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ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE

A compreensão do fenômeno psíquico na modernidade


ocidental e a prática da saúde mental social e higiênica no
Brasil
The understanding of the psychic phenomena in Western modernity and the practice of
social and hygienical mental health in Brazil

Walter Ferreira de Oliveira1

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Doutor em Social and Philosophical RESUMO Este artigo revisa o desenvolvimento histórico do campo da saúde mental,
Foundations of Education, pela
University of Minnesota (UNM) –
tomando como base o pensamento em psiquiatria, destacando as vertentes paradigmáticas
Minneapolis (NM), Estados Unidos. biomédica e psicodinâmica e os movimentos sociais profissionais, particularmente a
Professor da Universidade Federal de
medicina social e o higienismo, que vieram a conformar o quadro teórico-conceitual em
Santa Catarina (UFSC) – Florianópolis
(SC), Brasil. que se baseia a psiquiatria contemporânea.
walteroliveira.ufsc@gmail.com
PALAVRAS-CHAVE: Reformas Psiquiátricas; Medicina Social; Higienismo.

ABSTRACT The article reviews the theoretical and conceptual bases of modern psychiatric
thought, highlighting the biomedical and psychodynamic paradigms, and the social and
professional movements of change that influenced contemporary psychiatry, especially social
medicine and higienism, who came to sette the theoretical and conceptual scenario that
underlies contemporary psichiatry.
KEYWORDS: Psychiatric Reform; Social Medicine; Higienism.

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Vertentes Teórico-Conceituais na Origem da nas ciências naturais; e outra, que admite, para a com-
Psiquiatria preensão dos mesmos fenômenos, uma base psicodinâ-
mica. O paradigma biomédico adquire a hegemonia,
A história dos movimentos de Reforma Psiquiátrica o que era de se esperar em uma época de revolução
(RP) começa, no mundo ocidental, antes mesmo da industrial, em que a tecnologia, cada vez mais identi-
fundação da psiquiatria. Essa se define como especiali- ficada com a ciência, avança como jamais na história,
dade médica, no século XIX, e tem suas bases na con- apresentando-se esse binômio ciência-tecnologia como
jugação de demandas dos sistemas de justiça e saúde maior candidato a tomar o poder político-social no vá-
(FOUCAULT, 1999). Suas origens confundem-se com cuo ideológico deixado pela remissão da Igreja. A ten-
as grandes iniciativas de internação dos séculos XVI e dência passa a ser de explicar os fenômenos psíquicos
XVII, políticas criadas para o estabelecimento de con- exclusivamente por mecanismos orgânicos (químicos,
trole moral e sanitário nas cidades europeias, em meio físicos e biológicos) e preconizar o estudo e o trata-
à herança de um longo período de hegemonia políti- mento dos doentes mentais no ambiente asilar, os ma-
ca da Igreja Católica. Época, portanto, acostumada à nicômios, que servem como simulacro de laboratório
identificação da loucura com as possessões demoníacas experimental.
e na qual emergem, ao mesmo tempo, movimentos de A outra vertente, congregando parte significativa
rebelião contra as imposições do poder eclesiástico e da dos psiquiatras e grande número de profissionais da
inquisição (LEVACK, 1988). latente disciplina psicologia, tem como marco funda-
Já no século XVIII, antes mesmo de tornar-se es- mental os trabalhos de Freud, médico neurologista vie-
pecialidade médica e de enfermagem, percebem-se re- nense, e de seus sucessores, que desenvolveram a psica-
púdios ao papel da psiquiatria como agente de controle nálise e a psicologia dinâmica, explicando a estrutura da
e punição. Vincenzo Chiaruggi (1759-1820), em Flo- psique e o desencadeamento dos transtornos psíquicos
rença, e William Tuke (1732-1819), na Inglaterra, de- pela crucial influência de fatores constitutivos e sociais,
senvolvem o chamado ‘tratamento moral’, privilegian- particularmente através de questões ligadas à sexualida-
do as atitudes e as relações entre pacientes, profissionais de e a partir do contexto das relações familiares. Nessa
e instituições, contrapondo-se às intervenções físicas, vertente, fluem dois caminhos metodológicos: por um
químicas e biológicas, típicas da nascente psiquiatria. lado, uma busca de legitimidade científica a partir da
Nessa, o arsenal terapêutico incluía cadeiras rotató- análise sistemática de dados colhidos em exercícios de
rias, afogamento, banhos com jatos gelados e terapias livre-associação, diálogos, memórias e narrativas; por
convulsivantes, provocadas por ingestão de substâncias outro, a tradição milenar de estudar a natureza huma-
como a cânfora (MORA, 1975). Mostra das discórdias na, seus problemas e questões mais profundas a partir
emergentes no recém-nascido campo da psiquiatria é a da filosofia, cuja metodologia incluía a dialética, a in-
antológica intervenção de Philipe Pinel (1745-1826), trospecção e a interpretação fenomenológica (MARX;
médico e deputado na Revolução Francesa, considera- HILLIX, 1973).
do por muitos o pai da psiquiatria moderna, libertando Os psiquiatras organicistas do final do século
os loucos das correntes dos hospitais de Bicêtre e Sal- XIX criticavam a psicanálise e a psicologia psicodinâ-
pêtrière, em Paris. Fortalecia-se, com a ação de Pinel, mica, apontando-as como anticientíficas. Temiam o
uma lógica humanitária para o tratamento da doença distanciamento entre psiquiatria e medicina, já que a
mental. psiquiatria ainda não tinha status garantido no seio da
Ao final do século XIX, o nascente campo da psi- profissão médica, e clamavam pelo fortalecimento da
quiatria apresenta-se polarizado em duas vertentes pa- pesquisa biomédica. Para atender a essa demanda, vul-
radigmáticas: uma, cuja compreensão dos fenômenos tosos recursos públicos e privados foram direcionados
psíquicos e do tratamento das doenças mentais se funda à pesquisa psiquiátrica biomédica, o que permitiu a al-
numa ciência biomédica, epistemologicamente apoiada gumas instituições abrir mais espaço para o estudo da

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organicidade das doenças mentais. Uma dessas iniciati- Ao privilegiar o aspecto nosológico, Kraepelin e
vas foi a fundação, em 1895, do Pathological Institute sua escola permitiram um avanço no conhecimento clí-
Hospital de Nova York (MORA, 1975). nico, mas propiciaram um impasse. Sua obra não pres-
Mas, o mais conceituado centro de pesquisas psi- ta a devida atenção às peculiaridades da personalidade
quiátricas dessa época estabeleceu-se em Munique, di- enferma, isto é, ao mesmo tempo em que a nosologia
rigido por Emil Kraepelin, de 1903 a 1921. Enquanto kraepeliniana enviesava a compreensão do transtorno
os psicanalistas propunham o tratamento de problemas mental, hipertrofiando a visão anátomo-clínica, ignora-
neuróticos a partir da introspecção, com base em seu va um princípio da clínica tradicional, de que em me-
trabalho na clínica privada, Kraepelin estudava as ma- dicina não há doenças, mas doentes, o que deveria ser
nifestações de problemas mentais nas pessoas interna- muito mais levado em consideração no caso do pacien-
das nos hospitais psiquiátricos públicos. Preocupou-se te psiquiátrico, cujos aspectos psicológicos se envolvem
em descrever minuciosamente os comportamentos, lin- mais diretamente na evolução do transtorno.
guagem, gestos e hábitos dos pacientes internados nas Ao viés anátomo-clínico de Kraepelin juntaram-
enfermarias manicomiais, traçando dossiês completos se os esforços de Morel, Magnam, Rudin, Weinberg
sobre suas reações a tudo e a todos, no contexto daque- e outros eminentes psiquiatras da época, para acentu-
le mundo asilar. Resultou uma nosologia, isto é, uma ar o papel da herança genética; e, posteriormente, de
sistematização categorial das doenças, uma classificação Kretschmer e seus seguidores, enfatizando os estudos
detalhada dos transtornos, uma psicopatologia essen- sobre o tipo constitucional, uma tradição que remonta
cialmente descritiva, dando nomes diferentes aos con- às origens da medicina, com as escolas de Hipócrates e
juntos de sintomas e sinais – as síndromes –, apontando Galeno (UCHÔA, 1973). Os resultados precários des-
especificidades de respostas a estímulos de acordo com ses estudos, sobretudo no que se referia às diferenças
a categoria diagnóstica. Essa sistematização adequava-se entre pessoas normais, neuróticas e psicóticas, deixou
perfeitamente à abordagem categorial das ciências na- a psiquiatria biomecanicista cientificamente vulnerável
turais e, particularmente, da biologia, conforme a me- e apoiada tão somente na nosologia kraepeliniana, mas
todologia proposta por Lineu, de classificação dos seres não destruiu sua hegemonia. Apenas permitiu que se
por características que os definiam como pertencentes mantivesse vigorosa a vertente psicodinâmica, que con-
hierarquicamente a reinos, famílias, gêneros e espécies. testava a legitimidade da supremacia organicista.
Constituiu-se, dessa forma, a base semiótica da As duas vertentes – organicista e psicodinâmica –
psiquiatria moderna. Mania, depressão, esquizofrenia, polarizaram cada vez mais fortemente a evolução das
paranoia, catatonia, delírio, alucinações, agitação psi- disciplinas da saúde mental. Ambas se ramificaram, ge-
comotora, ou seja, cada forma de existir, cada maneira rando diferentes correntes, tendo, possivelmente, a ver-
de responder, cada jeito de se comportar inscreve-se em tente organicista mantido, através dos tempos, maior
um dossiê com uma descrição detalhada, que reafirma coesão ideológica e metodológica, e a psicodinâmica
o diagnóstico, o prognóstico, a evolução clínica, a es- maior diversificação de tendências. Ambas consolida-
colha terapêutica (ALEXANDER; SELZNICK, 1980). ram posições no campo técnico-científico, sofrendo,
Tudo passou a ser classificado e sistematizado na no- nessa trajetória, críticas advindas tanto da vertente opo-
sologia de Kraepelin, que, de forma um tanto modifi- nente quanto de seus próprios representantes.
cada, constitui até hoje a base da clínica psiquiátrica. A psicanálise, por exemplo, foi se desmembran-
A lógica do Diagnostic and Statistical Manual of Men- do a partir de dissidências, despontando, entre outras,
tal Disorders (DSM) (AMERICAN PSYCHIATRIC as correntes fundadas por Carl Gustav Jung, Wilhelm
ASSOCIATION, 2003), o manual de classificação de Reich e Alfred Adler, os quais, apesar das diferenças
transtornos mentais utilizado para as bases diagnósticas com os princípios freudianos, mantiveram-se identi-
legitimadas na burocracia da saúde, ainda é, sem dúvi- ficados com a escola psicanalítica. Adler (1967) via o
da, kraepeliniana. poder e não a sexualidade como motivação maior da

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existência humana. Para Jung (1968), a psicanálise A Medicina Social e as Primeiras Reformas
não poderia ignorar fenômenos transcendentais sig- da Psiquiatria Brasileira
nificativos. Reich (1970) enfatizava a importância
do ambiente político na estruturação dos fenôme- Dois movimentos foram particularmente importantes
nos psíquicos e da sexualidade. Outros dissidentes para a saúde mental no início do século XX: a Medi-
fundaram linhas autônomas, como a psicologia hu- cina Social, que teve um grande impulso entre os anos
manista, na qual se destacam, entre outros, Erich 1830-1860, e o Higienismo, que surge como uma
Fromm (1955), que defendia a ideia de uma análise espécie de corolário da Medicina Social. A Medicina
social aprofundada para o entendimento da produ- Social surgiu concomitantemente ao desenvolvimento
ção de subjetividade, e Abraham Maslow (1991), das cidades, a partir da necessidade de se ordenar a
cuja teoria motivacional calca-se em uma hierarquia vida urbana.
de necessidades diferente da tradicionalmente pro- Na Idade Média, a maioria das pessoas vivia em
posta pelos princípios psicanalíticos. feudos, comunidades relativamente pequenas e sim-
Uma obra importante da vertente não organicis- ples. O crescimento desordenado das cidades levou à
ta é a Psicopatologia Geral, escrita por Karl Jaspers, intervenção do Estado, o qual era, também, em sua
e publicada, originalmente, em 1913 (JASPERS, versão moderna, uma novidade, visando principal-
1973). Esse clássico, de orientação fenomenoló- mente o saneamento, a saúde, e promovendo novas
gico-existencial, mostrou-se um contraponto aos formas de socialização. Para combater doenças, sanear
textos de formação em psiquiatria, até então, quase as cidades e normatizar hábitos e costumes, favorecen-
absolutamente de orientação organicista. do a saúde, criou-se, inicialmente na Alemanha, a fun-
A psiquiatria organicista controlou a organi- ção da Polícia Médica. Esse é o germe da Medicina So-
zação do campo com base nas tradições da clínica cial, o poder de polícia do Estado para a proteção do
médica: calcada no exame clínico, no estabeleci- bem-estar coletivo. Dessa forma, ela foi abraçada por
mento de diagnósticos que determinam a escolha médicos que estenderam os princípios, vocabulário,
de opções terapêuticas disponíveis, no prognóstico ritos e práticas da medicina da pessoa para o tratamen-
e no controle da evolução clínica. Prescrevia uma to das ‘doenças sociais’ (ROSEN, 1980). A Medicina
postura profissional eminentemente impessoal, Social proporcionou, também, novas formas de pensar
condicionada pelas relações institucionais massi- a qualidade de vida nas cidades modernas, aperfeiço-
ficadas, materializadas em ambientes onde poucos ando a prática do saneamento urbano e incorporando
profissionais atendiam enfermarias superlotadas. A questões socioambientais.
relação terapêutica, apoiada em categorias nosográ- Como uma das consequências da Medicina So-
ficas, desconsiderava a subjetividade e equalizava cial, a profissão médica passa a interessar-se não só
as pessoas, deixando de reconhecer características pelas doenças, mas por tudo passível de se transfor-
fundamentais para um diagnóstico mais acurado, e, mar em doença. A medicina quer, então, prevenir as
consequentemente, para uma terapêutica mais efi- doenças, intervir antes que elas aconteçam. Pretende
caz. O sistema objetificava o paciente, manipulava- tratar não só os males visíveis ou detectáveis, mas in-
o de muitas formas, violava seus direitos humanos e tervir sobre comportamentos, hábitos, relações sociais
civis (LAING, 1974; SZASZ, 1974). A crença orga- e estruturas culturais que possam levar ao desenvolvi-
nicista da improdutividade do paciente e da incura- mento de malefícios. Interpreta a existência sob a ótica
bilidade da doença mental incorporou-se na cultura clínica, diagnostica e trata problemas de toda natu-
psiquiátrica e potencializou tanto a impugnação dos reza, medicaliza a vida. O saber médico passa a estu-
direitos dos pacientes quanto a sensação de impo- dar, analisar e intervir sobre fatos, relações e compor-
tência terapêutica frente à fatalidade de sua inútil e tamentos da vida cotidiana. Comer, vestir, caminhar,
eterna condição (BASAGLIA, 1985). dormir, relacionar-se, celebrar, tudo passa ao domínio

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médico, que agora se preocupa com a normalidade e Janeiro. Cria-se, ainda, a primeira cadeira especializada
com o desvio do normal (PORTOCARRERO, 2002). da medicina: a de psiquiatria. Amarante (1994) consi-
A psiquiatria sofreu grande influência da Medicina dera esse conjunto de medidas a primeira reforma psi-
Social, pois a loucura, seu foco tradicional, denuncia-se quiátrica brasileira, reforma que exibe flagrantemente
pelo comportamento. Já era comum, com a absorção da as contradições ideológicas, os embates epistemológicos
psicologia psicodinâmica e da psiquiatria humanitária e e as disputas de hegemonia no campo da saúde mental,
moral, associar comportamentos patológicos à vida de onde se definem como protagonistas as duas vertentes
relação, principalmente à família, à vida comunitária e paradigmáticas: biomecanicista e psicodinâmica.
aos hábitos adquiridos no contexto sociocultural. Daí,
foi um passo para a psiquiatria definir comportamento
‘anormal’ ou ‘desviante’ como patológico. O objeto de O Higienismo e a Psiquiatrização da Vida
estudo e intervenção da psiquiatria deixa de ser apenas a Cotidiana
doença e passa a ser a vida como um todo. Com a anor-
malidade e o desvio adquirindo o status de categorias O sucessor de Teixeira Brandão na liderança da assis-
psicopatológicas, tudo que é ‘anormal’ ou ‘desviante’ tência médica aos alienados foi Juliano Moreira, um
passa a ser passível de intervenção e de medicalização dos nomes mais eminentes da psiquiatria brasileira,
psiquiátrica. identificado historicamente como um higienista. O
No Brasil, moderniza-se a assistência aos alienados higienismo surgiu no século XIX, tendo como ideia
no alvorecer da República e do século XX. A psiquiatria central a eugenia, termo inicialmente utilizado pelo
conforma-se às ideias humanitárias que permeavam a fisiologista inglês Galton para designar o estudo dos
ideologia liberal, abraçada pela nova ordem republica- fatores socialmente controláveis que podem elevar ou
na; e, ao mesmo tempo, assume o papel proposto no rebaixar qualidades raciais, físicas e mentais de gerações
contexto da Medicina Social, de atuar no espaço social, futuras. O movimento se espalhou pela Europa e pe-
no espaço da vida das pessoas. Cria-se, em 1890, a As- los Estados Unidos, e foi eventualmente abraçado pelos
sistência Médico-Legal aos Alienados, primeira política governos fascista, na Itália, e nacional-socialista, na Ale-
nacional de saúde estabelecida pela República, e, no manha, que valorizavam a evolução de raças puras. No
âmbito dessa assistência, sob a direção de João Carlos Brasil, o psiquiatra Gustavo Riedel criou, em 1923, a
Teixeira Brandão, as primeiras colônias agrícolas para o Liga Brasileira de Higiene Mental, cujo objetivo inicial
tratamento dos alienados, na capital da República (Co- era melhorar a assistência aos doentes mentais, reno-
lônia de São Bento e de Conde de Mesquita), no Estado vando os quadros profissionais e os estabelecimentos
do Rio de Janeiro (Vargem Grande) e em São Paulo psiquiátricos (COSTA, 2007). Em 1928, a liga pas-
(Juqueri). Estende-se o tratamento psiquiátrico dos asi- sou a privilegiar a prevenção, a eugenia e a educação
los tradicionais, representados emblematicamente pelo dos indivíduos, promovendo a intervenção preventiva
Hospício de Pedro II, inaugurado no Rio de Janeiro dos psiquiatras nos meios escolar, profissional e social.
durante o Império (1852), para as colônias agrícolas. A Boa parte dos psiquiatras brasileiros passa a se identi-
ideia central dessa extensão era promover a convivência ficar como higienista, e a psiquiatria brasileira, com a
dos internos com a comunidade, nas casas e no traba- ideia de ‘higiene mental’ (PORTOCARRERO, 2002).
lho (AMARANTE, 1995). Apesar dessa visão de trata- O higienismo ajusta sua abordagem social à orientação
mento dos males psíquicos através da vida de relação, organicista, propondo-se a explicar, tratar e medicalizar
favorecendo a terapêutica de base social-comunitária, a vida social.
a expansão asilar continuou durante as duas primei- Assim se constitui a psiquiatria brasileira da pri-
ras décadas do século XX, com a inauguração de vá- meira metade do século XX: a partir da matriz conceitu-
rios hospitais psiquiátricos de grande porte, entre eles, al da psiquiatria europeia, hegemonicamente organicis-
o Manicômio Judiciário Heitor Carrilho, no Rio de ta, altamente influenciada pela Medicina Social e com

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grande participação dos higienistas; e com uma vertente na punição. Seu contraponto é um conjunto de saberes
contra-hegemônica calcada nas psicologias psicodinâ- fundados no tratamento moral, na introspecção, no di-
mica, fenomenológico-existencial, humanista e social. álogo e no vinculo profissional-paciente.
O saber hegemônico, biomédico-organicista, transpor- A evolução do campo da saúde mental, com suas
tou-se direta ou indiretamente para a maior parte dos vertentes, polêmicas, contradições, negociações e dis-
textos que alicerçaram a formação dos profissionais de sidências, evidencia, assim, um terreno vigoroso, so-
saúde mental do século XX – médicos, enfermeiros, cialmente importante, pleno de embates ideológicos,
psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais. políticos e paradigmáticos. Afirma-se, frente ao estudo
Esse saber sistematizou e consolidou a nosologia krae- dos fenômenos psíquicos, a hegemonia da medicina
peliniana, e legou à loucura um lugar social discrimina- psiquiátrica, a identificação de sistemas de saberes e po-
do e um olhar intervencionista calcado na exclusão, no deres disciplinares, a evolução científica e tecnológica e
asilamento em manicômios, no controle de sintomas e o protagonismo de vários atores sociais.

Referências

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Recebido para publicação em Fevereiro/2012


Versão definitiva em Maio/2012
Suporte financeiro: Não houve
Conflito de interesses: Inexistente

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