibilidade se torna uma
impossibilidade. Ela torna manifesto que esse ente é jogado na indetermini­
dade de sua ‘situação limite’. A indeterminidade da morte descerra-se origi­
nariamente na angústia. Essa angústia originária, porém, impele a decisão a
se encher de si. Ela elimina todo encobrimento do ser entregue do ser-aí a
si mesmo. O nada, para diante do qual a angústia traz, desentranha a nuli-
dade que determina o ser-aí em seu fundamento, o fato de que ele mesmo é,
enquanto jogado, na morte” (st, §62, p. 308).

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qualquer perturbação dessa lógica como um problema intrínse­
co aos utensílios em geral, como uma consequência de alguma
falha no interior do próprio mundo dos utensílios, que não pode
ser causada senão por algum ente intramundano qualquer.8 Essa
tendência assenta-se, contudo, em um modo específico de con-
creção das tonalidades afetivas na cotidianidade, que repercute
diretamente sobre o modo superficial de o ser-aí, de início e na
maioria das vezes, relacionar-se com essa tonalidade afetiva que
determina a sua experiência contemporânea de si e do mundo.
Automatismo cotidiano, esquecimento de si e tonalidade afetiva.
Estranha combinação de termos. Precisamos ir agora ao encontro
dessa estranheza.

[8] Há aqui uma relação plenamente analógica do modo mais imediato de


experimentação do tédio (o tédio mais superficial) e do tédio profundo
em relação às tonalidades afetivas do temor e da angústia tematizadas
expressamente em Ser e tempo. Exatamente como o temor é sempre provo­
cado pela presença de um ente intramundano, que é suposto como podendo
provocar o aniquilamento do ser-aí, enquanto a angústia, em contrapartida,
possui uma ligação direta com o ser-aí enquanto poder-ser, o tédio superficial
nasce inicialmente em conexão direta com os entes intramundanos, enquanto
o tédio profundo, por outro lado, caracteriza-se justamente por certa dinâmica
de abertura do ente na totalidade. A diferença aqui está apenas no fato de que
o tédio superficial e o tédio profundo apontam para modos diversos de tem-
poralização da existência.

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2. Descerramento afetivo do mundo:
as tonalidades afetivas fundamentais.

O conceito heideggeriano de disposição e a extensão


desse conceito nas tonalidades afetivas pensadas como concre-
ções ônticas da disposição enquanto existencial possuem uma
ligação direta com o problema do mundo tomado como descer­
ramento do ente na totalidade. Na medida em que a existência
se dá, não se apresenta como seu correlato intencional apenas
uma certa dimensão do espaço, um certo campo restrito pelas
nossas capacidades perceptivas ou imaginativas. O campo des-
cerrado não possui nenhum limite onticamente demarcável, mas
se constitui, antes, muito mais como a transcendência do ser-aí,
como o horizonte de manifestabilidade do ente enquanto ente,
para usar uma expressão presente em Os conceitos fundamentais
da metafísica: mundo, finitude, solidão^', horizonte que pode ser
chamado de transcendente, uma vez que sempre se lança para
além de toda e qualquer possibilidade de pensar algo assim como
a generalização máxima da região dos entes dotados de caráter
de subsistência em si. Não importa o quanto se amplie a gene­
ralização dos conteúdos ônticos, o mundo enquanto horizonte
de manifestabilidade do ente enquanto ente sempre se projeta
para além dessa generalização. A questão, contudo, é que, desde
Kant, sabemos que o conceito de totalidade é sempre oriundo de
uma transgressão de limites, de um vício da razão, que nunca se
restringe ao campo da experiência possível de objetos, mas por
princípio produz séries totais. Um ente finito não tem como se

[9] heidegger, Martin. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, fini­


tude, solidão, § 64. oc 29/30,1998, p. 397 e seg.

19
colocar fora das séries totais e decidir-se quanto ao seu caráter
originário. Conhecer a totalidade, por isso, é algo impossível para
um ente finito, porque ele precisa, necessariamente, colocar-se
fora da totalidade para apreender o todo. Todavia, ao se colocar
fora da totalidade, ele precisa ser coerente com o movimento
aí empreendido e assumir que ele provoca a aniquilação de si
enquanto um ser que se encontra por essência no todo. Assim,
Heidegger tem um problema na mão: ou pensa uma via não
teórica de experiência da totalidade ou assume que a noção de
mundo enquanto abertura do ente na totalidade é uma noção
que, às últimas consequências, não tem como ser experimentada.
Nós estaríamos aqui diante de um dilema estrutural: por mais
que se pudesse a princípio tomar como possível falar de algo
assim como ser-no-mundo, o mundo ele mesmo jamais teria
como ser pensado de maneira consistente. Contra essa posição,
Heidegger comenta em uma passagem de sua preleção inaugural
em Freiburg O que é metafísica?'.

Tão certo quanto o fato de que nós


nunca apreendemos absolutamente o
todo do ente é o fato de que nós nos
encontramos posicionados de qual­
quer modo em meio ao ente de algum
modo descerrado na totalidade. Por
fim, subsiáte uma diferença essencial
entre a apreensão do todo do ente em
si e o encontrar-se dispoáto em meio
ao ente na totalidade. A primeira é
por princípio impossível. O segundo
acontece conálantemente em nosso
ser-aí. Naturalmente, parece que nós
só nos atemos precisamente no andar
ao léu cotidiano a eáte ou àquele âm­
bito do ente. Por mais esfacelado que

20
o cotidiano possa parecer, ele retém
sempre ainda o ente, ainda que de
maneira sombria, em uma unidade do
‘todo’1011
.

A passagem inicia-se com uma distinção fundamental


entre o todo do ente e o ente na totalidade. Tal distinção é deci­
siva para a própria compreensão do termo mundo em Heidegger.
Por todo do ente, o que está em questão é uma noção de totali­
dade, que se constitui justamente por meio do somatório maxi-
mamente extenso dos entes por si subsistentes, algo semelhante
à ideia kantiana de mundo como a totalidade dos objetos da
experiência possível ou com o conceito husserliano de mundo
como o posicionamento natural de todos os objetos. Tal noção de
totalidade envolve claramente uma impossibilidade, uma vez que
o máximo que conseguimos alcançar em meio à totalidade é uma
generalização que jamais permite ver de fora o todo daí emergen­
te. Não há para nós jamais a possibilidade de alcançar algo assim
como o ponto de vista do olho de Deus, para utilizarmos uma
expressão exemplar de Gilbert Ryle". Para que pudéssemos ex­
perimentar algo assim como o todo do ente, seria necessário que
estivéssemos fora de tal todo e que pudéssemos vê-lo enquanto
um todo de fora. Em contraposição a essa totalidade estruturada
pela soma ou pela extensão maximamente extensa dos entes por
si subsistentes, então, Heidegger nos fala de um descerramento

[10] heidegger, Martin. O que é metafísica? In: Wegmarken. OC 9,1998, p.


110.
[11] ryle, Gilbert. Teoria da Significação. Tradução de Oswaldo Porchat de Assis
Pereira da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1975.

21
do ente na totalidade. Esse descerramento envolve por princípio
uma noção fenomenológica de totalidade, que se aproxima da
descrição da totalidade como horizonte de manifestabilidade de
tudo que é e pode ser. Temos aqui uma determinação que carece
de explicitação mais detida. O mundo enquanto abertura do ente
na totalidade funciona, em verdade, como horizonte a partir do
qual tudo que se mostra pode, pela primeira vez, mostrar-se en­
quanto tal. Exatamente como esse horizonte, ele se descerra na
totalidade, uma vez que uma restrição de seu campo de abertura
reintroduziria a noção de um campo empírico de abertura, que
seria constituído por características completamente diversas em
sua constituição e que se encontraria ao lado, para além do limite
do mundo enquanto mundo. A própria compreensão de mundo
como horizonte de manifestabilidade, contudo, inviabiliza falar
de tal restrição, da presença por assim dizer de dois ou mais
campos justapostos: um campo fenomenológico e um ou mais
campos empíricos. O mundo é como uma mônada, sem portas
e janelas, pelas quais algo pudesse entrar e sair. Tudo que é só
aparece como sendo a partir do mundo. Qualquer novo fenômeno
só é possível enquanto modulação de tal campo de manifestação.
Quanto mais se estende o conteúdo do que se mostra no interior
do mundo, tanto mais o mundo se projeta para além do que se
alcançou. É por isso que Heidegger vai chamar essa totalidade
de “transcendência do ser-aí humano”, por exemplo, no tópico c
do parágrafo 69 de Ser e tempo e em outros lugares12. Bem, mas
enquanto a primeira noção de totalidade envolve, como vimos,
uma impossibilidade, a segunda, é o que se encontra formulado

[12] Cf. entre outros heidegger, Martin. Ser e tempo, §69, tópico c; e “Da essên­
cia do fundamento”, in: Marcas do caminho, oc 9, 2004.

22
na passagem da preleção inaugural O que é metafísica?., “acon­
tece constantemente em nosso ser-aí”. Por quê?

A noção de “todo do ente” encerra em si uma impos­


sibilidade intransponível pelas razões explicitadas acima. Um
ente finito, um ente que se encontra dentro do todo, jamais pode
sair da totalidade e considerá-la de fora enquanto totalidade. No
interior de tal totalidade, o máximo que podemos atingir é uma
generalização extrema, que nunca tem como dar conta, contudo,
do todo. Foi por isso que Kant detectou pela primeira vez uma
espécie de poder transgressor da razão enquanto faculdade das
idéias e foi isso também que tomou possível para ele pensar o
tema importante das antinomias da razão em termos da economia
de sua Crítica da razão pura. Ora, mas se nós jamais podemos
apreender, por um lado, teoricamente o todo do ente, as tonali­
dades afetivas caracterizam-se justamente pelo fato de abrirem
originariamente o ente na totalidade. Para que se possa acompa­
nhar, no entanto, em que medida elas podem desempenhar esse
papel de descerradoras do ente na totalidade, é fundamental ter
em vista o quanto a compreensão heideggeriana das tonalida­
des afetivas emerge de uma radical transformação da concepção
clássica dos afetos. Para a tradição, os afetos apresentavam-se de
alguma forma como uma terceira categoria de entidades subje­
tivas; e uma terceira categoria pensada em termos hierárquicos.
Em primeiro lugar, tinham-se as representações, para as quais era
possível pensar um valor de verdade, uma vez que representações
sempre podiam mostrar-se como adequadas ou inadequadas.
Em segundo lugar, aparecia a vontade, que também podia ser
pensada como tendo certa participação na verdade, na medida
em que a vontade podia funcionar como princípio causai de

23
uma ação justa ou injusta. Por fim, então, surgiam os afetos,
que se supunha como não tendo nenhuma outra função senão
atuar como um adorno e um colorido para as representações e
para os atos de vontade. Tal como se encontra subjacente à linha
argumentativa de uma longa tradição, se estou triste ou alegre, a
soma dos ângulos internos de um triângulo continua sendo cento
e oitenta graus, as verdades matemáticas em geral não se alte­
ram, os princípios que regulam a natureza não se transformam,
os princípios lógicos se mantêm tal como eram etc. Ao atribuir
às tonalidades afetivas o papel de descerramento da totalidade,
portanto, Heidegger está colocando radicalmente em questão essa
tradição. E isso por razões que veremos em seguida. Por agora,
porém, o importante é justamente acompanhar em que medida é
possível dizer que as tonalidades descerram o ente na totalidade.

Se olharmos para o parágrafo 70 de Ser e tempo, nós nos


depararemos aí com uma afirmação que é decisiva no contexto
aqui em questão: “Mesmo de saída, o ser-aí nunca está presente
como um subsistente no espaço. Ele nunca preenche como uma
coisa real ou um utensílio um pedaço do espaço, de tal modo
que seu limite contra o espaço mesmo que o abarca seria apenas
uma determinação espacial do espaço”13. Essa passagem procura
mostrar precisamente o quanto o modo de ser no espaço próprio
ao ser-aí humano é marcado por uma dinâmica de espacialização
do espaço, que se assenta em última instância sobre um processo
de temporalização das possibilidades mesmas de ser-no-tempo.
O ser-aí nunca se encontra simplesmente subsistindo no espaço,
de tal modo que poderiamos pensar o seu ser no espaço como es­
tabelecido a partir de uma demarcação de sua posição no interior

[13] HEIDEGGER, 2OOÓa, §70, p. 368.

24
do espaço extenso desde o princípio dado. Ao contrário, é o es­
paço que emerge antes de um acontecimento espacializante. Esse
acontecimento encontra nas tonalidades afetivas um elemento
estrutural de sua determinação. Nós nunca estamos simplesmen­
te no espaço subsistente, pois nós já sempre nos encontramos
dispostos de um modo específico no espaço. O que ocorre, por
exemplo, quando nos vemos atravessados por uma atmosfera
como a tristeza não é apenas a constituição de um estado afetivo
interior, que matizaria nossas representações e mesmo a nossa
vontade. A tristeza tampouco provém de uma única coisa ou es­
tado de coisas, promovendo de maneira igualmente direcional o
surgimento, na interioridade, de um efeito em nosso ser interior.
A tristeza, inversamente, traz sempre consigo uma reestruturação
do espaço existencial como um todo. Quando a tristeza se abate
sobre nós, nosso corpo imediatamente se encolhe. Ao mesmo
tempo, o foco fenomenológico de meu existir acompanha esse
encolhimento, de tal forma que todo um conjunto de elementos
se toma imediatamente indiferente para mim; e indiferente não
porque eu agora não tenho mais nenhum interesse por eles, mas
porque o encolhimento do foco inviabiliza tal interesse. Dito de
outro modo, eles aparecem aqui e agora como não aparecendo.
A mesma coisa vale para a alegria, a melancolia, a fúria e, sim, o
tédio. Cada uma dessas atmosferas promove uma reestruturação
do espaço existencial como um todo, um novo modo de realiza­
ção da abertura, do descerramento do mundo. De certa maneira,
Husserl tinha se dado conta desse estado de fato ao pensar o cará­
ter intencional dos sentimentos em sua 5aInvestigação lógica^.
O problema, contudo, é que ele apenas reconheceu a relação

[14] husserl, Edmund. §a Investigação lógica, A366-A374.

25
cooriginária entre os sentimentos e a mobilidade corporal. É
claro que o ódio, por exemplo, tem como correlato cooriginário o
surgimento de uma mobilidade aversiva em minha corporeidade,
sem que essa correlação seja definida por algo assim como um
julgamento ou uma reflexão prévia. A mesma coisa vale para o
carinho e a afeição: eles também promovem o surgimento de uma
mobilidade de aproximação que não nasce de nenhuma reflexão
primária, mas que se constitui diretamente a partir do despontar
do sentimento. Heidegger vai além, contudo, em relação a isso.
Não é apenas o corpo que obedece ao sentimento (ódio/mobili-
dade aversiva, amor/mobilidade de aproximação), mas o campo
existencial mesmo que se estrutura sempre a cada vez a partir do
modo como nós nos encontramos dispostos (melancolia/retração,
alegria/expansão do campo como um todo). A questão, por isso,
é: em que medida é possível falar de tal descerramento afetivo/
atmosférico do espaço como um descerramento na totalidade?
O que faz com que o descerramento não se apresente como uma
espécie de filtro subjetivo, que determinaria tudo aquilo para o
que nós dirigimos a nossa atenção?

Se a tristeza, por exemplo, funcionasse como uma es­


pécie de filtro subjetivo, ou seja, se o que estivesse em jogo na
tristeza fosse o fato de a tristeza ter um vínculo com o sujeito
que se vê tomado por ela, então a tristeza diria respeito, antes
de tudo, àquilo para o que o sujeito dirigisse a sua atenção e
apenas para isso. Se, ao estar triste, alguém tivesse a tristeza
como uma lente, através da qual esse alguém veria o mundo,
então a tristeza só valeria para aquilo que caísse sob a atenção
da percepção subjetiva. Uma descrição mais atenta, no entanto,
revela sem dificuldades o quanto a tristeza possui um foco muito

26
mais amplo do que aquele aberto pela percepção característica de
uma pessoa triste. Como comentei acima, a tristeza não matiza
apenas aquilo para o que a percepção se dirige, mas é também
essencialmente responsável por aquilo que nós circunstancial­
mente não vemos e nem podemos perceber. Há um quadro muito
peculiar de Edgard Degas chamado “Melancolia” (1874), que
deixa claro o que está em questão para nós aqui. No quadro,
Degas não pinta simplesmente uma pessoa melancólica, que
se encontra em um mundo que permanecería exatamente igual,
com a mesma envergadura e extensão. Ao contrário, ele fecha
completamente o espaço em tomo da pessoa melancólica, de tal
modo que temos imediatamente a oportunidade de acompanhar
o impacto da melancolia sobre o espaço existencial e não apenas
sobre a mulher melancólica. Ao se ver tomada pela melancolia,
não é apenas a personagem que se toma melancólica, mas seu
mundo se encurta em sintonia com tal afinação. Assim, tudo o
que acontece à sua volta de certa forma desaparece. Não porque
não esteja mais efetivamente ali, mas porque se toma completa­
mente indiferente (em termos fenomenológicos) se está ou não
está. Em outras palavras, tanto o que percebo quanto o que jamais
perceberei dependem sempre de que tonalidade afetiva atra­
vessa o campo da abertura como um todo. Isso alija, ao mesmo
tempo, a possibilidade de pensar que a tristeza ou a melancolia
poderíam surgir de uma causa externa demarcável. E tampouco
é possível falar, portanto, de uma sede objetiva dos afetos. Se
a tristeza e a melancolia fossem causadas por algo, este seria a
fonte dos afetos e o que teríamos seria um processo de difusão
paulatino do efeito. Algo causa tristeza, eu fico triste e passo a
ver as coisas a partir da tristeza. Quando a tristeza se abate sobre
nós, porém, o espaço abruptamente passa a se determinar de

27
imediato em sintonia com a tristeza. Bem, mas se a tristeza não
está nem no sujeito nem no(s) objeto(s), onde propriamente ela
se encontra? Se ela não age como uma causa, como ela atua? A
resposta a essas perguntas precisa ser a mais direta possível, para
que possa fazer frente ao fenômeno em questão. A tristeza não
se encontra em parte alguma, na mesma medida em que se acha
por toda parte. A tristeza não está dentro do sujeito, como um
afeto, um sentimento, uma articulação da interioridade15; mas ela
tampouco se acha fora em um ponto determinado do campo dos
objetos externos. Ela não está simplesmente em parte alguma que
pudesse ser identificada como uma espécie de sede da tristeza.
Não obstante, a totalidade do campo existencial se abre a partir
da tristeza: a tristeza tem um papel determinante na estruturação
mesma do mundo no qual estamos jogados, ela atravessa tudo o
que se mostra e não se mostra, ela é responsável pela estruturação
do foco existencial, de tal forma que as relações de diferença e
indiferença como um todo emergem a partir daí. A tristeza, en­
quanto tonalidade afetiva, portanto, perpassa o ente na totalidade.
Não o todo do ente, no sentido de que ela marcaria cada ente um

[15] É interessante notar aqui o quanto os termos ligados aos afetos possuem uma
matriz claramente subjetiva ou proto-subjetiva. Sentimento é um termo que
designa, antes de tudo, o modo como eu sinto o que está acontecendo comigo;
afeto diz respeito ao modo como sou afetado; e mesmo o termo grego páthos
vem do verbo paschein, que significa literalmente sofrer. Ao falar de disposi­
ção (Befindlichkeit) e de tonalidas afetivas (Stimmungeri), Heidegger procura
justamente escapar de tal matriz. A disposição aponta na direção do modo
como o ser-aí se encontra disposto no mundo, modo esse que possui uma
relação direta não com a sua sensação de estar no mundo, mas, antes, com a
estruturação mesma do espaço existencial. Tonalidade afetiva, por sua vez, é
uma expressão que em alemão nos remete para algo assim como uma atmos­
fera, um astral, um clima, que envolve a situação em que nos encontramos, o
que claramente remete para além de algo assim como um sujeito do afeto ou
como um sentimento subjetivo.

28
a um. Mas o ente na totalidade, no sentido de que a tonalidade
afetiva se revela como o modo de afinação do mundo enquanto
transcendência do ser-aí humano. Nas palavras de Heidegger
em Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude,
solidão', a tonalidade afetiva determina “o como de nosso ser-aí
uns com os outros”16. A questão que se impõe agora, portanto,
é: mas o que faz com que uma tonalidade afetiva, que se carac­
teriza justamente pelo descerramento do ente na totalidade, seja
determinada como uma tonalidade afetiva fundamental^ O que
diferencia uma tonalidade afetiva fundamental de uma não fun­
damental, ou, como o próprio Heidegger nomeia, uma cotidiana?

Há, para Heidegger, uma diferença estrutural entre to­


nalidades afetivas ou atmosferas fundamentais e cotidianas, di­
ferença que segue imediatamente a descrição da existência como
determinada originariamente pela possibilidade de propriedade
e impropriedade. Assim como a distinção entre próprio e impró­
prio se caracteriza precisamente pelo fato de o próprio assumir
radicalmente a si mesmo como sendo o seu mundo, como se
confundindo com a sua situação fática, com o seu aí, enquanto
o impróprio realiza sempre suas possibilidades de ser a partir da
assunção de si mesmo como um ente por si subsistente, dotado
de propriedades quididativas dadas a priori, ou seja, assim como
a distinção entre próprio e impróprio é estabelecida justamente
a partir de uma evidência/ausência de evidência em relação à
estrutura ser-no-mundo, a diferença entre tonalidades afetivas
fundamentais e cotidianas também possui uma ligação direta com
a experiência do mundo enquanto mundo e o obscurecimento do

[16] heidegger, M. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude,


solidão, oc 29/30, 1998, p. 100.

29
mundo como horizonte de manifestabilidade do ente enquanto
ente. Todas as tonalidades afetivas sem exceção são caracteri­
zadas exatamente pelo fato de que elas desempenham um papel
determinante no acontecimento mesmo do descerramento do
mundo no qual o ser-aí é e pode ser. Mesmo a cotidianidade, por
exemplo, com a sua aparente ausência de afinação, com aquela
sensação de neutralidade atmosférica radical, não encontra senão
em tal afinação aparentemente neutra a base de sustentação da
retenção de sua mobilidade propriamente dita no espaço e dos
ritmos constitutivos dessa mobilidade. Se alguém me pergunta
como tenho passado no cotidiano, minha resposta é invariavel­
mente: bem, vou indo, tranquilo. Isso determina justamente a
atmosfera afetiva cotidiana e o modo de descerramento que lhe
é próprio. Um melancólico, quer dizer, alguém marcado pela
atmosfera descerradora própria à melancolia, teria grandes difi­
culdades de manter o ritmo quase automático da cotidianidade,
uma vez que a melancolia abre privativamente o espaço, ralenta
o movimento, diminui os ritmos etc. A mesma coisa vale para
a tristeza e o luto. Se, porém, todas as tonalidades afetivas se
caracterizam exatamente pelo seu papel descerrador de mundo;
se não é de forma alguma possível estar no mundo sem um modo
específico de se encontrar disposto no mundo (sich befinden in),
nem todas as tonalidades afetivas promovem uma retenção do
mundo descerrado. Como vimos acima, a atmosfera aparente­
mente inexistente, que sustenta o automatismo cotidiano, não
apenas descerra mundo, mas toma possível ao mesmo tempo uma
absorção no mundo, que obscurece a mundaneidade do mundo
enquanto tal e a determinação mesma do ser-aí humano enquanto
ser-no-mundo: uma atmosfera que suspende o peso de ser que
é constitutivo de um ente marcado por uma nadidade estrutural

30
originária. Mesmo disposições como a melancolia, a tristeza, o
enfado e o tédio, em suas dimensões mais superficiais, alteram
o modo do acontecimento do descerramento, mas obscurecem o
campo descerrado, na medida em que permitem mais ou menos
intensamente a manutenção da absorção do ser-aí no mundo
circundante, no mundo dos afazeres cotidianos, das estratégias
de lida e de dissipação de tais tonalidades. Assim, é preciso um
tipo muito particular de tonalidades, que Heidegger chama de
fundamentais, para que seja possível não apenas o descerramento
do mundo, mas também a manutenção do mundo descerrado e
a experiência propriamente dita do mundo enquanto mundo.

Tonalidades afetivas fundamentais são tonalidades afe­


tivas que promovem um tipo muito particular de descerramento.
Tal como as tonalidades afetivas cotidianas (impróprias), elas
são responsáveis por um modo determinado de estruturação do
espaço existencial, em meio ao qual o ser-aí se encontra de uma
maneira ou de outra disposto. Diferentemente dessas tonalidades,
porém, elas não atenuam o peso de ser, o peso de ter de ser seus
modos de ser, sem que nenhum desses modos de ser possam ser
estabelecidos de maneira natural, na medida em que promovem
uma absorção no mundo fático sedimentado. Ao contrário, elas
possuem uma relação completamente diferencial com os senti­
dos, em virtude dos quais o ser-aí sempre a cada vez pode realizar
uma ação em geral. Enquanto as tonalidades afetivas cotidianas
reforçam a presença pretensamente positiva dos sentidos dispo­
níveis de saída e na maioria das vezes no mundo circundante,
isto é, enquanto elas tomam possível uma operacionalização
de campos de sentido tacitamente presentes no mundo, campos
esses que sustentam o automatismo da vida em seu dia a dia mais

31
mediano, as tonalidades afetivas fundamentais se abatem direta­
mente sobre tais campos de sentido, inviabilizando por completo
a mera manutenção de sua interpretidade (AusgelegtheitY1 pró­
pria. E essas tonalidades afetivas são designadas fundamentais
por duas razões específicas. Por um lado, elas são fundamentais
porque provêm do fundamento mesmo da existência - elas sur­
gem da própria nadidade do existir humano e da nadidade pen­
sada não como o elemento meramente dissolutor do sentido, mas
antes de tudo também e essencialmente como fonte originária de
todo sentido próprio ao existir. Por outro lado, elas também são
fundamentais porque viabilizam a experiência fundamental do
ser-aí humano: a experiência da abertura do ente na totalidade.
No que elas atravessam o campo existencial na totalidade, elas
esvaziam todos os sentidos pretensamente positivos disponíveis
na cotidianidade, trazendo consigo uma supressão de todos os
focos fenomenológicos daí oriundos. Sem tais sentidos (focos),17

[17] Esse é um termo do qual Heidegger se vale muitas vezes em Ser e tempo,
a fim de evidenciar, antes de tudo, o fato de que o ser-aí não se movimenta
cotidianamente senão em meio a um campo de sentido que se encontra de
antemão disponível no mundo fático sedimentado e que só possui de maneira
por demais esmaecida (esquecida) uma ligação com a sua nadidade estru­
tural. Cotidianamente, os sentidos já se encontram disponíveis de antemão
no mundo, de tal modo que a interpretação, enquanto movimento estrutural
da existência de atualização de possibilidades abertas pelo sentido, não se
realiza aí de maneira nova, mas apenas retoma o que o mundo já interpre­
tou. Os sentidos pretensamente positivos viabilizam, com isso, que se fale
de algo assim como possibilidades antecipadamente presentes no mundo.
Cf. antes de tudo heidegger, M. Ser e tempo, p. 299: “O ser-aí já se acha
sempre e em seguida talvez uma vez mais na indecisão. Esse título expressa
0 fenômeno, que foi interpretado (interpretiert) como 0 ser-entregue à inter­
pretidade (Ausgelegtheif) dominante do impessoal”. Eu analiso detidamente
essa noção no segundo volume de meu livro Mundo e historicidade: leituras
fenomenológicas de Ser e tempo - Tempo e historicidade. Rio de Janeiro: Via
Verita, 2020.

32
então, os entes se retraem, tomando possível pela primeira vez
que o mundo apareça enquanto mundo. Tal como se acha formu­
lado no parágrafo 40 de Ser e tempo no contexto da disposição
fundamental da angústia: “(...) a angústia descerra pela primeirís­
sima vez o mundo enquanto mundo”, uma vez que ela “retira do
ser-aí a possibilidade de, decaindo, compreender-se a partir do
‘mundo’ e da interpretidade (grifo/M.C.) pública”18. Em suma, as
tonalidades afetivas fundamentais caracterizam-se precisamente
pela suspensão da absorção no mundo em meio ao esvaziamento
radical de todos os sentidos pretensamente positivos disponíveis
na cotidianidade, pela consequente transformação do mundo
circundante enquanto totalidade de significados sedimentados
em um mundo insignificante, pela confrontação do ser-aí com o
mundo enquanto mundo, assim como pela recondução do ser-
-aí à sua nadidade estrutural. A questão que nos importa agora,
porém, é, antes de tudo, em que medida o tédio pode ser pensado
como uma tonalidade afetiva fundamental e até que ponto ele
traz consigo uma proximidade com a disposição fundamental da
angústia tal como descrita em Ser e tempo.

[18] HEIDEGGER, 200Óa, §40, p. 187.

33
3. Do tédio superficial ao primeiro nível de
aprofundamento do tédio: a tarefa da preleção.

Heidegger acentua desde o princípio, em sua preleção


do semestre de inverno de 1929/30, que a tarefa da preleção seria
despertar uma tonalidade afetiva fundamental de nosso filosofar
atual, ou seja, uma tonalidade afetiva que tenha um vínculo fático
com o modo de descerramento de mundo que é constitutivo não
de toda e qualquer facticidade, mas da nossa facticidade em
particular. Despertar, porém, como o próprio texto heidegge-
riano procura evidenciar inicialmente, é algo que só podemos
fazer com aquilo que já se encontra aí, ainda que dormente.
Para que se possa falar, em outras palavras, de um despertar
do tédio, é preciso que o tédio já dormite em todas as nossas
possibilidades fáticas de ser. Nesse sentido, o tédio já precisa se
fazer presente em todas as nossas possibilidades de ser em geral.
Não obstante, uma vez que ele precisa ser despertado, seu modo
de presença aponta na direção de uma ausência primordial. Tal
como se encontra formulado no parágrafo 16 da preleção acima
citada: ‘“O que dorme’ está de uma maneira peculiar ausente e,
contudo, se acha aí. Se nós despertamos uma tonalidade afetiva,
então isso significa que ela de certa forma não está aí. Estranho,
a tonalidade afetiva é algo que, ao mesmo tempo, está e não
está aí”19. Para acompanharmos o sentido propriamente dito do
que está nesse caso em questão, é preciso ter em vista o que
Heidegger nos apresenta em Ser e tempo acerca da relação entre
temor e angústia. No temor, nós nos vemos jogados no mundo

[19] heidegger, Martin. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, fini-


tude, solidão, oc 29/30,1998, §16, p. 91.

35
fático e ao mesmo tempo confrontados com a nossa fragilida­
de propriamente dita. O modo mesmo como o jogado se dá aí,
porém, é caracterizado por uma retenção da absorção no mundo
e por uma modulação de nossa fragilidade ontológica em uma
fragilidade ôntica específica. Quando temo, sempre temo algo,
que aparece como temível, precisamente na medida em que esse
algo temível evidencia a minha vulnerabilidade ôntica, o fato
de que algo sempre pode destruir a coisa que eu pretensamente
sou. A questão, contudo, é que um ente ontologicamente inde­
terminado, um ente marcado por uma nadidade estrutural, ou
seja, um ente dotado de caráter de poder-ser, jamais se constitui
como uma coisa dotada de propriedades subsistentes, que podem
ser destruídas por um algo também subsistente qualquer. Minha
mortalidade, como Heidegger não cansa de mostrar em Ser e
tempo, não provém do fato de que algum dia algo destruirá a
coisa que eu sou, mas da necessidade, oriunda de minha própria
nadidade, de ser sempre a cada vez a possibilidade que sou no
tempofinito de ser tais possibilidades, no tempo, ele sim, mortal.
Assim, para que eu possa experimentar onticamente o temor e
a vulnerabilidade que vem à tona com ele, eu preciso, antes de
tudo, que a minha vulnerabilidade ontológica experimente uma
modulação e seja experimentada como vulnerabilidade ôntica.
Temos aqui algo muito comum à fenomenologia em geral, uma
descrição de estruturas originárias que condicionam as experiên­
cias derivadas. Bem, mas na mesma medida em que o temor se
revela como angústia imprópria, na mesma medida em que ele é
“angústia decaída no mundo e velada para ela mesma enquanto
tal”20, em suma, na mesma medida em que o temor pode ser

[20] HEIDEGGER, 200Óa, p. 189.

36
pensado como angústia superficial, o tédio também possui formas
derivadas de sua determinação mais própria, mais originária,
mais fundamental. O que está em questão, por isso, na preleção
de 1929/30, não é simplesmente despertar o tédio que dormita,
como se pudéssemos tomar consciente algo inconsciente, mas,
antes, reduzir as formas superficiais patentes na cotidianidade
à sua forma profunda, à forma da qual elas não são senão mo­
dulações. Mas como é que cotidianamente compreendemos o
tédio? De onde é que precisamos partir para aceder ao tédio
profundo, ao tédio como tonalidade afetiva fundamental fática
de nosso existir atual?

Uma reificação dos elementos entediantes perpassa


radicalmente as compreensões medianas da essência do tédio.
O tédio não possui, de saída e na maioria das vezes, nenhuma
ligação com o próprio ser-aí, mas é assumido inversamente como
um traço de certos entes intramundanos ou de estados de coi­
sas manifestos em meio a conjunturas situativas específicas. De
saída e na maioria das vezes, o que nos entedia é a árida rodovi­
ária em que ficamos inutilmente parados à espera de um ônibus
que só chegará em cinco horas ou o livro que não conseguimos
suportar sem bocejos, mas que temos necessariamente de ler
para um trabalho universitário, ou então a palestra interminável
sobre um tema completamente alheio aos nossos interesses, da
qual não podemos sair em função da lotação do auditório e das
formalidades que regem a vida acadêmica e social etc. Em todos
esses casos, experimentamos repentinamente uma quebra na
dinâmica intrínseca ao mundo das ocupações cotidianas e um
subsequente alongamento do tempo. Para descrever essa con­
juntura, Heidegger nos fala de alguns elementos constitutivos

37
da primeira forma do tédio, de algumas estruturas originárias
que acompanham sempre a cada vez o modo do dar-se do tédio:
retenção pelo tempo hesitante, serenidade vazia e passatempo.
Em verdade, o que há de comum em todas as situações acima é
o fato de sermos repentinamente retidos em uma quebra de nosso
ritmo existencial. Não nos sentiriamos tomados pelo tédio se o
ônibus chegasse imediatamente à rodoviária, se não precisásse­
mos continuar lendo o livro enfadonho ou se pudéssemos nos le­
vantar e ir embora da palestra. Como não podemos simplesmente
abandonar essas situações, nos vemos presos ao tédio. O tédio
instaura, por sua vez, um novo ritmo: em meio ao tédio temos a
impressão de que nada acontece e de que o tempo parece demorar
uma eternidade para passar. Com isso, onde quer que sejamos
entediados por algo (primeira figura do tédio), tendemos a olhar
de dois em dois minutos para o relógio e conferir quanto tempo
já se passou. O novo ritmo instaurado pelo tédio aponta, assim,
para um ralentamento característico do tempo, para a constituição
de um novo ritmo temporal. Olhamos incessantemente para o
relógio em meio à situação que nos entendia e o tempo não anda.
Nós nos vemos, portanto, retidos não à situação, à rodoviária, ao
livro ou à palestra, mas ao curso hesitante do tempo.21 Entediados
por algo, nós nos vemos repentinamente no interior de um vagar
do tempo. Nas palavras de Heidegger: “No que concerne ao
nosso problema orientador, o que é propriamente o ser-ente-
diado, conclui-se então: o ser-entediado consiste em uma per­
plexidade peculiarmente paralisante oriunda do curso temporal

[21] É fácil perceber isso, uma vez que a mesma estação rodoviária, o mesmo
livro e a mesma palestra podem se mostrar como nada entediantes em outro
momento, em outra circunstância, em outra afinação.

38
hesitante.”11 Mas como é possível tal ralentar do tempo? Um
dia tem vinte e quatro horas; uma hora tem sessenta minutos; e
um minuto, sessenta segundos. Nem mais, nem menos. Alguém
poderia imaginar que estaria em jogo, nesse caso, algo assim
como uma experiência subjetiva do tempo, algo assim como um
tempo psicológico. A questão, contudo, é que tal posição não dá
conta de modo algum da amplitude da modificação do modo de
temporalização da temporalidade. Não é como eu me relaciono
com o tempo que se altera aqui, mas, sim, o modo como o tempo
se revela para mim, como ele por ele mesmo se mostra, ou, dito
em linguagem fenomenológica, como ele se fenomenologiza. Ao
ser entediado por algo, o ser-aí experimenta um empobrecimento
de suas possibilidades mesmas de ser no tempo. Juntamente com
esse ser retido pelo tempo hesitante dá-se, então, um novo modo
de relação do ser-aí com os próprios entes, que se encontram à
sua volta no mundo circundante. Em meio à retenção pelo curso
hesitante do tempo não é apenas o ritmo de nossas atividades que
se quebra. Ao contrário, os entes mesmos passam a se recusar
para nós. Nós gostaríamos de continuar nos entregando à dinâ­
mica da ocupação, mas não vemos nada com que pudéssemos
nos ocupar. Nós procuramos em vão um passatempo, mas não há
nada à mão capaz de funcionar como tal. A entrada em cena do
tédio quebra o ritmo de nossas atividades cotidianas, ao mesmo
tempo em que perturba a lógica confiável da significância.

As coisas nos deixam em paz, não nos


aporrinham. Mas elas tampouco nos
ajudam: elas não fazem com que assu­
mamos uma atitude em relação a elas.22

[22] heidegger, Martin. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, fini-


tude, solidão, oc 29/30,1998, p. 118.

39
Elas nos abandonam a nós mesmos.
Porque elas não têm nada a oferecer,
elas nos deixam vazios. Deixar vazio
significa não oferecer nada enquan­
to algo por si subsiálente. Serenidade
vazia diz: não receber nenhuma oferta
do que subsiáte em si.2’

O surgimento do tédio a partir dos entes intramundanos


traz consigo, assim, o enfado para o coração do mundo e tem
por correlato uma compreensão do tempo como preenchimento
sucessivo dos agoras com ações. O vazio está por toda parte e o
tempo não tem mais como seguir o seu ritmo cotidiano, uma vez
que não conseguimos mais simplesmente preencher a sequência
infinita de agoras com o que cada um deles requisita em termos
de ocupação. Tudo isso se aprofunda, porém, na segunda figura
do tédio.

A primeira figura do tédio brota diretamente dos entes


intramundanos e chega como que de fora ao ser-aí: ela é o resul­
tado de uma quebra no ritmo das ocupações medianas provocada
pela recusa dos entes em jogo na situação. A essa forma superfi­
cial de tédio alia-se outra mais profunda, que será caracterizada
em Os conceitos fundamentais da metafísica por meio da expres­
são “entediar-se junto a”23
24. Heidegger exemplifica inicialmente
essa segunda forma no parágrafo 24 do livro:

[23] Idem, p. 124.


[24] Nesse momento, não é tão importante determinar em que medida essa
segunda forma é mais profunda do que a primeira, mas apenas visualizar os

40
Fomos convidados para irmos a um
lugar à noite. Não precisamos ir. Mas
tivemos um dia tenso e à noite temos
tempo. Assim, vamos. Há aí a comi­
da de sempre com as conversações
de sempre à mesa. Tudo não eátá so­
mente de fato saboroso, mas também
de muito bom goáto. Como se diz, as
pessoas se sentam juntas depois ani-
madamente, talvez ouçam música,
conversem: tudo é espirituoso e di­
vertido. Já é tempo de ir embora. As
senhoras asseveram, e não apenas ao
se despedirem, mas também no andar
de baixo e do lado de fora, onde já
eátão entre si: Foi realmente muito
legal”; ou: Foi extremamente eáti-
mulante”. De fato. Não se encontra
simplesmente nada que pudesse ter
sido entediante neáta noite; nem a con­
versação, nem as pessoas, nem os am­
bientes. As pessoas voltam, portanto,
totalmente satisfeitas para casa. Elas
ainda dão uma rápida olhadela sobre
o trabalho interrompido à noite, fazem
um cálculo aproximativo e uma consi­
deração prévia do que tem de ser feito
no dia seguinte - e, então, aparece
aí: eu me entediei efetivamente neáta
noite, em meio ao convite.23* 25

seus traços estruturais.


[25] heidegger, Martin. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, fini-
tude, solidão. 0C 29/30,1998, p. 132.

41
Não é difícil perceber logo de saída uma série de dife­
renças entre a primeira e a segunda figura do tédio. Enquanto, no
primeiro caso, tínhamos uma situação entediante e uma recusa
ligada explicitamente aos entes presentes na situação, não conse­
guimos encontrar aqui nenhum ente que pudesse se mostrar como
responsável pelo aparecimento do tédio. Não há nada entediante
na festa e as coisas tampouco nos abandonam a nós mesmos. Nós
nos sentimos, antes, muito mais à vontade com tudo o que acon­
tece na festa e completamente articulados com os entes que vão
se oferecendo. Nós conversamos com desenvoltura, rimos das
piadas que vão sendo contadas, nos deliciamos com a comida,
dançamos durante um bom tempo e nos alegramos com todas as
coisas. Não há absolutamente nada na situação que pudesse ser
responsável pelo tédio que se abateu sobre nós. No entanto, o fato
é que nos entediamos. Mas onde está, então, o tédio propriamente
dito? O que nos assegura que tudo não passou de uma impressão
posterior, causada pelo cansaço ao chegarmos em casa e pela vi­
sualização da montanha de trabalho restante para o dia seguinte?
A resposta a essas questões depende de uma análise mais atenta
da situação agora em jogo. Em primeiro lugar, estamos, sim, to­
talmente presentes no espaço de realização da festa, de tal modo
que não podemos falar aqui de um ser-deixado-vazio pelos entes
do mesmo modo que falávamos do tédio proveniente dos entes.
A mesma coisa vale para o curso hesitante do tempo: não há aí
nenhuma quebra na dinâmica de nossas atividades, mas somos
lançados em um ritmo ainda mais constante e ininterrupto dessas
atividades do que o que tínhamos na cotidianidade. Por fim, não
chegamos aí sequer a buscar o passatempo. Como não há nada
aparentemente entediante na festa, não sentimos, a princípio,
qualquer necessidade de procurar algo que devolva a mobilidade

42
ao tempo e propicie um fluir incessante. A ausência de uma tal
necessidade pelo passatempo não repousa aqui, porém, senão
sobre o caráter próprio ao passatempo em questão na festa. O
ponto de partida dessa segunda figura do tédio aponta para a
experiência mesma do convite: “Fomos convidados para ir a
um lugar à noite. Não precisamos ir. Mas tivemos um dia tenso
e à noite temos tempo”.

Se procurarmos inicialmente por algum ente intramun-


dano responsável pelo aparecimento do tédio, não o encontra­
mos. Nada nos entedia aqui: nem uma coisa nem um estado de
coisas específico. Heidegger não descreve nessa figura o tédio
oriundo de uma festa maçante, na qual nada acontece e olhamos
constantemente para o relógio a fim de vermos se já podemos
ir embora. Ao contrário, ele tem em vista muito mais a grande
festa, a festa de arromba, a festa monumental, onde jamais nos
sentimos entediados por algo e tampouco há algo entediante pre­
sente. Todavia, o fato de nenhum ente intramundano se mostrar
como entediante não significa necessariamente que não nos en-
tediamos. Isso indica apenas que a origem do tédio se acha aqui,
a princípio, encoberta e precisa ser, com isso, explicitada para
que venha à tona propriamente. Nós perguntamos então: qual é
o caráter próprio a esse tédio? A resposta a essa pergunta precisa
ser buscada a partir da identificação do tipo de passatempo em
jogo. Nós temos tempo essa noite. Mas não apenas isso. Nós
temos tempo essa noite e tivemos um dia tenso. O dia tenso faz
com que procuremos nos distrair à noite, com que aceitemos o
convite e procuremos escapar da sensação de estarmos em casa
entregues a nós mesmos, sem termos simplesmente o que fazer.
Nós não queremos nenhuma atividade que produza ainda mais

43
tensão e abdicamos de qualquer coisa que exija o mínimo de
reflexão, de concentração de si, de esforço existencial. Portanto,
aceitamos o convite, porque ele pode propiciar justamente o que
almejamos. O que receamos, contudo, em última instância, que
aconteça se ficarmos em casa? O que esse receio traz imediata­
mente consigo? O que ele nos fala sobre o que acontece conosco
no mundo? Nós receamos o curso hesitante do tempo e o sermos
deixados vazios - exatamente aquilo que caracterizava a primeira
figura do tédio e que nos indica o fato de ainda estarmos nos
movimentando em meio à atmosfera específica daí oriunda. Esse
receio mobiliza, então, ao mesmo tempo, toda uma estrutura que
funciona efetivamente como o passatempo. Heidegger descreve
tal fato em outra passagem dos “Conceitos

(...) toda a atitude e todo o comporta­


mento são o passatempo', toda a noite,
o próprio convite. Por isso mesmo, o
passatempo foi tão difícil de ser encon­
trado. Mas se o convite mesmo deve
ter se tomado o passatempo, o que é
aí, então, entediante? Através do que
somos entediados? Conálatamos, de
qualquer modo, que em todo o convite
não havia nada de entediante. De fato.
Não falamos mesmo de antemão sobre
o tédio no sentido de um ser entediado
por, mas trata-se aqui de um entediar-
-se junto ao convite. Assim, temos de
insiátir em todo caso no seguinte: o
convite é iáto junto ao que nos entedia-
mos e esse "junto ao quê” é simultane­
amente o passatempo. Nessa situação
entediante, o passatempo e o tédio se
entrelaçam de uma maneira peculiar.
O passatempo insere-se furtivamente

44
no ser-entediado e recebe, estendido
por toda a situação, uma abrangência
peculiar; uma abrangência que ele
nunca podería ter na primeira forma,
com aqueles rompantes e com aquelas
tentativas inquietas.26

Por meio disso, portanto, um movimento deveras parti­


cular é descrito. Nessa segunda figura do tédio, não encontramos,
a princípio, nada entediante, porque o tédio não está mesmo
em nenhum ente presente na situação, não se confunde com
nenhuma propriedade de algo que chega até o ser-aí de fora e
que produz o surgimento do efeito que é o tédio. Ao contrário,
ele está mobilizando estruturalmente a própria constituição do
convite como convite. Vamos à festa para não cairmos em um
tédio possível e transformamos, assim, o espaço da noite em uma
forma de impedir o surgimento do curso hesitante do tempo e a
sensação de vazio que acompanha tal curso. Mais ainda: como
o tédio está desde o princípio perpassando a conformação das
atividades que vão se sucedendo durante a noite, ele mobiliza
todo um aparato voltado para o estabelecimento de um ritmo
existencial que não tome possível o aparecimento explícito do
tédio, a retenção no curso hesitante. E uma coisa é importante
acentuar uma vez mais nesse caso. Como já dissemos acima,
não se trata aqui de uma festa qualquer que é pensada como
passatempo, mas trata-se, inversamente, de uma festa repleta
de momentos capazes de provocar o nosso interesse e nos levar
a uma plena participação em tudo o que acontece. Essa segunda

[26] Idem, p. 136.

45
forma do tédio implica, em suma, necessariamente a extensão do
passatempo a toda a situação em jogo, porque só uma tal extensão
pode vedar o despertar do tédio que nos afina. Mas alguém pode­
ría apresentar agora a seguinte objeção: mesmo concordando com
o fato de a situação como um todo mostrar-se realmente como
o passatempo, isso ainda não diz que nos entediamos na festa.
Se o passatempo for efetivo como passatempo, ele não deixará
o tédio surgir e nós conseguiremos, com isso, escapar dessa
tonalidade afetiva. O tédio revelar-se-á, assim, como uma mera
experiência posterior, como alguma coisa que só se apresentará
ulteriormente, ao chegarmos em casa cansados e não conseguir­
mos adormecer imediatamente. A questão é que o passatempo
não vige absolutamente em uma dimensão extrínseca ao tédio,
mas é incessantemente mobilizado por ele\ o tédio está e precisa
mesmo estar constantemente presente aí. E preciso que o tédio se
mantenha sempre presente para que a dinâmica do passatempo
continue tendo lugar. Dito isso, resta, então, perguntar: qual é
o caráter próprio a esse tédio? Nós também temos aqui aquelas
duas instâncias essenciais à primeira forma, o curso hesitante do
tempo e a serenidade vazia? Essas instâncias se confundem com
estruturas de gênese transcendental, tão comuns no interior do
pensamento fenomenológico como um todo? Para respondermos
a essas perguntas, é preciso compreender a ligação dessa segunda
figura do tédio com nós mesmos, com o nosso si-próprio.

“Entediar-se junto a” não é uma expressão qualquer. Ao


contrário, ela é uma expressão que acentua diretamente a rela­
ção entre o tédio e o ser-aí. O que está em jogo nessa forma do
tédio não é mais o aparecimento de um ente ou de uma situação
intramundana, na qual o ser-aí se entedia, mas o tédio mesmo

46
como afinação do ser-aí. É ele mesmo quem se entedia aí junto
à situação da festa. Na medida em que o ser-aí se mostra como
afinado por esse tédio, não há nada mais coerente do que tomar
o vazio como estando ligado agora não aos entes que se recusam,
mas ao próprio ser-aí. Em que medida é possível falar, porém,
em um vazio do ser-aí afinado por essa segunda figura do tédio?
Nós recebemos o convite para a festa e nos preparamos durante
algum tempo para ela. Nós procuramos uma roupa adequada, nos
arrumamos com uma destreza calculada de modo a chegarmos na
hora certa, pegamos o carro e nos dirigimos para a casa de quem
nos convidou. O convite mobiliza, com isso, nossas atividades já
bem antes de a festa começar. E essa mobilização não para por
aí. Ao chegarmos à festa, vamos incessantemente tomando parte
nas ondas que a cada vez nos carregam e dançando ao sabor da
música. Contudo, é exatamente em virtude dessa participação
plena que o vazio se instaura nessa segunda figura do tédio.
Heidegger nos diz em uma passagem do parágrafo 25 (b) de seu
Os conceitos fundamentais da metafísica:

(...) aqui falta exatamente a inquietu­


de do se manter à procura de... Não
procuramos mesmo absolutamente
nada: eátamos, sim, juéiamente e ao
contrário, junto a tudo o que aconte­
ce. Eétamos aí e nos deixamos levar
pela corrente. Mas eáta é, de qualquer
maneira, uma atitude peculiar e tal­
vez caracteríáfica de toda a situação:
esse estar aí que se deixa levar pela
corrente, um deixar-se-levar pelo
que transcorre juéiamente aí. O que
eátá em jogo com esse deixar-rolar‘1
Como ele se articula com a serenida­
de vazia, no primeiro caso? Podemos

47
dizer que o deixar-rolar inerente a esse
agir em conjunto eátá em relação com
o ser-deixado-vazio como um eátar
preenchido; e isso porque ele é um
deixar-se-levar? Ou precisamos dizer
que esse deixar-rolar é uma serenida­
de vazia que se aprofundou? Em que
medida? Pois - como a designação já
deve indicar - nos entregamos à par­
ticipação no convite em meio a esse
deixar-rolar. Nisso consiáte o fato de
a procura por um ser-preenchido de
antemão não ter lugar. A serenidade
vazia não acontece agora em e através
da exclusão do preenchimento, através
do recusar-se deéle ou daquele ente,
mas ela cresce desde o fundo, porque
a sua própria pressuposição, a busca
por um ser-preenchido pelo ente, já se
encontra obátaculizada em meio a esse
deixar-rolar. Não se chega mais agora
nem mesmo a essa busca. O entediante
também tem aqui o caráter do deixar-
-vazio, mas de um deixar-vazio que
se enraiza mais profundamente; ele
é um obélaculizador daquela busca,
o eétender-se do deixar-rolar. Com
isso, o preenchimento em meio à par­
ticipação toma-se manifesto, mesmo
que de maneira apenas crepuscular e
indeterminada, como uma aparência
(uma insatisfação peculiar!) - como
um passatempo que não expele tanto o
tédio, mas que juétamente o produz e
deixa ser na situação. (...) Nesse dei­
xar-rolar alvorece uma via de escape

48
para longe de nós mesmos, para junto
do que transcorre.27

Se olharmos atentamente para o que está dito acima, não


será difícil perceber uma certa ressonância com a tematização do
impessoal no interior de Ser e tempo, ainda que a segunda figura
do tédio nasça antes de um aceno indelével para o mundo do en­
tretenimento, que estava surgindo com cada vez mais intensidade
na primeira metade do século XX. O que Heidegger descreve na
passagem tem um paralelo imediato com a plena absorção do ser-
-aí humano pelo mundo circundante e com a queda sem travas na
dinâmica de funcionamento desse mundo. Tal paralelo, contudo,
insere a descrição em um campo particular que possui uma vin-
culação fática evidente: imerso na cotidianidade, o ser-aí decaído
se vê tranquilizado ontologicamente, seduzido a permanecer em
tal tranquilização e, com isso, a manter-se alienado de si28. Tal
alienação aprofunda-se agora em meio a um mundo, que não
retém apenas na avidez pelo novo a ritmicidade da ocupação co­
tidiana, mas que produz toda uma gama de passatempos capazes
de elevar ao extremo as possibilidades mesmas de dispersão de si.
Há, assim, uma transformação do modo de expor a hermenêutica
cotidiana em Ser e tempo, que procura justamente pensá-la em
uma ligação mais imediata com a facticidade. Diferentemente do
primeiro caso, então, em que o tédio surgia de uma perturbação
do ritmo das atividades cotidianas, essa segunda forma aponta,
antes, para a plena concretização desse ritmo. No que essa plena
concretização se dá, desaparece a busca por algum passatempo.
Nós não buscamos algo para nos ocuparmos, nós nos entregamos

[27] Idem, p. 140.


[28] Cf. HEIDEGGER, 200Óa, §38, pp. 175-80.

49
aí muito mais ao sabor do vento, ao que o mundo circundante a
cada vez nos fornece como possibilidade de dispersão. Para onde
o astral dos convivas nos levar, nós, ao mesmo tempo, seguimos.
Não queremos ser preenchidos, porque não deixamos sequer o
vazio se apresentar. Em meio à boa festa somos radicalmente
integrados à convivência mediana e afinados diretamente por
ela. A consequência disso é que a extensão do deixar-rolar traz
consigo necessariamente um esvaziamento de meu si-próprio
e uma manutenção no âmbito impessoal de existência. Nada
efetivamente acontece comigo aí e o deixar-rolar revela-se, por
isso, como uma forma mais profunda de serenidade vazia, uma
forma que diz respeito ao ser-aí mesmo e às possibilidades de sua
determinação como um si próprio. A festa não é outra coisa senão
o espaço propício à fuga que é determinante para o impessoal,
a fuga do ser-aí como poder-ser. No que concerne a essa fuga e
ao vazio que com ela se forma, ela vem acompanhada agora de
uma dimensão temporal congênere.

Por mais velada que possa estar a serenidade vazia nessa


segunda forma do tédio, vimos que ela se faz de qualquer modo
aí presente. A mesma coisa se dá em relação ao curso hesitante
do tempo. A princípio, parece um contrassenso falar em curso
hesitante do tempo, quando não nos sentimos de maneira alguma
presos ao relógio e nos entregamos muito mais inversamente a
um ritmo existencial constante, por vezes mesmo frenético. No
entanto, essa aparência é uma vez mais oriunda do caráter espe­
cífico dessa segunda figura do tédio, do entediar-se junto à festa.
O que temos desde o início do convite é uma imersão radical nos
movimentos próprios à convivência. Esses movimentos se suce­
dem em ondas, que se mostram ora mais, ora menos, intensas.

50
Nós nos largamos aí de qualquer modo ao sabor dessas ondas e
deixamos que elas nos carreguem. Com isso, não chegamos nem
mesmo a nos dar conta do tempo e a noite transcorre como que
em um único segundo. Nós dizemos mesmo em tais situações:
Como passou rápido! Mas já acabou? Nem percebi o tempo
passar!”. A questão é que a festa não transcorre apenas como que
em único segundo. Ao contrário, tudo efetivamente se dá em um
único e longo instante dilatado, em que nada é capaz de acontecer
com nosso ser-aí, com o nosso si mesmo. O tempo tomou-se
hesitante em meio à experiência privativa da temporalidade, em
meio a uma radical supressão da temporalidade e à condensação
do tempo extenso em um único ponto vazio. Heidegger explicita
essa experiência temporal:

Mas o que acontece ao descartarmos


o tempo, ao nos fecharmos para o
fluxo da duração? De qualquer modo,
não podemos sair do tempo. Também
não queremos absolutamente isso,
mas queremos ter esse tempo para
nós. Se o matamos e o descartamos,
então isso só pode significar que nos
poálamos de certa maneira em rela­
ção a ele. Como? Fazemos com que o
tempo fique estagnado. Nós deixamos
o tempo tomado para a noite - nisso
reside juálamente o tomar - estender-
-se de tal forma durante a noite, que
não atentamos ao seu curso e aos seus
momentos em meio à participação no
que se transcorre. A extensão temporal
do ‘durante’ engole como que a se­
quência de agoras que fluem e se tor­
nam um único agora dilatado, que
não flui ele mesmo, mas se encontra

51
4. Da tonalidade afetiva fundamental fática do
tédio profundo: do banimento do horizonte
temporal na totalidade à possibilidade do ser
singular no tempo.

Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, fi-


nitude, solidão abrem uma possibilidade única no pensamento
heideggeriano de perguntar sobre o vínculo histórico entre as
tonalidades afetivas e os acontecimentos epocais em geral. Como
já acentuamos aqui inicialmente, o tédio não é simplesmente uma
tonalidade afetiva fundamental, mas uma tonalidade afetiva fun­
damental de nossofilosofar atual. Na medida em que o filosofar
tem, para Heidegger, uma relação direta com o descerramento de
mundo e com a experiência mesma desse descerramento, afirmar
o tédio como desempenhando tal papel implica necessariamente
pensar o tédio em uma relação direta com o modo de descerra­
mento não apenas do mundo enquanto tal, mas de nosso mundo
histórico em específico. Nesse sentido, o tédio se diferencia de
maneira estrutural da angústia, uma vez que não possui apenas
um caráter ontológico, mas também um caráter histórico-fático
indelével. Trata-se aqui de uma tonalidade afetiva fundamental
fática. Dito de outro modo, assim como acontece com a angústia,
é possível pensar o tédio em qualquer mundo histórico específico,
do século XII a. C. ao século XXXV d. C. e além. De qualquer
modo, porém, diferentemente da angústia, o tédio possui um
vínculo mais determinado com o nosso tempo histórico; e isso
significa dizer que ele toma possível compreender elementos de
nosso mundo que antecipam a ideia heideggeriana de epocalida-
de, assim como evidencia até que ponto Heidegger já se encontra,

55
nessa preleção de 1929/30, muito próximo das transformações
que têm lugar no interior da assim chamada viragem (Kehre) de
seu pensamento a partir de 1930. Mas se, por um lado, o tédio
se distingue da angústia por conta do que dissemos acima, ele
comunga com ela uma série de traços essenciais que são próprios
às tonalidades afetivas fundamentais em geral. Para compreender
tais traços, é preciso ter em vista agora o aprofundamento radi­
cal da noção de tédio, que ocorre por meio da noção de “tédio
profundo”.

Na primeira figura do tédio, como vimos, o que estava


em questão era literalmente o movimento de ver-se entediado
por algo. Aqui, algo entediante provocava expressamente de fora
o aparecimento do tédio no existente humano. Era sempre algo
que aparecia como entediante, assim como na descrição, em Ser
e tempo, da distinção entre temor e angústia era necessariamente
algo que se mostrava no temor como temível. O vazio próprio ao
tédio, com isso, permanecia fora do ser-aí humano e era interpre­
tado de maneira consequente como um vazio contingente, provo­
cado justamente pela situação do tédio. No ser entediado por, eu
não sou de modo algum entediante, ou seja, eu não me encontro
de modo algum diante de um vazio que me constitui, mas é o
algo entediante que me esvazia, que interrompe o movimento do
preenchimento dos momentos com ações, em suma, que quebra o
ritmo das ações cotidianas. Em relação a essa primeira figura do
tédio, a segunda figura traz consigo um claro aprofundamento, na
medida em que aponta para um vazio que não vem de uma coisa
ou de um estado de coisas entediante, mas para um vazio que
habita, antes, em nós mesmos e que desencadeia precisamente
de maneira antecipada o surgimento da festa como estrutura de

56
passatempo. A presença do passatempo, porém, impede o vir à
tona sem travas desse vazio e mantém o ser-aí, portanto, longe
da possibilidade de uma apropriação radical de si a partir da
experiência mesma de tal vazio. Ela não é, por isso, o grau mais
elevado do aprofundamento do tédio. Ainda resta um último
elemento da superficialidade no entediar-se junto a, uma vez
que esse vazio é experimentado radicalmente de maneira ôntica
como insipidez e desânimo, e que a antecipação da festa como
estrutura de passatempo apenas visa evitar que o tédio superficial
efetivamente apareça em casa, quando o ser-aí se vê entregue
a si mesmo. Dito de maneira ainda mais clara, ainda há, nessa
segunda figura, algo que me deixa entediado: esse algo sou,
nesse caso, eu mesmo, mas ainda temos algo como algo. Eu
mesmo sou aqui para mim entediante. No entanto, tudo se altera,
então, em meio à experiência do tédio profundo, na medida em
que, exatamente como no caso da angústia, no tédio profundo
não há mais nada que se mostre como entediante: nem algo
que se encontra fora de mim e que interrompe o movimento de
meu preenchimento da série infinita de agoras com ações, nem
eu mesmo em meu vazio onticamente determinado, no fato de
ter me tomado desinteressante para mim mesmo em meu vazio
constitutivo. Tal analogia com a angústia está expressa agora na
própria formulação utilizada para designar o tédio profundo. O
que está em questão não é um ser entediado por nem um ente­
diar-se junto a, mas um dar-se do tédio a alguém (es ist einem
langweilig'). Acompanhemos a própria descrição heideggeriana:

Dá-se tédio a alguém. Não é por este


ou aquele ente, que nós somos entedia­
dos. Não somos nós que nos entedia-
mos sempre a cada vez ocasionalmente

57
junto a eáta determinada situação
precisamente - mas: dá-se tédio a
alguém. Não eáte ou aquele ente em
uma proximidade palpável deáta de­
terminada situação se nos recusa, mas
todo ente, que nos abarca precisamen­
te neéla situação, retrai-se em uma in­
diferença. Mas não apenas todo ente
da situação em queálão, na qual nós
por acaso eátamos, lá onde eéte ‘dá-se
tédio a alguém’ emerge, mas o ‘dá-se
tédio a alguém’ explode precisamente
a situação e nos coloca na amplitude
plena daquilo que se manifeáta sempre
a cada vez, que se manifeálou um dia e
que poderá um dia se manifeslar para
o ser-aí em queétão enquanto tal e na
totalidade. Esse ente na totalidade se
recusa, e isso uma vez mais não ape­
nas em um aspecto determinado, em
consideração a algo determinado, com
viátas a algo determinado, que nós gos­
taríamos, por exemplo, de fazer com
o ente, mas esse ente na totalidade na
citada amplitude, segundo todos os as­
pectos e com toda e qualquer intenção
e para toda e qualquer consideração. É
desse modo, na totalidade, que o ente
se toma indiferente ' ’.

A passagem é paradigmática em muitos aspectos. Em


primeiro lugar, ela acentua um elemento central em todas as

[31] heidegger, Martin. Os problemas fundamentais da metafísica: mundo, fini-


tude, solidão, oc 29/30,1998, pp. 214-5.

58
tonalidades afetivas fundamentais em geral. Além de elas não
provirem de fora e, com isso, poderem surgir em qualquer situ­
ação, em qualquer contexto, independentemente do que esteja a
cada vez por acaso acontecendo, elas não se restringem nem a
um campo ôntico específico nem possuem um vínculo com uma
conjuntura regional determinada. Seguindo a indicação fornecida
pela própria formulação, há aqui claramente uma gratuidade,
que vem expressa por meio da partícula “se”, partícula essa que
tem como correlato em alemão o pronome pessoal neutro “es”.
Dá-se tédio a alguém: “Não é por este ou aquele ente, que nós
somos entediados. Não somos nós que nos entediamos sempre
a cada vez ocasionalmente junto a esta determinada situação
precisamente - mas: dá-se tédio a alguém”. Há aqui uma absoluta
ausência de vínculo com coisas ou objetos determinados que,
vindos de fora da existência ou emergindo do cerne do próprio
existir, pudessem provocar em nós o surgimento do tédio. O
tédio aqui vem à tona em sua plena gratuidade, em sua simples
dação. Na terceira figura do tédio, então, podemos dizer de ma­
neira completamente análoga à formulação da angústia em Ser
e tempo, que nada nos entedia. Uma vez que nada desponta em
meio à totalidade conformativa (Bewandtnisganzheit) e produz
em nós o surgimento do tédio, o tédio profundo também traz
consigo a suspensão de todo o poder normativo e normalizante
do mundo sobre nós. No instante em que o tédio profundo se dá,

não eáte ou aquele ente em uma pro­


ximidade palpável desta determinada
situação se nos recusa, mas todo ente,
que nos abarca precisamente neáta si­
tuação, retrai-se em uma indiferença.
Mas não apenas todo ente da situação
em questão, na qual nós por acaso

59
eátamos, lá onde eáte “dá-se tédio a
alguém” emerge, mas o “dá-se tédio a
alguém” explode precisamente a situ­
ação e nos coloca na amplitude plena
daquilo que se manifeéta sempre a
cada vez, que se manifeátou um dia e
que poderá um dia se manifeátar para
o ser-aí em queátão enquanto tal e na
totalidade.

Assim como a angústia, portanto, o tédio profundo não


provém de nenhum ente ou conjunto de entes, de nenhuma coisa
ou estado de coisas, na mesma medida em que tampouco diz
respeito à suspensão de um campo de sentido regional, a um
esvaziamento de um certo campo de ação, com suas caracte­
rísticas circunstanciais próprias. O que está em jogo tanto lá
quanto aqui é a experiência da retenção da abertura do ente na
totalidade. Ao acentuar a máxima amplitude própria ao tédio
profundo, portanto, o que Heidegger procura evidenciar é, antes
de tudo, o caráter de abertura total que é próprio de tal figura
do tédio, assim como a redução do ser-aí ao puro poder-ser que
acompanha tal redução. De maneira repentina e abrupta, sem
qualquer conexão com um contexto específico, o tédio se abate
sobre a existência, mantendo-a retida de um modo específico no
tempo hesitante e confrontando-a com a tranquilidade vazia na
totalidade. Nesse ponto, a terceira figura aproxima-se inequivo­
camente das outras duas. Tal retenção, porém, no caso tanto do
tempo hesitante quanto da tranquilidade vazia, ganha contornos
inteiramente diversos. O tédio profundo não ralenta apenas o
tempo, deixando-o por assim dizer menos líquido e mais pastoso.

60
Ele não se caracteriza nem pela consulta incessante ao relógio
nem pela mobilização ultra desenvolvida das estruturas de pas­
satempo, que produzem uma aceleração correlata do movimento
hesitante do tempo, mas, sim, pela supressão de toda e qualquer
possibilidade de temporalização do existir. Tal como se encontra
formulado no texto da preleção, quando se dá tédio a alguém,
esse dar-se mesmo vem à tona como “ser banido do horizonte
do tempo enquanto tal (...) na totalidade”32. A esse banimento
do horizonte do tempo na totalidade, então, corresponde uma
tranquilidade vazia, que não é simplesmente caracterizada por
uma experiência de insipidez e enfado nem, tampouco, por um
si mesmo que permanece congelado pelo tempo que durar a festa
enquanto campo do passatempo, mas, antes, por uma radical
nadidade estrutural, por uma espécie de morte em vida, por uma
redução da existência à sua nulidade originária, ao fato de que
se precisa ser sempre as possibilidades de ser que se é, sendo
tais possibilidades no tempo finito, no tempo mortal. O tempo
mergulha aqui no nada e a serenidade vazia se espraia pelo todo
que aparece pela primeira vez enquanto totalidade historicamente
determinada. Estamos aqui uma vez mais, tal como acontece já
na parte final de Ser e tempo, na proximidade da relação entre
tempo e historicidade33.

A formulação de que o tédio profundo promove um


“banimento do horizonte do tempo na totalidade” traz consigo

[32] Idem, p. 222.


[33] Tempo e historicidade é precisamente 0 título do segundo volume de minhas
leituras fenomenológicas de Ser e tempo. Cf. casanova, Marco. Mundo e
historicidade: leituras fenomenológicas de Ser e tempo. Volume 2. Tempo e
historicidade. Rio de Janeiro: Editora Via Verita, 2020.

61
uma série de elementos que provocam, a princípio, uma certa
estranheza. Como é possível ser banido do tempo na totalidade?
Em que medida tal banimento ocorre precisamente por meio do
tédio profundo? Há, de um lado, o tempo como um âmbito dota­
do de subsistência em si, e, de outro, o ser-aí humano como um
ente que se encontra dentro de tal âmbito e que, por meio do tédio
profundo, seria expelido para outro lugar? A resposta a essas
perguntas depende, antes de tudo, de uma lembrança em relação
ao modo como a fenomenologia em geral e como a fenomenolo-
gia hermenêutica heideggeriana em particular pensam o tempo.
Seguindo um preceito estrutural da fenomenologia, não se pode
simplesmente pressupor que há alguma coisa chamada tempo,
definindo-a em seguida por meio da explicitação de suas proprie­
dades subsistentes específicas. Ao contrário, é preciso sempre se
colocar no lugar mesmo em que, sem procurar determinar o que
é o tempo, o tempo enquanto tal por ele mesmo se dá. Dizer isso,
no caso de Heidegger, significa buscar acompanhar o campo de
dação da dinâmica de temporalização da temporalidade, campo
que se confunde com a realização temporal de possibilidades
de ser do existir humano. Não há o tempo como algo ou como
um âmbito por si subsistente, assim como tampouco há o tempo
como mero traço estrutural de certos eventos: o que há é apenas
o acontecimento temporalizante do existir. Tal acontecimento,
por outro lado, assenta-se sobre uma intuição primordial heide­
ggeriana, que ganha voz em sua máxima amplitude na segunda
parte de Ser e tempo. Em verdade, só o ente finito, só o ente
marcado por uma nadidade ontológica originária, em suma, só
um ente dotado de caráter de poder-ser precisa realizar sempre
a cada vez as suas possibilidades de ser no tempo finito de ser.
Deus não tem como se mostrar como ente temporal, porque todas

62
as suas possibilidades de ser já sempre se realizaram no instante
originário do seu ser: como tudo o que é possível se mostra para
ele como originariamente necessário, ele já sempre foi tudo o que
podia ser na eternidade de seu ser. As coisas tampouco podem ser
temporais, porque, enquanto entes dotados de propriedades por
si subsistentes, elas não realizam suas possibilidades de ser no
tempo, mas apenas sofrem derivadamente o efeito corrosivo do
tempo sobre tais propriedades. É preciso, em outras palavras, que
um acontecimento temporalizante se dê, para que entes dotados
de propriedades possam ser considerados a partir do efeito do
passar do tempo sobre suas propriedades, mas eles mesmos não
podem ser chamados de temporais, porque sua subsistência não
traz consigo um acontecimento temporal. Mesmo os animais, por
fim, não precisam realizar suas possibilidades de ser no tempo,
porque seu vínculo originário com o círculo envoltório deter­
mina de antemão tudo o que é e pode ser, de tal forma que suas
possibilidades de ser já se acham em potência condicionadas de
antemão por tal círculo. Só o ser-aí humano, então, enquanto ente
finito, precisa ser no tempo para ser. Esse tempo, contudo, não
é um tempo dado a priori, mas é, antes, aberto justamente pelo
acontecimento mesmo da existência. De acordo com a estrutura
formal do cuidado expressa no parágrafo 41 de Ser e tempo, isto
é, de acordo com a “antecipação de si já sendo em um mundo
junto a entes intramundanos que vêm ao encontro”34, é o próprio
modo de ser do existir enquanto cuidado que abre o espaço para
que o tempo se faça tempo. Por meio da antecipação de si cons-
titui-se a ekstase porvir; por meio da estrutura do já sendo em um
mundo emerge a ekstase ter sido; e, por fim, por meio do fato de

[34] HEIDEGGER, 200Óa, §41, p. IÇ2.

63
1
a antecipação de si e de o já sendo em um mundo se articularem
sempre a cada vez com os entes intramundanos que vêm ao en­
contro vem à tona a ekstase instante. Dito de outro modo, toda e
qualquer possibilidade de se falar de tempo já sempre se enraiza
nas estruturas intencionais do cuidado, no fato de a existência ser
constitutivamente temporalizante. Cotidianamente, ou seja, na
dimensão daquilo que Heidegger designa insistentemente com
a expressão “de saída e na maioria das vezes” (zunãchst und
zumeist), o ser-aí humano existe em meio à dinâmica de tempora-
lização própria à facticidade sedimentada, ao mundo circundante
em sua mediania própria. Seus tempos são sempre a cada vez os
tempos do mundo, os tempos da indecisão com suas “tarefas,
regras, critérios de medida, (com) a urgência e a amplitude do
ser-no-mundo ocupado e preocupado”3'; tempos esses que já
36. O
sempre se encontram a cada vez estabelecidos de antemão35
tédio profundo abate-se, com isso, diretamente sobre os tempos
públicos, sobre os ritmos e os prazos cotidianos, de tal modo que
inviabiliza por completo sua simples manutenção. Isso se dá, por
fim, a partir justamente da transformação da inquietude vazia
em confrontação radical com a nadidade estrutural do existir
humano. Vejamos mais atentamente.

Na primeira figura do tédio, o ser-aí se vê marcado por


uma tranquilidade vazia, exatamente na medida em que a presen­
ça de uma coisa ou de um estado de coisas entediante interrompe

[35] Idem, §54, p. 268.


[36] David Farell Krell descreve esse movimento em relação direta com a prele­
ção Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão em
um livro hoje clássico de 1992, chamado Daimon Life: Heidegger and Life-
Philosophy, especialmente na parte 1, que procura se constituir como uma
leitura de Ser e tempo. Pp. 33-63.

64
o prosseguimento automático do preenchimento de momentos
com ações. O vazio aqui não diz respeito ao ser-aí, mas à paisa­
gem insípida da localidade na qual se encontra a estação de trem,
ao fato de não se ter trazido nenhum livro ou de não se ter à mão
nada que pudesse funcionar como passatempo etc. Na segunda
figura, essa situação experimenta uma modulação, uma vez que
o vazio passa a estar no próprio ser-aí e a funcionar ele mesmo
como mobilizador estrutural do passatempo como um todo que
é a festa. O vazio aqui é vazio do instante dilatado, do instante
que se estende por tanto tempo quanto durar a festa e no qual
nada acontece com o si próprio do ser-aí. Exatamente por isso, a
tranquilidade vazia é aqui mais profunda, porquanto se confunde
com o si próprio, que se mantém incessantemente vazio junto
à festa. Todavia, é somente na terceira figura do tédio, ou seja,
somente no “dá-se tédio a alguém”, que a tranquilidade vazia
abandona suas conformações exógenas e passa a ser pensada
radicalmente em sintonia com a nadidade estrutural do ser-aí
humano. A tranquilidade vazia não se funda mais aqui em um
esvaziamento puro e simples do si mesmo, mas estende-se agora
de imediato para a raiz propriamente dita de todo e qualquer
esvaziamento, para o nada que habita em nós. Exatamente como
no caso da angústia, o tédio profundo também se caracteriza por
uma nadificação de todos os sentidos pretensamente positivos
que sustentam tacitamente as ações cotidianas, de tal modo que,
quando ele se abate sobre a existência, ele também toma o mundo
insignificante, uma vez que nos lança em uma experiência de
indiferença fenomenológica radical. A tal experiência, por outro
lado, corresponde uma confrontação de si por parte do ser-aí
humano com a sua nadidade estrutural, com o seu caráter de po-
der-ser. A diferença, então, revela-se justamente no modo como

65
se dá essa confrontação. Enquanto na angústia tudo se revela
repentinamente como possível, porque o ser-aí descobre exata­
mente a sua liberdade ontológica radical, o fato de não se achar
originariamente impelido a nada, no tédio profundo essa relação
do ser-aí com a sua nadidade ontológica originária concerne
mais diretamente à temporalidade, ao nexo entre ser e tempo
que é essencial para a existência. Em outras palavras, enquanto
na angústia tudo se mostra como possível, no tédio profundo
tudo se esgota imediatamente na renúncia do ente na totalidade,
renúncia que ocorre precisamente por meio da inviabilização do
tempo existencial em sua dimensão cotidiana. Aqui, literalmente,
nada é possível, porque a existência perde toda e qualquer pos­
sibilidade de temporalizar suas possibilidades de ser no espaço a
partir de uma mera operacionalização dos sentidos disponíveis no
mundo e de uma retenção da existência no campo daquilo que o
mundo circundante de antemão já definiu como possível. O que
emerge a partir daqui no texto de Os conceitos fundamentais da
metafísica, então, é um resgate aprofundado do instante como
unidade das ekstases e como tempo da rearticulação da própria
facticidade37. Temos aqui, uma vez mais, a tentativa heidegge-
riana de pensar a singularização como elemento nodal nas crises
mesmas que tornam possíveis as rearticulações da historicida­
de para além do aprisionamento na hermenêutica cotidiana. Ao
invés de reconstruir esse elemento da singularização, porém,
o que vou fazer agora é, antes, acentuar um vínculo decisivo
entre o tédio profúndo e uma antecipação de alguns elementos
presentes na descrição heideggeriana da metafísica da técnica
no período posterior à viragem, uma vez que o cerne do projeto

[37] Cf. HEIDEGGER, 2oo6a, §68, p. 338.

66
de Heidegger, em sua preleção Os conceitos fundamentais da
metafísica: mundo, finitude, solidão, parece-me apontar para o
esforço por encontrar no tédio profundo, enquanto tonalidade
afetiva fundamental fática, um nexo com a medida histórica do
nosso tempo.

67
5. Os impasses da hermenêutica da facticidade
e a impossibilidade de alcançar a medida epocal
de nosso tempo por meio do acontecimento
fundamental da singularização.

A relação entre tédio e técnica pode ser encontrada


textualmente na obra tardia de Heidegger. Nos Seminários de
Zollikon, por exemplo, o próprio Heidegger menciona o vínculo
entre tédio e técnica. Em um tópico intitulado “Tédio e tempo”,
tópico comentado em um seminário de 18 a 21 de janeiro de
1965 em Zollikon, Heidegger anota:

A com-posição (Ge-éiell) e o
tédio

O tempo posicio-nado -

a) na consideração da nature­
za - dominação - “ciência”
- técnica

b) e nossa relação com o I


tempo... I esse como aquilo a
ser requisitado I determinante
de nossa requisição.

pelo tempo - posicionado -

“Tempo como dinheiro”; ex­


plorar o tempo - por isso, pla­
nejar; “ultraplanejar”™.

[38] heidegger, Martin. Zollikoner Seminare. oc 89, p. 222.

69
O que temos aqui, contudo, vai muito além de uma mera
ligação incidental entre tédio e técnica. Como procuraremos mos­
trar, é precisamente o mundo da técnica que toma possível pela
primeira vez preencher uma lacuna na exposição heideggeriana
do tédio como uma tonalidade afetiva fundamental de nosso
filosofar (ser-aí) atual em sua preleção do semestre de inverno de
1929/30. Se olharmos para o texto da preleção em busca de uma
justificativa para tal afirmação, o máximo que encontramos é a
tentativa heideggeriana de consolidação de nossa situação atual
por meio de uma menção à filosofia da cultura da década de 1920
na Alemanha, leia-se à filosofia da cultura desenvolvida à época
por Oswald Spengler, Ludwig Klages e Max Scheler. Tal como
se encontra exposto no parágrafo 18 de Conceitos, a busca de tais
autores por um lugar histórico para o existente humano revelaria
precisamente o quanto o ser-aí se achava contemporaneamente
alienado de seu ser mais próprio. Tendo em vista o fato de que o
ser-aí fundamenta enquanto ente temporal a própria historicidade
do mundo, o projeto de determinar um papel histórico para o
ser humano não evidenciaria, segundo Heidegger, outra coisa
senão o quanto o ser-aí se encontraria distante de sua própria
essência temporal, e, por conseguinte, de seu vínculo originário
com o campo mesmo do acontecimento histórico do ser. Nas
palavras do texto:

Essa filosofia da cultura apresenta na


melhor das hipóteses o atual de nossa
situação, mas não nos capta. Mais
ainda, ela não chega nem mesmo a
nos apreender, mas nos desata de
nós mesmos, na medida em que nos
atribui um papel na hiálória mundial.
Ela nos desata de nós mesmos e se

70
moátra precisamente por meio daí
como antropologia. A fnga, a inver­
são, a aparência e a perdição são ainda
intensificadas39.

Em outras palavras, é por meio precisamente de um


aceno para um fenômeno contemporâneo capaz de revelar o
nosso desenraizamento existencial, e apenas a partir dele, que
Heidegger pretende justificar de maneira mais específica a afir­
mação do tédio como tonalidade afetiva fundamental fática de
nossa época. A pergunta que se nos impõe, contudo, é a seguinte:
Em que medida uma manifestação antes derivada é capaz de
tocar no cerne mesmo do campo fático e revelar por meio daí o
que estaria às últimas consequências em jogo na perda do vín­
culo histórico com o ser? É possível afirmar, por um lado, que
a filosofia da cultura representada pelos autores acima, com a
sua desorientação característica em termos da compreensão do
ser propriamente dito do ser-aí humano, é um sintoma de que
o ser-aí se tomou radicalmente desinteressante para si mesmo.
Quanto a isso, não há dúvida. Mas como deduzir dessa afirmação
a medida do tempo histórico, medida essa que tomaria o tédio
uma tonalidade afetiva fundamental de nosso filosofar atual? Há
aqui um lapso argumentativo claro, um salto lógico no modo
mesmo de exposição do filósofo. Além disso, é preciso acentuar
que, diferentemente do que acontece com a angústia em Ser e
tempo, o que Heidegger procura por meio do tédio profundo não
é simplesmente descrever de maneira indicativo-formal uma

[39] HEIDEGGER, 200Ób, §l8 (c), p. II5.

71
possibilidade sempre vigente na dinâmica existencial mesma
do ser-aí humano de reconquistar sua temporalidade originária,
mobilizando historicamente, por meio daí, o mundo para além
da estagnação hermenêutica à qual o mundo mesmo se vê con­
denado pela mediania da cotidianidade. Não se trata aqui de um
mero decalque do caminho expositivo presente em Ser e tempo
a partir da mudança apenas da tonalidade afetiva fundamental da
angústia para o tédio profundo. Ao contrário, o que se busca em
Conceitos é, antes, escapar de tal descrição meramente ontoló­
gica por meio de um aceno primordial para um tipo de vazio, de
ausência de sentido, de alienação da determinação originária do
ser-aí enquanto poder-ser, que não mais dizem respeito apenas à
cotidianidade em sua gramática, em sua sintaxe e em sua semân­
tica impessoais, mas que concernem também fundamentalmente
ao campo histórico contemporâneo, ao nosso mundo fático em
seu nexo estrutural marcado por uma medida epocal determinada.
A questão, contudo, é que, uma vez que só possui na década de
1920 a noção de mundo como totalidade de significados es­
truturada por sentido, ou seja, na medida em que ainda não se
movimenta na lógica do acontecimento apropriador (Ereignis)
e em sintonia com a expressão central apresentada em sua con­
ferência decisiva de 1930, Da essência da verdade, a expressão
“medida vinculadora” (bindende Richtéfl\ Heidegger não tem
como pensar em sua preleção sobre os Conceitos fundamentais
da metafísica a transformação radical do campo histórico como
determinada por um abalo no próprio fundamento de tal campo
e como enraizar tal abalo em um acontecimento capaz de abrir
precisamente o espaço para o dar-se de uma medida histórica

[40] heidegger, Martin. Da essência da verdade. In: Wegmarken, OC 9, pp.


185-6.

72
do próprio ser. Em outras palavras, ele não tem como pensar o
fundamento histórico do vazio, que ganha corpo no tédio pro­
fundo em seu vínculo com o tempo do mundo e, com isso, vê-se
obrigado a repetir ao final da primeira parte sobre o tédio a lógica
inerente a Ser e tempo, qual seja, a lógica que impõe a tentativa
de pensar a crise existencial oriunda das tonalidades afetivas
fundamentais, o que Heidegger denomina, nesse momento, acon­
tecimento fundamental da existência (Grundgescheheri), como
determinante dos processos de reinterpretação da facticidade
- reinterpretação essa, bem entendido, que não acontece por
meio do ser-aí humano, como se fosse ele que conduzisse essa
reinterpretação, mas que se constitui antes como um processo da
própria facticidade que se reinterpreta a si mesma por meio das
crises do ente nodal. E aqui, uma vez mais, o ponto nevrálgico
não apenas do fracasso de Ser e tempo, mas, ainda mais, do fra­
casso da filosofia de Heidegger na década de 1920 ganha corpo
- o ponto nevrálgico do que obriga Heidegger à assim chamada
viragem de seu pensamento. Como se dá, contudo, a tentativa
acima mencionada e até que ponto ela realmente se depara com
um beco sem saída? Para respondermos a essas perguntas, outra
passagem dos Conceitos se revela como paradigmática:

Nós não podemos conáfatar a oscila­


ção entre a amplitude desse vazio (o
vazio oriundo da recusa do ente na
totalidade/M.C.) e a agudeza desse
instante (o instante da reconquiáta de
si para além da absorção no automa-
tismo da exiátência cotidiana), iáto é,
nós não podemos regisfrar como um
eátado de fatos esse tédio profundo de
nosso ser-aí. Nós só podemos pergun­
tar, se, por fim, esse tédio profundo

73
atravessa de maneira afmadora nosso
ser-aí, ou seja, nós podemos pergun­
tar se nossas humanidades atuais co­
tidianas, nosso ser humano, não é em
tudo de tal modo que - em todo o seu
fazer e deixar de fazer, e obnubilado
por isso - ele aja ao encontro da pos­
sibilidade do vir à tona daquele tédio
profundo. Nós só podemos perguntar
se o ser humano atual restringe aquela
amplitude de sua mais profunda indi-
gência velada em meio às indigências,
para as quais ele logo encontra uma
saída de emergência, a fim de se sa­
tisfazer e de se aquietar. Nós só pode­
mos perguntar se o ser humano atual
já sempre rompeu, recurvou, embotou
e reteve embotado aquele ápice do
mais agudo instante por meio da
rapidez de sua reação, por meio do
caráter repentino de seus programas,
rapidez e caráter repentinos esses que
ele equipara à decisão do instante (...).
Somente em tais perguntas podemos
compreender aquele tédio profundo,
abrir espaço para ele. Perguntar sobre
etta tonalidade afetiva fundamental
significa, porém, não juétificar e em­
preender as humanidades atuais do ser
humano, mas liberar a humanidade
no ser humano, a humanidade do ser
humano, iáto é, liberar a essência do
ser humano, deixar vir a ser essencial­
mente o ser-aí nele".

[41] Heidegger, Martin. Os problemas fundamentais da metafísica: mundo,


finitude, solidão, OC 29/30, 1998, p. 248.

74
Com essa passagem, Heidegger praticamente conclui a
primeira parte de sua preleção, a parte devotada ao tédio como
uma tonalidade afetiva fundamental de nosso filosofar atual, o
que significa ao mesmo tempo de nosso mundo. A passagem
traz consigo um aceno para a dupla possibilidade aberta por
toda tonalidade afetiva fundamental, possibilidade que evidencia
exatamente o quanto as tonalidades afetivas fundamentais não
são por si só suficientes para promover o surgimento de uma crise
radical dos modos de resposta às requisições dos entes, que são
características do mundo cotidiano, e para viabilizar uma evidên­
cia quanto à determinação propriamente dita de nossa situação.
Dito de maneira mais expressa, tonalidades afetivas fundamentais
são sempre condições necessárias para que o ser-aí radicalmente
assuma, sendo, sua nadidade ontológica originária e passe a exis­
tir no tempo finito de ser cada uma de suas possibilidades de ser.
Somente por meio delas, com isso, o ser-aí humano pode abrir
plenamente o tempo como campo de sentido de seu ser, o que
repercute sobre a própria dinâmica de historicização do mundo,
uma vez que as transformações temporais das possibilidades
de ser no tempo formam, para Heidegger, na década de 1920, a
base para pensar a historicidade do mundo. Tudo isso depende
aqui incondicionalmente das tonalidades afetivas fundamentais.
Não obstante, apesar de serem condições necessárias da transfor­
mação, elas nunca se mostram como condições suficientes para
tanto, uma vez que é sempre possível experimentar as afinações
fundamentais e, em seguida, retomar ao modo inicial de absorção
no mundo fático sedimentado ou mesmo se deixar afinar pela
nadidade, mas jamais conseguir rearticular a existência em uma
familiaridade plenamente restabelecida. Por isso, não se trata
jamais, em uma tonalidade afetiva fundamental, de uma simples

75
entrada em uma estrutura causai inexorável, capaz de ser acom­
panhada em sua necessidade específica. Não há aqui nenhuma
estrutura lógica do tipo: se o tédio profundo se abater sobre o
ser-aí humano, então ele necessariamente experimentará a partir
daí o instante transformador não apenas de sua existência, mas
do campo existencial no qual ele incontomavelmente realiza as
suas possibilidades de ser. Nas palavras iniciais do texto: “Nós
não podemos constatar a oscilação entre a amplitude desse vazio
(o vazio oriundo da recusa do ente na totalidade/M.C.) e a agu­
deza desse instante (o instante da reconquista de si para além
da absorção no automatismo da existência cotidiana), isto é, nós
não podemos registrar como um estado de fatos esse tédio pro­
fundo de nosso ser-aí”. Não se trata aqui de modo algum de um
fato constatável, mas, antes, tão somente de uma possibilidade
que se abre: a possibilidade de uma reconquista por parte do
ser-aí da essência temporal do cuidado, o que se confunde com
a reconquista, por parte do mundo, do tempo como horizonte de
abertura do sentido de ser. Heidegger, contudo, não fala de ma­
neira genérica sobre tal possibilidade, mas a articula, antes, dire­
tamente com elementos intrínsecos ao nosso mundo fático atual,
na medida em que a possibilidade de se deixar afinar pelo tédio
profundo depende aqui da disposição para suportar a experiência
fundamental do vazio, que se abre a partir da recusa do ente na
totalidade em meio a uma facticidade marcada pela produção
incessante de vazio ou de ausência, e do anúncio do instante em
seu ápice como tempo de articulação pleno das ekstases porvir e
ter sido para além de tal vazio. Instante e vazio obedecem aqui,
portanto, à medida (Richte) vinculadora (bindendé) própria ao
mundo que é o nosso, ao tédio do que em seguida mostraremos
como um caráter da técnica, digamos assim. Ora, mas se não é

76
possível olhar para o acontecimento da afinação fundamental
do tédio profundo como um fato, o que nos resta então? O que
nos resta é entrar de maneira ainda mais radical na possibilidade
do instante, possibilidade essa que se revela originariamente
por meio de uma pergunta radical, de um modo de ser questio-
nador. Em verdade, as perguntas sempre são, para Heidegger,
mais importantes do que as respostas. E isso não porque, como
parece ter dito Kant certa vez, quem pergunta mal se comporta
como alguém que ordenha uma vaca com peneira, mas porque o
próprio caráter estrutural da existência, ou seja, sua nadidade e
sua essência temporal finita daí decorrentes, tanto quanto o tecido
propriamente dito do campo existencial correlato, isto é, o tecido
urdido pela temporalidade histórica, encontram na questão o seu
paradigma mais constitutivo. Dito de outro modo, a diferença
ontológica intrínseca tanto ao ser-aí - jamais ser seus modos de
ser como se esses modos de ser pudessem se tomar propriedades
por si subsistentes, mas sempre ter de ser cada modo de ser no
tempo finito e mortal de ser - quanto ao ser - jamais poder se
confundir com uma de suas determinações históricas vigentes na
abertura, no descerramento de mundo - dota as questões de um
primado sobre toda resposta, uma vez que toda resposta recoloca
em última instância o caráter de questão que lhe é imanente42.
Dizer, portanto, que o tédio profundo se encontra dormitando em
nossa existência e expor a tarefa primordial da preleção como

[42] Há claramente uma mudança de inflexão na noção de diferença ontológica


da década de 1920 para a década de 1930. Até Os conceitos fundamentais da
metafísica: mundo, finitude, solidão, diferença ontológica é uma expressão
que procura designar precisamente 0 primado ôntico-ontológico do ser-aí
humano e o fato de que, por sua nadidade ontológica originária, ele não é
nem jamais se toma um ente dotado de propriedades subsistentes. A partir de
1930, diferença ontológica passa a definir a essência do fundamento, 0 fato

77
voltada para um despertar dessa tonalidade afetiva fundamental
de nosso filosofar atual não se confunde com pressupor a subsis­
tência em si do tédio profundo em algum lugar determinado de
nossa interioridade e compreender o despertar como um trazer
à tona de algo já presente, mas, sim, acentuar o vínculo estru­
tural do tédio profundo com a nossa condição contemporânea e
com a possibilidade de uma apropriação plena dessa condição
em meio às novas possibilidades de ser no tempo finito de ser.
O problema, então, é que tipo de apropriação se toma possível
em meio à reconquista singularizante do tempo como essência
originária do cuidado e em que medida esse tipo de apropriação
dá conta do vazio histórico, fático, destinamental que é o nosso.
E é aqui, então, que o projeto essencial do pensar heideggeriano
na década de 1920 fracassa uma vez mais e pela última vez.

“Nós só podemos perguntar se o ser humano atual já


sempre rompeu, recurvou, embotou e reteve embotado aquele
ápice do mais agudo instante por meio da rapidez de sua reação,
por meio do caráter repentino de seus programas, rapidez e ca­
ráter repentinos esses que ele equipara à decisão do instante”. A
última formulação das questões que emergem do tédio profundo
não deixa dúvidas quanto ao sentido propriamente dito dos ques­
tionamentos abertos pelo tédio profundo. O que está em jogo aí
é, antes de tudo, o quanto o ser-aí humano responde aos dilemas
que emergem de seu tempo por meio de uma inserção ainda mais
direta no caráter imediato de seus comportamentos. Caso ele
assim proceda, o resultado será deixar-se levar cada vez mais

de que o ser jamais se confunde com os acontecimentos históricos de ser. Cf.,


quanto a esse segundo significado, meu texto “Metafísica e transcendência”,
em: Metafísica: história eproblemas, pp. 189-202.

78
intensamente pelo automatismo de suas reações e, consequen­
temente, pelas experiências mais superficiais da tranquilidade
vazia, do ritmo hesitante do tempo, da vinculação obsessiva ao
relógio etc. Respondendo ao tédio em meio à lógica correlata do
passatempo, o ser-aí jamais consegue plenamente se apropriar
do vazio que o habita estruturalmente e abrir, a partir de tal apro­
priação, uma nova dinâmica de temporalização capaz de levar
o mundo fático sedimentado para além de sua versão cotidiana
estagnada. Assim, a questão é se, para além desse modo inicial de
reação ao tédio, isto é, para além do modo superficial de reação,
o ser-aí humano é capaz de se deixar tocar de maneira extraor­
dinária pela tonalidade afetiva fundamental do tédio profundo,
de tal modo que essa tonalidade abra para ele um novo tempo
de ser, aquilo mesmo que é chamado acima de ''"ápice do mais
agudo instante”. A questão, porém, é que justamente aqui fica
claro o quanto o projeto da hermenêutica da facticidade, ou seja,
o quanto o projeto de pensar o movimento de autointerpretação
da facticidade por meio das crises do ente nodal entra em colapso,
quando o que está em questão é abrir não novas possibilidades
fenomênicas, novos significados, não resguardar, como se acha
formulado no parágrafo 40 de Ser e tempo, “a força das palavras
mais elementares, nas quais se exprime o ser-aí, conservando-as,
para que elas não sejam niveladas pelo entendimento comum
até as raias da incompreensibilidade, que, por sua vez, funciona
como fonte para pseudoproblemas”4 ’, mas, antes, tomar possível
descrever a medida epocal que unifica todos os fenômenos de
um mundo e que toma possível justamente falar de um mundo.
O que está em questão na preleção Os conceitos fundamentais

[43] HEIDEGGER, 2006a, §44, p. 220.

79
da metafísica: mundo, finitude, solidão é mais do que clamar ao
ser-aí humano a necessidade de recobrar a essência temporal do
cuidado, mobilizando, com isso, o próprio campo histórico com­
preendido como totalidade de fenômenos, significados, palavras.
O que está em questão é alcançar, por meio de uma tonalidade
afetiva fundamental, o próprio coração do vazio que habita a con-
temporaneidade, o cerne mesmo de nossa perda de conexão com
o acontecimento da verdade do ser, ou seja, com a historicidade
propriamente dita da verdade. Não se trata mais aqui de superar
a lógica dos momentos, com a fugacidade característica de tal
lógica, em direção ao instante como unidade total das ekstases e
como unidade correlata do campo situativo, mas de pensar uma
determinação histórica oriunda do acontecimento pontual de
uma época. Tal determinação não tem como ser descrita a partir
das crises existenciais do ser-aí humano, mas precisa ser, antes,
enraizada na própria negatividade dos fundamentos históricos,
na impossibilidade de se falar de fundamentos últimos, de uma
simples equiparação entre ser e fundamento. Para chegar a ela,
portanto, fez-se necessário, para Heidegger, abandonar a ideia
de que o ser-aí seria ele mesmo o veículo da introdução da ne­
gatividade no mundo e passar a tomar o próprio mundo em sua
errância, em sua nadidade constitutiva. Não é mais o ser-aí que
se revela a partir de certo momento como a clareira do ser, mas
é a clareira que aponta, antes, para o aí no qual insistentemente
habita o ser-aí. Ser na clareira implica insistir no acontecimen­
to histórico não fundado na temporalidade do existir humano,
mas na própria temporialidade do ser. Não há, em suma, como
pensar o tédio enquanto uma tonalidade afetiva fundamental de
nosso ser-aí atual, assim como não há como escapar de uma certa
monotonia ontológica da tradição senão enfrentando a força de

80
um determinado modo inicial dessa tradição, sem uma confron­
tação com o caráter mesmo de seu início. Pois é no início que
se encontra prelineada a possibilidade do fim. O que precisamos
fazer, com isso, é avançar agora nessa parte final do presente
texto na direção de uma investigação que transcende, a princípio,
os intuitos da preleção de 1929/30, e sondar, então, a ligação
originária entre tédio e técnica.

81
6. Tédio e técnica: da ruptura radical do laço
estrutural entre o ser-aí humano e seu campo
existencial.

A preleção Os conceitos fundamentais da metafísi­


ca: mundo, finitude, solidão possui um lugar único na obra de
Heidegger, na medida em que ela se encontra precisamente no li­
mite entre o projeto da filosofia heideggeriana na década de 1920
e a viragem pela qual passa o pensamento do filósofo a partir
de 1930. Esse lugar destaca-se, antes de tudo, por conta daquilo
que chamamos até aqui de uma tonalidade afetiva fundamental
fática. Ao designar o tédio profundo como uma tonalidade afe­
tiva fundamental de nosso filosofar atual, Heidegger não está
simplesmente apontando na direção de uma possibilidade da
existência humana, que traz consigo constitutivamente o germe
das crises não apenas do existir, mas também e fundamental­
mente do campo existencial no qual a existência sempre a cada
vez se dá, ou seja, do mundo. Ao contrário, ele está, ao mesmo
tempo, acentuando o quanto essa possibilidade aberta pelo tédio
profundo possui um vínculo estrutural com a medida histórica de
nosso tempo. É isso que, como procurei mostrar acima, já vem
à tona por meio da tentativa algo malsucedida de Heidegger de
despontar esse vínculo por meio de um elemento antes conjun­
tural: a busca da filosofia da cultura de seu tempo por encontrar
uma vez mais um lugar histórico para o ser humano. Ainda que
se possa acompanhar a descrição heideggeriana do absurdo em
jogo no esforço por alcançar um novo lugar histórico para o
ente histórico por excelência, a menção a essa busca acaba fun­
cionando muito mais como um índice do caráter estrutural de

83
nosso tempo do que propriamente como uma explicitação desse
caráter. Alguém poderia, claro, argumentar que a falta dessa in­
dicação expressa da medida não seria tão importante, uma vez
que o intuito primordial da preleção seria muito mais promover
a liberdade em relação aos aprisionamentos no mundo do tédio.
A questão, porém, é que a formulação mesma da tarefa da pre­
leção como o despertar de uma tonalidade afetiva fundamental
de nosso filosofar atual deixa claro que essa liberdade acima
descrita não pode ser pensada à revelia da atualidade de nosso
mundo histórico determinado e que as modulações do mundo
não podem mais dizer respeito diretamente aos mil significados
do mundo e à multiplicidade de sentidos de ser que se acham
todos enraizados no tempo enquanto sentido de ser primordial,
mas precisa, antes, nos remeter para a possibilidade de se escapar
da medida mesma do mundo, daquilo que atravessa radicalmen­
te todos os fenômenos de nosso tempo. A questão, com isso,
passa a ser: até que ponto é possível pensar a medida epocal do
mundo fático que é o nosso como uma medida que encontra no
tédio profundo a sua atmosfera fundamental? O que faz com
que seja possível falar de uma ligação essencial entre a medida
vinculadora de nossa época e o tédio profundo? Se a filosofia da
cultura levada a termo, segundo Heidegger, sob os auspícios da
distinção nietzschiana entre o apolíneo e o dionisíaco se revela
apenas como um sintoma do vazio que habita o espírito contem­
porâneo, de que, afinal, esse sintoma é às últimas consequências
sintoma? Em suma: qual é a ligação propriamente dita entre
técnica, vazio e tédio? Em que medida essa ligação não se mostra
como uma simples hipótese de um pensador obscuro, mas como
uma articulação plena do sentido mesmo que articula todos os
fenômenos de nossa época? Para responder a essas perguntas, é

84
preciso, antes de tudo, ter em vista algumas especificidades do
pensamento tardio de Heidegger.

6.1. Para uma determinação da essência da


técnica e os impactos dessa determinação para
as pretensões do ser humano contemporâneo.

Nós já tangenciamos anteriormente o ponto central da


assim chamada viragem do pensamento heideggeriano na década
de 1930. Se o que estava em questão em uma obra como Ser e
tempo, por exemplo, era descrever o mundo como horizonte de
manifestabilidade do ente enquanto ente e, consequentemente,
como totalidade de fenômenos, Heidegger passa na década de
1930 a considerar o mundo a partir da unidade mesma dessa
totalidade. Com isso, ao invés de partir do ser-aí humano como o
ente que sempre se movimenta constitutivamente em meio a uma
compreensão de sentido de ser, o que significa aqui o mesmo que
em meio a um projeto antecipativo de sentido que articula um
campo de possibilidades atualizáveis de maneira interpretativa
em sintonia com orientações normativas e normalizantes oriun­
das dos significados mesmos de tais possibilidades, Heidegger
procura dar voz agora ao próprio acontecimento histórico do
sentido de ser. Dito em termos da obra heideggeriana, nós sa­
ímos da compreensão de sentido de ser (Seinsverstãndnis) na
década de 1920 para o acontecimento apropriador do próprio
ser (Seinsereignis) na década de 1930 em diante, isto é, dos mil
significados do mundo às palavras simples do ser. Tal aconte­
cimento, então, envolve uma transformação radical no modo
de pensar o sentido articulador da experiência ser-no-mundo.

85
Ser e tempo não toma o mundo apenas como uma totalidade de
significados assentada sobre um campo de fenomenologização
dos fenômenos enquanto tais. Ao contrário, ele acentua desde
o princípio o quanto a totalidade de significados que o mundo
é carece sempre a cada vez de um sentido, em virtude do qual
e com vistas ao qual um campo específico de ação vem à tona.
Nunca há simplesmente um contexto prático, no qual nos vemos
repentinamente imersos e no qual realizamos nossas atividades
em geral, mas a todo contexto prático corresponde um sentido
mobilizador de tal campo. Esse sentido possui uma ligação es­
sencial com o ser-aí humano, com a sua nadidade ontológica
originária, com o fato de que, desprovido de qualquer sentido de
ser natural, o ser-aí carece incontomavelmente de sentido para
ser. A relação entre nadidade e sentido, porém, não permanece
apenas nesse plano superficial de análise. O que está em questão
não é apenas o fato de, por não ter nenhum sentido dado a priori,
o ser-aí precisar sempre haurir sentido de sua negatividade. Para
além disso, não possuir nenhum sentido de ser dado de antemão
implica precisamente ter de realizar todas as suas possibilidades
de ser no tempo finito de ser. Em outras palavras, é exatamente
porque não tem em sua existência nenhum sentido prévio, que
o ser-aí precisa encontrar no tempo o sentido propriamente dito
de seu ser. Na medida em que passa a se realizar, contudo, em
sintonia com o seu sentido próprio de ser, o ser-aí se abre uma
vez mais para a pluralidade ontológica do mundo, para os muitos
sentidos de ser, que se apresentam de maneira correlata ao existir
no tempo finito. A consequência da dinâmica de conquista de
si enquanto ente temporal, portanto, é assim que encontramos
expresso em Ser e tempo, é a retomada de uma pluralidade de
campos ontológicos em geral (sentidos de ser), que passam a

86
mostrar-se como atravessados todos por temporalidade. O que
se tem nesse momento, então, é o enraizamento das diversas
ontologias regionais no tempo como sentido de ser do ente na
totalidade. Os muitos sentidos de ser, então, se dizem sempre na
unidade de um sentido de ser que encontra no ser-aí humano o
ente nodal. A afirmação, no entanto, do sentido de ser “tempo”
como o sentido de ser de base, que unifica os muitos campos
ontológicos em geral, não apenas não formula a pergunta sobre
o caráter propriamente histórico do mundo, mas obstrui mesmo
a possibilidade de tal formulação. E isso precisamente que passa
a estar em questão no período posterior à viragem. Não negar
a assunção do tempo como horizonte da abertura de sentido
de ser, mas pensar tal horizonte em sintonia com um modo de
determinação do campo histórico, que traga a historicidade para
o cerne mesmo da medida própria ao campo. Para retomar a ex­
pressão anteriormente citada, o que importa agora é acompanhar
o acontecimento mesmo do sentido do ser do ente na totalidade,
acontecimento esse que traz consigo uma medida vinculadora de
todos os fenômenos em geral. Com isso, a pergunta que desponta
como que imediatamente é: qual é a medida propriamente dita
de nosso tempo e até que ponto essa medida possui de fato uma
ligação direta com o tédio, de tal modo que conseguimos acom­
panhar a partir dela o que legitima a afirmação do tédio profundo
como uma tonalidade afetiva fundamental de nosso filosofar
atuais Para respondermos de maneira direta as perguntas acima,
precisamos atentar, antes de tudo, para aquilo que Heidegger vai
designar em suas Contribuições à filosofia (Do acontecimento
apropriador) como a era da ausência de questionamento e para
o que ele mais tarde vai retomar no contexto de suas descrições
da metafísica da técnica. Bem, mas o que Heidegger tem em

87
vista com a expressão “era da completa ausência de questio­
namentos”? O texto mesmo das Contribuições nos aponta uma
direção de compreensão:

Coátuma-se denominar a era da ‘ci­


vilização’ aquela era do Jes-encan-
tamento, e eále parece, antes, andar
junto com a completa ausência de
queálionamento. Todavia, é o contrá­
rio que se dá. Não é preciso senão que
se saiba de onde vem o encantamento.
Se a maquinação chegar à dominação
final, se ela entremear tudo, então
não haverá mais condições para notar
ainda expressamente o encantamento
e opor-se a ele. O enfeitiçamento por
meio da técnica e de seus progressos
que se ultrapassam conálantemente é
apenas um sinal desse encantamento,
em consequência do qual tudo é impe­
lido para o cálculo, utilização, cultivo,
manualidade e regulação. Até mesmo
o ‘goáto’ toma-se agora objeto dessa
regulação, e tudo alcança um ‘bom
nível’. O mediano toma-se cada vez
melhor, e, em virtude desse melhora­
mento, ele assegura seu domínio de
modo cada vez mais irresiálível e sem
chamar a atenção44.

Essa passagem é maximamente significativa em muitos


aspectos e concentra em si de maneira sintética uma gama imensa
de elementos característicos da leitura heideggeriana do sentido

[44] Heidegger, 2015, p. 123.

88
ontológico articulador do mundo contemporâneo. Ela inicia-se
com uma menção a um conceito, que ficou famoso por meio da
obra de Max Weber: o conceito de “desencantamento do mundo”.
Nesse conceito, o que está em questão para Weber é mostrar o
quanto “a conduta racional baseada na ideia de vocação”, conduta
central para “o espírito do moderno capitalismo e, não apenas
para este, mas também para toda a cultura moderna” implica “a
formação da moderna ordem econômica e técnica ligada à pro­
dução em série através da máquina, que atualmente perpassa de
maneira violenta o estilo de vida de todo o indivíduo nascido sob
esse sistema”15. Existir, então, em meio a um modo de produção
serial dominado pela lógica da máquina envolve o desencanta­
mento do mundo, porque esse modo de produção faz com que
os seres humanos possam se nutrir cada vez mais dos artefatos
produzidos pelas máquinas e se inserir tanto mais intensamente
nas redes mesmas de tal produção, sem que eles tenham a mínima
noção das pesquisas e das tecnologias particulares embutidas
nos utensílios técnicos, que se tomaram paulatinamente parte
indispensável da vida humana. No tempo de Weber, um desses
utensílios era, por exemplo, o trem a vapor; em nosso tempo,
porém, o que está em jogo para ele fica ainda mais claro se olhar­
mos simplesmente para o celular ou mesmo para o computador.
Esses dois utensílios tornaram-se absolutamente cotidianos e
estão presentes hoje em casas marcadas por realidades sociais
totalmente diversas. Qualquer um é capaz de usar um celular
e um computador, de tal forma que parece mesmo impossível

[45] Weber, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução


de M. Irene de Q. F. Szmrecsányi e Tamás J. M. K. Szmrecsányi. São
Paulo: Pioneira, 1989, pp. 130-31.

89
imaginar atualmente uma vida sem eles. No entanto, por mais
evoluídos que pretendam ser os cidadãos do mundo capitalista
ultradesenvolvido de nossos dias, pouquíssimas pessoas têm
uma vaga ideia das tecnologias presentes nesses utensílios. A
consequência disso é que cada vez mais se perde o contato com
o campo mesmo das pesquisas e descobertas científicas, e, por
conseguinte, com as inquietações, as perguntas, as dúvidas, os
experimentos, as hipóteses etc., e cada vez mais se usa simples­
mente o que a ciência tecnicamente produz como se tudo isso
fosse de uma obviedade total. E por isso que se pode dizer, com
Weber, que qualquer aborígene primitivo possuía mais conhe­
cimento das tecnologias em jogo na produção dos seus artefatos
do que é o caso para nós, seres do mundo super tecnológico. Em
síntese, desencantamento do mundo é uma expressão que visa, a
princípio, acentuar o paradoxo de um tempo repleto de utensílios
extremamente complexos e sem qualquer atenção para o caráter
enigmático de sua produção. Por mais descomunal que seja o
fenômeno, tudo já sempre aparece a partir do desencantamento
próprio ao que apareceu. Não há, portanto, mais nenhum encanto
em nosso mundo. Contra essa posição weberiana em relação ao
mundo contemporâneo, Heidegger nos diz: “Costuma-se deno­
minar a era da ‘civilização’ aquela era do c/es-encantamento,
e este parece, antes, andar junto com a completa ausência de
questionamento. Todavia, é o contrário que se dá”. Mas em que
medida é possível realmente falar do mundo contemporâneo
como um mundo marcado pelo encantamento? As duas posições
são completamente antagônicas ou, por detrás de sua aparência
primeira, elas apontam para uma mesma direção? Seria o mundo
contemporâneo marcado pelo paradoxo do desencantamento e
do encantamento conjuntos?

90
Não há real contradição entre a posição de Max Weber
e a passagem das Contribuições à filosofia. O que há, inversa­
mente, é apenas uma mudança de acento, uma extensão da po­
sição weberiana em outra direção. Para Max Weber, o modo de
produção industrial e o divórcio cada vez maior entre o mundo
do trabalho e o mundo da ciência promove por um lado justa­
mente o desencantamento do mundo. Para Heidegger, por outro,
o desencantamento do mundo ocorre precisamente por meio de
um encantamento primordial, de um fascínio incondicionado,
de um enfeitiçamento de todos por uma espécie de novo ídolo.
Com efeito, o que temos hoje é o contrário de um simples de­
sencantamento do mundo, porque estamos completamente en­
cantados pela maquinação técnica e por seus desdobramentos
constantes, pelas potencialidades abertas pelos aparatos técni­
cos e pela imersão na realização mesma de tais potencialidades.
Nas palavras do texto, então, o que precisamos aqui é, antes de
tudo, saber apenas “de onde vem o encantamento”. E o próprio
texto nos responde em seguida de onde é que ele vem: ele vem
da maquinação, cuja maior ameaça consiste precisamente em,
chegando “à dominação final, entremear tudo”, de tal modo que
“não haja mais condições para notar ainda expressamente o en­
cantamento e opor-se a ele”. Técnica e maquinação. Bem, uma
estranha articulação de termos. O que ela nos indica? O termo
maquinação se diz em alemão por meio da palavra Machenschafi.
Essa palavra possui na sua raiz etimológica uma ligação direta
com o verbo machen, fazer. Maquinação é o termo que nasce
precisamente da substantivação do verbo fazer. Poderiamos,
assim, traduzi-la simplesmente por fazeção, por facção ou por
factibilidade. Em alemão corrente, contudo, o termo possui pre­
cisamente o sentido de tramóia, ardil, conspiração sorrateira. O

91
que importa, contudo, aqui é acompanhar em que medida uma
fazeção específica constitui de maneira essencial as maquinações
estruturais, as tramas fundamentais do mundo da técnica. Tal
como Heidegger afirma em seu A questão da técnica, é decisivo
ter em vista, a princípio, o fato de que a essência da técnica não
é ela mesma nada técnico46. Em outras palavras, não é nunca por
meio da interpelação discursiva de um ente ou de um conjunto
de entes técnicos e por meio da concentração da atenção em um
conjunto de propriedades próprias a esse ente ou conjunto, que
nós chegaremos propriamente à determinação da essência da
técnica. Ao contrário, para que possamos perguntar sobre a es­
sência da técnica, é fundamental acompanhar o quanto a técnica
se mostra como um modo de trazer os entes do não ser ao ser,
ou seja, como um modopoiético de realização, que encontra no
mundo contemporâneo sua máxima extensão e validade. Nós não
existimos no mundo da técnica, para Heidegger, portanto, porque
nós nos encontramos jogados em um mundo completamente
rodeado por entes técnicos e porque nossas vidas particulares se
tomaram impensáveis sem tais entes, mas, antes, porque o modo
de fenomenologização dos fenômenos em nosso mundo con­
temporâneo obedece ao modo técnico de produção. A pergunta
que se nos impõe como que por si mesma, então, é: que modo é
esse, característico da produção técnica, e em que medida esse
modo técnico de produção possui uma relação com a noção de
maquinação? A resposta a essa pergunta carece de uma pequena
síntese do que Heidegger chama de o primeiro início do filosofar
ou daquilo que determina para ele o modo metafísico inicial de
compreensão do ser do ente na totalidade.

[46] heidegger, Martin. A pergunta sobre a técnica. In: Ensaios e conferências.


GA7, p. 9: “A técnica não é a mesma coisa que a essência da técnica”.

92
A origem metafísica da filosofia ocidental gira, de acor­
do com a leitura heideggeriana, sobretudo do pensamento pla­
tônico, em tomo do primado da noção depoiesis'. produção. E
precisamente a partir dessa noção, que se estabelece inicialmente
a ideia de que conhecer é determinar na produção os limites não
produtivos da produção47. Tal como se encontra expresso em
muitos contextos platônicos, todapoiesis pressupõe uma téchne,
a qual se assenta, por sua vez, sobre uma episteme. Para que se
possa produzir algo, é indispensável que se possua uma arte, um
saber fazer, uma capacidade de conduzir a dinâmica de produção
desde o momento mais primordial, por exemplo, desde a sepa­
ração dos materiais ou da definição do que é indispensável para
a produção, até a realização plena da produção no surgimento
do eidos, do aspecto mesmo daquilo que está sendo produzido.
Tal processo, então, é o que não se cansa de nos dizer Platão em
seus mais diversos diálogos, tem sempre por base uma episteme,
um conhecimento, porque é apenas o conhecimento daquilo que
é essencial ao que precisa ser produzido que alguém pode, por
meio de uma téchne determinada, levar algo do não ser ao ser.
A essência, com isso, emerge originariamente em nossa tradi­
ção como aquela dimensão em si e a priori que orienta desde
o princípio a produção e que não pode ser de maneira alguma
produzida em meio à atividade produtiva. Dito de maneira sin­
tética, a essência se revela aí como o limite não produtivo da
produção. Essa noção inicial atravessa o Ocidente como um fio
condutor, sem que isso signifique afirmar que esse fio condutor

[47] Eu analiso esse contexto de maneira detalhada na segunda parte de meu livro
Eternidade frágil: Ensaio de temporalidade na arte (2013), assim como em
um texto publicado em alemão intitulado Der Anfang des Endes: Heidegger
und der erste Anfang der Philosophie (O início do fim: Heidegger e 0 primeiro
início da filosofia - 2009).

93
jamais experimentaria nenhuma modulação. Ao contrário, se, a
princípio, ele implicava, por um lado, orientar-se precisamen­
te pelo ser do produzido enquanto aquilo na produção que se
mantinha independente da produção, o próprio movimento his­
tórico, por outro, confunde-se, para Heidegger, cada vez mais
com uma supressão de tal independência. No primeiro início do
filosofar, em suma, o primado da produção tinha trazido consigo
a descoberta da essência, do em si, do a priori como limite para
a própria realização da atividade produtiva. Precisamente esse
limite, ou seja, o que tradicionalmente se pensou como a essên­
cia, o em si e o a priori, foi paulatinamente entrando no plano da
produção, de tal modo que cada vez mais se dissolveu o plano da
essência. Um fragmento póstumo de 1889 de Nietzsche encerra
em si de maneira radical, por mais que Heidegger jamais tenha
citado esse fragmento, o que está em jogo na leitura heidegge-
riana do desdobramento histórico do pensamento tradicional:
“Parmênides dizia que só o ser poderia ser pensado. Nós, que
nos encontramos do outro lado da história, dizemos: tudo o que
pode ser pensado não pode ser senão uma ilusão”48. Sem entrar­
mos propriamente nas minúcias do pensamento nietzschiano,
o que exigiría um desvio radical dos intuitos do presente texto,
o que importa ter em vista aqui é precisamente até que ponto
essa passagem realmente concentra em si os elementos-chave
do modo heideggeriano de considerar a técnica moderna. Bem,
mas como Heidegger leria essa passagem? Se, a princípio, o
ser se mantinha isolado e autônomo, fornecendo propriamente
o horizonte de realização da produção, tudo agora passa a ser
produzido; se o ser se mostrava originariamente no pensamento

[48] NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos póstumos de 1888-1889, KSA 13, p.


285.

94
grego como o âmbito de um fundamento maximamente presente,
que sustentava e dava consistência à presença derivada dos entes
em geral, como uma espécie de ente sumamente real (ontos on),
então o próprio ser se deixou absorver agora, no fim entendido
como consumação da tradição, no campo da produção. Por isso, a
afirmação de que tudo o que pode ser pensado não passa de uma
ilusão, de uma conjuntura particular da superfície fenomênica,
de um arranjo de forças que faz com que surja a cada vez uma
de suas “configurações de domínio de duração relativa de vida
no interior do devir”49, para citar outra passagem de Nietzsche,
frequentemente citada por Heidegger. O que se inicia, portanto,
com uma retenção de um espaço de presença essencial, pelo qual
a atividade de produção precisaria se orientar, vai paulatinamente
se deixando absorver no campo mesmo da produção, de tal modo
que o fim de tal processo histórico, de tal conjunto de decisões
ontológicas da tradição aponta na direção de uma radical supres­
são dos limites não produtivos da produção e de uma absorção
de tudo como produção. Assim, podemos sintetizar de maneira
primordial a leitura heideggeriana da era da técnica na seguinte
afirmação: a era da técnica, enquanto consumação das decisões
ontológicas da tradição metafísica, apresenta o último elo de uma
compreensão de ser como presença e limite absolutos à produção,
elo no qual a noção mesma de produtibilidade é absolutizada
e passa a abarcar sem travas até mesmo o que, a princípio, era
tomado como limite não produtível da produção. Exatamente
esse estado de coisas está plasmado na vinculação entre técnica e
maquinação. Bem, mas o que Heidegger entende por maquinação
(Machenschaft) e em que medida esse entendimento dá conta

[49] Cf. Martin Heidegger, Nietzsche n, 2009, p. 74.

95
da compreensão heideggeriana da essência da técnica? Até que
ponto essa essência expressa na maquinação sustenta a ligação
entre tédio e técnica?

No significado usual, o nome (maqui-


nação/M.C.) designa um tipo ‘mau’ de
procedimento humano e de urdidura
de tal procedimento. No nexo da ques­
tão do ser, não deve ser designado,
com isso, um comportamento huma­
no, mas um tipo de essenciação do ser.
Mesmo o tom ressonante do desprezí­
vel precisa ser afaátado, ainda que a
maquinação favoreça a inessência do
ser. Mas mesmo essa inessência nunca
pode ser colocada em uma relação de
depreciação, uma vez que ela é es­
sencial para a essência. Ao contrário,
o nome deve apontar imediatamente
para o fazer (poiesis, téchne), o que
nós conhecemos, em verdade, como
comportamento humano. A queálão é
que juélamente isso só é possível com
base em uma interpretação do ente,
na qual a factibilidade do ente vem à
tona, de tal modo, em verdade, que a
entidade se determina precisamente
na conátância e na presentidade. O
fato de algo se fazer por si mesmo, e,
consequentemente, também ser fac­
tível para um procedimento corres­
pondente, o fazer-se-por-si-mesmo,
é a interpretação realizada a partir da
téchne e de seu círculo de visão da
physis, de tal modo que, então, já se
faz valer a preponderância no factí­
vel e no que se faz (cf. a relação entre
idéa e téchne), o que em suma seria

96
chamado de maquinação. A queátão é
que, no tempo do primeiro início, uma
vez que se chega à despotencialização
da physis, a maquinação ainda não
vem à tona em sua plena essência. Ela
permanece encoberta na presentidade
conálante, cuja determinação alcança
na entelécheia o aguçamento máximo
no interior do pensar grego inicial50.

A passagem retoma alguns elementos já explicitados


acima e articula esses elementos com outros também decisivos
para o que está aqui em questão. O texto inicia-se com uma
menção ao sentido corrente da palavra alemã Machenschaft.
Exatamente como o seu correlato português “maquinação”,
Machenschaft designa algo como uma tramóia ou uma cons­
piração. Esse primeiro sentido do termo, porém, é o que lemos
logo em seguida, precisa ser completamente afastado, a fim de
que possa vir à tona a sua relação com o modo mesmo do acon­
tecimento de mundo na contemporaneidade, com aquilo que
Heidegger designa como o acontecimento apropriador da técnica
moderna. Maquinação não possui aqui nenhuma relação com
um procedimento humano, com um comportamento pontual de
uma pessoa ou de um grupo, mas diz respeito, antes, muito mais
a um “tipo de essenciação do ser”. Bem, mas o que é preciso
entender por tal expressão? Um “tipo de essenciação do ser”
aponta na direção de um acontecimento histórico pontual, no
qual surge uma determinação metafísica do ente na totalidade.
A maquinação, portanto, pensada em sua ligação mesma com a
essenciação do ser, com aquilo que Heidegger denomina a partir

[50] HEIDEGGER, 2015, PP- 124-25.

97
de certo momento de acontecimento apropriador, revela-se como
um dos traços estruturais de uma época metafísica, de um campo
de abertura estruturado a partir da pressuposição de que o ser se
confunde com um ente entre outros, de que é não apenas possível,
mas também necessário reconduzir incessantemente os entes para
o fundamento propriamente dito de sua constituição. O que vem
à tona por meio da noção de maquinação, contudo, impõe uma
observação ulterior. Por um lado, a tradição metafísica ocidental
se movimenta desde o seu primeiro início com os gregos, é o que
Heidegger não cansa de repetir, antes de tudo, em seus textos a
partir da década de 1930, em meio ao desdobramento do ser em
sua inessência, na medida em que ela já sempre parte do ser to­
mado em uma dissonância radical em relação à sua própria histo-
ricidade, em relação ao seu caráter de acontecimento, em relação
à diferença originária entre o ser que se dá historicamente em sua
verdade como fundamento dos entes em geral e o ser que se retrai
em todo e qualquer acontecimento histórico no abismo infinito
de sua diferença. Por outro lado, essa inessência não se mantém
constantemente ligada à tentativa de determinar a presença última
do ser como fundamento, mas se consuma radicalmente no fim
da metafísica precisamente por meio de um abandono completo
de tal tentativa. Portanto, enquanto um termo para designar o
modo do acontecimento histórico do ser no fim da metafísica, a
maquinação precisa ser pensada em sintonia com tal abandono,
como uma radicalização da tendência estrutural da tradição para
desdobrar o ser em sua inessência. Exatamente isso poderia nos
levar, então, a reter o caráter negativo da maquinação e a acirrar
a sensação de que a maquinação técnica experimentaria na obra
tardia de Heidegger uma espécie de diabo lização. Contra isso,
contudo, é preciso lembrar de um elemento, que já se encontra

98
presente em Ser e tempo e que permanece por todo o pensamento
heideggeriano como um fio condutor: não é nunca por meio de
um alijamento das experiências privativas da existência, que se
alcança propriamente uma realização plena do existir, mas, antes,
sempre por meio de uma modulação de tais experiências, que
se assume justamente naquilo que se mantém nelas esquecido,
retraído, velado. Assim como o singular aparece em Ser e tempo
como retomada expressa daquilo que permanece esquecido na
cotidianidade, a superação da técnica maquinadora não pode se
dar como abandono da maquinação e como proposta de um outro
modo de comportamento em relação aos entes, mas precisa se
dar, antes, muito mais como a assunção plena da maquinação
enquanto destino histórico do Ocidente. É por isso que Heidegger
afirma: “Mesmo o tom ressonante do desprezível precisa ser
afastado, ainda que a maquinação favoreça a inessência do ser.
Mas mesmo essa inessência nunca pode ser colocada em uma
relação de depreciação, uma vez que ela é essencial para a es­
sência”. Ela é, em outras palavras, essencial para o modo mesmo
do acontecimento histórico de ser, para a errância, que constitui
o projeto histórico metafísico ocidental, para a possibilidade
mesma de pensar a diferença do ser em relação a toda e qual­
quer determinação de tal projeto. O que importa aqui, então, é
avançar na direção da pergunta em relação ao sentido mesmo
da maquinação enquanto acontecimento histórico de ser. A res­
posta a essa pergunta vem logo em seguida no texto: “o nome
deve apontar imediatamente para o fazer {poiesis, téchne'), o que
nós conhecemos, em verdade, como comportamento humano.
A questão é que justamente isso só é possível com base em uma
interpretação do ente na qual a factibilidade do ente vem à tona,

99
de tal modo, em verdade, que a entidade se determina precisa­
mente na constância e na presentidade”.

O termo Machenschaft, que traduzimos aqui por ma­


quinação, possui, como explicitamos acima no presente texto,
uma ligação direta com o verbo alemão machen, fazer. Ele é
justamente a substantivação do verbo e pode ser traduzido tam­
bém de maneira mais livre por fazeção ou por factibilidade. No
momento mesmo em que especifica a noção de maquinação,
porém, Heidegger imediatamente a articula com os termos cen­
trais do pensamento platônico-aristotélico: poíesis e téchne. E no
contexto da relação originária entre esses dois termos, portanto,
que precisamos pensar o caráter propriamente dito da maqui­
nação técnica contemporânea. E aqui vem à tona aquilo que já
comentamos anteriormente. Se, a princípio, a produção envolvia
necessariamente uma arte ou um ofício determinados por um
conhecimento, que sustentava a dinâmica mesma do trazer algo
do não ser ao ser; produzir-se significa não poder produzir o ser
mesmo daquilo que se produz, o que caracteriza agora o nosso
tempo é precisamente o fato de que tudo pode ser produzido,
tudo pode ser feito, tudo se revela como originariamente factível.
Não há mais nenhuma essência, nenhum ser, nenhum funda­
mento, que, de fora, pudesse fornecer um limite estrutural para
a dinâmica mesma do fazer, mas tudo passa aqui imediatamente
para o campo da fazeção, da factibilidade. Isso, então, parece
abrir o espaço para se pensar o poder máximo do ser humano
e de tudo o que é humano, uma vez que o ser humano se defi­
ne tradicionalmente como homo faber, como o animal que faz,
como o produtor e o ente técnico por excelência. Justamente isso,
por sua vez, está exposto no trecho acima citado, que procura

100
acentuar, antes de tudo, a relação entre o fazer e o comportamento
humano. O adendo, contudo, de que a própria ligação entre o
fazer e o comportamento humano já se movimentaria no espaço
de uma interpretação do ente, que condicionaria essa ligação,
coloca-nos em alerta quanto à suposta validade autoevidente de
tal ligação. Não é o ser humano que, alcançando o máximo de
sua potência no campo da abertura, reduz a totalidade do ente à
maquinação, à fazeção, ao predomínio incondicional do fazer,
mas, quando tal predomínio se instaura, é ele que posiciona até
mesmo o pretenso privilégio do ser humano em meio ao ente na
totalidade. Dito de outro modo, o próprio ser humano encontra
aqui sua humanidade a partir de uma requisição que provém do
campo mesmo de determinação do ser próprio ao ente, de tal
forma que essa requisição é mais originária do que a possibili­
dade mesma de pensar o fazer como condicionado pelo humano.
A questão, porém, resta ainda: em que medida existimos agora
no âmbito da fazeção radical, da factibilidade de tudo, do fazer
como determinação última da totalidade?

Como vimos acima, a tradição inicia-se em meio a uma


assunção do paradigma da produção como estrutural para pensar
aquilo mesmo que, na produção, não pode ser produzido. O fim
desse início, por sua vez, aponta para a supressão radical de todo
e qualquer limite não produtível. Assim, é possível dizer agora
que tudo radicalmente vem à tona como produção. Bem, mas se
tudo é produção, mesmo o produtor precisa ser tomado como
absorvido na produção, como requisitado pela maquinação, como
peça da maquinaria incondicional e maquinante da dinâmica do
fazer. Como é possível, porém, acompanhar tal cenário? De acor­
do com o que dissemos acima, não apenas não há mais limites

101
não produtivos da produção, mas o próprio produtor se encontra
embutido na produção. Como algo assim pode ser pensado sem
que se caia imediatamente em uma situação completamente ab­
surda? Não estaria mais válida a posição platônica, segundo a
qual quem produz algo não pode produzir a essência de algo?
Se sim, então nós estaríamos hoje diante da situação, na qual, ao
encomendarmos um armário, poderiamos receber uma cadeira
ou um par de tênis? Seria isso? E quanto ao produtor: se ele não
está no comando do processo produtivo, se ele é também parte da
produção, a consequência dessa afirmação não seria uma espécie
de autonomização do campo da ação, sem qualquer presença de
um agente? É possível algo assim? Todas essas questões exigem
um cuidado primordial e uma atenção correlata, para que não nos
embrenhemos em conclusões apressadas. De maneira estranha,
é preciso dizer que, no reino das maquinações técnicas, tudo é
feito, tudo é factível, tudo se encontra imerso em uma dinâmica
constante de fazeção, sem que isso signifique, por exemplo, que
teríamos de afirmar que, ao contratarmos alguém para fazer um
muro em nossa casa, nós precisaríamos por princípio aceitar
que ele nos entregasse qualquer coisa, um poste, por exemplo.
O que importa aqui, em outras palavras, é acompanhar em que
medida a maquinação determina o modo de essenciação do ser
em nosso tempo, o modo como o ser acontece em sua verdade
histórica, demasiadamente histórica. Para tanto, é indispensável
considerar o contexto mesmo em que a maquinação se instaura.

Afirmar que a tradição assumiu, a princípio, o ser como


limite não produtível da produção implica fundamentalmente
demarcar o espaço mesmo de realização do ser como um espa­
ço irrelacional. Dito em termos da conceptualidade prévia na

102
qual já sempre nos movimentamos, o ser possui inicialmente o
caráter do em si, daquilo que Platão designou pela primeira vez
como o “auto kath 'auto”, a coisa mesma segundo ela mesma.
É precisamente enquanto autônomo em relação aos modos de
aparição particulares, ou seja, em relação àquilo que se mostra
de acordo com a nossa perspectiva, em termos platônicos, “kata
hemin” (para nós), que o ser daquilo que se produz não pode ser
produzido. Ora, mas se aquiescer ao limite não produtível de toda
produção significa cindir o âmbito do ser como um âmbito autô­
nomo e isento de toda contaminação com o campo fenomênico,
então a supressão de tal limite não pode significar outra coisa
senão a dissolução de toda e qualquer tentativa de pensar algo
irrelacional, algo puro, algo isento em relação ao que vem a ser.
Em suma, o que caracteriza o mundo da maquinação técnica não
seria outra coisa senão a assunção plena da impossibilidade de
se continuar falando de em si e a consequente asserção de que
tudo o que vem a ser já sempre participa do campo de realização
das relações. A questão, porém, é que, onde tudo se determina
relacionalmente, onde não há nenhuma essência, substância,
identidade, qualidade ou quantidade, nenhuma determinação
prévia ao vir a ser das configurações relacionais, não se pode
pensar qualquer estabilidade nas relações, qualquer possibilidade
de se tomar a relação como um espaço marcado pela modificação
possível de identidades mútuas previamente instituídas em suas
determinações propriamente ditas. Normalmente, nós pensamos
as relações de maneira mecânica, como uma interação pontual
entre os elementos relacionais previamente dados e constituídos.
Parece, a princípio, que todos os relatas já se acham de antemão
dados e que a relação é apenas o lugar em que eles exercem uma
influência uns sobre os outros, influência essa que pode produzir

103
uma modificação em cada um dos elementos relacionais em jogo.
Tal concepção de relação, contudo, toma-se imediatamente im­
possível quando se suspendem as categorias metafísicas em geral,
na medida em que são essas categorias precisamente que tomam
possível pensar algo assim como uma identidade própria a cada
relata antes da relação. Se suspendermos a identidade, a quali­
dade, a substância, a causalidade, o número etc., e é necessário
empreender essa suspensão, caso não se tenha mais como pensar
algo irrelacional, simplesmente desaparecem as determinações
prévias dos relatas. O que se tem, com isso, em meio à supres­
são do autó kath 'autó, à absorção mesma do em si na dinâmica
relacionai de determinação do que desponta sempre a cada vez
para nós, é a transformação radical até mesmo da compreensão
mais imediata da relação. Não há mais absolutamente nada que
possa ser pensado como não relacionai, e, assim, é no interior
do acontecimento performático das relações, que tudo agora
precisa alcançar sua determinação. Tudo. Não apenas as confi­
gurações relacionais constantemente emergentes, mas também
e essencialmente os elementos relacionais que constituem essas
configurações. E aqui, então, tem lugar um giro decisivo para
pensar o que está em jogo em tal compreensão.

Não é mais o sujeito humano que posiciona aqui os


entes como contrapostos; não é ele que se mostra como princípio
não perspectivístico das perspectivas. Tal posição ainda trazia
consigo de maneira indelével a marca de uma metafísica da pre­
sença orientada pela suposição do ser como presença constante.
Assim, o próprio sujeito egoico humano passa a se mostrar como
um elemento emergente da relação e nada além disso: nunca
um substrato responsável pela condução da relação, jamais uma

104
causa ou um suporte ontológico da ação, mas, antes, um resultado
da dinâmica mesma de constituição pontual de figuras relacio­
nais. A cada momento, um arranjo do todo se determina, na
mesma medida em que esse arranjo mesmo emerge de um embate
originário entre os elementos relacionais, eles próprios indeter­
minados e indetermináveis antes da relação. A cada momento, os
elementos relacionais em jogo em cada configuração conquistam
a sua determinidade constitutiva a partir do quanto eles impõem
aos outros elementos relacionais a sua capacidade de influir no
modo de estruturação da constelação relacionai e do quanto eles
são também capazes de suportar o movimento empreendido pelos
outros. A questão, contudo, é: no momento mesmo em que uma
configuração relacionai vem à tona, como não há nada para além
das relações e como as categorias metafísicas já não têm como
ser aplicadas aos elementos relacionais, a indeterminação radical
dos relatas vem uma vez mais à tona, de tal forma que o movi­
mento se reinicia sempre uma vez mais. Em suma, não é que
originariamente os relatas não seriam determinados, mas, uma
vez tendo entrado em relação, eles adquiriríam uma determinação
identitária, que tomaria possível pensar em seguida as relações
uma vez mais a partir do modelo mecânico das interações. Não.
A toda configuração, a vida retoma como um todo o seu caráter
irrelacional e passa novamente a se determinar a partir do modo
como ininterruptamente se dá a relação. Não há, em última ins­
tância, nenhum ponto final e definitivo da relacionalidade, mas
a toda relação correspondem novas e mais novas relações. O
sujeito egoico humano não é aqui, portanto, ele mesmo posicio-
nador das configurações em geral da realidade ou ainda do ser
do real, mas é ele mesmo situativamente posicionado como um
elemento da relação, cujo peso só se determina em meio a cada

105
posicionamento e sempre de acordo com cada posicionamento.
Ao mesmo tempo, o posicionamento relacionai radicalmente
pensado garante que tudo sempre venha a ser posicionado rela-
cionalmente. O que se deu, então, aqui? Suspenderam-se, por
um lado, todas as categorias metafísicas, toda a possibilidade
de se falar de essências e de identidades em si, mas se reteve de
qualquer modo, por outro, a compreensão de ser como posição.
Não mais como posição do sujeito egoico humano, mas ainda
assim como posição. Ora, mas se não é mais o ser humano que
posiciona aquilo que se encontra contraposto, então quem é aqui
responsável pelo empreendimento do posicionamento? A res­
posta é: o esquema propriamente dito posicionador, o esquema
que nasce precisamente da ideia moderna de ser como posição,
o esquema que nasce do compromisso ontológico moderno, que
vê na subjetividade humana a razão última da totalidade, é esse
esquema que agora a tudo posiciona.

Para o mundo moderno, o ser de tudo aquilo que é de-


termina-se a partir de um posicionamento subjetivo de tudo como
contraposto. O sujeito egoico humano não se lança simplesmente
em direção ao mundo exterior e coleta aqui as verdades que se
apresentam na natureza. Ao contrário, antes mesmo de todo e
qualquer movimento de conhecimento, ele empreende um movi­
mento reflexivo sobre si mesmo e se posiciona no lugar privile­
giado enquanto posicionador. Assim, o mundo moderno desponta
sob o domínio de um imperativo fundamental: antes de conhecer
o que quer que seja, é preciso aqui voltar-se sobre si mesmo -
conhecer a si mesmo - e posicionar a si mesmo como sujeito/
substância posicionador(a) de tudo o que é. Dito de maneira ainda
mais clara, antes de posicionar o que quer que seja, o sujeito

106
egoico humano precisa aqui posicionar a si mesmo como sujeito
posicionador. É esse o sentido da sentença cartesiana citada por
Heidegger em uma gama enorme de contextos de interpretação
do pensamento de Descartes: todo cogito é cogito me cogitare,
todo pensar é agora pensar-me5i. Essa posição institui, então, o
projeto moderno de determinação do ser humano como o senhor
da terra, um projeto que parece precisamente se consumar no
interior do mundo técnico moderno, uma vez que o ser humano
agora, existindo em um campo histórico marcado pela morte de
Deus, não precisa mais obedecer a nenhum limite propriamente
dito e pode dar vazão completa à sua sanha por controle e domi­
nação. Em um tempo, no qual não há mais nada que não possa
ser produzido; em um tempo determinado pelo fim da essência,
pela relativização da verdade, pela funcionalização máxima da
ciência e pela administração constante da vida, nada mais pa­
rece oferecer uma barreira para a extensão infinita do empenho
humano por transformação, por apoderamento, por mobilização.
Abertos estão realmente todos os mares, como dizia Nietzsche
em sua Gaia ciência, e o ser humano não depende mais de um
mero barquinho genovês. A questão, contudo, que se impõe é:
será que em um mundo determinado pela absolutização da noção
de acontecimento relacionai o ser humano realmente se encontra
na posição de senhor das configurações a cada vez alcançadas?
Nós não vimos justamente acima o quanto a radicalização da
noção de relação implode a possibilidade de falar em relatas
previamente dados e constituídos, assim como de estabelecer
um dos elementos relacionais como por princípio garantidos

[51] Cf. antes de tudo heidegger, A pergunta sobre a coisa, oc 41,1984, pp.
98-106, em particular pp. 104-105.

107
em sua posição de princípio de comando das constelações daí
emergentes?

No prosseguimento de um famoso fragmento póstumo


de 1888 que, contra a afirmação do positivismo de que só havería
fatos, nos diz que “justamente fatos não há, só há perspectivas”,
Nietzsche prossegue de maneira interrogativa: “Mas então tudo
é subjetivo? Isso também já é uma perspectiva. Será preciso
ainda colocar o intérprete por detrás da interpretação? Isso é
poesia, isso é poetação”52. Esse prosseguimento do fragmento
responde de maneira direta a pergunta feita por nós ao final do
parágrafo anterior. Na medida em que se determina tudo a partir
das relações e que mesmo os elementos relacionais passam a
ser tomados como indeterminados antes mesmo da relação, não
faz sentido algum pressupor algo assim como um princípio não
perspectivístico das perspectivas, como o caráter privilegiado da
subjetividade egoica humana na constituição mesma das figuras
relacionais. Como explicita o próprio Nietzsche em outra passa­
gem de sua obra, em um aforismo de A gaia ciência com o su­
gestivo título de “Nossa nova infinitude”: “(...) Penso que hoje ao
menos estamos distantes da imodéstia risível de decretar, a partir
de nosso canto, que só épossível ter perspectivas a partir dele”53.
Em suma, não passa de uma modéstia risível pretender que, no
interior da dinâmica de configuração performática das relações,
o sujeito egoico humano tenha um privilégio na estruturação dos

[52] nietzsche, Friedrich. Fragmentos póstumos de 1888-1889. Edição crítica


organizada por Giorgio Colli e Mazzimo Montinari, KSA13, tradução de Marco
Casanova. Rio de Janeiro: Grupo Gen, 2010, p. 356.
[53] nietzsche, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das letras, 2001, p. 374.

108
resultados das relações: ele não passa jamais de um elemento
relacionai, marcado igualmente pela lógica das relações e sem
qualquer privilégio na performance do acontecimento mesmo
que aí a cada vez ocorre. Não há limites não perspectivísticos às
perspectivas, mas a essência do real é perspectivística. A ques­
tão, contudo, é que, de uma maneira algo irônica, estruturas
próprias à tradição e ao mundo moderno permanecem estranha­
mente vigentes em meio a tal descrição da vida como dinâmica
constantemente retomada de estabelecimento de tudo o que é a
partir da composição múltipla e conflituosa entre os elementos
relacionais. Se olharmos para o que se expôs acima acerca da es­
sência posicionadora da subjetividade moderna e se juntarmos a
isso a retenção do paradigma inicial da produção no cerne mesmo
da determinação do ser dos entes em geral, é possível sustentar
de maneira sintética que o sujeito egoico humano desponta na
modernidade como princípio mesmo de produção do ser dos
entes em geral. Não porque ele às últimas consequência traz o
ente do não ser ao ser, mas porque ele se revela como a razão
propriamente dita de tudo o que vem a ser, ou seja, porque só há
vir a ser de maneira certa e segura, porquanto o sujeito humano
sustenta e suporta a pensabilidade de tudo aquilo que se contra­
põe. Produção aqui é um sinônimo de posicionamento. Tudo o
que vem a ser precisa ser aqui posicionado enquanto contraposto
pelo sujeito posicionador, de tal modo que esse sujeito possa se
mostrar, a partir de certo momento, como a essência apriori da
totalidade. Tudo aquilo que há para ser posicionado remonta
necessariamente a tudo aquilo que o sujeito a partir de si mesmo
está em condições de posicionar. No ponto de consumação da
essência mesma posicionadora que caracteriza a subjetividade
moderna, então, o sujeito egoico humano transforma-se no em

109
si da realidade, uma vez que as suas formas de ser, uma vez que
sua vida se exterioriza imediatamente nas concreções objetivas
de si mesmo. Em meio a tal ponto de consumação da filosofia
da subjetividade, portanto, o que temos não é outra coisa senão
a máxima subsunção do real à dinâmica de realização da vida do
sujeito. Tudo o que há para ser se confunde com tudo aquilo que
há para ser pensado, com todos os modos categoriais de o sujeito
determinar o ser do que se lhe encontra contraposto. No momento
mesmo, contudo, em que o sujeito se consuma como o campo
de constituição do ser dos contrapostos, ou seja, no momento
da máxima potencialidade do sujeito enquanto determinante da
experiência de objetos, nesse exato momento tem lugar uma
crise na própria essência da subjetividade moderna, crise essa
que traz como consequência a absorção do sujeito na dinâmica
de realização das relações. Um elemento, contudo, retém-se in­
dependentemente de tal crise: o próprio esquema posicionador,
a própria lógica posicionai que determina de antemão que tudo o
que há para ser precisa ser previamente marcado por uma dinâ­
mica autoposicionadora que garante que tudo o que venha a ser
o faça de acordo com tal autoposicionamento. Temos aqui um
tipo de descrição muito comum ao pensamento heideggeriano
como um todo e algo que tem raízes profundamente fincadas na
compreensão hermenêutica dos fenômenos em geral. Se olhar­
mos para o caráter acima descrito da subjetividade moderna, esse
caráter aponta na direção do que podemos chamar de dinâmica
de posicionamento dos contrapostos, daquilo que os alemães
denominam Gegenstãnde (objetos enquanto contrapostos). Essa
dinâmica possui uma estrutura determinada que se realiza em três
momentos fundamentais. Em um primeiro momento, o sujeito
egoico humano volta-se sobre si mesmo: essência reflexiva da

110
subjetividade moderna, suposição de que todo conhecimento
precisa começar com um asseguramento da essência mesma do
conhecer humano. Em segundo lugar, temos a instituição de si
mesmo como princípio estrutural de todo e qualquer posiciona­
mento certo e seguro dos contrapostos. E, em terceiro lugar, por
fim, ele posiciona os contrapostos em sua objetidade, isto é, em
seu caráter enquanto contraposto. Autoposicionamento, estabe­
lecimento das condições propriamente ditas do conhecimento
e posicionamento correlato dos contrapostos. Essa é a essência
propriamente dita do processo de constituição dos contrapostos
em geral. A medida que esse movimento se realiza, contudo, ele
vai paulatinamente se autonomizando dos sujeitos em particular
e vai se constituindo ao mesmo tempo como o esquema cons-
tituidor do ser mesmo dos posicionados. É assim que o querer
como essência do sujeito se toma vontade de vontade.

No interior do mundo moderno impera, de acordo com


a leitura de Heidegger, a tese kantiana acerca do ser, a tese se­
gundo a qual ser é posição. Essa tese não é suspensa no inte­
rior do mundo contemporâneo, mas, antes, radicalizada aí. Não
porque o sujeito egoico humano alcança agora a sua máxima
concretude, o seu mais intenso poder, a sua mais abrangente
envergadura, mas, antes, justamente porque até mesmo o sujeito
humano é transformado aqui em posicionado. Tal transformação
obedece radicalmente à supressão mesma da noção de em si e à
absolutização da lógica das conjunturas relacionais. Heidegger
descreve essa situação de maneira paradigmática em seu texto
“A pergunta sobre a técnica”:

A com-posição é o elemento de reu­


nião de todo posicionar, que posiciona

111
o ser-humano a desencobrir o efeti­
vo sob o modo da encomenda como
disponível. Como aquele assim de­
safiado, o ser humano encontra-se no
âmbito essencial da com-posição. Ele
não pode de maneira alguma assumir
apenas ulteriormente uma ligação com
a com-posição. Por isso, a queátão
sobre como devemos alcançar uma li­
gação com a essência da técnica chega
sempre a cada vez tarde demais54.

A palavra com-posição (Ge-steZZ) nasce precisamente


do que dissemos acima. Se, por um lado, a modernidade pensou
o ser em sua essência mesma como posição e a subjetividade
egoica humana como subjetividade posicionadora dos contrapos­
tos, o posicionamento moderno mesmo vai cada vez mais abrir o
espaço, por outro lado, para que o esquema da composição vá se
destacando. Em tudo o que posiciona, a subjetividade moderna
precisa se coposicionar como instância posicionadora, uma vez
que todo posicionamento certo e seguro dos contrapostos pre­
cisa necessariamente se enraizar no autoposicionamento prévio
do sujeito egoico humano enquanto tal. Composição, portanto,
já é em certo sentido a essência da subjetividade moderna. Na
modernidade, porém, a essência compositora da subjetividade
antes não tinha vindo completamente à tona, exatamente na me­
dida em que o sujeito continuava assumindo a si mesmo como a
essência dos posicionamentos em geral. No interior do mundo da

[54] heidegger, Martin. Die Technik und die Kehre (A técnica e a viragem).
Stuttgart: Neske, 2014.

112
técnica, porém, na medida em que o próprio sujeito é embutido
na lógica dos posicionamentos relacionais, o esquema posicio­
nador vem à tona sem travas em sua essência, ele se apresenta
depurado de todos os elementos inessenciais e se revela, por
fim, como com-posição. A composição é, em suma, o lógos do
mundo marcado pela intensificação máxima da essência mo­
derna da verdade como composição, na medida em que não há
mais qualquer elemento extrínseco ao esquema posicionador e
com-posicionador, nada que pudesse pretender se mostrar como
fundamento da composição. Bem, mas como o ser humano se
vê inserido nos posicionamentos relacionais em geral? Até que
ponto é possível defender uma tal descrição do mundo contempo­
râneo como marcado pela completa destituição do ser humano do
lugar de princípio estrutural de determinação dos contrapostos?
Nós não existimos evidentemente em um tempo marcado pelos
resultados da inventividade humana, um tempo de descobertas
científicas e de inovação tecnológica constante? Não é a ciência
a detentora hoje de um lugar-chave na estruturação constante
não apenas das vidas humanas, mas também dos coletivos não
humanos? Por fim, não continua maximamente vigente a neces­
sidade de uma subjetividade constituidora do campo empírico,
uma subjetividade capaz de se movimentar em puras estruturas
espaço-temporais, extraindo da natureza até mesmo aquilo que
a natureza jamais fornecería por ela mesma? A totalidade não
vigora hoje sob o impacto cada vez mais evidente dos plane­
jamentos humanos e de sua capacidade de intervenção em um
todo mobilizado? Tudo isso precisa ser respondido com um sim.
Não obstante, é exatamente por isso que o ser humano se encon­
tra hoje absorvido em tais posicionamentos acima descritos. “A
com-posição é o elemento de reunião de todo posicionar, que

113
posiciona o ser humano a desencobrir o efetivo sob o modo da
encomenda como disponível”. Com essa sentença, Heidegger
abre a passagem acima citada. Segundo a passagem, é a com-po-
sição, a subjetividade não egoica e não humana da com-posição,
o esquema abstrato e vazio com-posicionador, que posiciona a
cada vez o ser humano. E claro que é preciso, por um lado, todo
um conhecimento específico, que não se restringe de maneira
alguma à atividade observacional de um sujeito estático, para
que seja possível a construção de um avião e a realização de
testes de turbina em algo assim como um túnel de vento. Sem
as leis da aerodinâmica, sem a manipulação experimental de um
campo ideal de forças e vetores, não há qualquer possibilidade de
pensar a construção de um gigantesco avião que faz diariamente
a ligação entre continentes distantes. De qualquer modo, porém,
e é isso que nos importa aqui antes de tudo, não é a partir da
revolução copemicana e da instituição da subjetividade egoica
humana como fundamento propriamente dito de todo e qualquer
conhecimento certo e seguro dos contrapostos, que emerge o
avião agora na cabeceira da pista. Talvez em nenhum momento
seja mais fácil compreender isso do que nesse 2020 em que
escrevo o presente livro, em meio à pandemia e a partir dos
efeitos conjunturais sobre o turismo e, por conseguinte, sobre
as empresas de aviação. Para que se produzam aviões é, antes
de tudo, necessário que o sujeito egoico humano seja desafiado
pela técnica a encomendar o ente já sempre disponível na tota­
lidade, para que ela possa apresentar conjunturalmente o avião
na cabeceira da pista de um aeroporto qualquer. O ser humano,
por isso, passa a ser posicionado pela subjetividade técnica e
só a partir de tal requisição é que se dá a descoberta do enco­
mendado como disponível. A consequência, portanto, não pode

114
ser outra, senão a explicitada logo em seguida no texto: “Como
aquele assim desafiado, o ser humano encontra-se no âmbito
essencial da com-posição”. Nós nunca nos encontramos mais
contemporaneamente fora da composição, fora das maquinações
técnicas, fora da dinâmica estrutural de determinação de tudo de
maneira conjuntural, a partir do modo como as relações a cada
vez se dão. Ao contrário, nós já nos encontramos sempre hoje
embutidos na subjetividade compositora, na subjetividade que
tudo posiciona, posicionando constantemente a si mesma para
além do que posicionou. O ser humano, portanto, “não pode de
maneira alguma assumir apenas ulteriormente uma ligação com
a com-posição” e toda pretensão de liberdade e isenção em rela­
ção a tal posicionamento permanece por princípio apenas uma
pretensão. Desse modo, todo o discurso contemporâneo sobre o
controle dos efeitos indesejáveis da técnica, sobre a constituição
de algo assim como uma bioética e sobre um uso humanamente
consciente dos aparatos técnicos cai por terra, ainda que ele possa
ser mantido no campo sempre obtuso de algo assim como danos
colaterais. Não há mais nenhuma possibilidade de controlar a
técnica, de dominar antecipadamente seus efeitos e coibir seus
exageros e suas desmedidas. E não há tal possibilidade porque
mesmo o discurso acerca de uma ética reguladora da técnica só
pode vir à tona a partir de um desafio conjuntural técnico, para
que tal discurso se faça presente. Em outras palavras, “a questão
sobre como nós devemos alcançar uma ligação com a essência da
técnica chega sempre a cada vez tarde demais”. Nós já estamos
necessariamente tomados por essa ligação, absorvidos no destino
histórico que se reúne e se sedimenta na técnica. Bem, mas a
questão agora, então, passa a ser em que medida essa situação
traz consigo uma situação para a existência humana, que a lança

115
sem travas em uma experiência precária, na qual o tédio pode
se mostrar como uma tonalidade afetiva fundamental de nosso
filosofar atual.

Em sua preleção Os conceitos fundamentais da meta­


física: mundo, finitude, solidão, Heidegger afirma que o tédio
emerge do fato de nós termos nos tomado desinteressantes para
nós mesmos55. Tomar-se desinteressante para si mesmo, porém,
não equivale aqui a algo assim como ver sua vida se tomar insípi­
da e modorrenta, sem qualquer atratividade para si mesmo e para
os outros. Ao contrário, para pensar o que toma o ser-aí humano
propriamente interessante, é preciso ter em vista o que constitui
mais diretamente o seu si mesmo, o que toma possível que ele
seja e se mantenha sendo as suas possibilidades mais próprias
de ser. Uma boa indicação de resposta a essa pergunta pode ser
alcançada por meio da noção de autonomia (Selbstãndigkeit), tal
como essa noção se encontra presente no parágrafo 64 de Ser e
tempo. Heidegger nos diz aí:

Se a conáfituição ontológica do si
mesmo não tem como ser reconduzi­
da nem à subátância egoica nem a um
‘sujeito’, mas se, inversamente, o di-
zer-eu-eu cotidiano e fugidio precisa
ser compreendido a partir do poder-ser
próprio, então ainda não se segue daí
a sentença: o si mesmo é, portanto, o
fundamento conslantemente presen­
te do cuidado. A mesmidade só tem
como ser deduzida exiétencialmen-
te da leitura do poder-ser próprio, ou
seja, da propriedade do ser do ser-aí

[55] HEIDEGGER, 200Ób.

116
como cuidado. Dela, a conStãncia do
si mesmo obtém enquanto supoáta
persiátência do sujeito o seu esclare­
cimento. O fenômeno do poder-ser
próprio também abre, porém, o olhar
para a constância do si mesmo no sen­
tido do ter conquiátado uma posição.
A conSiância do si mesmo no duplo
sentido da firmeza constante da posi­
ção é a contrapossibilidade própria à
falta de autonomia (à constância do
não ser si mesmo) da decadência in-
decidida. A auto-nomia-6 não significa
exiátencialmente outra coisa senão a
decisão antecipadora. A eálrutura on­
tológica dessa decisão desentranha a
exiátencialidade da si-mesmidade do
si mesmo5657.

O texto começa com o alijamento de uma tendência


imediata de confundir a noção de si mesmo com algo assim
como uma identidade subjetiva ou pessoal. Na medida em que

[56] Em alemão, a palavra para autonomia não envolve em seu étimo algo assim
como a capacidade de estabelecer para si a sua própria lei, de legislar (nomos)
por si mesmo (auto), mas, antes, a ideia de uma constância de si, de um cons­
tantemente ser si mesmo. Selbststândigkeit significa literalmente constância
(Stândigkeit) de si mesmo (Selbst). Os dois tradutores de Ser e tempo para o
português, ao se depararem com o termo autonomia hifenizado em alemão,
decidem traduzir a palavra em seu sentido etimológico. Assim, o leitor sem
conhecimento da língua alemã não tem a oportunidade de compreender que
se trata, nesse contexto, precisamente da noção tradicional de autonomia. Por
isso, traduzi na passagem o termo pelo seu correlato mais imediato em portu­
guês e redigi esta nota para explicitar que a noção de constância de si, em jogo
algumas linhas acima, já deve ser lida no contexto da noção de autonomia.
[57] HEIDEGGER, 200Óa, §64, p. 322.

117
o ser-aí humano é marcado precisamente por uma nadidade on­
tológica originária e pela retenção incessante do seu caráter de
poder-ser em todos os seus modos finitos de ser, não é possível
confundir o si mesmo com nenhuma instância previamente dada
e constituída, que pudesse de alguma forma funcionar como o
suporte mesmo de tais modos. Ser um poder-ser significa, antes
de tudo, ter de ser sempre a cada vez seus modos de ser, sem
jamais se confundir com um de tais modos, como se ele pudesse
determinar o ser do ser-aí como uma propriedade por si subsis­
tente. Assim, tanto a noção de uma substancialidade egoica, de
um suporte ontológico dos atos de consciência, quanto a ideia
de um sujeito ainda que dinâmico não têm como dar conta do
caráter propriamente dito do existente humano. Ao contrário,
é isso que o texto nos diz, “mesmo o dizer-eu-eu cotidiano e
fugidio precisa ser compreendido a partir do poder-ser próprio".
Não é, em suma, porque se mostra como substancialidade subje­
tiva ou como sujeito dinâmico, que o ser-aí se mostra enquanto
tal, mas é porque ele vem à tona como ser-aí, que ele pode ser
circunstancialmente pensado como substancialidade egoica ou
como sujeito. O adendo ao final do trecho citado acima, contudo,
é importante: trata-se aqui do “poder-ser próprio e não do im­
próprio”. Por que isso se justifica? Porque tanto o ser-aí próprio
quanto o ser-aí impróprio realizam, à sua maneira, o caráter de
poder-ser do ser-aí: o impróprio erguendo a pretensão de que não
tem de ser para ser, e o próprio assumindo radicalmente a res­
ponsabilidade por, sendo, ser o poder-ser finito que é. Em outras
palavras, enquanto o ser-aí impróprio existe como o impessoal
ele mesmo (das Man selbst) e é cotidianamente os outros, como

118
Heidegger o formula no parágrafo 27 de sua obra capital58, o
próprio supera essa dispersão no mundo fático sedimentado e
compartilhado, passando a existir radicalmente em virtude de si
mesmo, ou seja, em virtude de sua determinação última de senti­
do que é o tempo. Por isso, não se tem como pensar o si mesmo
senão em relação com a realização de seu poder-ser em meio à
dinâmica própria de assunção plena na existência de seu caráter
temporal. Isso, por sua vez, envolve a relação entre poder-ser
próprio e cuidado, assim como entre cuidado e tempo. Em verda­
de, essa é uma intuição, extremamente simples e maximamente
rica em consequências, de Heidegger na década de 1920. Só
um ente marcado por uma nadidade ontológica originária, só
um ente desprovido de sentido prévio de ser, só ele precisa ser
sempre a cada vez as suas possibilidades de ser no tempo finito
de ser. Se ele fosse antes de ser, tal como o indica a concepção
tradicional de essência como envolvendo necessariamente algo
assim como uma anterioridade ontológica, ou se ele se tomasse
sendo, ou seja, se ele conquistasse propriedades duradouras no
sentido da subsistência em si, ele não seria temporal, porque não
precisaria às últimas consequências ser no tempo para ser. Da
mesma forma, ser no tempo envolve, antes de tudo, ter de ser no
tempo finito; e isso porquanto uma compreensão do tempo como
marcada por duração traria para o coração do tempo a ideia de
substancialização e transformaria o tempo em uma coisa dada
dotada de propriedades subsistentes específicas. Pensar o tempo
de maneira radical a partir da dinâmica de temporalização da

[58] heidegger, 2006a, §27, p. 128-9, aqui 128: “Cada um é outro e ninguém é
ele mesmo. O impessoal, com o qual se responde à pergunta acerca do quem
do ser-aí cotidiano, é o ninguém, ao qual todo ser-aí se vê já sempre a cada
vez entregue no ser em meio aos outros”. Cf. também em relação à noção de
impessoalidade: André Duarte (2014) Inserir informações.

119
temporalidade, superar até mesmo a concepção do tempo como
número do movimento segundo anterioridade e posterioridade
implica incontornavelmente assumir a finitude, a mortalidade
como traço estrutural do tempo. O tempo, como a existência,
não é antes de ser, não é para além de ser, não é independen­
temente de ser: ele é uma estrutura originária do próprio vir a
ser do existir. Cuidado, por outro lado, o ser-aí só é, como já
mencionamos aqui, porque ele é os seus modos de ser, e, sendo
os seus modos de ser, necessariamente decide, sendo, que ser-aí
ele sempre a cada vez é. A consequência mais direta de tal posi­
ção é claramente o fato, então, de que não se tem como pensar
o si mesmo a partir do modo de ser do ente subsistente em si
e das propriedades que permanecem subsistindo no tempo. O
ser-aí só é propriamente ele mesmo, caso ele se mantenha ele
mesmo no tempo, ou seja, caso ele constantemente se conquiste
no tempo finito como o ente temporal que ele é. Isso significa,
antes de tudo, que o si mesmo precisa ser assumido em sintonia
com a essência do existir como cuidado. E é isso precisamente
que Heidegger procura acentuar em seguida no texto. Ele diz:
“A mesmidade só tem como ser deduzida existencialmente da
leitura do poder-ser próprio, ou seja, da propriedade do ser do
ser-aí como cuidado”. O existente jamais pode encontrar o seu si
mesmo em dissonância com o seu caráter de cuidado, ou seja, ele
nunca pode se tomar ele mesmo por ter conquistado faculdades,
capacidades, propriedades essenciais ou coisas do gênero, mas
antes inversamente na medida em que retém incessantemente o
caráter de tarefa do seu existir. É isso, às últimas consequências,
que significa ser um ente marcado pelo caráter de poder-ser, ser
um ente temporal, ser um ente ontologicamente indeterminado:
ter de ser quem é constantemente a partir da retenção de seu

120
caráter de poder-ser, de sua nadidade, de sua indeterminabilidade.
Heidegger prossegue a partir daí e afirma que “a constância do
si mesmo obtém enquanto suposta persistência do sujeito o seu
esclarecimento. O fenômeno do poder-ser próprio também abre,
porém, o olhar para a constância do si mesmo no sentido do ter
conquistado uma posição. A constância do si mesmo no duplo
sentido da firmeza constante da posição é a contrapossibilidade
própria à falta de autonomia (à constância do não ser si mesmo)
da decadência indecidida”.

A passagem parece, a princípio, contestar precisamente


a nossa afirmação inicial de que o si mesmo só pode ser pensado
em sintonia com a dinâmica de realização de suas possibilidades
de ser no tempo finito de ser. Heidegger fala aí de constância
do si mesmo e chega mesmo a articular, a princípio, essa cons­
tância com a suposta persistência do sujeito. Com isso, alguém
poderia imaginar que o que estaria acontecendo aqui seria ape­
nas uma substituição da persistência do sujeito pela constância
do si mesmo, sem que estivesse minimamente em questão uma
problematização da própria base ontológica própria que sustenta
tal substituição. Não. A passagem da suposta persistência para a
constância propriamente dita se dá aqui em uma radical assunção
do cuidado e da essência temporal do cuidado como determinan­
tes do modo mesmo da constância. Dito de maneira mais clara,
a constância aqui é constância do cuidado, do cuidar, da neces­
sidade de ser sempre a cada vez os seus modos de ser. Mas isso
não envolve, claramente, é o que o texto nos diz, uma espécie de
retomada incessante da indeterminação e a supressão correlata
de toda e qualquer constância, o que acabaria por transformar
o si mesmo em uma coletânea sem unidade de possibilidades

121
esdrúxulas, como diz Kierkegaard em seu Doença para a morte,
“uma fata Morgana de corpo e alma”59. Sendo constantemente
quem é enquanto cuidado, o ser-aí humano alcança uma posição,
um modo de determinação de si por meio de suas ações, em
suma, um projeto. Nunca se é, em verdade, simplesmente imerso
no mundo fático sedimentado e marcado pelo jogo incessante
das circunstâncias. A facticidade não nos empurra de um lado
para o outro ao sabor do vento e das ondas, de tal modo que não
passaríamos de produtos justamente de suas vagas. Ao contrário,
a existência, exatamente na medida em que não possui nenhuma
determinação natural e, por conseguinte, nenhum sentido de ser
previamente dado, precisa articular a partir da ausência prévia
desse sentido o seu próprio sentido. É por isso que Heidegger
explicita, no parágrafo 31 de Ser e tempo, o projeto de sentido
como o caráter propriamente dito do ser-aí humano. Por um lado,
o ser-aí já se vê desde sempre jogado em seu mundo fático e é
as suas possibilidades de ser como possibilidades desse mundo,
na terminologia de Ser e tempo, como possibilidades sidas. De
qualquer modo, porém, “ele é constantemente ‘mais’ do que de
fato é, caso se quisesse e se pudesse registrá-lo como algo por
si subsistente em sua consistência ontológica”60. E ele é mais,
porque é sempre a cada vez um projeto de sentido que articula
um campo fático de ação, e porque esse projeto de sentido não
possui uma relação essencial com as redes referenciais deter­
minantes dos significados utensiliares, mas concerne, antes, à
negatividade de um ente que precisa de sentido para ser tanto
quanto já sempre se comporta em relação aos entes em geral a

[59] kierkegaard, Soren. Doença para a morte: tratado do desespero humano,


1996, p. 35-
[60] HEIDEGGER, 200Óa, §31, p. I45.

122
partir de uma compreensão prévia de sentido de ser, a partir do
modo mesmo de aparição e das dações fenomênicas em geral.
Cotidianamente, é o que Heidegger nos mostra claramente na
década de 1920, esses campos de sentido se encontram igual­
mente disponíveis no mundo circundante, de tal modo que a
existência cotidiana não faz outra coisa senão operacionalizar tais
campos. O ser-aí singular, por outro lado, emerge precisamente
do esvaziamento desses sentidos cotidianos e da descoberta do
tempo como sentido último da existência. Por isso, o que está
em questão na constância de si mesmo não é senão a resposta à
pergunta sobre o que toma possível ser constantemente si mesmo
no tempo finito de ser.

Nós chegamos agora ao ponto em que podemos acen­


tuar o caráter propriamente dito do si mesmo tal como pensado
em sintonia com a analítica existencial e descrever em seguida
também o que faz com que a maquinação compositora técnica
inviabilize ou ao menos obstaculize de maneira radical a consti­
tuição do si mesmo, abrindo o espaço para que o tédio se revele
como uma tonalidade afetiva fundamental de nosso filosofar
atual, ou seja, de nossa experiência atual da abertura do ente na
totalidade. Como vimos acima, o si mesmo não pode ser pensado
a partir de algo assim como uma substancialidade subjetiva ou
mesmo de um sujeito egoico dinâmico que siga o modelo pes­
soal husserliano ou scheleriano. O ser-aí humano não conquista
jamais a si mesmo sob o modelo de um ente por si subsistente e
tampouco encontra a si mesmo em meio à suposição do caráter
pessoal de suas experiências. Ao contrário, si mesmo o ser-aí só
é na medida em que realiza no tempo o projeto de sentido que,
em conexão originária com a facticidade, ele é e pode ser. Isso

123
envolve incontomavelmente uma dinâmica de temporalização
dessas possibilidades, que possui uma ligação direta com a plena
concretização de si como cuidado. De saída e na maioria das
vezes, não somos nós propriamente que cuidamos de nós, mas
é, antes, o mundo que determina os modos como esse cuidado
precisa acontecer. E não porque o mundo se preocupa ontica-
mente com cada um de nós, mas porque o mundo funciona antes
como campo de sentido, em virtude do qual realizamos nossas
ações em geral. Tal como se encontra expresso em uma passagem
lapidar do parágrafo 54 de Ser e tempo\ “Perdido no impessoal
já sempre se decidiu a cada vez sobre o poder-ser fático mais
imediato do ser-aí - as tarefas, regras, critérios de medida, a
urgência e a amplitude do ser-aí ocupado e preocupado”61. Em
outras palavras, como o mundo disponibiliza campos de sentido
sedimentados, que a existência cotidiana operacionaliza sempre
uma vez mais, e como esses campos de sentido definem o que
pode aparecer como uma tarefa, como regras para a realização
das tarefas, como os critérios de medida que permitem avaliar se
as tarefas foram bem ou mal realizadas, assim como a urgência
com que as temos de levar a termo e a amplitude desse movimen­
to, ele já sempre decidiu por nós de antemão que possibilidades
se apresentam como possibilidades dotadas de sentido, ou seja,
que possibilidades se mostram de saída e na maioria das vezes
como possibilidades. Uma vez que nós cuidamos de nós mesmos
sendo, isto é, uma vez que o cuidado de si se dá aqui radical­
mente em meio aos modos de ser, o mundo já sempre definiu de
antemão como devemos cuidar de nós mesmos, quem devemos
ser. Tudo isso se altera, porém, quando o ser-aí se confronta com

[61] HEIDEGGER, 200Óa, §54, p. 268.

124
a sua nadidade em meio às tonalidades afetivas fundamentais e
consegue haurir dessa nadidade mesma sentido para o seu existir.
Isso, por outro lado, equivale a existir em virtude do tempo de
ser ou existir simplesmente para ser si mesmo.

Nós nos aproximamos aqui finalmente do elemento cen­


tral em jogo na tematização heideggeriana do tédio enquanto uma
tonalidade afetiva fundamental de nosso filosofar atual: a relação
entre tédio e tempo e o problema da constituição temporal do si
mesmo. Como tivemos a oportunidade de acompanhar acima, o
si mesmo humano não tem como ser pensado a partir da noção
de substancialidade subjetiva em nenhuma de suas possíveis ver­
sões, mas aponta antes na direção da conquista de uma posição,
de um sentido de ser, em virtude do qual o ser-aí temporaliza
a si mesmo enquanto ser-aí. Essa temporalização, seguindo a
descrição presente em Ser e tempo, obedece à dinâmica una de
realização das três ekstases temporais: porvir, ter sido e instante.
Em primeiro lugar, nós nunca chegamos a nós mesmos, ou seja,
nós nunca realizamos nossas possibilidades próprias de ser senão
a partir de uma abertura antecipativa de sentido. Essa abertura
confunde-se de saída e na maioria das vezes com a operaciona-
lização existenciária de sentidos disponíveis no mundo, isto é,
com a mera imersão por parte do existente em campos de sentido
já dados no mundo. Cotidianamente, o projeto de sentido de ser
não acontece senão como assunção tácita daquilo que o mundo já
assume como dotado de sentido. Em meio à experiência singular,
por outro lado, em meio à experiência que Heidegger descreve
por meio da expressão “decisão antecipadora da morte”62, o ser-aí

[62] Cf., antes de tudo, heidegger, 2006a, §§ 62-65. Eu trato detidamente


dessa noção no segundo volume de meu Mundo e historicidade: leituras

125
projeta antecipadamente como campo de sentido o tempo finito,
de tal forma que chega a si mesmo nesse campo como existin­
do em virtude de ser no tempo. Tempo vem à tona aqui, por
isso, como o sentido propriamente dito da existência enquanto
cuidado e se pode afirmar, então, que o ser-aí existe nesse con­
texto em virtude da dinâmica de temporalização de cada uma
de suas possibilidades de ser, que ele existe em virtude de ser,
que ele existe, em suma, em virtude de si. Vindo a si mesmo a
partir do porvir, contudo, o ser-aí é inexoravelmente jogado de
volta para o seu sido, para a constituição fática incontomável
de suas possibilidades de ser. Na medida em que o ser-aí é as
suas possibilidades de ser e essas possibilidades são sempre a
cada vez possibilidades do seu mundo; na medida em que as
possibilidades do seu mundo são constitutivamente estruturadas
por tradição, as possibilidades de ser do ser-aí humano estão
em um nexo estrutural com sua tradição. Não há, em outras
palavras, qualquer possibilidade de existir completamente em
liberdade ante às possibilidades estruturadas pela tradição, de
tal modo que todo campo de sentido antecipadamente aberto de
maneira compreensiva já sempre se articula com o seu sido, com
a tradição que não passou nem pode passar, mas que continua
incessantemente estruturando sempre uma vez mais agora as
nossas possibilidades de ser. Por isso, Heidegger vai dizer no
parágrafo 74 de Ser e tempo:

Jogado, o ser-aí se encontra em ver­


dade entregue à responsabilidade por
si mesmo e pelo seu poder-ser. De
qualquer modo, porém, como ser-no-
-mundo. Jogado, ele eátá referido a

fenomenológicas de Ser e tempo. Vol. 2: Tempo e historicidade, 2020.

126
um ‘mundo’ e existe faticamente com
outros. Ele se compreende a partir de
possibilidades de exiátência, que se
tomam cursivas na interpretidade a
cada vez atual ‘mediana’ pública do
ser-aí. Na maioria das vezes, elas se
tomam irreconhecíveis por meio da
ambiguidade, mas são de qualquer
forma conhecidas. Acompreensão exis-
tenciária propriamente dita subtrai-se
tão pouco à interpretidade pública, que
ele a cada vez apreende, a partir dela e
de qualquer maneira contra ela e mais
uma vez em favor dela, a possibilidade
escolhida na resolução63.

Todo ser-aí, portanto, chega a si mesmo vindo do porvir


(antecipação de si), na mesma medida em que é jogado de volta
em seu sido (já sendo em um mundo). Dito de maneira ainda
mais sintética, o porvir sempre se abre a cada vez nos limites
do sido. Ainda falta, porém, a dimensão propriamente dita da
temporalização existencial, que responde mais plenamente pela
possibilidade mesma de que o ser-aí humano exista como um si
mesmo: a dimensão do instante. Não há, por um lado, o ser-aí
ser sem que ele chegue a si mesmo vindo do porvir e sem que
ele seja retrojetado em seu ter sido. De qualquer forma, contudo,
o ser-aí tampouco conquista a si mesmo em suas possibilidades
mais próprias de ser, sem a abertura do instante como o tempo
que emerge precisamente da unidade plena entre porvir e ter sido
e que se constitui consequentemente como o lugar da conquista

[63] HEIDEGGER, 200Óa, §74, p. 383.

127
de uma experiência plena de si em meio ao adensamento onto-
lógico oriundo precisamente da totalidade do tempo, da unidade
de porvir, ter sido e presentificação. É somente porquanto o exis­
tente realiza no instante as possibilidades abertas pelo porvir no
horizonte do ter sido fático que ele pode ser si mesmo, sem que o
seu ser se confunda pura e simplesmente com uma configuração
pontual e fugaz de seu ser. Há ainda, contudo, um último ele­
mento ao qual precisamos retomar aqui, antes de explicitarmos,
por fim, por que a técnica toma problemático o si mesmo e traz
consigo, por conseguinte, o tédio como uma tonalidade afetiva
fundamental. Esse elemento, do qual já tratamos acima de ma­
neira sucinta em meio à explicitação do tédio como o resultado
do fato de nós termos nos tornado desinteressantes para nós
mesmos, é: a noção de autonomia como constância de si mesmo.

O importante aqui é jamais considerar a singularização


descrita por Heidegger em muitos textos da década de 1920
como uma possibilidade oriunda da situação-limite aberta pelas
tonalidades afetivas fundamentais, como se ela se restringisse a
um evento pontual, no qual alguém chegaria a si mesmo para,
logo em seguida, decair uma vez mais na perdição do impessoal.
Ao contrário, exatamente na medida em que o ser-aí singular
se revela como um novo projeto de sentido, como um projeto
de sentido haurido diretamente da nadidade estrutural do ser-
-aí humano, isto é, de seu caráter temporal, ele conquista uma
posição, a partir da qual se pode falar de uma constância de si,
exatamente na medida em que se suspende aqui por completo
a ilusão de desoneração ontológica que ocorre no cotidiano. Se
cotidianamente eu existo como se eu não fosse um ente dotado
de caráter de poder-ser, mas como se eu fosse uma coisa entre

128
coisas dotadas de propriedades por si subsistentes; e se esse modo
inicial de existência, descrito por Heidegger como um modo
impessoal de existir, caracteriza-se precisamente pela pretensão
de que os sentidos pretensamente positivos do mundo nos dizem
e podem mesmo nos dizer de antemão aquilo que devemos ou
não devemos fazer, assim como com que urgência e amplitude
precisamos fazer; sim, se o ser-aí humano transfere, de saída e
na maioria das vezes, para o mundo a tarefa de dizer não quem
cada ser-aí precisa ser, mas, antes, quem faz sentido ser, então
o si mesmo cotidiano é marcado por uma constância que não se
mostra como uma constância de si, como autonomia em sentido
etimológico64, mas como constância do impessoal ele mesmo.
Para usar uma expressão presente na passagem acima citada,
existe-se aqui sob o domínio de possibilidades, que se tomam
cursivas na cotidianidade e sob o domínio da interpretidade co­
tidiana. Se, porém, eu existo como mim mesmo, ou seja, se eu
passo a existir no tempo finito de ser as minhas possibilidades
de ser, esse modo mesmo de existência me torna desperto e
alerta para as possibilidades de descaminho, que são próprias
de um ente finito. Isso não significa, naturalmente, dizer que o
ser-aí singular não experimenta descaminhos, erros, desvios,
que ele nunca decai uma vez mais em posições medianas, mas,
sim, que tudo isso acontece no tempo e, por isso, vem à tona na
tensão estrutural de todo acontecimento temporal, na dinâmica
propriamente dita das ekstases. É por isso que Heidegger pensa
na decisão antecipadora da morte, por exemplo, tal como ele
descreve a decisão em Ser e tempo, como uma prontidão para

[64] Não se pode esquecer que, como mostramos acima, Heidegger se vale da eti­
mologia da palavra Selsbstàndigkeit em alemão, palavra que traduzimos de
maneira corrente por autonomia, para pensar justamente o fato de que só se

129
a angústia, que se revela justamente como uma disposição para
sempre, uma vez mais, angustiar-se. Tal prontidão para a angús­
tia, por sua vez, precisa ser compreendida literalmente a ferro
frio, sem qualquer presença de um gesto exotérico qualquer.
Estar constantemente pronto a angustiar-se não se confunde com
nenhuma predisposição para a queda contínua em uma experi­
ência de depressão e enfado, mas muito mais para a retomada
constante da condição temporal do existir humano e para a ar­
ticulação indelével desse existir com um horizonte constituído
por tradição. Como o próprio Heidegger acentua no parágrafo
60 de Ser e tempo, “a decisão não se subtrai à ‘realidade efetiva’,
mas ela descobre pela primeira vez o faticamente possível, de
tal modo, em verdade, que ele o apreende da forma como ele
é possível enquanto poder-ser próprio”65. E é isso justamente,
essa vinculação entre decisão angustiada e afeiçoada à voz da
consciência e campo fático, que um pouco antes no texto é de­
nominado transparência em relação às possibilidades fáticas ou,
articulando com a noção de situação, transparência situativa. Em
meio à experiência singular de se realizar enquanto um si mesmo
de maneira autônoma, ou seja, como constantemente temporal, o
ser-aí não apenas assume de maneira radical a responsabilidade
pelo seu poder-ser mais próprio, mas também o faz a partir de
uma transparência hermenêutica alcançada66 precisamente por

pode falar plenamente de autonomia quando nós constantemente (-stãndig)


somos e continuamos sendo nós mesmos (Selbst).
[65] HEIDEGGER, 200Óa, §ÓO, p. 299.

[66] Diante do caráter hermenêutico do projeto fenomenológico heideggeriano,


a possibilidade de uma transparência situativa completa parece impossível,
0 que acaba repercutindo diretamente sobre os limites da fenomenologia
em Heidegger. Robson Ramos dos Reis deixa claro esses limites em uma
passagem de seu Aspectos da modalidade. Ele diz em um trecho do livro:

130
meio do fato de que, na angústia, o mundo pela primeira vez apa­
rece enquanto mundo. E aqui estão justamente os dois elementos,
sem os quais não é possível pensar algo assim como a singula-
rização, o ser si mesmo do ser-aí humano. Em primeiro lugar,
uma realização plena de si a partir de seu sentido de ser próprio:
o tempo. Sem a redução do ser do existir à temporalidade, não é
possível falar em ser-aí próprio. Em segundo lugar, de maneira
cooriginária à realização de si enquanto ente temporal, a plena
vinculação ao seu mundo histórico correlato. E isso não porque
o ser-aí se descobre aqui finalmente como uma parte do mundo,
mas porque ele se confunde inversamente com o mundo que é
o dele, uma vez que ele é as suas possibilidades de ser e essas
possibilidades precisam necessariamente ser possibilidades do
mundo fático no qual elas vêm a ser. E aqui podemos finalmente
juntar as pontas desse trabalho e acompanhar em que medida os
modos de determinação do ser dos entes na totalidade no interior
da técnica promove precisamente uma problematização no vir-a-
-ser si mesmo por parte do existir humano, problematização essa
que acaba reverberando sobre o tédio como tonalidade afetiva
fundamental fática.

“Dado que a analítica existencial elucida a historicidade constitutiva do exis­


tir humano, a interpretação ontológica precisa refletir tal historicidade. Além
disso, considerando a opacidade estrutural derivada da condição de projeto
lançado, uma ontologia da existência não pode pretender transparência com­
pleta”. (reis, 2020, p. 163) Para podermos discutir esse ponto, contudo, de
maneira satisfatória, é preciso, a meu ver, definir inicialmente 0 que seria uma
transparência plenamente alcançada e em que medida a fenomenologia, por
meio da noção de epoché, pretendería chegar a essa transparência. Preciso,
no entanto, deixar esse ponto aqui em aberto. Voltarei a ele em trabalho que
escreverei em breve sobre a transformação hermenêutica da fenomenologia.
Cf. também Ramon Rodriguez, Hermenêutica e subjetividade (2014).

131
6.2. Tédio e tempo: o tédio como tonalidade
afetiva fundamental fática da era da técnica.

A técnica emerge, como vimos, de uma radicalização


da ideia mesma moderna de ser como posição. Tal radicaliza­
ção aponta para a absorção até mesmo da subjetividade egoica
humana posicionadora no campo relacionai posicionado. Com
isso, o ser humano, ainda que possa se arrogar como marcado
pelo controle e pelo domínio dos entes, não é senão posicionado
contingencialmente em tal posição. É claro que, em meio a uma
pesquisa virológica decisiva para a saúde da própria humanidade,
um determinado pesquisador pode se arrogar como detentor de
um papel decisivo na condução mesma de tal pesquisa e nas pos­
sibilidades de sucesso que ela possa ter. E isso que acontece hoje
com virologistas experientes, que estão trabalhando dia e noite
para chegar a uma vacina contra a Covid-19. De qualquer modo,
porém, não é nunca simplesmente o pesquisador, sem levar de
maneira alguma em conta qual o seu lugar na cadeia hierárquica
de uma pesquisa científica, que se mostra como responsável por
aquilo que agora precisa ser feito. Ao contrário, todos estão a tal
ponto inseridos em dimensões de demanda conjunturais, que só
tais dimensões são capazes propriamente de definir quando uma
determinada posição pode ou não vir à tona. Dito de maneira
mais direta, é claro que um pesquisador desempenha por um
lado por si a sua atividade de pesquisa e que essa atividade é
posicionada por ele, requisitada por ela, encomendada por ele.
A questão, contudo, é que ele mesmo é previamente posicionado
em sua posição, para que, então, por outro lado, ele possa levar
a termo sua atividade. É isso que vemos com clareza acontecer
quando setores inteiros são repentinamente extintos e as pessoas

133
que trabalhavam nesses setores são repentinamente obrigadas a
experimentar uma mudança de carreira. Nos últimos anos vimos
isso acontecer de maneira cotidiana por meio da invasão dos ditos
transportes alternativos: serviços de transporte por aplicativo. Em
verdade, boa parte das pessoas que trabalha nesses serviços não
se achava anteriormente no serviço de transporte de passageiros,
mas estavam, antes, nas áreas as mais diversas do mercado de
trabalho. Já me deparei em tais serviços com engenheiros na­
vais, jornalistas, donos de lojas de conveniência, engenheiros,
biólogos, aposentados dos mais diversos setores etc. Bem, mas
aqui as coisas se tomam interessantes para nós. Se não é mais
o ser-aí que encontra em sua confrontação com o seu ser mais
próprio a necessidade de ser propriamente quem é no tempo
finito de ser, mas se todo ser-aí se encontra agora submetido
aos posicionamentos conjunturais do mundo da técnica; mais
ainda: se esses posicionamentos criam espaços, tempos, corpos,
lugares determinados justamente por tal dinâmica de posiciona­
mento, então o ser-aí humano se vê aqui absorvido não apenas
nas malhas do impessoal, de um horizonte de manifestabilidade
constituído por tradição encurtada, mas também essencialmente
na subjetividade incondicionada da maquinação compositora.

Jogado no mundo, o ser-aí jamais se encontra simples­


mente jogado em um horizonte universal de determinação de suas
possibilidades de ser em geral. Jogado no mundo, o ser-aí sempre
se vê absorvido em um mundo fático específico. Exatamente na
mesma medida em que não há o filosofar, não há o mundo como
conceito metafísico fundamental. O que há é necessariamente
um mundo, com um modo específico de acolhimento da tradição
e com uma medida vinculadora dos fenômenos em geral. Aqui,

134
porém, como tivemos a oportunidade de acompanhar acima, uma
especificação precisa ser feita. As determinações históricas do
ser não envolvem no presente contexto apenas um horizonte de
manifestabilidade e uma totalidade de significados que possuem
um papel normalizante e normatizante de nossos comportamen­
tos em geral. Ao contrário, elas se estendem, antes, muito mais
para o campo mesmo de fenomenologização dos fenômenos em
nosso tempo, para decisões ontológicas iniciais, sob o domínio
das quais nós mesmos ainda continuamos existindo. Tais decisões
apontam, no mundo da técnica, para a total submissão de tudo
aos posicionamentos conjunturais da composição. No interior da
metafísica da técnica, nada mais é, tudo vem a ser e, na medida
em que vem a ser, já se mostra como imediatamente suprimido
em nome de novas e mais novas configurações. Tudo o que
vem a ser só conquista a sua posição a partir do posicionamento
conjuntural da composição maquinadora, por mais que a todo
posicionamento corresponda na lógica estrutural da composição
o posicionamento correlato de si para além do posicionado. A
técnica, com isso, nunca se encontra precisamente onde algo
vem à tona, mas já sempre se projeta para além de tudo aquilo
que ela posicionou. E isso que faz com que se possa falar aqui
de subjetividade incondicionada. Como a técnica não se compro­
mete com nenhuma conjuntura ôntica específica, mas só possui
uma ligação essencial originária com o seu próprio caráter posi-
cionador, nada que emerge dos posicionamentos pode produzir
uma crise e uma consequente destituição do lugar posicionador
da maquinação técnica. Em tudo que ela posiciona, em suma,
ela já sempre se coposiciona para além do que ela posicionou.
Tal autonomização radical do esquema moderno de posiciona­
mento e tal constituição de uma subjetividade posicionadora

135
incondicionada produz, então, um duplo esvaziamento. Por um
lado, na medida em que mesmo a subjetividade egoica humana
é absorvida na dinâmica de posicionamento conjuntural, sim, na
medida em que o ser humano se transforma em mero elemento
posicionado como aquele que encomenda o disponível (Besteller
des Bestandes), ele perde completamente a possibilidade de ser
si mesmo e passa a existir necessariamente de acordo com as
condições estabelecidas pela composição técnica maquinadora.
O ser humano, assim, toma-se um ser que responde sempre ao
acaso e que jamais encontra ou pode encontrar em nenhuma de
suas ações a necessidade propriamente dita que caracteriza as
possibilidades extremas de seu ser.

Chegamos, portanto, ao ponto de conexão entre tédio e


técnica, entre a tonalidade afetiva fundamental do tédio profundo
e o tempo da técnica. O ser-aí humano confunde-se radicalmente
com os seus modos de ser no tempo finito de ser. Tais modos de
ser são sempre acompanhados, no caso da existência singular,
isto é, no caso da existência que supera as ilusões cotidianas de
que o ser-aí podería ser pensado a partir da lógica do ente dotado
de propriedades e que assume radicalmente a responsabilidade
por ser suas possibilidades de ser no tempo, sendo tais possibi­
lidades, por uma transparência hermenêutica originária, por uma
assunção plena de si como ser em situação. Com isso, ao assumir
plenamente a si mesmo na constância de si, ou seja, ao se realizar
plenamente de maneira autônoma, o ser-aí coloca o seu ser em
jogo, colocando em jogo o ser dos outros (daquilo que aparece
em Ser e tempo como povo) e dos entes intramundanos (dos seres
vivos e das coisas em geral). Essa assunção possui uma relação
direta com uma dinâmica de temporalização da existência, que

136
não permanece presa a uma espécie de estagnação hermenêutica,
na qual sentidos pretensamente positivos e sedimentados na coti­
dianidade garantem que todo porvir sempre se abra em sintonia
com possibilidades já interpretadas pelo mundo e já disponíveis,
portanto, enquanto possíveis67, mas que, haurindo sentido da
própria nadidade estrutural do existir humano, promove um vir a
si mesmo a partir do porvir para o ser-aí, no qual a negatividade
obriga uma retomada destrutiva do ter sido e a liberação de pos­
sibilidades destinamentais, que tinham permanecido retraídas no
início da tradição. O singular, então, não conquista a si mesmo
em uma espécie de experiência mística de descoberta de si, assim
como ele tampouco se toma interessante para si mesmo porque se
depara repentinamente com experiências ricas de mundo, capazes
de abrir seu coração e seus olhos para as profundezas da terra.
Não. O singular só se diferencia do impessoal na medida em
que conquista plenamente a si mesmo enquanto ser-no-mundo
e consegue colocar em jogo o seu ser juntamente com o ser dos
outros (caráter originário do ser-com) e com as coisas (caráter
originário da abertura do sentido de ser da ocupação que é a
totalidade conformativa). O problema da técnica vem à tona,
por sua vez aqui, exatamente porquanto a técnica promove um
rompimento do vínculo entre o ser-aí e o seu aí. Absorvido na
maquinação compositora da técnica, o ser-aí se toma apenas um
elemento relacionai entre outros, sem lugar determinado, sujeito
às mudanças constantes das conjunturas e sem nenhuma relação
com a dinâmica de temporalização de sua existência. Não se
abre aqui o tempo propriamente dito de ser, porque a técnica

[67] Cf. as análises detidas que empreendo desse contexto em meu Mundo e his­
toricidade: leituras fenomenológicas de Ser e tempo. Volume 2: Tempo e his­
toricidade. Rio de Janeiro: Via Verita, 2020.

137
submete todos os modos singulares de temporalização ao ritmo
posicionai frenético de suas composições. Em outras palavras,
na era da técnica o tempo existencial está completamente sub­
metido aos tempos do mundo, à temporialidade em seu caráter
estrutural originário. Não é que o ser-aí humano não exista aqui
vindo a si mesmo a partir do porvir, sendo jogado de volta no
seu sido, para ser as possibilidades finitas de seu ser no instante;
nem que essa dinâmica de temporalização não aconteça em meio
à modulação própria do porvir em campo de expectativas, que
ocorrem juntamente com a assunção tácita de um sido assumido
a partir de um esquecimento mesmo de seu caráter fático e em
sintonia constante com um presente reduzido à sucessão infinita
dos agoras. A questão é que mesmo uma dinâmica singularizante
de realização de si se vê imediatamente posicionada por uma
estrutura mais originária do que toda e qualquer possibilida­
de de singularização, de tal modo que mesmo o singular acaba
por se ver inexoravelmente enredado em uma rede relacionai
marcada pela produção contingente do que é e pode vir-a-ser.
Em contrapartida, o cotidiano não se mantém apenas em uma
imersão na familiaridade cotidiana, mas mesmo tal familiaridade
se vê corroída pela vertiginosidade com a qual as expectativas
vão se aproximando, o ter sido vai se confundindo cada vez
mais imediatamente com um passado remoto, e o presente vai se
vendo emparedado entre dois nadas'*. Assim, se é possível falar,
por um lado, de singularização nos termos de Ser e tempo e da
primeira parte de Os conceitos fundamentais da metafísica, não

[68] É interessante considerar aqui o quanto o mundo sem o uso do celular e sem
a presença da internet nos parece um mundo jurássico. De qualquer modo,
porém, não faz mais de vinte anos que passamos a contar com tais utensílios
e com as necessidades artificiais que eles criam.

138
é possível, por outro, reter a ideia de que, por meio das crises
singularizantes do ser-aí humano, a facticidade experimentaria
algo assim como a possibilidade de se autointerpretar para além
das versões calcificadas características da existência cotidiana64.
Com isso, mesmo que coloque em jogo o seu ser no tempo finito
de ser, a ação do existente humano permanece inócua, no que
concerne à mobilização propriamente dita do campo existen­
cial como um todo. No mundo da técnica, em suma, o ser-aí
humano perde, ou vê ao menos radicalmente obstaculizada, a
possibilidade de realizar a sua essência enquanto formador de
mundo, enquanto mobilizador de potencialidades históricas da
tradição, na mesma medida em que se acha desarticulado dos
outros, dos seres vivos e das coisas. Submetido a um movimento
posicionador marcado pela constante aceleração de si, entregue
ao esquema vazio e não egoico da subjetividade incondicional
da composição maquinadora, a coexistência se vê tragada por
espaços precarizados, nos quais as relações com os outros se
acham por princípio problematizadas, uma vez que falta sempre a
pausa, a interrupção, a quebra, elementos sem os quais nenhuma
compreensão propriamente chega jamais a se estabelecer. Na
mesma medida, envolto por uma avalanche de coisas, o ser-aí
humano também experimenta em sua existência um estranho de­
saparecimento das coisas, um empobrecimento das ligações com
os entes intramundanos, que obedece diretamente à intensificação
sem precedentes do caráter obsoleto de tudo o que é e vem a ser.
Vivemos, para citar as palavras de Heidegger na conferência “A

[69] Com isso, fica claro que a viragem do pensamento heideggeriano traz con­
sigo, antes de tudo, o abandono do projeto da hermenêutica da facticidade,
projeto esse descrito no Relatório Natorp como o projeto de pensar a dinâ­
mica de reinterpretação de si por parte da facticidade a partir das crises do ente
nodal. Cf. Interpretações fenomenológicas de Aristóteles, ga 92, p. 367-68.

139
coisa”, em um tempo de desaparecimento de toda proximidade
e de dissolução concomitante das coisas a partir daí. Tal como
se encontra formulado no texto:

O ser humano deixa para trás os mais


longos trechos no tempo mais breve
possível. Ele faz com que as maiores
diátâncias fiquem para trás e coloca
diante de si, assim, tudo na mais míni­
ma diátância. A queátão, porém, é que
o afaátamento apressado de todas as
diátâncias não traz consigo nenhuma
proximidade; pois a proximidade não
consiáte na medida parca da diátância.
Aquilo que se encontra em relação co­
nosco como um trajeto na mais ínfi­
ma diátância, por meio da imagem no
filme, por meio do som no rádio, pode
permanecer longe de nós. O que eátá
diátante de maneira inabarcável em
termos de trajetos pode eátar próximo
de nós. Uma pequena diátância não
significa já proximidade. Grande dis­
tância não significa já um ao longe70.

Em outras palavras, a composição maquinadora da


técnica faz com que o mundo se tome repentinamente pequeno
demais, uma vez que sua extensão cada vez mais intensa suprime
todas as distâncias e faz com que fiquem para trás constantemente
os mais amplos espaços. Em um minuto, a internet me coloca
hoje em contato com uma audiência chinesa, que acompanha

[70] HEIDEGGER, 2000, p. 167. (OC 7)

140
em tempo real uma palestra em inglês sobre fenomenologia e
hermenêutica. Em um segundo, o celular traz à vida uma vez
mais uma apresentação histórica de Glen Gold, executando com
sua peculiar maestria e suas estranhas caretas as “Goldberg
Variations”. Minhas mãos nem bem se movimentaram no tecla­
do do computador e a noite estrelada de Van Gogh já apareceu
na tela. Tudo está próximo, todas as distâncias estão superadas,
nada resiste mais ao poder da supressão de distâncias próprio à
composição maquinadora da técnica em sua mobilização total.
E, no entanto... Precisamente, a total dissolução das distâncias
implica a absoluta aniquilação da proximidade. As coisas estão
tão próximas de nós, que elas perdem completamente o seu lugar
enquanto coisas. Se nos lembrarmos da formulação husserlia-
na do princípio dos princípios em fenomenologia, isso se toma
claro. Husserl diz no §24 de seu Idéias I:

No que concerne ao princípio dos


princípios, ou seja, ao fato de que toda
e qualquer intuição originariamente
doadora é uma fonte legítima de co­
nhecimento, o fato de que tudo aquilo
que se oferece para nós originariamen­
te na ‘intuição’ (por assim dizer em
sua efetividade corporal), teria de ser
acolhido simplesmente como aquilo
que ele se dá, mas também apenas nos
limites em que ele se dá, nenhuma teo­
ria pode nos induzir em erro71.

[71] husserl, Edmund. Idéias para uma fenomenologia pura e para umafiloso­
fia fenomenológica, 1992, pp. 43-44.

141
Se nós tomarmos essa formulação a partir do que está
em questão para nós, ou seja, a partir do que importa no pro­
blema da proximidade e da distância, o que acontece com a
maquinação compositora técnica é justamente o fato de que ela
suprime a possibilidade de que as coisas venham a se dar por
elas mesmas: destrói-se aqui completamente toda e qualquer
autodação. Em verdade, o que está em questão na intuição ori-
ginariamente doadora não é, de modo algum, algo assim como a
doação por parte da subjetividade do que constitui propriamente
a objetividade dos objetos, nem tampouco a redução de tudo à
mera aparência, ao mero modo de constituição das aparições,
mas, ao contrário, a abertura do horizonte mesmo de manifes-
tabilidade dos objetos enquanto objetos, ou, na linguagem de
Heidegger, do ente enquanto ente - horizonte esse que pertence
originariamente aos objetos e aos entes. Na medida em que se
suspendem todos os posicionamentos ontológicos em geral e
em que se acompanha radicalmente aquilo que se dá em meio à
dinâmica ekstática originária, doa-se imediatamente aos entes
a possibilidade de eles se mostrarem por si mesmos tal como
eles são em si mesmos, isto é, tal como eles são em seu campo
de manifestação e não no campo instituído pela subjetividade
ou mesmo por uma espécie de ontologia do social. Na técnica,
contudo, uma vez que as coisas são radicalmente reduzidas ao
caráter de disponível para os posicionamentos técnicos, as coisas
jamais conseguem encontrar o seu campo de manifestação e
sempre precisam se mostrar no campo conjuntural estabelecido
a cada vez de maneira instável pela subjetividade incondicionada
da maquinação compositora, uma vez que independe de toda e
qualquer condição circunstancial para ser. Com isso, exatamen­
te porquanto elas se encontram cada vez mais imediatamente

142
disponíveis, como elas sempre se acham à disposição para as
manipulações conjunturais, como o domínio maquinador técnico
avança sem travas para o cerne mesmo dos fenômenos em geral,
dos entes enquanto entes, a proximidade que as coisas acabam
conquistando em relação a nós não é senão uma proximidade
ilusória. Como Heidegger diz no primeiro texto de A caminho
da linguagem, o que caracteriza a linguagem poética é o fato de
que, quando o poeta fala, quem fala não é o poeta, mas a pró­
pria fala: por meio da poesia, a linguagem se faz linguagem, a
língua se língua (die Sprache spricht). Quando a linguagem se
faz linguagem, ela convida as coisas para que elas sejam e elas
vêm a ser: a coisa se coisa (das Ding dingt). Por fim, quando a
coisa se faz coisa, o mundo da coisa aparece: o mundo se des-
cerra enquanto mundo, o mundo se munda (die Welt weltet)1-. Na
técnica, por outro lado, não há lugar para a essência poética da
linguagem, porque toda fala aqui se impõe como violentação às
coisas, como manipulação produtiva do que a cada vez merece
vir a ser coisa e do que precisa ao mesmo tempo ser destruí­
do, dizimado, desconstruído, reconstruído, reciclado, para que
novas coisas possam experimentar o mesmo destino das coisas
em geral, como supressão de todo silêncio e absorção de tudo
no burburinho infinito dos momentos que se sucedem sempre
uma vez mais. Na medida mesmo, porém, em que a composição
maquinadora técnica suprime toda proximidade, uma vez que
inviabiliza completamente toda distância; na medida em que ela
impossibilita o silêncio, absorvendo todas as coisas no falatório
ruidoso do mundo das informações técnicas; na medida, por
fim, em que absorve a tudo e a todos nas conformações cada vez

[72] Cf. HEIDEGGER, 2018b, pp. 7-30.

143
mais fugazes de seu posicionamento conjuntural e transforma,
por conseguinte, o si mesmo de cada ser-aí humano em uma
fantasmagoria sem qualquer consistência fenomênica, a técnica
desponta como o lugar por excelência do desespero pensado
como doença do si próprio. Esse lugar possui o tédio como uma
tonalidade afetiva fundamental, exatamente porque a dissolução
originária do si mesmo inviabiliza por completo o vir a si mesmo
do existente e, com isso, implica o tomar-se desinteressante para
si mesmo do ser-aí humano.

144
Observações Finais.

De acordo com o modo de compreensão exposto por


Heidegger na preleção Os conceitosfundamentais da metafísica:
mundo, finitude, solidão, o tédio vem à tona como uma tonalida­
de afetiva fundamental fática de nosso filosofar atual. Ser uma
tonalidade afetiva fundamental fática traz consigo uma diferença
estrutural em relação às tonalidades afetivas fundamentais em
geral. Enquanto a angústia, por exemplo, mostra-se, por um lado,
desde o princípio como uma tonalidade afetiva de matiz antes
de tudo ontológico, ou seja, como uma tonalidade afetiva funda­
mental própria e possível para todo e qualquer ser-aí em qualquer
mundo histórico específico, o tédio, por outro, por mais que
também possa às últimas consequências afinar o existente como
um todo em qualquer época, possui uma ligação fática com o
nosso tempo, com o mundo histórico que é o nosso. Essa ligação
baseia-se, antes de tudo, na necessária emergência do tédio a par­
tir do fato de o ser humano ter se tomado desinteressante para si
mesmo. Não importa o quão superficial o tédio possa se mostrar:
onde quer que haja tédio, aí a existência precisa ter se tomado
desinteressante para si. Portanto, o fundamento da posição heide­
ggeriana, segundo a qual o tédio se revela como uma tonalidade
afetiva fundamental de nosso filosofar atual, aponta concomi­
tantemente para a afirmação de que o nosso filosofar atual traz
consigo originariamente o ter se tomado desinteressante para si
mesmo do existente contemporâneo. Aqui, então, surgiu para nós
um problema primordial. Se olharmos para a preleção de inverno
de 1929/30 e buscarmos aí uma descrição das razões que levam
Heidegger a afirmar que o mundo contemporâneo promovería
justamente uma tal experiência de dissolução da possibilidade

147
de o ser-aí humano ser interessante para si, não encontramos no
texto da preleção nada que propriamente justifique tal posição.
Como comentamos anteriormente, a única passagem da preleção
que apresenta uma tal justificação se resume a mostrar como a
filosofia da cultura alemã da década de 1920, ao procurar estabe­
lecer um lugar histórico para o ser humano, ou seja, ao buscar um
papel histórico renovado para o ente histórico propriamente dito,
acaba revelando a que ponto o ser-aí contemporâneo desarticu­
lou-se, alienou-se, desgarrou-se de seu destino propriamente dito.
Tal menção, contudo, permanece completamente incidental, e,
nesse sentido, mantém-se incapaz de revelar em que medida essa
desarticulação, essa alienação e esse desgarramento não apenas
se deram, mas precisaram se dar. Ela pode se mostrar como um
sintoma da nossa condição contemporânea, jamais como medida
dessa condição. Em outras palavras, a posição heideggeriana
em Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude,
solidão ainda não está em condições de explicitar o que mais
propriamente toma o tédio uma tonalidade afetiva fundamental
de nosso filosofar atual, ou seja, o que o torna uma tonalida­
de afetiva fundamental fática, com um vínculo imediato com o
modo de abertura do mundo contemporâneo. Tal possibilidade
só vai emergir mais tarde, no período posterior à viragem, com
a noção de acontecimento apropriador e com a compreensão
da essência maquinadora da composição técnica - e isso ainda
que Heidegger mesmo não tenha tratado da relação entre tédio
e técnica senão em pouquíssimas passagens, como a que citei
anteriormente dos Seminários de Zollikon. Somente a metafísica
da técnica e as consequências desertificantes de seu modo de
posicionamento do que a cada vez é e tem o direito de ser são
capazes de dar conta do esvaziamento completo dos espaços

148
cotidianos, da obstrução absoluta dos tempos próprios à dispo­
nibilidade para os outros e para as coisas, assim como da ruptura
originária do laço originário entre o ser-aí e o aí, entre o ser-aí
e o tempo de ser próprio a si mesmo tanto quanto ao mundo
existente. Com isso, na técnica, o existente humano se vê radical­
mente perdido de si, alienado de si, desarticulado de si mesmo.
Não apenas porque já não consegue mais experimentar coisa
alguma em nenhuma experiência e porque salta constantemente
de vivência em vivência, como Heidegger expõe em uma série
de tópicos de seu Contribuições à filosofia (Do acontecimento
apropriador)r\ sem que nada propriamente seja vivenciado em
qualquer vivência, mas também e essencialmente porque o todo
do ente em seu descerramento epocal já não nos concerne mais
em fenômeno algum. A técnica, é o que podemos deduzir do que
foi dito até aqui, nos desapropria de nós mesmos e nos faz aceder
a um campo existencial, no qual tudo o que tocamos se desman­
cha em sua particularidade como em uma cena de Koyaanisqatsi
(1982). Em meio a tal desapropriação, nós experimentamos tudo
sempre de maneira particular e circunstancial. E isso que faz com
que Heidegger designe o mundo da técnica como um mundo
dominado pelo pensamento calculador. Não tanto porque tudo
em nosso tempo é estatístico e quantificável, mas porque tudo
agora traz sempre consigo a possibilidade do surgimento de um
comportamento que acompanha de maneira logística o que se
mostra como sendo o caso. Existimos, em outras palavras, em
um mundo no qual nada mais é capaz de provocar em nós uma
real perplexidade e tudo imediatamente encontra uma profusão
de discursos e de posições que se mantêm em tudo o que dizem e

[73] Cf. HEIDEGGER, 2015.

149
fazem completamente presos ao caráter conjuntural de seus ditos
e de suas ações. Em suma, por mais complexos e tentaculares
que se mostrem os contextos técnicos, jamais nos deparamos
meditativamente com a essência da técnica, com aquilo mesmo
que não é produzido pela técnica, mas que acompanha a técnica
em seu modo originário de acontecimento. Podíamos concluir
dizendo que a técnica nos cinde de maneira radical do ser mesmo
em seu caráter acontecencial, mas tal afirmação carece ainda
de um desdobramento e de uma explicitação. O que se entende
aqui por ser? De modo algum aquilo que se compreendia por tal
expressão na tradição, uma determinação substancial e constante,
que sustentava e dava consistência ao mundo dos entes em geral.
Mas tampouco um mero construto contingente das circunstân­
cias. Ser aqui é um termo para designar precisamente o sentido
que estrutura e unifica a multiplicidade de fenômenos de uma
época e que nos faz imergir em um modo histórico de abertura.
Ser, portanto, é um termo que aponta aqui para um conceito de
totalidade e essa noção de totalidade é decisiva, para Heidegger,
para a conquista de si mesmo por parte do ser-aí humano. O
que a técnica faz, portanto, é romper os laços que nos ligam à
totalidade. A questão, contudo, é a seguinte: não estamos hoje
claramente para além de toda noção de totalidade? Não é esse um
resquício metafísico do pensamento heideggeriano? Essa é uma
questão que exige um pouco mais de cuidado e que nos coloca
em um campo de problemas dos quais não podemos tratar aqui
senão superficialmente. De qualquer modo, porém, é preciso
dizer algumas coisas antes do término desse caminho.

Não é demais ressaltar o quanto a noção de totalida­


de é na obra de Heidegger precisamente um traço da tradição

150
metafísica ocidental. Heidegger associa diretamente metafísica
e totalidade. Não é, de modo algum, sua pretensão afirmar a
abertura do ente na totalidade como uma característica humana
ou mesmo como um traço estrutural de todas as possibilidades
históricas do ser humano. Ao contrário, é claro para ele desde
o princípio que tão somente o Ocidente vem à tona desde o seu
primeiro início como determinado pelo questionamento ontológi-
co, pela pergunta acerca do ser do ente na totalidade. Ao mesmo
tempo, também não se pode deixar de levar em conta o fato de
que Heidegger lê precisamente o mundo contemporâneo, ou seja,
a consumação da metafísica da presença no que venho há alguns
anos chamando de metafísica da ausência, como marcado pela
supressão, precisamente, de todo e qualquer questionamento
do ser, pela dissolução de toda consideração totalizante e por
uma transformação correlata do ser em produto contingente e
sempre nulo das circunstâncias. Nada mais natural, portanto, do
que, no cerne da metafísica da técnica, do poder de posiciona­
mento completo da composição maquinadora técnica, o ser (o
fundamento) mostrar-se como uma ilusão há muito já superada,
como um traço hoje caduco de um tempo que ficou para trás.
Juntamente com isso, todavia, também é preciso ter uma outra
coisa em vista. Afirmar o tédio como tonalidade afetiva funda­
mental de nosso filosofar atual e como a atmosfera originária de
uma época, na qual o ser-aí humano se tomou desinteressante
para si mesmo, envolve, por um lado, asseverar o fato de que o
ser-aí humano perdeu aqui completamente o laço que o ligava
ao campo histórico como um todo, ao mundo enquanto mundo,
à clareira enquanto o lugar de manifestabilidade do ente enquan­
to ente; essa afirmação, no entanto, também indica, por outro,
algo mais do que uma simples menção à perda da experiência

151
da totalidade. Se olharmos já para Ser e tempo, o que está em
jogo em um fenômeno como a decisão antecipadora da morte,
isto é, em um fenômeno como a conquista singular de si mesmo
enquanto ente temporal finito (no vocabulário heideggeriano, um
pleonasmo), não é experimentar a abertura do ente na totalidade
em meio a uma apreensão teórica total, mas, antes, muito mais
mobilizar, sendo, a totalidade do que é. Exatamente isso é o que
o ser-aí alcança, na medida em que é radicalmente o seu aí e
dele não se encontra apartado por nenhum limite abstrato. No
período posterior à viragem, por sua vez, o que importa tampouco
possui qualquer ligação com um acolhimento teórico do ente na
totalidade, com uma captação do ser como gênero supremo. Ao
contrário, o decisivo aqui é, antes, retomar em uma confrontação
histórica justamente com a tradição metafísica, com uma tradição
marcada desde o princípio pelo esquecimento da mortalidade,
pela fuga da finitude, pela negação do caráter histórico do ser,
a relação com a questionabilidade própria do ser para além de
toda concreção histórica de sua verdade. E é nesse ponto, então,
que o tédio desponta como uma tonalidade afetiva fundamen­
tal de nosso filosofar atual. Experimentar a historicidade do ser
implica, para Heidegger, precisamente reconquistar a questio­
nabilidade do ser, a dignidade de questão da pergunta acerca do
ser. Em meio à composição maquinadora técnica, porém, o ser
mesmo perde o seu caráter de questão e passa a mostrar-se pura e
simplesmente como um produto contingente das circunstâncias,
produto esse que sempre abre o espaço para novas e mais novas
produções e que não possui nenhuma determinação para além
precisamente dessa abertura vazia para algo que jamais chega.
Com isso, o que se dá não é mais apenas a manutenção velada
da questão acerca da verdade do ser por meio precisamente da

152
confusão entre a questão diretriz da tradição metafísica (o que é
o ser?) para a questão fundamental (como se dá historicamente
o ser?)74. Ao contrário, na medida em que a metafísica da técnica
simplesmente não pergunta mais sobre o ser, ela traz consigo uma
intensificação radical da desarticulação entre o ser-aí humano e
o campo histórico. Por fim, é isso que toma o ser-aí desinteres­
sante para si mesmo, por mais que ele possa se embrenhar nas
atividades onticamente as mais bombásticas e efusivas. Imerso
na miríade de vivências e de experiências em geral, o ser-aí
permanece constantemente distante de si, apartado de seu lugar
de ser, de seus vínculos mais originários consigo mesmo, com
as coisas e com os outros. Seguindo uma intuição presente desde
o princípio de seu caminho na filosofia, Heidegger vê aqui a
técnica como promovendo precisamente um obscurecimento
radical do laço que une o ser-aí ao seu aí. Técnica e tédio, técnica
e desenraizamento do campo histórico, técnica e supressão da
questionabilidade própria ao modo de o ser-aí ser no mundo. É
isso que se encontra intuído em um belo poema de Pablo Neruda
sobre o tédio, que deixo ressoar aqui na mesma medida em que
me silencio:

Ir levando no caminho os amores


perdidos

E os sonhos idos

E os fatais sinais do olvido.

[74] Cf. quanto a essa distinção, antes de tudo, o segundo volume das preleções
de Heidegger sobre Nietzsche. (heidegger, 2009).

153
Ir seguindo na dúvida das horas
apagadas,

Pensando que todas as coisas se toma­


ram amargas

Para alongarmos mais a via dolorosa

E sempre, sempre recordar a fragrância

Das horas que passam sem dúvidas e


sem ânsias

E que deixamos longe na eátéril


errância.

(Pablo Neruda, Cadernos de Temuco).

154
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ÍNDICE

índice

1. O tédio sem movimento ou o enfado no coração do 4


mundo.

2. Descerramento afetivo do mundo: as tonalidades 18


afetivas fundamentais.

3. Do tédio superficial ao primeiro nível de aprofunda­ 34


mento do tédio: a tarefa da preleção

4. Da tonalidade afetiva fundamental fática do tédio


54
profundo: do banimento do horizonte temporal na totali­
dade à possibilidade do ser singular no tempo.

5. Os impasses da hermenêutica da facticidade e a im­


possibilidade de alcançar a medida epocal de nosso tempo 68
por meio do acontecimento fundamental da singularização.

6. Tédio e técnica: da ruptura radical do laço eátrutural


81
entre o ser-aí humano e seu campo exiétencial.

6.1 Para uma determinação da essência da técnica e


os impactos dessa determinação para as pretensões do ser 85
humano contemporâneo.

6.2. Tédio e tempo: o tédio como tonalidade afetiva


132
fundamental fática da era da técnica.

Observações finais. 155

Referências bibliográficas 161


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C335t
Casanova, Marco
Tédio e tempo - sobre uma tonalidade afetiva fundamental fática
de nosso filosofar atual / Marco Casanova. - Rio de Janeiro : Via
Verita, 2021.
164 p.; 21 cm. - (Coleção afetos)

Bibliografia: p. [157-160].

ISBN 978-65-

1. Filosofia moderna. 2. Tédio. 3. Tempo. I. Título. III. Série.

CDD -190

Elaborado po Roberta Maria de O. V. da Costa - Bibliotecária CRB-7 5587

EDIÇÃO Monica Casa Nova

REVISÃO Deborah Guimarães

ILUSTRAÇÃO Susano Correia

CAPA E PROJETO GRÁFICO Arthur Rocha e Giovana Paape

DIAGRAMAÇÃO Arthur Rocha e Giovana Paape

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PAPEL Pólen soft 80g/m2

IMPRESSÃO Renovagraf
tédio como tonalidade afetiva fundamental: ela é tam­
bém fática.

"O tédio vem à tona como uma tonalidade afe­


tiva fundamental fática de nosso filosofar atual. Ser
uma tonalidade afetiva fundamental fática traz consigo
uma ligação com o nosso tempo, com o mundo históri­
co que é o nosso. Essa ligação baseia-se antes de tudo
na necessária emergência do tédio a partir do fato de o
homem ter se tornado desinteressante para si mesmo.
(...) É somente por meio da metafísica da técnica e das
consequências desertificantes de seu modo de posi­
cionamento do que a cada vez é e tem o direito de ser
que esvazia os espaços cotidianos, inviabiliza os tempos
próprios à disponibilidade para os outros e para as coi­
sas, assim como torna o laço originário entre o ser-aí e
o aí, entre o ser-aí e o tempo de ser próprio a si mesmo
tanto quanto ao mundo inexistente. Com isso, na técni­
ca, o existente humano se vê radicalmente perdido de
si, alienado de si, desarticulado de si mesmo."

Leitura urgente e necessária, o livro chega ainda


em tempo de não termos nos tornado por completo
mera peça na engrenagem rígida e ao mesmo tempo
fluida, quase inescapável do mundo técnico, que ope­
ra esvaziando para em seguida preencher e encobrir o
fundo sem fundo da existência humana. Nas linhas tra­
çadas por Casanova torna-se possível reencontrarmos
algum caminho que nos arranque pelas raízes do coti­
diano amortecido e nos lance de volta a nós mesmos,
refazendo o laço e rearticulando o existente humano
ao interesse por si mesmo.
Afirmar o tédio como tonalidade afetiva fundamental
de nosso filosofar atual e como a atmosfera originária
de uma época, na qual o ser-aí humano se tornou
desinteressante para si mesmo, envolve, por um lado,
asseverar o fato de que o ser-aí humano perdeu aqui
completamente o laço que o ligava ao campo histórico
como um todo, ao mundo enquanto mundo, à clareira
enquanto o lugar de manifestabilidade do ente enquanto
ente.

ISBN 978-658833700-^

■ II II .

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