em Paris.
Tem escrito peças de teatro, romances e novelas. A sua obra encontra-
se atualmente traduzida em vinte idiomas, sendo os seus textos
dramáticos representados em França e em vários palcos internacionais.
O primeiro romance que publicou, Bord de Mer (2001), recebeu o
Prémio Alain-Fournier. Uma década depois, ganhou o Prémio Maison
de la Presse com o livro Cet Été-Là.
Santa Bakhita
Véronique Olmi
Publicado em Portugal por
Porto Editora
Divisão Editorial Literária – Lisboa
Email: dellisboa@portoeditora.pt
Título original:
Bakhita
© Éditions Albin Michel, 2017
Tradução: Artur Lopes Cardoso
Imagens da capa: Musée Nicéphore Niépce, Ville de Chalon-sur-
Saône/adoc-photos/Fotobanco.pt
1.ª edição em papel: março de 2019
www.portoeditora.pt
ISBN 978-972-0-67782-2
Para o Louis
Para a Bonnie
«Tirar-nos-ão também o nome: se quisermos conservá-lo,
teremos de encontrar dentro de nós a força para o fazer, fazer
com que, por trás do nome, algo de nós, de nós tal como
éramos, ainda sobreviva.»
Da escravidão à liberdade
Ela não sabe como se chama. Não sabe em que língua são os seus
sonhos. Lembra-se de palavras em árabe, em turco, em italiano e fala alguns
dialetos. Vários são provenientes do Sudão e um do Véneto. As pessoas
dizem: «uma mistura». Ela fala uma mistura e as pessoas compreendem-na
mal. Tem de se repetir tudo por outras palavras. Que ela não conhece. Lê, com
uma lentidão apaixonada, o italiano e assina com uma caligra a trémula,
quase infantil. Sabe três orações em latim. Cânticos religiosos que entoa
com uma voz baixa e forte.
Tem cinco anos quando isso ocorre pela primeira vez. Cinco, seis ou
sete anos, como saber? Nasceu em 1869. Talvez um pouco antes. Ou um
pouco depois, não sabe. Para ela, o tempo não tem nome, não gosta de
escrever os algarismos, não vê as horas nos relógios, apenas na sombra
projetada das árvores. Aqueles que lhe pediram que contasse desde o início
calcularam a sua idade em função das guerras do Sudão, essa violência que
ela reencontrará noutros lugares, uma vez que o mundo é igual em todo o
lado: nascido do caos e da explosão, avança despedaçando-se.
Tem cerca de cinco anos e é o m do mundo. Essa tarde traz uma luz
que nunca mais foi vista, uma alegria calma que vibra e em que não se
repara. Não se sabe que ali está. Vive-se no interior dessa alegria como aves
atarefadas e, nessa tarde, na sua aldeia, as crianças brincam à sombra do
grande embondeiro e a árvore é como uma pessoa de con ança. É o centro
e o antepassado, a sombra e a referência. Os velhos dormem a esta hora do
dia. Os homens recolhem as melancias nos campos. À saída da aldeia, as
mulheres batem o sorgo, é a música calma de uma aldeia pací ca que
cultiva os campos, uma imagem de paraíso perdido que ela guardará para
se persuadir de que aquilo existiu. Vem de lá o lugar da inocência
massacrada, da bondade e do repouso. É isso que quer. Vir de uma vida
certa. Como todas as vidas antes do conhecimento do mal.
A sua irmã mais velha, Kishmet, deixou a aldeia do marido para passar
a tarde em casa dos pais. Tem quase catorze anos. Não trouxe consigo o
bebé. A sogra toma conta da criança, que tem um pouco de febre, e, então,
durante algumas horas, volta a ser a lha dos seus pais e está com a gémea
que dorme a sesta, na cubata das mulheres. Sente-se triste por viver noutro
lugar, por pertencer ao marido e já não ao pai, mas está orgulhosa por ter
um lho. Os seus seios estão cheios e, antes de adormecer, a gémea bebeu
um pouco do seu leite, isso aliviou-as às duas.
Durante os dois anos que se seguiram à razia, ela pensava que casaria,
teria lhos e preencheria o grande vazio deixado pela irmã mais velha. Era
o que faria. Seria reparadora da desgraça. Para que a mãe deixasse de ser
essa mulher que caía, essa mulher à espreita que ordenava dez vezes por dia
que não se afastasse, que nunca falasse com estranhos, que nunca seguisse
pessoas que não fossem da aldeia, mesmo as mulheres, mesmo os
adolescentes. Era uma litania que já não ouvia, era o cântico novo da mãe.
Tem sete anos agora e sabe que, por detrás das colinas, a irmã mais
velha, outras raparigas e outros rapazes desapareceram. Tornaram-se
escravos. «Escravo» não sabe o que é exatamente. É a palavra da ausência,
da aldeia em fogo, a palavra depois da qual já não há nada. Aprendeu-a e
depois continuou a viver, como fazem as criancinhas que brincam e não
sabem que estão a crescer e a aprender.
Tem sete anos, leva as vacas ao rio, nunca vai lá sozinha, não se afasta,
mas precisam dela e isso agrada-lhe. Tem o seu lugar. E também o seu
carácter. Dizem que é alegre, sempre de bom humor, que não para quieta. A
mãe diz que ela é «doce e boa», por isso, mesmo quando está furiosa,
mesmo quando está encolerizada, tenta parecer o que a mãe diz dela, «doce
e boa». Isso modera-a um pouco, trá-la de volta a algo razoável, a ela que
tem uma imaginação tão grande e todos os dias inventa novas histórias que
conta aos mais pequenos, histórias que representa para intensi car o relato,
com gestos e efeitos de voz. Gosta disso, do olhar dos petizes que esperam a
continuação da história, dos gritos de falso terror, das mãos postas diante
das bocas, dos risos de alívio. Gosta de lhes dar esses momentos de fantasia,
do orgulho que existe em fazer surgir os sentimentos escondidos: o medo e
a esperança.
Tem sete anos e obedece à mãe que, uma tarde, lhe pede que vá buscar
erva à saída da aldeia. Não está sozinha, está com uma amiga que se chama
Sira. Lembra-se de um nome agradável, porque não Sira? Avança
baloiçando as mãos e cantando a sua cançoneta, «Quando as crianças
nasciam da leoa». É uma canção inventada por si que canta aos mais
pequenos. A canção fala de uma anciã que recorda que, outrora, as crianças
nasciam cobertas de pelos e armadas de dentes que perdiam ao crescer para
se tornarem verdadeiros humanos. Quando inventa, ela é espírito, criança
perdida, animal guerreiro. O seu próprio medo acalma-se sempre com o
nal feliz da história.
Nessa tarde, Sira caminha a seu lado, preguiçam um pouco para ir
buscar a erva pedida pela mãe, há algo de indolente, o vento abranda, o sol
perdeu a dureza e talvez seja por causa dessa suavidade que estão tão
negligentes e distraídas. Veem os dois homens e não descon am. Nem
pólvora, nem espingarda, nem cavalo, são dois homens cuja aldeia não ca
muito distante. Vizinhos.
A caminhada durou dois dias e duas noites. Ela não sabia onde cava o
grande rio, onde cavam as aldeias, o que havia atrás da colina, atrás das
árvores e atrás das estrelas. Então, tentou reter o que via, para fazer o
caminho em sentido inverso e voltar a casa. Tinha medo e memorizava.
Estava perdida e recitava: o pequeno regato. O cercado com quatro cabras.
A duna. Os arbustos. Os poços. Duas bananeiras. Silvas. Um cão amarelo.
Um burro. Dois burros. Uma palmeira anã. Um velho sentado. Acácias. A
duna. Um campo de painço. Um caminho de seixos negros. Um elefante
atrás de um embondeiro. Ervas verdes. Pedras vermelhas. Recomeça. Dois
burros. Um velho sentado. Acácias. A duna. Tropeça. Cai. O pequeno
regato. O cercado. Levanta-se. Um poço. Um camelo. A Lua. Hesita. As
estrelas: o Cão, o Escorpião e as três Estrelas Irmãs. Dois burros. Não. Duas
palmeiras anãs. O campo de painço. Ouve o grito estridente das hienas. O
calor transformou-se em gelo na noite que vem, o vento é frio e veloz. A
paisagem apaga-se. Está no meio do invisível.
A entrada de uma aldeia. Um estreito caminho de terra, algumas
cubatas, alguns cães escanzelados e os ecos de uma vida longínqua. Estão ali
uns homens, falam entre si, distraidamente e sem paixão. Cumprimentam
os dois raptores e regressam à sua conversa. Estão habituados às crianças
roubadas, há-as em todo o lado e a todo o momento desde sempre. Não
olham para a rapariguinha, não há piedade nem curiosidade. É uma noite
como outra qualquer.
Os raptores abrem uma porta. Atiram-na. Cai sobre uma terra dura e
gelada. Fecham de novo a porta com o grande ferrolho. Está aterrorizada e a
palavra «mamã» é tudo aquilo de que se lembra, a única coisa que
verdadeiramente existe. Essa palavra mora-lhe na cabeça, no peito, em todo
o corpo. Mistura-se com a dor, com o grande medo do que lhe zeram, do
que não compreende, é o único nome que lhe resta. Falta-lhe um outro: o
seu. Na primeira noite, os dois homens perguntaram-lhe como se chamava.
Tinha demasiado medo de olhar para eles. Com os olhos baixos, via o
punhal. Brilhante e frio. Como se chama. Como lhe chamava a mamã.
Como se chama. Como lhe chamava o pai quando falava à Lua. Um dos
homens pousou as mãos sobre as suas pernas magras, feridas pelos
espinhos das acácias ao longo da caminhada. Como se chama. Deixou o
nome próprio perto do rio. Deixou-o sob a bananeira. O nome mostrava
como ela veio ao mundo, mas já não sabe como foi. Chora de pânico. Só
resta o nome da sua mãe. Está em toda a parte. Não serve para nada.
Por vezes pensa que vai car ali toda a vida com os dois raptores que, à
noite, vêm com um pouco de pão e água, e a sua violência também. Vai
crescer assim. Será possível? Isso acontece? Ser esquecida por toda a gente,
menos por aqueles dois homens? Existir apenas para eles?
Está na noite e não existe nada depois dela, além do recomeço da noite.
Sente as ratazanas, os piolhos nos cabelos, tudo é invisível e ameaçador, está
suja e atormentada, tem um corpo novo, cheio de dor e de vergonha. Agora,
só se aproximam dela para lhe fazer mal. Uma presença é uma ameaça.
Levará muito tempo a deixar de estremecer quando alguém se aproxima, a
deixar de ter medo de uma mão que se estende, de um olhar demasiado
seguro de si. Levará muito tempo a acalmar o instinto das presas que se
mantêm vigilantes, mesmo na alegria ou durante o sono.
Uma manhã, um dos raptores abre a porta, arrasta-a para fora, e a luz é
como uma faca. Há vozes. Há homens. Um bruaá compacto numa língua
que não é a da sua tribo. Compreende de imediato que aqueles que ali estão
não são da sua aldeia. A deceção é violenta como o sol. Sente as mãos dos
homens sobre si e abre os olhos, umas agulhas brancas que dançam e mais
nada. Um dos homens levanta-lhe as pálpebras e diz que ela está doente.
Então, o raptor agarra-lhe o queixo com a mão, força-a a abrir a boca e a
mostrar os dentes. Atiram-lhe um pau para que corra e o traga de volta. De
início ela não compreende. Não vai buscá-lo. Esbofeteiam-na e recomeçam.
Corre. O homem cospe quando ela cai. As suas pernas já não a sustentam,
está de pé sobre dois pedaços de madeira torcidos. Não compreende o que
deve fazer. Está desesperada. Não sabe o que querem. Inspecionam-na.
Toda. Isso provoca-lhe dores e não compreende por que razão querem
magoá-la sempre. Chora devido a essa incompreensão e chora de desalento.
Então, o raptor enerva-se, mostra ao mercador os músculos da rapariga, as
barrigas das pernas e os braços, e sobretudo repete que ela é bela. Djamila.
É a palavra que a designa. Djamila. Começam as lengalengas, as disputas e
os risos cheios de soberba. Os seus olhos habituam-se à luz. Vê que há
homens e mulheres atrás deles. Um pequeno grupo que espera. Não sabe o
quê. Ouve a negociação numa língua que não conhece, será que vai voltar
para a prisão? Durante um instante, tem esperança de que esses homens
tenham sido enviados pelo pai, mas depois vê dinheiro passar da mão do
homem para a do raptor. Vê as moedas nitidamente. Não quer voltar para a
prisão, car com os raptores, prefere partir com aquelas pessoas, QUER
partir com aquelas pessoas. Apura o ouvido e compreende algumas palavras
que dizem ter cerca de sete anos e chamar-se Bakhita. O raptor guarda o
dinheiro numa bolsinha e empurra-a na direção do grupo que aguarda.
Está aterrada, mas deixa a prisão. Não sabe que «Bakhita», o seu novo
nome, signi ca «a Afortunada». Desconhece que é levada por negreiros
muçulmanos. Na verdade, não sabe nada do signi cado de tudo isso.
Estão amarrados uns aos outros. Os homens à frente. Três. Correntes
em redor do pescoço, presas aos pescoços dos outros dois. As mulheres
atrás. Três. Com as correntes em redor do pescoço. Presas ao pescoço das
outras. Estão todos nus, como ela. Também há uma rapariguinha, pouco
mais velha do que ela, que não está amarrada e ao lado de quem a colocam.
Encontram-se entre dois guardas, fecham a marcha. Vê esse cortejo, os
guardas têm chicotes, espingardas, os acorrentados caminham sem se
queixar, não olharam para ela, não vão olhá-la. Durante toda a vida,
procurará o olhar dos seres maltratados pela vida, o trabalho ou os seus
senhores. Entra no mundo organizado da violência e da submissão. Tem
sete anos e, apesar do medo, está atenta. Não sabia que se podia caminhar
acorrentado e chicoteado. Não sabia que faziam isso aos homens. E não
sabe como isso se chama. Então, pergunta à rapariga como se chama aquilo.
– Chiu – responde-lhe a menina.
– Quem é? – Repete, mais baixo.
Mas a criança faz um sinal de que não compreende. Não fala o seu
dialeto. Ela aponta para aqueles adultos, muito jovens que caminham à sua
frente:
– Eles! Quem?
A pequena franze os olhos, procura compreender e, de repente,
responde:
– Abid.
Depois, aponta para ela:
– Tu: abda.
A angústia atinge-a como uma bofetada. Abda. A sua irmã. É isso. O que
lhe aconteceu. Abda, «escrava», é a pior das desgraças, abda, é Kishmet e é
ela. Subitamente, é real, isso existe à sua frente, está ali, diante dos seus
olhos. E pergunta-se pela primeira vez: «Será que Kishmet está ALI?»
Perguntar-se-á sempre.
Volta a ver-se perdida no fumo da aldeia, chamando pela mãe, que não a
ouve. Olha as jovens acorrentadas e ouve a mãe: «Diz-me o que viste!»
Agora, é a ela que a mãe ordena isso. Então, observa os corpos jovens já
curvados, as cicatrizes nas costas, os pés dilacerados, e a palavra «escravo»,
a palavra do terror, caminha diante de si. A menina ao seu lado aponta para
ela própria e diz baixinho: «Binah. Bi-nah.» Em seguida, aponta para ela e
faz-lhe uma pergunta que não compreende, mas que adivinha. Quer
responder-lhe, porém não sabe como. Há muito que não lhe falam e todas
as línguas são agora línguas estrangeiras. Hesita. Olha para os escravos.
Depois, passa os dedos sobre os olhos molhados, limpa o ranho com o
braço sujo e, apontando para si, diz pela primeira vez: «Bakhita.»
Compreende que, desde que foi raptada, não fez uma viagem pequena,
caminhou muito e já nem sequer tenta ter pontos de referência: as colinas,
as montanhas, as dunas, as planícies e as orestas. Não pode memorizar
tudo isso. É o mundo, descobre-o, os dialetos mudam, tal como as
paisagens, a forma das cubatas, os animais nos cercados e os que estão nas
planícies, os rostos dos homens e das mulheres, as marcas no corpo, o negro
da sua pele, alguns estão tatuados, outros estão escari cados, nunca viu isso
antes. É belo e assustador. Alguns são grandes e esguios como troncos,
outros pequenos como crianças velhas e todos estão habituados às
caravanas que passam. A sua aldeia encontra-se na rota dos escravos, que
vão de zériba em zériba, esses centros espalhados por toda a região onde se
reúnem, guardam e se selecionam, para os mercadores a que pertencem, o
mar m e os cativos. Mais tarde, serão encaminhados para os grandes
mercados. Nessas aldeias que atravessam, por vezes realizam-se negócios de
improviso. Os que não têm um escravo para vender vendem alguém que
roubaram ou então um membro da família. Bakhita viu isso uma vez,
naquela aldeia despovoada pela fome, aquele jovem famélico que propusera
uma rapariguinha, des gurada pela magreza. Os guardas tinham cuspido
para o chão, por quem os tomava? Haviam dado uma chicotada à pequena e
ela caíra imediatamente, sendo a prova de que não valia nada. Bakhita não
compreendera que era a irmã do rapaz, fora Binah que lhe explicara e que
insistira em que acreditasse nela. Bakhita tapa os ouvidos. Por vezes, o
conhecimento do mundo é uma grande fadiga. E depois, no momento
seguinte, é o contrário. Quer ver tudo e ouvir tudo. Mesmo o que não
compreende. Quer reter as palavras árabes, reter o que vê, o que a fome e a
miséria fazem aos homens. Vê o medo de onde nasce a cólera e o desespero
de onde surge o ódio. Recebe tudo isso sem poder dar-lhe um nome. O
espetáculo da humanidade. Essa batalha que os dilacera a todos.
Taweisha, esse posto central onde chegam por m, após trinta dias de
marcha, é a última cidade fronteiriça entre o Darfur e o Cordofão. É para
esta zériba que os caçadores de escravos conduzem os cativos que não
levarão à costa. É a cidade de todos os trá cos e do contrabando. Trá co de
eunucos. Trá co de escravos, trocados ou vendidos aos intermediários.
Contrabando de mar m, de chumbo, de mercadorias, de espelhos, de
perfumes; as grandes e pequenas caravanas encontram-se ali, grandes
mercadores ou pequenos bandidos, ali tudo se avalia, calcula e amoeda.
Cubatas de palha e cubatas de pedra estão agarradas à colina e é lá que
as pessoas moram. Aos escravos estão reservadas grandes cubatas sem
janelas. Quando chega a Taweisha, Bakhita ignora que integra a
organização implacável da escravatura. A sua caravana é inspecionada
imediatamente por dois faroucs, negros como o ébano, negros como ela,
negros como os seus raptores, mas também eles escravos. São os
responsáveis pelo acampamento, os militares sem os quais não se pode fazer
nada. São invejados e protegidos, em Taweisha possuem quintas, têm
mulheres, lhos, também têm escravos, rapazes muito pequenos que foram
raptados ou se ofereceram como voluntários para os servir e cuja gratidão é
imensa. São crianças-soldados salvas da miséria. Os faroucs falam com os
guardas, conhecem-se bem, é uma questão de con ança, de organização e
de hierarquia. Alguns habitantes descem a colina e também eles vêm vê-los,
dizendo coisas numa língua que Bakhita não compreende; há crianças que
os olham sem espanto porque está sempre a acontecer, já que os escravos
têm de ser separados antes de partirem para o grande mercado. E, depois,
faz-se silêncio. De repente, os corpos endireitam-se, depois inclinam-se: o
sacerdote muçulmano, o alfaqui, acabou de chegar. Bakhita deveria baixar
os olhos, mas não o faz, é atraída de súbito por um bebé muito pequeno que
dorme nos braços da mãe, habitante de Taweisha. Tem vontade de tocar nos
pés desse bebé. Mentalmente, sai da leira dos escravos, abandona o
sórdido e dirige-se para a vida mais frágil, mais nova. Mal repara no alfaqui,
venerado e temido, todo vestido de negro, com a longa barba a utuar sobre
o peito, que vem procurar os rapazinhos. Há, nas leiras dos escravos,
gritos e choros, chicotadas e súplicas, o medo circula como um sopro.
Bakhita absorve-se na contemplação dos pés daquele bebé, tão pequenos.
Esquecera como é belo um pé com os dedos minúsculos e as unhas quase
transparentes, as pregas, a curvatura, a pele na, esquecera esse pé de
criança, esse pé que nunca andou. O alfaqui continua a fazer a sua escolha,
sabe que, dos vinte rapazinhos que selecionar nesse dia, só dois
sobreviverão à emasculação. A raridade, precisamente, dita o preço, e nada
rende mais do que um eunuco. O ar está carregado, a brisa levanta a terra
seca com uma preguiça pesada. Bakhita estende a mão para os pés do bebé,
a mãe recua gritando, um guarda bate na rapariga com um chicote, há um
silêncio antes de ela chorar e o bebé chora, por sua vez, despertado pelo
grito da mãe. Bakhita não chora apenas por causa do chicote, essa surpresa
ardente: chora os bebés da sua aldeia, o de Kishmet e o que ela foi e que
desapareceu. É uma angústia sem consolo. A mãe e a criança afastam-se. Os
vinte rapazinhos seguem o alfaqui, ele próprio os vai emascular, uma
exceção de que se orgulha porque são os judeus que costumam ser
encarregados de fazer esta operação que nenhum muçulmano deve praticar,
mas os eunucos são raros e os alfaquis do Darfur põem a mão na massa. O
Darfur, no oeste do Sudão, é o novo local do trá co, um local de asilo para
todos os malfeitores, a violência na violência, o inumano no humano.
Bakhita soluça e, através das lágrimas que lhe queimam os olhos cheios
de pó, vê uma jovem escrava arrepelar os cabelos, gritando. Binah explica:
«O seu irmãozinho. Irmão. Dela.» Mostra a Bakhita a la dos rapazinhos
que seguem o sacerdote. Não estão acorrentados, dão as mãos e avançam
calmamente, pois o alfaqui disse-lhes que os escolhia para um grande
destino, uma vida de eleito. Eles não compreendem árabe. No entanto,
avançam sensatamente, porque viram os castigos que são dados aos que
desobedecem e, então, mantêm-se muito ajuizados. Um deles, durante um
breve instante, vira-se para a rapariga que enlouqueceu. É um simples olhar
de uma ternura longínqua.
Quando o ruído dos ferros, dos chicotes e das ordens se afastou, quando
já só se ouviam os latidos dos cães que os seguiam e, depois, os latidos dos
que regressavam, não caram muitos na zériba e entre esses estão ela e
Binah. Juntas, mais uma vez, talvez apenas por um dia ou dois, mas juntas.
Talvez houvesse demasiadas crianças na caravana que acabou de partir, é
complicado, essa mercadoria preciosa que abranda a marcha das
expedições. São postas de lado para outro comboio. É uma surpresa
incrível, o que lhes acontece é o acaso e a alegria, a vontade de gritar e bater
palmas, a vontade de saltar sem sair do sítio, de se lançarem nos braços uma
da outra e sentirem contra o corpo, o seu corpo magro, os ossos de menina,
o odor de humidade, urina e pó, o odor a velho que não combina com a
força desta felicidade furtiva. Claro que não o fazem. Correm o risco de se
ligarem uma à outra, mas sem sinal exterior de ligação, sem um excesso de
humanidade.
Colhem uns frutos que não sabem muito bem abrir e cujo nome não
conhecem. O mundo acolhe-as e alimenta-as, é algo de que se lembra, do
tempo sem ameaças. A impaciência de encontrarem as suas mães impele-as
de novo e, ao m de duas horas de marcha, saem da oresta e chegam à
grande planície. É uma paisagem ampla, nova; têm vontade de correr por
essa planície, mas está coberta de pequenas bossas, dir-se-ia que a terra
ferveu e conservou as suas queimaduras, milhares de bolhas. Caminhar é
difícil e, muito em breve, doloroso. Também há aqueles arbustos cheios de
espinhos que o vento empurra na direção delas, perpassam pelas suas
pernas e arranham-nas. Não podem fazer nada para se defenderem e
caminham, apesar de tudo, caminham e o Sol está alto, o céu ardente desce
até elas. É o caminho para reencontrarem as mães, é preciso segui-lo e falar-
lhes a cada momento, acalmar-lhes a inquietação. Bakhita conta à sua o que
viu, o que lhe zeram, e a mãe perdoa-lhe. Esse perdão anima-a, e todo esse
dia de espinhos e de calor, atravessa-o para ela.
Binah também o ouve. O grito daquele que é mais pequeno do que ela.
As duas têm a idade das irmãs mais velhas, a idade das mãezinhas nas suas
aldeias. Aquele bebé é mais frágil do que elas. Então, Binah assoa-se com os
dedos, toma a decisão de não chorar mais. O bebé continua a gritar e Binah
mostra que pode manter-se direita como uma adulta. Respira com
di culdade, a dor da boca irradia-lhe para todo o rosto, mas aquele bebé
lembra-lhe a ordem. Ele, o recém-chegado, faz parte da caravana, então
elas, aos sete anos, também devem ir nela.
São compradas juntas, Binah e ela. Uma vez mais. E uma vez mais, sem
as correntes, caminham entre os guardas. Vão. Continuam. Não largo a tua
mão.
Com a caravana, caminham sobre a terra do Sudão aberta sob o céu
imenso e manchada pelas trocas e o trá co. Caminham e Bakhita
compreende que o tempo da fuga é um tempo perdido, o mundo dos
escravos é o seu, mas há sempre, para a manter viva, uma esperança. Talvez
passem pela sua aldeia. Talvez encontrem Kishmet. Não passarão a vida nos
caminhos, um dia a marcha terminará, um dia haverá outra coisa que não
pode ser pior: o pior já foi vivido. Bakhita segue o caminho longo, sinuoso,
perigoso, como os desenhos das serpentes que o irmão traçava para lhe
meter medo, e decide que nunca mais as temerá. A que a fez gritar na noite
em que o pastor as capturou foi a última. Nunca mais ter medo da serpente
é como vencer a serpente. E esta solução, estranhamente, sossega-a. Está
espantada com ela; gostaria de a partilhar com Binah, mas falar é proibido
e, de qualquer modo, falta-lhes a força para o fazerem. Tudo está
concentrado na marcha e na coragem necessária para a realizar. Porém, essa
vontade de viver que a invade ali, naquele cativeiro em que é menos
considerada do que um burro, é como uma promessa que faz a si mesma:
quer viver. Esse pensamento é seu. Ninguém pode tirar-lho. Viu os escravos
abandonados aos abutres e às hienas. Viu os escravos invendáveis e os
vendidos ao desbarato aos miseráveis. Não sabe se vale dinheiro – uma
cabra, quatro galinhas, sal, alguidares de cobre, colares, tangas, uma dívida,
um imposto –, não compreende pelo que a trocam, mas sabe uma coisa:
não quer morrer abandonada à beira da estrada. Então, obedece. Marcha.
Concentra-se no esforço. Está com Binah, salva do redil e do pastor.
Marcha. E tem uma amiga. Uma outra vida a que tem tanto apego como à
sua.
Todavia, há esse bebé, sempre. Esse bebé que chora. A mãe dele não está
acorrentada. É muito nova e aquele é o primeiro lho. Teve tanto medo
quando o fogo começou na palhota onde vivia que o seu leite já não corre. É
o que Bakhita compreende no rumor partilhado na caravana. Os negreiros
incendiaram-lhe a aldeia. Como a de Bakhita. Porque é a mesma história
por todo o lado: uma repetição da violência, o fogo das espingardas e dos
archotes, o fogo que consome as cubatas e as pessoas dentro delas, o fogo
que devora o gado, as árvores e os campos, o fogo que corre mais depressa
do que a vida.
Ao m de um momento, o bebé que chora impede Bakhita de respirar.
Já não consegue caminhar sem perder o equilíbrio. Não é a única. Esse bebé
no meio de todas aquelas correntes, gritos, pancadas, de todo aquele
tumulto: não se ouve mais nada além dele. A mamã agarra-o contra si.
Tenta embalá-lo, mas treme tanto que salta no mesmo sítio e, abanando o
bebé, comprime os seios, tentando extrair leite; o bebé apanha-lhe os
mamilos, lambe-os, gritando, e depois recomeça, a sua boca torce-se, bate
com a cabeça no peito da mãe, agarra o mamilo e o choro recomeça de
imediato. O guarda mais próximo, um homem pequeno, compacto como
um bloco de pedra, chicoteia a mãe para que aquilo pare: «Fá-lo calar! Fá-lo
calar!», grita. É jovem, mas tem idade para ter lhos, talvez os tenha. E está
realmente incomodado com os gritos do bebé. Ou talvez, diz Bakhita para
si própria, talvez tenha medo dele. Parece-lhe que vê, na crueldade deste
homem, o medo.
O bebé chora mais alto. Bakhita tenta falar-lhe, na sua cabeça, envia-lhe
algum reconforto, palavras gentis e loucas. O sol martela com tanta força
que o ar treme, está tudo desfocado, como se já tivesse desaparecido. O
chefe aproxima-se. Diz que vai fazê-lo calar. Ao seu imbecil. Ao seu
atrasado mental. Quanto a ela, não grita quando ele lho arranca dos braços.
Não grita, abre a boca e o esgar cobre-lhe todo o rosto, como uma
máscara de guerra. Onde encontra a força para se lançar sobre o chefe e
recuperar o lho? É tão jovem e tão magra, nunca se poderia pensar que
tivesse tanta força, o seu grito é mais forte do que ela e os punhos tão
violentos no rosto do chefe da caravana. Mas forte claro que ela não é não
consegue recuperar o lho. Tenta apanhá-lo, saltita e atira-se, o chefe recua,
rindo. Segura a criança por um pé e fá-la girar no ar como uma corda para
apanhar um animal. O bebé vomita e, depois, o homem bate com ele numa
pedra. O bebé tem uma convulsão. Os seus olhos sangram e treme como
um peixe retirado de um rio. Um escravo cai de joelhos e ela reza,
soluçando. Outros gritam olhando para o céu.
Bakhita foi lançada para ali, com o alívio de ter chegado e a angústia de
fazer parte daquela barafunda. Tem sede. Todos têm sede. Estão esgotados e
doentes e perguntam-se o que vai acontecer. Acorrentam-nos, esperam
durante horas ao sol sem saberem o que esperam. Os seus guardas foram
restabelecer-se, conversar com os faroucs e apresentar-se ao alfaqui,
organiza-se a estada. Ao m de algumas horas, trazem-lhes de beber e,
embora saibam que não se trata de um ato de humanidade, mas de
precaução para não perderem a mercadoria, muitos agradecem. Homens
solitários passam à sua frente e observam-nos, avaliam com o olhar os
recém-chegados. Um deles, espadaúdo, enrugado, com o ventre enorme a
abaular-se sob a galibieh, aproxima-se de Bakhita, alisando o bigode. Ela
recua um pouco, mas ele desvia-se rapidamente dela, atraído por dois
rapazinhos que adormeceram um contra o outro e que contempla durante
um instante, em silêncio. Em seguida, recuando e continuando,
simplesmente, a alisar o bigode, afasta-se.
Está desorientada. Segura a mão de Binah, que a leva com ela, juntam-se
ao grupo das mulheres saudáveis. Vão limpá-las com grandes baldes de
água, alimentá-las, deixá-las recuperar as forças; o segundo grupo, o dos
doentes, será tratado, antes de ser vendido ao desbarato a alguns beduínos;
o terceiro grupo, o dos demasiado velhos e fracos, é atirado para uma fossa.
Neste último grupo, encontra-se o jovem irado com o olhar que queima.
Bakhita não compreende logo o que isso signi ca. Que vão fazer com
aquele homem? Porque comprou as duas? Para onde as leva? Não existe
nenhuma resposta, é uma situação desconhecida e diz para si que Binah
tem razão. Estão juntas e não é preciso pensar em mais nada. Furtivamente,
passa uma mão pelas costas da amiga. As costas diminutas encolhem-se sob
o efeito da surpresa e Binah sorri. E depois solta um soluço, breve, ruidoso.
Bakhita olha-a e ama-a. Sabe que é um perigo, mas ama-a verdadeiramente.
Olha para o céu e agradece ao pássaro, que agora paira lá tão alto, absorvido
pela noite.
Agarradas por um guarda, saem do mercado, deixam os souks. Há
quanto tempo não caminhavam fora de uma caravana? O espaço é
diferente, quase utuam neste espaço ralo. É uma outra vida que começa e
Bakhita pergunta-se se, nesta vida, a irmã a espera. Treme devido à
esperança que surge.
Binah está tão assustada que se sentou num canto da divisão, de cabeça
baixa. Não quer ver ninguém e, sobretudo, que ninguém lhe toque
pensando reencontrar a querida lha. Bakhita vai ter com ela e a pequena
pousa a cabeça nos seus joelhos. Bakhita acaricia-lhe lentamente os cabelos
e pensa noutras coisas. Pensa que Kishmet está nesta cidade. Sabe-o, sente-o
até ao fundo do ventre, não há perguntas a fazer, nenhuma dúvida, é uma
evidência. A presença da irmã mais velha dá um sentido à presença dela
aqui, na casa dos seus primeiros senhores. Todo este caminho foi para se
reaproximar de Kishmet. Nada foi inútil nem fruto do acaso. Caminhou
bem, obedeceu bem e chegou ao local certo. Vai reencontrar a irmã e
regressar a Olgossa com ela. Binah adormeceu encostada a si. Ergue-a
muito suavemente e deita-a sobre a esteira que uma mulher lhes trouxe.
Estende-se na sua, fecha os olhos e canta dentro de si «Quando as crianças
nasciam da leoa», as palavras e o ritmo da sua língua materna para não a
esquecer e se manter afastada, o mais possível, do que viu esta noite e do
que compreendeu: Samir, o seu rosto furioso, Samir, contra quem Sorahia a
empurrou. Djamila. A beleza, essa maldição.
Bakhita cou três anos ao serviço das senhorinhas. Após as violências
físicas, as marchas, a reclusão, a sede e a fome, quase teria agradecido por
viver no harém. Era um mundo fechado, povoado por senhoras e escravas,
todas viviam juntas e todas eram cativas. Nenhuma senhora devia ser vista
por um homem, nenhuma saía sozinha e nunca depois do pôr do Sol. As
esposas aceitavam a poligamia, as concubinas, os outros lhos e umm
walad, essas «mães do lho», escravas desposadas e engravidadas pelo seu
marido e que se haviam tornado semilivres semiescravas. A vida era um
carnaval de máscaras enganadoras, de alegria arti cial, uma festa suscetível
de ser interrompida muito rapidamente.
Bakhita fazia o melhor que podia. Queria que cassem com ela. Que
cassem com ela por estarem contentes com ela. Porque gostavam da sua
presença. Mas nunca tomou isso como amor. Sabia o que era o amor,
recebera-o dos pais, era um reconhecimento, uma partilha e uma força. O
amor das senhoras por si era um capricho. Vivia na intranquilidade e na
submissão. O projeto de reencontro e evasão com Kishmet era um remédio
para o desespero, um objetivo secreto. Algo no fundo de si que a tornava
única.
Bakhita tem quase dez anos. A vida no harém vai chegar ao m, mas ela
ainda não o sabe. Uma noite, Samir chama-a e as senhorinhas dão-lhe
autorização para ir ter com ele. Pousa o grande leque e dirige-se para a
divisão onde a espera.
Samir diz-lhe que se aproxime. Pelo tom de voz, pensa que vai bater-lhe
por causa de um disparate que fez, não sabe qual, mas haverá um,
certamente, há sempre. Lança-se aos seus pés, prosterna-se e diz «Asfa.»
Perdão. Por favor, não me bata. «Asfa.» Isso fá-lo rir. Repele-a com um
pontapé e Bakhita cai. Manda-a levantar-se, ela levanta-se e sente-lhe o
odor de fruto acre e animal morto. Começa a chorar baixinho. Ele
esbofeteia-a para que pare de chorar ou para que chore mais alto, não sabe.
Esbofeteia-a para a despertar ou para a entorpecer. Esbofeteia-a por hábito.
Os dentes entrechocam-se, as têmporas doem-lhe, mantém a cabeça baixa,
como deve ser, e vê desenharem-se no tapete, vermelhas e amarelas, aves e
luas, acha estranho que sejam luas e não sóis. Recebe as bofetadas e tenta
pensar nisso: porquê luas e não sóis? A respiração de Samir aproxima-se, ela
recua, então a bofetada é tão forte que cai sobre o tapete, as aves e as luas.
Ele diz-lhe aos gritos que é uma idiota e cai sobre Bakhita. Agarra-lhe a
cabeça com a mão e bate-a contra o chão, como se quisesse fazê-la explodir,
abri-la ao meio. Está em cima dela, como uma montanha, com as pedras e
as serpentes nas pedras, inundado de ódio, quer matá-la.
O que se passa em seguida, o saque, ser agredida por dentro e por fora, é
algo que já conhece, é o abismo sem m, sem socorro, a alma e o corpo
presos e esmagados juntos. O crime de que não se morre.
Ela pensa que suja o tapete, porque caiu uma vez mais e sangra de
diversos lugares. Pensa que o jovem senhor vai partir a chibata, as mãos e os
pés à força de lhe bater. Pensa que a casa vai desmoronar-se sob os seus
gritos. Pensa que o corpo vai abrir-se ao meio. Pensa que tudo acabou.
Pensa também que quer viver. Arrasta-se para sair da divisão. O senhor
segue-a enchendo-a de pontapés como se a impelisse. Ela refugia-se no
quarto das senhorinhas. Sorahia e Radia estão deitadas nos seus colchões
no chão, comem, devido ao tédio passam o dia a comer, cospem a pele das
uvas, os caroços das tâmaras, Bakhita refugia-se atrás delas, pede-lhes
ajuda. «Ainadja… Ainadja…» Samir continua a bater-lhe. Elas continuam a
comer.
Agora, Bakhita é um brinquedo quebrado e impuro. Logo, vai ser
expulsa. Mais tarde, quando lhe perguntarem porquê, o que se passara
exatamente, dirá: «Parti um vaso.» A uma pessoa, uma única, dirá a
verdade. Uma única que guardará para si o relato da ofensa.
Depois das pancadas de Samir, levam-na para o edifício das escravas,
onde ca um mês inteiro deitada numa esteira, a tentar sobreviver.
Ninguém a trata nem lhe fala. Pousam, em silêncio, comida e água a seu
lado, sem se preocuparem se ela lhes toca ou não. Chama Binah, que não
vem. Quando abre os olhos, não a vê. Nunca sente a mão dela na sua. Já não
ouve a voz da amiga. Quando retoma a consciência, dizem-lhe apenas que o
senhor tinha uma dívida de jogo.
É Hawa, uma escrava Dinka um pouco mais velha do que ela, com
apenas doze anos, que forma Bakhita, que lhe ensina como se ocupar da
senhora sem nunca lhe tocar, de manhã tirar-lhe as camisas de noite, a blusa
e as cuecas de dormir, desatar o cordão, atar o cinto dourado, vestir a
galibieh de percal, fazer com que caia perfeitamente, retirar o lenço da noite
para pentear e entrançar os longos cabelos antes de os esconder sob um
lenço de gaze, e sempre sem lhe tocar, pôr-lhe os brincos de diamantes, os
enormes anéis, o colar de pérolas. À noite, fazer a mesma coisa, ao invés.
Bakhita ajuda-a a tirar o vestido, e envergar uma longa samarra branca
sobre as cuecas de pano, sem lhe tocar nas ancas ata-as com um cordão de
cânhamo e quando a senhora lhe pede para o apertar com mais força, sabe
que ela faz durar a prova, a enriquece com algumas variantes bastante
repetitivas e esperadas. Bakhita, em bicos de pés, veste-lhe em seguida uma
blusa e depois duas ou três camisas sobrepostas. Põe-lhe o lenço da noite
em redor da cabeça e deixa que as tranças caiam pelas costas. Sem nunca lhe
tocar.
É nesta casa que Bakhita cresce. Fala com as outras, que não falam com
ninguém, e tem medo de crescer como aqueles escravos esgotados,
esfomeados, cujo olhar não exprime qualquer desejo, nem o de viver, nem o
de morrer.
Aos doze anos, com aquela grilheta presa ao pé, Bakhita balançava e
ofegava como uma velha. Ouviam-na e viam-na ao longe e se alguns
escravos baixavam os olhos quando se aproximava, outros pediam-lhe que
zesse menos barulho. Quando lhe retiraram a corrente durante alguns dias
de indulgência dedicados às festas de Alá, coxeava como se a corrente
faltasse ao seu equilíbrio, como se uma parte do corpo tivesse necessidade
daquele peso para não cair. Quando as festas de Alá terminaram e lha
tornaram a pôr, sentiu que a fechavam em si mesma. Era a sua própria
prisão, isolada de tudo, obstruída e obstrutora, e a sua presença
incomodava, porque lembrava a todos o martírio que queriam esquecer, as
longas marchas em que seguiam acorrentados e que os haviam trazido para
aquele inferno. Tinha o tornozelo inchado, com crostas e in amado. Então
começou a falar-lhe à noite, na sua esteira, acariciava-o como se fosse um
animalzinho, consolava a parte castigada e torturada, porque aquilo não
podia durar, não queria coxear, ser inútil. Um escravo inútil é um escravo
que se alimenta para nada e de quem se livram. Por vezes, Hawa conseguia
roubar raízes de gengibre que Bakhita roía, cuspia e aplicava sobre o
tornozelo. A in amação acalmava-se um pouco. Bakhita revia a avó, que
triturava as ervas e curava todos. Tentava lembrar-se, mas não se lembrava:
quais eram essas ervas que cresciam na sua aldeia, qual era o nome das
ores, o nome das plantas? Não sabia, mas teria sabido alguma vez? O que
guardara da vida de menina? O que é que nela ainda era de uma Dajou do
Darfur? Há quantos anos era escrava? O tempo passava sem pontos de
referência. Tentava contar as festas de Alá, as estações das chuvas, mas, na
maior parte das vezes, era confuso e desencorajador. Não queria ser
desencorajada. Não queria continuar acorrentada. Não queria crescer na
casa do general turco. Trazer no ventre, um dia, os lhos do seu senhor, tal
como as outras, que ele lhos tirasse. Não sabia orientar-se no tempo,
contudo, o tempo passava mesmo assim e arrastava-a no seu movimento.
Os medos que tinha eram abismos. Para os esquecer, inclinava-se sobre o
tornozelo de velha, falava-lhe, tratava-o e, sem o saber, nesse cuidado
encontrava uma maneira de sobreviver.
Tem treze anos mais ou menos, é uma jovem com seios mutilados e
sinais aterradores de que a maternidade é possível. Tem medo de que isso
também se veja, de que o senhor, a quem nada escapa, o saiba. Tudo o que
emana dela lhe parece condenável, o que é, o que faz, e inclusive o que vê e
o que ouve. Nunca está no local certo e tudo a condena.
É assim que, uma manhã, a mulher do general acorda com uma nova
ideia. Está radiante com ela. Essa ideia já não pode esperar. «Tão belas! São
tão belas!» Djamila! Güzel! Olha para três das suas escravas e chama-as,
gritando como se tivesse esquecido uma coisa que, no entanto, está ali,
debaixo do seu nariz. «Güzel!!!», grita à sogra, a quem mostra aquelas três
negras: Bakhita, Hawa e uma outra escrava, tão jovem, tem seis anos no
máximo, e chegou há tão pouco tempo que o senhor ainda não lhe deu um
nome próprio, mas a quem chamam Yebit, «Aquela que não merece nome».
Não parece compreender o que se passa, o que faz ali, na parte das
mulheres, onde estende desajeitadamente a bandeja das abluções e as
alcarrazas, onde estende os mosquiteiros em redor das camas, traz a
lamparina, os cigarros, o cinzeiro, e os seus grandes olhos espantados que se
esquece de baixar procuram um assentimento, não encontrando nada. O
senhor trouxe-a do mercado, numa noite, com mais três rapariguinhas que
participaram nas festas dos homens. A pequena Yebit não fala árabe nem
turco. Bakhita não sabe de onde vem. Nada na sua atitude permite
compreender a história dela. Não se queixa, mantém os grandes olhos
negros abertos como duas eternas perguntas e parece esperar qualquer
coisa que não vem.
Querem ter orgulho nelas. Querem mostrar às amigas que elas são belas
e lhes pertencem, com sinais que o digam, desenhos, marcas, como uma
bandeira ou um brasão. Não gostam da nova moda. Agora, algumas vestem
as escravas. Pensam que uma escrava vestida é tão ridícula como um
macaco de chinelas. Não. Elas, as suas escravas, serão admiradas nuas. E é a
sua pele que vão vestir. É a pele de negras que vai mostrar a todos a riqueza
dos seus senhores.
Começam por levá-las para uma divisão. Uma divisão que não
conhecem. Escura, com tecidos muito pesados nas janelas, que escondem o
dia e mostram a poeira. Bakhita olha esse pó durante todo o tempo que
demora. E demora muito. A tatuadora que mandaram vir e que é a melhor
trouxe folhas com desenhos que mostra às senhoras. Perante os olhos
baixos de Bakhita, a poeira é como uma areia imóvel, cinzenta e pesada. As
senhoras examinam os desenhos para escolher aqueles que a tatuadora irá
fazer e hesitam. Há muito por onde escolher. E são tão belos. Güzel.
Djamila. Realmente muito belos. Bakhita ainda não compreende de que
natureza se reveste o perigo, mas o tantã volta a vibrar em todo o lado
dentro de si, e o ruído desse tantã é tão poderoso como a poeira é
indiferente. A pequena Yebit, habitualmente tão doce e plácida, de uma
con ança submissa, geme baixinho. Bakhita a ora-lhe os dedos, a pequena
agarra-os com toda a força de que é capaz, as unhas da pequena são moles
como o bico de um passarinho, os dedos estão molhados de medo. Bakhita
sabe que ela chama pela mãe, então aperta com força aqueles dedinhos que
ainda não foram dani cados pela escravidão, os seus dedos tão jovens que
sabem tão poucas coisas. E então Bakhita compreende o que vão fazer-lhes.
As duas mulheres acabam por chegar a acordo quanto aos motivos que a
tatuadora desenhará nelas. Vai car muito bem! E depois, subitamente, já
não estão de acordo. O tom sobe, as injúrias chovem. Bakhita e Hawa
temem o gongo e, de uma forma confusa, têm a impressão de que a culpa
dessas disputas, dessa indecisão, é sua. Falam delas. É culpa sua. Agora, a
pequena chora e o rosto banhado de lágrimas ergue-se para Bakhita, que
lhe sorri e, com a mão dela sempre na sua, baloiça um pouco o braço da
frente para trás, como um jogo. Desejaria embalá-la toda, puxá-la para si e
pousar-lhe o rosto no pescoço para que não veja nem oiça mais nada, para
que respire apenas o odor da sua pele… A angústia regressa. Bakhita
pergunta-se onde, em que parte dos seus corpos a tatuadora vai desenhar. É
esse precisamente o tema daquela discussão impossível de acalmar. As duas
mulheres mandam chamar o general. Quem defenderá ele? A mulher ou a
mãe? Qual das duas ganhará? Em breve se ouve o ruído das botas, o passo
viril e furioso.
Continuam. Todos. Poderiam, uma vez que já não lhes batem, revoltar-
se, amotinar-se, vingar-se, fugir. Mas não sabem o que se passa. As guerras
entre milícias existem desde sempre, os exércitos defrontam-se, os homens
são capturados, as aldeias e os cercados atacados, nasceram no coração
dessa violência. E sobretudo têm fome. Têm medo. Não têm nenhum lugar
para onde ir. Falam mal o árabe. Estão seminus e completamente
quebrados. Ainda se guardam um pouco uns aos outros, têm medo de se
perder. Trabalham menos bem. Acontece a Bakhita tocar na senhora ao
penteá-la e, quando recua à espera das pancadas, o que ouve é o ruído dos
objetos atirados ao chão. A senhora descarrega a raiva em tudo o que a
rodeia, menos nela, mas as palavras que grita são para ela. E essas palavras
estão cheias de cólera. Bakhita pensa que alguém lançou um feitiço àquela
mulher, porque tamanha cólera contra a sua escrava é uma montanha que
tenta escalar sem nunca conseguir. Tem correntes invisíveis, mas Bakhita
vê-as.
É assim, por meio desse corpo restituído, que não voltará a ser sovado
nem cobiçado, que encontra lentamente o mundo dos humanos. Tem algo
seu, e é ela. Pertence ao senhor, mas uma pequena parte da sua vida está
protegida. Sabe que isso pode acabar de um dia para o outro, por uma razão
que não compreenderá, uma decisão que não lhe explicarão, um adeus a
que não terá direito. Está vestida e penteada, usa pulseiras, pérolas nos
cabelos. É doce e frágil.
Inicialmente, claro, pensa que a Itália não é para ela. É uma palavra para
os outros, aqueles que têm a pele branca como um frango depenado,
aqueles que sonham e se gabam da sua felicidade. Está habituada ao
nervosismo e à impaciência dos senhores, e sabe que Anna tem razão: o
padrone vai partir de novo. Ele previra isso, queria que ela regressasse à sua
terra, que não mendigasse nas ruelas doentias de Cartum. Todavia, como
ela é ignorante, incapaz de dizer o nome dos seus, sabe o que lhe acontecerá
quando o cônsul partir. Numa ruela ou num palácio, sabe o que quererão
dela. Regressará ao lugar de onde veio, à violência e à vergonha. E é sem
premeditação que, um dia, decide: nunca mais lhe tirarão a túnica branca.
Nunca mais. Está no lavadouro, lava os lençóis e as toalhas de mesa, esses
tecidos de algodão pesados de que os italianos gostam, a água está gelada e
ela observa as próprias mãos a esfregar, esfregar, esfregar. O movimento
arrasta-a, é como um cântico agora, ao ritmo dos seus pensamentos. E,
bruscamente, endireita-se, derruba o alguidar das cinzas, seca mais ou
menos as mãos no avental e corre até ao escritório do padrone. Prosterna-se
a seus pés. Ele não gosta disso, mas ela fá-lo porque não teria a audácia de
lhe suplicar de pé, olhando-o de frente.
– Leve-me… Padrone…
Ele nem sequer compreende, pensa que Bakhita quer voltar à aldeia.
Acha-a um pouco estúpida porque fala mal a sua língua e porque, apesar da
sua bondade, considera aqueles negros uns simples animais submetidos. E
gosta de animais. Tem horror a que se prosternem a seus pés. É algo físico,
visceral, não o suporta. Obriga-a a erguer-se e diz-lhe que já não tem tempo
para procurar a aldeia onde nasceu, pois prepara a partida, o regresso a
Itália. Ela está de pé, diante dele, e repete sem o olhar:
– Leve-me, Padrone.
Gosta muito dela, mas excetuando um rapazinho muito jovem que
prometeu oferecer a uns amigos queridos, não vai sobrecarregar-se com
outro escravo. Até Anna vai esperar que ele lhe envie o dinheiro para o
regresso. Já começou a vender os seus últimos escravos a proprietários
particulares ou a alforriá-los e, além dessas discussões de preços, passa os
dias entre o telégrafo, os jornais, as reuniões e as bagagens. Com aquela
amargura de partir vencido. Pede a Bakhita que lhe traga um café.
Está dominada por esse desejo de deixar o Sudão. Tenta trabalhar ainda
melhor, crê que o padrone vai ver isso, a maneira como limpa os soalhos,
como lhe engraxa os sapatos, passa a ferro as toalhas de mesa, mas muito
em breve dá-se conta de que ele se não apercebe de nada. Tem pressa. Sabe
o que se passa dentro dele. É um homem que já não vê nada ao seu redor.
Prepara a viagem e não pensa em mais nada. Partirá para Suakin de camelo,
serão vários dias de viagem no deserto e, depois, para atravessar os mares,
tomará um enorme barco a vapor, o aliado tão precioso dos mercadores de
escravos, esses seres sem importância. Bakhita pensa que tem importância.
A terra e o céu disseram-lho. Numa noite em que está deitada no edifício
dos escravos, a Lua encontra-se tão cheia, tão resplandecente, que alumia a
esteira onde está deitada. Estende as mãos para aquele clarão de luz que é
belo como uma surpresa, como uma exceção, e todos dormem em seu
redor. Está sozinha com aquele luar que a despertou e, quando a manhã
chega, carregada de nuvens, é estranho ver como está mais escuro do que de
noite. Pensa nisso, durante o dia de trabalho, no que viu e que os outros não
viram. Ajuda a transportar as malas, a fazer as bagagens, e ouve as
blaterações pesadas dos camelos que o padrone acabou de comprar. Ouve-o
falar com o cameleiro, não compreende o que diz, fala um árabe
incompreensível… Sai de casa e vai até ao pátio. Não se prosterna. Não pede
perdão. Mal baixa os olhos. Ousa ser uma escrava de pé entre dois homens:
o cameleiro e o senhor. Com o seu italiano desajeitado, explica ao senhor
que é preciso pear os camelos todas as noites, que nunca se deve deixar um
animal livre durante a noite. E acrescenta:
– Já viajei com os camelos. Posso ajudar. Leve-me, Padrone.
– Agora julgas-te indispensável?
– Podem morrer os camelos, sabe, Padrone? Caem e morrem. Julga que
a água não é precisa. Mas eles caem e morrem.
– Ocupar-me-ei dos camelos, não te preocupes.
Sente o rosto arder sob a emoção, o corpo treme com um vigor contido.
– Leve-me, Padrone.
– Mas que farias tu, minha pobre Bakhita, em Suakin? Sabes o que é
Suakin?
– Leve-me para a sua terra, Padrone, para Itália.
Ele começa a rir. Faz-lhe sinal para se ir embora e volta-se para o
cameleiro, com os olhos erguidos ao céu, em sinal de clemência. Poderia
ter-se indignado com a audácia dela, mas não o fez. É um homem bom.
Bakhita suplicará três vezes. Acolhe dentro de si a mão quente e
luminosa que a salvou na noite da evasão com Binah, e compreende que é
exatamente a mesma situação, que tem de fugir, tem de correr sem olhar
para trás. É uma outra marcha, outra travessia, suplicar ao senhor e
convencê-lo. Quer viver. Sente dentro de si uma tal força, ela, vestida e
penteada como uma rapariga livre, e alforria-se a si mesma, dá esse presente
a si própria, essa dignidade. O padrone parte no dia seguinte ao nal da
tarde para não ter demasiado calor. Viu o rapazinho prometido como
presente. Chama-se Indir e está aterrado como um jovem animal enjaulado.
Não pede nada, olha, chupa no polegar quando julga que não o veem, e
chora por vezes, quando ouve homens a gritar. É no e gracioso, será um
belo presente, o padrone deve muito, sem dúvida, a esse amigo a quem o
destina.
Já está menos segura de si enquanto caminha ao longo dos corredores
que conduzem ao escritório do padrone. O coração bate com força inclusive
nos ouvidos; o sangue choca; o mundo em seu redor está amortecido; treme
ao caminhar em direção a ele; a perna direita coxeia um pouco, como
sempre nos momentos difíceis; a dor na coxa desperta e falta-lhe o fôlego.
Ela, tão bela e tão graciosa, tem, por vezes, esse andar lento e difícil que terá
na velhice, como se as correntes invisíveis reaparecessem. Está sem fôlego
quando entra na sala e, sem preâmbulo, diz ao senhor:
– Sei cuidar dos pequenos. Das crianças pequenas.
Ele ergue a cabeça, espantado, e demora algum tempo a olhá-la. É
verdadeiramente bonita, muito bonita, a pobre.
– Eu sei, Bakhita, eu sei.
Diz isso e volta ao que estava a fazer: arruma bandeiras minúsculas
numa caixa de ébano e nácar. Dir-se-ia uma criança nostálgica que lamenta
ter crescido.
– É um bom presente.
Volta-se. Ela ainda ali está! Aquela voz grave que ela tem, nunca se
habituou a ela, estremece sempre que a ouve e disfarça por vezes um riso
histérico.
– Indir é um belo presente. Frágil para atravessar o deserto.
Desta vez, ele solta uma gargalhada. Bakhita é astuta como uma raposa.
– Não, Bakhita! Não te levarei! Conheces o deserto, os camelos e os
rapazinhos, sim, conheces muitas coisas. Mas não o preço de uma travessia
em vapor. É muito, muito cara. Mais cara do que um escravo.
Compreendes?
Falou demasiado depressa, não compreendeu tudo. Menos o riso. E o
olhar. Que dizem não. Não se prosterna: desmorona-se. Desaba aos pés do
cônsul e soluça sem conseguir parar, uns soluços que a abanam como se
estivessem a bater-lhe, prantos que vêm de tantos anos de sofrimentos
suportados que não consegue retê-los, não pensa nisso, soluça e mais nada,
perde toda a coragem, toda a resolução, não serve para nada nem para
ninguém, esgota-se nos seus soluços, desejaria que lhe causassem a morte.
Ele detesta mulheres que choram, e então uma escrava! Recua. Afasta-se
para junto da janela e olha-a. O corpo dela treme e a manga da túnica
descobre-lhe um ombro. Vê a longa cicatriz sacudida pelo pranto. É um
desenho sinuoso e bem feito. Essa tortura estética perturba-o subitamente.
E diz:
– Está bem!
Ela não o ouve, chora e sufoca no pranto. Ele aproxima-se, com um
gesto tímido tapa-lhe o ombro, obriga-a a levantar o rosto e diz-lhe,
olhando-a nos olhos:
– Está bem, a Itália.
É, como toda a alteração, uma libertação e um sofrimento. Uma
mudança de vida que se opera em alguns segundos. Vai partir. Vai viver no
país do sonho branco e do sol suave. Vai viver onde as aldeias não se
incendeiam. Onde as crianças crescem no local onde nasceram. O espanto
deixa-a sem fôlego. É quase injusto que isso exista. É injusto e é bom. Nunca
salvará Kishmet. Agora é tarde de mais. Nunca consolará a mãe. Tem de
aceitar essa traição. Salva-se e salva-se sozinha. Está presa na tempestade de
sentimentos contraditórios, mas há nela essa certeza de que tem razão.
Parte. Afasta-se com esforço de tudo o que conhece, de todos aqueles que
esperava rever, afasta-se com esforço da possibilidade de um dia
reencontrar o nome que o pai ofereceu à Lua. Fala à irmã gémea, pede-lhe
que proteja o seu nascimento, que transporte esta parte de si, livre e ligada
aos antepassados. Pela gémea, não se trai. Deixa o Sudão. E ca lá. Fica
inscrita na sua terra. Nas tradições. Na língua. Viverá lá para sempre. Pede à
gémea que pronuncie o seu nome, tantas vezes quantas as que puder para
que ressoe algures. No vento, na água, para que vá e pouse nas pedras, nos
campos, nos animais pací cos. Pega num pouco de terra vermelha e mete-a
num lenço. Pela primeira vez na vida, faz a sua mala. E sabe que o padrone
não a deixará morrer no deserto. Não a abandonará aos abutres se estiver
doente e sente-se levada por essa invencibilidade. E além disso é
responsável por Indir. Indir que não sabe que ela lhe deve esta viagem. Indir
que não sabe nada. Que não compreende italiano nem árabe nem turco, que
segue Bakhita como um cãozinho cheio de mágoa. Pergunta-se de onde
saiu ele. Há tantas crianças sozinhas. Onde estão as mães sozinhas, não se
veem. Cantaram o cântico da separação que não serve para nada e depois
nunca mais se ouvem, enlouquecem em silêncio. Indir tem uns grandes
olhos ternos com pestanas compridas e con a com a tristeza daquele que
não se revoltará. Bakhita vê isso. É um rapazinho que não se tornará mau
nem doido. Guarda dentro de si o segredo da violência e não espera nada.
Não tem ar de ser lho de um senhor, a sua pele é de um tom negro
carregado, os lábios espessos. Bakhita passa-lhe a mão pela cabeça, sente as
pequenas protuberâncias, e a criança pisca os olhos muito rapidamente
quando ela lhe toca, retesa-se um pouco e sorri para que lhe perdoem.
Bakhita diz para consigo que se foi escolhido para partir com o senhor é
porque vale muito. Cartum é um dos maiores centros de castração. E a
criança traz em si aquela doçura estranha e aquele sofrimento que, sabe,
será sempre invisível para os outros. Será um homem com as recordações
de uma infância que não se conta. Um ser sem descendência.
E ela… Também vai car com ela? Tem con ança, claro, o padrone é um
homem bom e, se ca com Indir, cará forçosamente com ela. Quem se
ocuparia dele durante a longa travessia? Ele disse quatro mil quilómetros. E
acrescentou: «É muito, compreendes? Nunca poderias fazer quatro mil
quilómetros a pé.» Ela sorri contemplando o mar… a pé, não… Por vezes, o
padrone anda um pouco na lua.
E depois, um dia, é a partida. A verdadeira partida. A confusão gritante
no porto como nos mercados. Há homens e mulheres atrás e à frente dela,
está entalada entre esses corpos que batem com os pés e que sopram, esses
corpos que chocam, agarra com força a mão de Indir, que chora agarrado à
sua túnica branca. Agora acabou. Deixa o seu país. Acabou. E desejaria que
ela aparecesse. Aquela que lhe gritaria: Não partas! Aquela para quem isso
não seria suportável. Ouve pessoas a gritar «Adeus!» em todas as línguas,
mas não ouve ninguém suplicar «Não partas!» Volta-se, olha por cima dos
fardos que vão às costas, à cabeça, aos ombros, é um mundo carregado, um
mundo de cordas e de lama, de ordens e de obediência, alguns fazem sinais
para dizer «Adeus!» ou «Estou aqui! Sobe para o meu lado!», há aqueles que
se se separam e aqueles que se juntam. Na margem, ouvem-se os cães latir
até carem roucos. A água bate contra o barco e as aves piam no vento
pesado. Todavia, a mulher que suplicaria a Bakhita que não partisse, a
mulher que abriria os braços de par em par para que ela voltasse, não a vê.
Essa vive do outro lado do rio, nem sabe que o mar existe. Que a Itália
existe. E que Bakhita se vai embora. Fecha os olhos para os ver a todos, o
melhor que consegue lembrar-se dos seus, e levá-los. Com os olhos
fechados, projeta as imagens da infância, a muito longínqua infância,
quando Kishmet era a irmã mais velha e velava por eles, porque era assim a
ordem do mundo. Pací co. E protegido. Lembra-se disso.
Era verdadeiramente necessário que essa viagem fosse longa para que
Bakhita a absorvesse. Era necessária essa travessia de quarenta dias, a lenta
passagem do Canal do Suez, corredor conquistado ao deserto entre a África
e a Ásia, e que liga o Mar Vermelho ao Mediterrâneo. Era verdadeiramente
necessário que houvesse dias e noites diferentes, céus unidos ao oceano sob
os quais já não somos nada. E em cada escala, assistir à cerimónia das
despedidas e à dos reencontros. Pessoas minúsculas que esperam e se
reencontram nos cais. Vemo-las abraçar-se e desaparecer. Olhamos para a
margem e já não as vemos. Os seus rostos estão noutro lugar. Encostados a
um ombro. A humidade ligeira do pescoço. Agarram-se.
Ao longo dos dias, explica a Indir que se separarão em breve: ele cará
numa casa e ela noutra. Será que ele compreende que não terão o mesmo
senhor? Indir assume um ar obstinado, cerra os dentes e Bakhita consegue
perceber que ele lhe bateria se pudesse, se não se contivesse. Não o faz.
Contudo, quanto mais se aproximam das costas italianas, menos ele suporta
a viagem. Vomita, a sua fronte está transpirada, geme e recusa-se a comer.
Nos primeiros tempos, Bakhita tem medo, como se fossem lançar borda
fora aquele pequeno escravo inútil. Mas Calisto Legnani só a censura por
não conseguir acalmar a criança. Ela espanta-se por um homem tão
inteligente, tão sábio, não compreender o desgosto de um rapazinho. Há um
remédio, claro. Ela conhece-o, porém, não pode dar-lho. Não pode dizer-
lhe que não se separarão. À noite, ele tem movimentos bruscos, durante o
sono atira a cabeça contra o peito dela, corta-lhe a respiração. Ouve-o
chorar e chamar. Desejava consolá-lo, mas nunca consolou ninguém. E
lembra-se da pequena Yebit morta entre as mãos da tatuadora. É uma visão
que regressa muitas vezes e, mais do que um remorso ou uma dor, é a
consciência da impotência, da derrota perante o mal. Acaricia a cabeça de
Indir, aperta o seu corpo tão magro que dir-se-ia serem longos pedaços de
ébano mal montados, é desajeitado e está aturdido. Ela pensa que a
«operação» lhe dani cou o espírito.
Dormem os dois no chão no camarote do cônsul e do seu amigo, que
não quiseram correr o risco de os deixar na parte dos escravos, criados,
bandidos e tra cantes de todos os tipos. De dia, ela ca no convés superior,
muito perto do camarote. Não se aventura nos labirintos do barco.
Vislumbra pelas janelas os salões, as salas de jantar, ouve por vezes o piano.
Contempla o oceano e pensa em tudo o que existe lá em baixo. O mundo
frio e profundo onde o sol se detém. Sabe que navegam por cima de mortes
antigas. Soube das travessias dos escravos para chegarem a mundos novos,
sabe que arrancam a África à África. As espingardas mandam. No entanto,
há céus que a consolam, estrelas que atravessam a noite como chuvas de luz,
e luas tão grandes que poderia dizer-se que o barco se aproximou do céu.
Quanto a ela, aproxima-se de um outro continente. De uma outra vida. E,
por uma vez, sabe para onde vai: vai para casa do padrone, cará ao serviço
da sua mulher, a Signora Legnani, numa cidade que se chama Pádua. Sorri
ao cônsul quando pensa nisso, não sabe que ele em breve desaparecerá da
sua vida para sempre.
O barco entra no porto de Génova. É uma entrada lenta e triste que
marca o adeus de nitivo ao Sudão. A sirene de nevoeiro rasga as colinas. É
primavera, abril de 1885, o ar está adocicado, o céu exibe uma claridade
pálida que parece a aurora. Bakhita repele a mão de Indir, que se agarra à
sua túnica. Desejaria que já não gostasse de si, desejaria também apertá-lo
entre os braços e dizer-lhe tantas coisas que já não terá tempo para lhe
dizer. Não sabe se se morre de pancada aqui em Itália. Indir agarra-lhe na
mão e grita-lhe: «Sì Padrone grazie Padrone mi scusi Padrone!» É a sua
surpresa. O seu presente de chegada. Aprendeu e xou às escondidas: «Sì
Padrone grazie Padrone mi scusi Padrone!» Ela sorri-lhe, mas a emoção
cerra-lhe a garganta, oxalá ele aguente o embate. Transporta as bagagens.
Calisto Legnani e Augusto Michieli, também eles carregados, caminham à
frente, têm o ar feliz daqueles que regressam de uma conquista. O cais está
tão atravancado como o de Suakin, as sacas de cereais no chão, as cargas nas
redes, os estivadores que praguejam, os mendigos e as crianças descalças. É
o primeiro choque, a incompreensão: as crianças descalças num porto
italiano. Bakhita pensa que vêm de outro lugar, como ela, e esperam car
aqui, no país que Anna lhe descreveu, soalheiro e livre. Está uma mulher no
porto que os olha e abre os braços de par em par. É a primeira imagem que
Bakhita terá de Maria Turina Michieli: uma mulher que abre os braços
como uma mãe. Augusto aproxima-se da esposa e aperta-a pudicamente
contra si, antes de lhe depositar um beijo na fronte. Bakhita pensa que Indir
é para ela, que é para ela o presente, vê-o nos seus grandes olhos felizes.
Todavia, rebenta uma discussão, cujo sentido compreende mais ou menos,
apesar de Maria e Augusto não falarem o italiano que conhece. Maria olha-
os, a Indir e a ela, e espera algo que não vem. Augusto encolhe os ombros,
embaraçado como uma criança, então ela aponta para os dois escravos, os
olhos enchem-se-lhe de estupefação e de cólera, a sua voz é seca, demasiado
aguda:
– Não tens nada, Augusto? Nada para mim?
– O pequeno é para os amigos do cônsul, Maria… E a rapariga é a sua
própria criada.
– Mas a mim, Augusto, a mim tu não trazes nada? Nenhum negro?
– Maria… partimos tão depressa. Cartum caiu, sabes, as notícias são
terríveis.
– O que eu sei é que Calisto pensou nos presentes. Não pensou apenas
em salvar a pele.
Calisto Legnani aproxima-se, explica-lhe que a travessia com dois
escravos foi perigosa e onerosa, e que é um milagre terem sobrevivido a
tempo de Cartum, um milagre que tenham sobrevivido à travessia do
deserto. Depois acrescenta, em voz baixa, que havia muito que prometera
um eunuco aos seus amigos, um casal de Génova que os espera na
estalagem. Amanhã partirá para Pádua com Bakhita, que é para a sua
mulher. Maria olha para os dois homens como se estivessem combinados,
quer-lhes mal por a terem desiludido e quer mal a si própria por se lhes ter
mostrado como a consideram desde sempre: uma mulher azeda e
reivindicativa. Estava tão contente por ter feito a viagem para os receber no
cais de Génova. Esperava algo diferente e agora está tudo estragado. Bakhita
segue-os com a bagagem, tem aquele andar gingado dos que descem dos
barcos. As ruelas sobem sem m, são estreitas e cheiram a peixe e às ervas
adocicadas como ores condimentadas. São odores novos, fortes e secos.
Chegada à estalagem, pelo olhar dos amigos do cônsul, os Sica, sabe que
são os novos senhores de Indir. É um olhar que conhece, que avalia e se
alegra. Reservaram quartos para os seus amigos. Quanto a eles, vão-se
embora no mesmo dia, moram no alto da cidade. A Signora Sica anda em
redor de Indir e aplaude, rindo. Bakhita não compreende bem a língua, mas
percebe que Indir é para ela. Diz que o adora! Como se chama? «Indir.» Ela
diz: «Não, Enrico.» E pede-lhe que cante. Quer treiná-lo: «La-la-la», e faz-
lhe sinal para continuar com a sua voz de castrato. Porém, Indir limita-se a
dizer: «Grazie Padrone sì Padrone mi scusi Padrone!», e depois olha para
Bakhita. Ela faz-lhe sinal que sim, que está bem, mas corrige mesmo assim:
«Padrona». Considera-a mais razoável do que ele, sentiu que Signora Sica
era gentil, e que estava contente com o pequeno. Os casais despedem-se:
beija-mão e pancadas amigáveis nas costas. Bakhita observa esses códigos
estranhos, a mulher reajusta o chapéu e agarra o braço que o marido lhe
estende. Vão-se embora. Dão alguns passos, viram-se. Olham para Indir e
esperam. Ela dá uma pequena risada espantada. Assobia para o pequeno se
juntar a eles. Bakhita sente esse ar que respiram todos juntos e que não é o
mesmo para nenhum deles. Vê a situação conhecida, eterna. A de um
escravo que vai para casa dos novos senhores. É desprovida de violência. De
uma doçura terrível. O cônsul empurra as costas de Indir, dá um risinho
pouco à vontade, o seu presente não está totalmente acabado. A criança
hesita, ca tensa e imobiliza-se. Bakhita baixa-se até ele, aperta-o contra si e
recebe o odor da sua pele, segreda-lhe que parta agora, que corra para os
novos senhores. Mas eis que ele se põe a gritar. É um grito insuportável,
agudo e lancinante. Os amigos entreolham-se em pânico, entendem-se em
silêncio, com as faces vermelhas. Estão confusos. Maria Turina Michieli
olha para Bakhita e vê o que os outros não veem. Esse rapazinho que está a
ser arrancado a essa negra, esse amor que há entre os dois, olha para aquela
rapariga e quere-a. Não é mais complicado do que isso. Quere-a. O cônsul
arranca a criança dos braços de Bakhita, solta, um após outro, os dedos
agarrados à túnica. O rapazinho grunhe e ofega, levado pelo cônsul como
uma saca. Ainda se volta e estende os braços para Bakhita, soluçando. O
cônsul quase o atira ao Signor Sica, cuja mulher faz um pequeno
movimento de recuo, e depois vão-se embora. Ouvem-se os gritos
extenuados da criança, os sapatos da signora que batem com ruído no chão
e, depois, mais nada, silêncio entrecortado por aves indiferentes. Acabou.
Maria Turina Michieli continua a olhar para Bakhita, que sabe certamente
muitas coisas. Transportar bagagem. Fazer-se amar pelas crianças. E chorar
em silêncio.
Da janela do quarto, Bakhita observa. Aí está. A Itália é isso.
Certamente. Vê o mar apagar-se na noite que cai, como se recuasse para
desaparecer. Alguns candeeiros de iluminação pública acendem-se nas
ruelas e é verdade o que Anna dizia: há mulheres fora de casa a esta hora e
algumas andam sozinhas, mas estão todas vestidas e são todas brancas. Por
mais que olhe, Bakhita não vê um único rosto negro ou mestiço, nenhuma
mulher de djellaba, nenhum homem com turbante. As vozes que ressoam
contra as paredes das casas altas são vozes estridentes e espantadas, os
habitantes chamam-se com palavras longas e cansadas, como que
inconsequentes, e Bakhita espanta-se por não compreender o que dizem.
Será que falam outra língua que não é italiano? Todavia, é isso. É a Itália.
Chegou. A esse país onde não tem nenhuma irmã, ninguém para procurar,
ninguém para reconhecer. Deixou Indir, tal como estava previsto, e tem o
coração despedaçado. Porque é que não ajuda, pelo menos uma vez na vida,
uma criança? O pequeno escravo pensa que o traiu e não deixa de ter razão.
Não suplicou ao seu senhor que casse com ele.
A única coisa que a acalma quando se deita nessa noite é saber que no
dia seguinte vai partir com o padrone. Compreende cada vez melhor a
língua que ele fala e sabe servi-lo. Deu-lhe a túnica branca, nunca lhe tocou
e salvou-a de Cartum, antes de a cidade ser incendiada. Deve-lhe a vida. Há
uma cama no quarto da estalagem. Estica os lençóis, aconchega-os melhor.
E depois deita-se no chão. Procura o calor do pequeno Indir. Sabe que,
nesse mesmo instante, ele chupa no polegar e chama por ela. Parece-lhe
estar ainda no balanço do barco e, para dominar o seu enjoo de terra,
harmoniza a respiração com esse oscilar. Dobrada sobre si própria tenta
acompanhar o balanço. É a primeira vez que dorme sozinha. Desde o
encarceramento pelos raptores, nunca passou uma noite sozinha. E, de
repente, sente a falta de Binah. Essa falta surpreende-a porque há muito que
não a sentia. A parte da sua vida partilhada está tão longe agora, será que
existiu realmente? Será que não inventou recordações com uma
rapariguinha que a teria ajudado a aguentar tudo? Será que inventou uma
amiga? Uma irmã? Uma infância? Já não sabe de onde vem. Ouve o mar,
ouve-o sem vê-lo, enquanto ele respira uma tão longa solidão.
Não se prosterna a seus pés. Não lhe suplica. Não chora. Está
estupefacta. Nunca pensou que lhe mentisse. Porque mentiu: não acabou a
escravidão. É apenas mais lenta e menos barulhenta. De olhos baixos,
acompanha os novos senhores. Sem sequer ter dito adeus ao cônsul.
Enredada na confusão da partida, das bagagens, das palavras que trocam
entre eles, dos gestos, ela, sozinha no seu silêncio, acompanha-os, com
submissão estupefacta e sem revolta, essa longa tristeza.
Sobem para um monstro negro que cospe o mesmo carvão que o barco,
mas engole os campos, en a-se sob túneis e apita tão ruidosamente como
ela respira. Bakhita não mostra o medo que sente. Não pergunta como é
que aquilo se chama nem quanto tempo vai demorar. O comboio para
frequentemente. Os senhores não se mexem. Ela também não. Descem e
mudam de comboio. Sem falar, segue-os. Fica assim durante todo o dia, a
contemplar a Itália atrás dos vidros. Campos a perder de vista, com
camponeses curvados, homens, mulheres e crianças muito pequenas. Será
que são livres? Nenhum é negro. E, mais uma vez, todos vestidos, embora
não tenham sapatos. Deve haver muito que comer aqui, como disse Anna,
porque os campos são numerosos.
Tem, pela primeira vez na vida, um quarto só para si, com uma cama,
uma mesa de cabeceira, um candeeiro de petróleo, uma pequena cómoda e
uma janela na parede, por onde trepa a glicínia. É um quarto alto, por cima
dos estábulos. Na primeira noite, não acende o candeeiro e quase nunca o
acenderá. Compreende melhor com a luz do exterior. Quando é noite, há
que dormir. Ou olhar para o céu. Quando amanhece, levanta-se. Mesmo
que toda a casa ainda durma. Habitua-se a dormir na cama, embora com
medo de cair e sentindo a falta da terra, do solo e das suas vibrações. Faz
como diz o paron, esforços. Tenta dormir como os outros. Falar como os
outros. Parecer-se com os outros. Nesta luta permanente, esta vida de
adaptação e de grande vergonha, esta vida sem amor e sem ternura, vai
encontrar um homem, o primeiro depois do pai, que a amará
verdadeiramente. Esse homem no seu caminho é como uma estrela caída
aos seus pés.
Chama-se Signore Illuminato Checchini, mas toda a gente o trata pelo
pseudónimo que usa enquanto jornalista local: Paron Stefano Massarioto.
Administra os bens dos Michieli durante as longas ausências do senhor,
como fez para outras propriedades. É um autodidata que gosta do povo, dos
camponeses, de que é o principal defensor junto dos proprietários. Está em
todos os mercados do Véneto, conhece os preços exatos, a cotação das
frutas, dos cereais, do tabaco e dos legumes, conhece os jornaleiros e os
meeiros, e todos con am nele. Também é o organista de Zianigo, é um
homem inclassi cável, apaixonado, religioso, caloroso e divertido. Aquilo a
que chamaríamos «uma gura», se não fosse antes de tudo um humanista.
A Parona Michieli tem para com ela uma gentileza irritada, uma
bondade forçada. Bakhita já viu isso e sabe-o: uma mulher que cala a sua
infelicidade é uma mulher que traz em si um grande inimigo. Aquela
mulher deveria dançar e gritar durante muito tempo, obrigar a sair esse
espírito que a possui. No entanto, fala suavemente, num tonzinho seco e
interrogador, tem sempre algo a censurar e os seus suspiros anunciam a sua
presença. Não tem ciúmes do afeto que Stefano tem pela Moretta. Ele é um
aliado precioso para a propriedade, mesmo quando o marido está lá,
porque ele, mesmo quando está presente, está ausente. Pensa noutros
negócios, pensa em partir de novo, sempre. Foge dela. Foge dessa casa onde
ninguém é feliz. Maria Michieli também é estrangeira em relação a Zianigo
e a Itália. Vem de São Petersburgo, onde Augusto, que fazia negócios com
mercadores de peles, se apaixonou por ela. Não é italiana e, sobretudo, não
é católica. Claro que se converteu para casar numa igreja, em Paris, mas é
ortodoxa, por tradição e sem convicção. Partilha uma coisa com o marido: a
irritação para com as beatices de Stefano. Não! Não há um cruci xo em casa
deles! E não, não vão à missa! E tanto lhe faz que a desprezem por isso. Ele,
evidentemente, é o grande amigo do padre, dirige o coro, organiza as
peregrinações e ajuda nas obras de caridade. O órgão, iria ouvi-lo de bom
grado, adora música, mas voltar a entrar na igreja… Aliás, proibiu-o de
falar de Deus a Bakhita, que não ceda a essa moda italiana dos missionários,
que guarde para si as suas ideias de bem e de mal. Ela saberá bem ocupar-se
sozinha das criadas.
Mas Bakhita não precisa de que lhe falem do bem e do mal. Conhece de
cor essa batalha e compreende muito rapidamente que o mundo é um só. O
mar entre o Sudão e a Itália não é uma separação. São reencontros. Tudo é
igual. E os homens sofrem. Numa manhã em que acompanha a Parona
Michieli ao mercado, vê um camponês algemado entre dois carabineiros.
Fica estupefacta. As correntes! Também aqui encontra as correntes! A
Parona Michieli empurra-a para frente e diz-lhe, escandindo as palavras:
– Ele-roubou-um-fruto.
– Um fruto, Parona?
– Tu compreendes o veneziano!
E compreende também que esse fruto, forçosamente, foi ele que o
plantou. Não conhece as palavras «pilhagem» e «código penal», mas
observa e compreende tudo. Não tem proteção, é imediato, a vida atravessa-
a e ela não poderia defender-se dessa compaixão. Como dizia a sua mãe? «A
minha lhinha… A minha lhinha é doce e boa. A minha lhinha…» Olha
para a Parona Michieli e, de súbito, compreende essa mulher, a sua
malvadez e infelicidade.
Augusto não adivinha que há algumas semanas que Maria está grávida
outra vez. Pensa que a palidez e as náuseas fazem parte da panóplia: a
mulher é histérica, não se pode fazer nada quanto a isso. Sabe que fugiria
dela se lhe dissesse que espera, novamente, um bebé. Como se não fosse
dele, apenas seu, uma criança gerada pela mãe e que só a ela pertence. Pensa
que os dois lhos mortos são a vergonha da esposa. Com ela, as crianças
não vivem. Que os das camponesas morram é habitual e lógico: são gerados
por bebedores de aguardente adulterada, comedores de polenta analfabetos,
imorais e sujos. Mas ela! Ela não sabe fazer viver uma criança. A primeira
vez ainda passa, não se pode nada contra o sarampo, mas a segunda? Nem
sequer conseguira fazê-la viver dentro de si, dera à luz um morto. O que
saía dela era a morte. «Deus chamou-o a Si, a ele também», dissera o
arcipreste. Foi então que Maria decidiu que terminara, não queria voltar a
ouvir falar desse Deus que tinha mais necessidade dos seus lhos do que
ela. Dera à segunda criança, antes de receber a extrema-unção, o nome do
sogro, Giovanni. Depois tinham-lhe enfaixado os seios. De qualquer modo
não seria ela quem a teria amamentado, mas aqueles seios enfaixados
causaram-lhe dores terríveis, bem mais do que aquando do nascimento de
Carlo, que via mamar na gorda Alessia, com os olhos indiferentes e o peito
desmesurado. Detestava-os a todos e ao seu Deus também. Deus para cá,
Deus para lá, como um tique de linguagem, um ídolo que se intrometia em
todo o lado, intervinha em tudo e a quem «ela devia oferecer os seus lhos»,
como se fossem d’Ele.
Esta Moretta não sabe nada de tudo isso. É como se fosse muda e não
pode transmitir nenhum mexerico nem nenhuma verdade. Então, uma
noite, pede-lhe que abra a porta do armário do seu quarto, faz-lhe sinal
para tirar a grande caixa azul e pousá-la ali, em cima da mesa, vai mostrar-
lhe uma coisa. Àquela criada, a quem vai falar em russo, conta a vida, tão
breve e tão bela, do pequeno Carlo. Tira as roupas, que guardara para o
segundo, porque, antes mesmo de ter secado as lágrimas, a sogra ordenara-
lhe que zesse «outro» de imediato, como se apenas tivesse cozinhado mal
um prato. Não queria fazê-lo e fora certamente por isso que o segundo
nascera morto. Um substituto cansado, incapaz de abrir os olhos. Parecia-
lhe, enquanto o segurava nos braços para lhe escolher um nome, que era a
sua alma que apertava contra si, uma alma apagada, e que queria apenas
que a esquecessem. Mas Carlo! Carlito crescera e vivera quatro anos! Conta
na sua língua a vida de mãe que teve com ele. Porque foi a mãe dele, digam
o que digam. Conta os primeiros passos, as primeiras palavras, os primeiros
dói-dóis e as pequenas doenças que ela tratou, sim, sabia fazê-lo! E depois
mostra as roupas à guisa de provas, pede a Bakhita que lhes toque, que sinta
como são belas e, sobretudo, verdadeiras. Proíbem-na de falar desse lho,
como se trouxesse «más recordações», mas ela quer falar dele e dizer a esta
Moretta, que a ouve falar russo e que não esconde as suas lágrimas, como
foi um bom lho e como foi uma boa mãe. Gosta que Bakhita chore porque
se até uma estrangeira tem pesar, então, é normal que ela própria tenha
desgosto, não é? Não é uma doença! Ela não é louca! Embala-se, fala cada
vez mais depressa, cada vez mais alto, misturando o veneziano, o russo, o
francês e o inglês, que também fala, «Guarda! Toca-lhes, não tenhas medo»,
e agita os desenhos, os peluches, as toucas, as meias pequeninas, «So small!»
Com uma mão diante da boca, ri agora, porque essas meias são tão
pequenas! Não consegue parar de rir, o seu corpo baloiça enquanto ri. «So
small! Mio cuore! Sertse maïyo! Amore mio!», di-lo em todas as línguas e a
sua angústia explode.
Bakhita ouve, desde aquele dia em Taweisha, o urro da mãe em cujo
bebé tocara no pé minúsculo, tão belo. Lembra-se de que lhe bateram por
isso e de que o bebé também chorou. Devagar, aproxima-se da parona e
aperta-a contra si, é um gesto inesperado e proibido, que quer dizer
simplesmente «descansa». A parona refugia-se nos braços da Moretta e
soluça. Tem, nalmente, direito ao desgosto.
A criança nasce a 3 de fevereiro de 1886. O senhor havia deixado a Itália
três meses antes, regressando a Suakin, de onde escreveu à mulher palavras
desoladas que prognosticavam a futura derrota, e recomendando-lhe que
cuidasse de si.
As duas mulheres não se olham. A criança que vai morrer está sozinha
no berço e o seu sofrimento invade o quarto. É um ser minúsculo, com uma
presença imensa e sem ajuda. Bakhita aproxima-se do berço que a Parona
Michieli quis longe de si, no outro extremo do quarto. Contempla o rosto
azulado da pequena Alice, respiração curta, sopro rouco, pensa num rio
entravado pela rocha, ouve a corrente da água retida, e vê que a vida luta
contra o poder de uma morte já aceite. Então, faz uma coisa que só fez uma
vez, há tanto tempo, quando se evadiu de Taweisha: não pede autorização.
Pega no bebé, tira-lhe as roupas, senta-se e deita a pequena sobre os seus
joelhos, cospe nas mãos e massaja-lhe o tórax, lentamente, enquanto
profere palavras incoerentes e meigas, com o rosto tão perto daquele
corpinho que a parona só vê a massa de cabelos crespos e o seu pescoço. A
pequena emite um crepitar de choros roucos e fracos, Bakhita está presa na
litania do gesto e da palavra, a sua voz triste mistura-se com a respiração
fraca da criança, ouvem-se os estalidos da madeira na lareira, crepita e
estala, e a pequena tosse cada vez mais alto. Bakhita compreende essa
linguagem: é a dor e a revolta. Então, cospe de novo nas mãos e massaja,
fala, com o rosto contra o do bebé, recebe a tosse e o choro como presentes
a ela destinados.
A parona ca muda, espectadora desapossada, sente renascer a
esperança ao mesmo tempo que a recusa da esperança. Bakhita ergue a
criança, mantém-na sob os braços, ela sufoca e as xia-se com as
mucosidades. Bakhita deita-a de novo, toma a sua cabeça na mão, pousa-lhe
a boca no nariz, aspira profundamente e cospe, para o chão. Várias vezes
seguidas, muito rapidamente, quase sem recuperar a respiração, aspira e
cospe as mucosidades. É barulhento e sujo como a vida. Repetitivo,
instintivo e autoritário. E quando nalmente a pequena já não chora de dor,
mas de fome, Bakhita veste-a de novo e leva-a à mãe. A parona faz um
movimento de recuo, os seus olhos perguntam à Moretta se não é louca por
ousar isso, mas Bakhita, com um gesto lento, retira a grande faixa branca e
liberta os seios da patroa. Diz a palavra que ama, com a sua voz baixa. Diz:
«Madre.» E mostra-lhe como deve fazer. Porque é ela que deve fazê-lo. Ela
deve alimentar a lha.
Três meses depois do seu nascimento, por pressão dos que a rodeiam,
sob a in uência do Paron Stefano e também, há que dizê-lo, por
superstição, Maria Michieli aceita que Mimmina seja batizada. Um
verdadeiro batismo desta vez, na igreja de Zianigo. A Moretta ca à porta.
Maria leva a criança, toda em rendas brancas, até à pia batismal, onde os
seus gritos ecoam nas pedras frias. Maria também chora, sob o domínio da
emoção, pensam as pessoas, mas é simplesmente por desdém. Tem pressa
de devolver à Moretta aquele bebé que berra no fato de batismo, e quer mal
àquela rapariga por ter poderes que ela não tem. O seu reconhecimento está
manchado de rancor.
Como é que Stefano teve um dia essa ideia? Como a julgou exequível?
Decide adotar Bakhita. Ela não lhe chama babbo, como fazem os seus
lhos? Já é um pouco o seu pai e, se a adotar, ela terá um nome, uma
família, uma herança. Poderá batizá-la, apagar o pecado original e salvar-
lhe a alma. Lança-se numa batalha cega por papéis que não existem,
certidões de nascimento e de remissão, uma aldeia esquecida, uma
nacionalidade perdida, escreve, telegrafa, recorre a todas as suas relações,
pede ajuda ao arcipreste, ao presidente da câmara de Zianigo, ao doge de
Veneza, vai a Pádua a casa do cônsul Legnani, que regressou há seis meses
ao Egito, escreve a Augusto Michieli, pede-lhe que, de Suakin, faça
pesquisas sobre a origem de Bakhita. Tem uma fé capaz de mover
montanhas, as montanhas de um país sobre o qual ignora tudo, e quanto
mais vãs são as suas pesquisas, mais se obstina, apanhado num pânico
altruísta, mas talvez… talvez também tenha a intuição de que é preciso
andar depressa, que em breve esta vida tranquila, esta acalmia apenas serão
uma recordação longínqua para Bakhita.
Bakhita corre sozinha pelas ruas de Zianigo. Corre como se fugisse.
Como zera com a mão da pequena Binah na sua, evade-se. Corre e as
crianças que a veem passar comprimem-se contra as paredes amarelas das
casas inclinadas, os velhos sentados diante das portas tiram os chapéus e
cam em silêncio, as mulheres pensam que aconteceu uma desgraça a
Mimmina, porque é a desgraça que corre com a Moretta, qualquer mulher
da aldeia o reconhece.
Ela sente a corrente no pé, a corrente que carregou em casa da ama turca
pesa e fá-la coxear, reencontra o andar de escrava, o coração de escrava e o
medo que lhes está associado. Os sapatos apertados provocam-lhe dor, o
vestido cola-se-lhe ao corpo suado e, debaixo do chapéu, os cabelos estão
encharcados. No carreiro de terra que conduz a casa de Stefano, tropeça
num buraco e a lama cola-se ao seu rosto como placas de pele. Stefano já
está ao corrente da vinda de Bakhita, pediu a Clementina que fosse buscar o
médico e o mandasse a casa de Maria Michieli: aconteceu uma desgraça a
Mimmina. Vai ter com Bakhita ao carreiro de terra, vai para a tomar nos
braços, mas ela atira-se-lhe aos pés, como os pobres camponeses. Levanta-a
e não reconhece o seu rosto: está simultaneamente mais jovem e
terrivelmente velho. Os olhos são os de uma rapariguinha e, no entanto,
emana dela qualquer coisa aterrada e antiga.
– Mimmina?
– Não.
– Maria?
– Não.
– Il paron?
Faz um sinal negativo e aponta para si própria, bate no peito, o seu
coração, mostra que é ali, no interior dela, que há uma grande desgraça.
Instintivamente, olha-a, ela correu e não tem ar de doente, durante um
instante pergunta-se se ela recebeu os papéis da adoção, más notícias da
família, da aldeia, e apercebe-se de imediato que não é possível, pois em
todas as diligências que faz dá sempre apenas o seu endereço. Manda-a
sentar-se num banco de pedra. Diante de si, grandes ciprestes baloiçam no
seu odor doce e triste. Choveu durante todo o dia e o ar está saturado de
uma humidade pesada, as aves cantam nas árvores encharcadas, ouve-se o
último trovão na montanha, ao longe. Algo está a terminar. De súbito,
Stefano compreende. O choque corta-lhe a respiração. Todavia, é uma
evidência. Culpabiliza-se por não o ter previsto, por nunca ter falado nisso à
irmãzinha Moretta, a culpa é dele, deveria tê-la prevenido… Mas dizer essas
coisas num dialeto que ela compreende tão mal teria sido ainda mais
terrível, mais confuso, mais inquietante… Vai partir para Suakin com a
Michieli. Vai deixar a Itália. Pousa a mão na dela, que agora chora, e é a
primeira vez que chora à sua frente. Então chora com ela, soluça, e eis os
dois naquele banco, no ar húmido de uma chuva esgotada, com aquele
desgosto contra o qual nada podem fazer porque não há qualquer
consolação para o que vai acontecer. Desejaria pedir-lhe perdão: se ao
menos tivesse pensado na adoção mais cedo, se ao menos lhe tivesse dito o
que poderia vir a suceder. Há um ano que Augusto Michieli o deixa
administrar a propriedade sozinho, não conhece a lhinha, nunca esteve
tanto tempo ausente de Zianigo… Stefano tira os óculos redondos, limpa os
olhos e pergunta:
– Suakin?
– Sim, babbo, sim… Aiuto… Socorro…
Ele olha para o céu, mas este não lhe responde.
Não sai do hotel, como quer a Parona Michieli. Não vê nada da ilha.
Dizem que é tão bela como suja, tão perigosa como poderosa, ainda
selvagem apesar das altas mansões dos ricos comerciantes, dizem que o sol
se deita sobre o mar como a mão de Alá mergulharia nas ondas, e faz jorrar
dele cores que não poderíamos identi car. Falam de Suakin como de um
animal vivo, que se teme e se doma. Falam dos peregrinos andrajosos, das
espingardas de contrabando, dos sabres acerados e das feras que de noite
entram nas habitações. Falam dos fantasmas das quarenta virgens, escravas
abissínias grávidas de djinns, cujas quarenta lhas fundaram a cidade e
assombram o palácio. Reinam a maldade e a miséria.
Vive assim nove meses, nesse tempo incerto, esse hotel de passagem
onde, apesar da beleza dos dezoito anos, apesar da cor da sua pele, os
homens que serve não lhe tocam. Baixa menos os olhos. Quando reconhece
a ofensa na voz deles, olha-os brevemente. Ousa fazê-lo, durante alguns
segundos, e nos seus olhos não há nem desa o nem cólera, mas os homens
que fazem tentativas deslocadas em relação a ela recebem um olhar que diz:
«Conheço tudo isso há muito tempo.» Continua a ser um enigma. A
submissão casada com a força. É isso que intriga, como se esta escrava, esta
Bakhita, não estivesse no lugar certo. O seu senhor é cristão, ela nunca será
nem sua esposa nem sua concubina e, aparentemente, não virá a ter lhos
dele. Veem-na ocupar-se da lhinha do senhor, por vezes, mesmo quando
vem para o bar, segura a criança nos braços, como um macaco num ramo.
Esta escrava tem um lugar à parte. Fala pouco e a sua voz tem a
profundidade das grutas escuras, é uma criada de bar e ousa mostrar a
apatia daqueles que estão seguros de si próprios. Foge dos homens e
interessa-se pelos miúdos. Tem sempre nos bolsos um pedaço de pão, um
fruto para lhes dar, e também um gesto, uma mão pousada nas suas
cabeças, uma carícia na face. A senhora devia puni-la, pois todos aqueles
miúdos são contagiosos, arrastam diante do jardim do hotel a mendicidade
e as suas doenças de pele. Juntam-se diante dos portões como moscas no
suor. O jardineiro expulsa-os, porém eles voltam. Têm fome, ela alimenta-os
em vão, porque se multiplicam tão rapidamente como morrem.
Bakhita vive num tempo incerto, mas que avança. Os patrões afadigam-
se e fazem cálculos, e esses cálculos, um dia, dão um resultado. Aquele para
que trabalham dia e noite. O êxito. Não lhe dizem nada, todavia ela sente, vê
e, como compreende um pouco o veneziano, ouve conversas entre Maria e
Augusto. Há no ar um movimento de pânico e de esperança, uma mudança
de vida que se inicia na alegria nervosa das grandes decisões. Mimmina
também o sente, a parona bem pode dizer que lhe estão a nascer os dentes,
Bakhita sabe que não é isso que a faz chorar de noite. São os pesadelos.
Sabe-o porque têm os mesmos. Pesadelos de areia alta, das dunas em
círculos por cima delas com estacas de madeira cravadas em toda a volta, e
não há qualquer maneira de sair nem de ver o horizonte, estão de pé,
Mimmina e ela, nessas orlas cercadas, e cam lá. Imóveis, angustiadas e
incertas.
No comboio para Veneza, nem uma nem outra compreenderam que vão
despedir-se. É uma saída juntas, a Veneza, onde Bakhita já veio há muito
tempo, quando Mimmina não tinha ainda seis meses e lembra-se do
comboio por cima do mar, das ruas tão pobres, das barcas dos pescadores e
das mulheres que tiravam água dos poços em pracetas onde se vendiam
ervas e pão. A pobreza é igual em todo o lado. Reconhece-a rapidamente. É
um olhar que nada pode surpreender, um grande cansaço. Crianças
descalças. Mulheres demasiado carregadas e homens com a cólera
reprimida. E em Veneza, tal como em Zianigo, tinham tido medo dela e,
nas ruelas nauseabundas onde o sol não entrava, ela apertava contra si a
pequena Mimmina, respirando o seu odor doce de bebé.
Ao nal da tarde, o ar torna-se seco, o sol raro, Bakhita tem frio, imóvel
naquele banco, mas não sabe para onde ir. Continua à espera, com uma
paciência submissa, e então, de repente, ouve o cortejo. O sussurro.
Reconhece-o e o coração para. Levanta-se para ouvir melhor e quando vê
passar as raparigas em la, conduzidas por duas irmãs, agarra bruscamente
Mimmina contra si. A criança grita, mas Bakhita aperta-a e esconde-a tanto
quanto pode com os braços. Com o rosto virado contra o seu, obriga-a a
calar-se, quase a as xia tentando salvá-la. O cortejo passa, umas quinze
rapariguinhas de avental cinzento, tamancos nos pés, sem corrente, e
brancas como as escravas mais caras de África, as circassianas. Para onde as
levam? Porque é que as freiras as compraram? Aquelas rapariguinhas vêm
de algum lado, vê nos seus olhares que procuram um apoio, esperam uma
ajuda. Aquelas crianças estão aqui sem as famílias. Será que as irmãs as
compraram para as alforriar, como fazia o cônsul? Passaram. O ruído
arrasador dos tamancos afasta-se. Bakhita pousa de novo Mimmina no
chão, a criança bate-lhe e diz-lhe que ela é má e que já não gosta dela.
– Já não gostas de mim?
– Não.
– Eu ainda te amo.
– Não quero.
– Impossível. Ainda te amo.
Mimmina olha-a de esguelha com olhos de criança furiosa e ávida. E
depois volta, serena, às brincadeiras com terra e pedras, os seus jogos de
imaginação e devaneios, sob o olhar doce e lento daquela a quem se esforça
por não chamar mamma.
O dia passou e não zeram mais do que estar juntas. Ainda não jantam
no refeitório com as outras rapariguinhas catecúmenas, jantam na cozinha,
onde Bakhita não consegue engolir nada. Dão-lhe um prato de sopa e ela
sente muita vergonha por estar ali sentada sem fazer nada. Tem lágrimas
nos olhos de tal modo se sente constrangida. Quem poderia explicar-lhe ao
que a destinam? As irmãs pensarão que ela não vale nada? Que não sabe
fazer nada e que não se pode pedir-lhe nada? Onde estão as irmãs que viu
passar? E as meninas? É uma grande preocupação, gostaria de perceber por
que razão a cozinheira é tão doce e porque se sente tão sozinha neste
mundo utuante e incerto.
À aurora, um sino desperta Bakhita. Deve ser muito cedo. O dia não
nasceu, mas ela ouve sempre os ruídos abafados e os movimentos mais
furtivos. Levanta-se devagar para não acordar a menina, entreabre a porta e
vê-as. Rosto baixo, mãos nas mangas, as irmãs caminham na noite, ao longo
do corredor, parecem deslizar na penumbra fria e eis que desaparecem atrás
de uma grande cortina de veludo preto. Bakhita entra no quarto e pergunta-
se o que irão procurar atrás daquela cortina. Não pode deixar de pensar nas
rapariguinhas de batas cinzentas e tamancos de madeira. Imagens de
zéribas e mercados, de caravanas e de haréns surgem como facas,
recordações que pensava já não ter, e a angústia regressa, intacta, como se
tivesse sete anos. Foi posta naquele quarto no meio do nada: quem
responderia se gritasse por socorro? Olha para Mimmina. Rosto familiar
que lhe lembra quem é: tem dezanove anos, chama-se Bakhita, é a ama
daquela rapariguinha que se chama Alice Michieli e vive em Zianigo.
Repete a si mesma essa realidade, mas as recordações estão ali deitadas aos
pés da cama, o passado é um cão el. Uma aldeia em chamas. Um pacote
atrás de uma bananeira. A solidão. E o medo, o medo que cresce dia após
dia como uma paisagem nua.
O batismo está previsto para o mês de janeiro, mas, dez dias depois, a 15
de novembro, um telegrama de Suakin anuncia a chegada próxima de Maria
Turina Michieli.
Todavia, nunca saberão o que a Moretta lhes con ou, porque nunca
falou tão depressa e com tantas palavras árabes e turcas, dialetos africanos,
gestos, súplicas e lágrimas. É como verem aproximar-se uma derrocada sem
poderem proteger-se dela, e ouvem, no estupor e na revelação, tudo o que
aquela jovem conhece, todas as palavras estranhas e dores profundas. Não
sabem que é a primeira vez que conta isso. Os homens de Suakin. Os
desconhecidos que serve e os outros, que tem medo de reencontrar, os
carrascos, que por vezes são antigos escravos, aqueles que perguntam a
Augusto Michieli se ela está à venda e a quem ele responde «Ainda não.»
Com Mimmina contra si como um escudo. E as crianças, raparigas ou
rapazes, que os homens mandam ir aos seus quartos. E a irmã, Kishmet,
que teme reconhecer em cada prostituta. Diz que é jovem e que é velha, que
tem vinte anos e que tudo lhe aconteceu. Diz que viu o diabo e que agora
quer ver Deus. Mas não em Suakin, não se pode ver Deus em Suakin, não se
pode ser lha de Deus em ali. Fala daquele homem que gritava todas as
noites no hotel, um único grito, apenas uma vez, mas todas as noites, e ela
não quer voltar a ter medo. É a criança roubada, a criança nos mercados,
sempre obedeceu a tudo, repete a tudo, e todos os dias agradece aos seus
senhores deixarem-na com vida. Obedeceu a monstros e agora quer
obedecer a Deus. Abda, não é culpa sua e não é justo. Não. Torna a dizer
não. É a primeira vez. Não. Só tem essa palavra. Não.
Fala com a sua mistura mais confusa do que nunca e, quando para,
esgotada, disposta a render-se ou a morrer, ouve:
– Vou defender-te.
Sabe que é verdade porque a madre superiora nunca a enganou. A
Madre Fabretti agarra-lhe na mão e cam assim, com aquela que viveu
aquilo que nunca imaginarão e que, por caminhos incompreensíveis,
chegou a casa delas com o seu medo e a sua força, a sua juventude e o seu
passado. O Senhor nunca lhes deu um sinal mais visível e mais pungente da
Sua presença. Estão impressionadas e secretamente entusiasmadas. Estão
muito longe de imaginar onde as levará a defesa da Moretta.
Durante três dias, Maria Michieli vem ao instituto e pede que chamem a
Moretta ao parlatório. Bem como, claro, a sua lha, peça principal da
estratégia que adota. Vem sozinha, depois acompanhada de uma princesa
russa e nalmente de um primo, o cial do exército. Bate-se, como explica,
«apoiada por pessoas altamente colocadas» que a aconselharam a processar
as irmãs do instituto que excedem os seus direitos e, assim, escreveu ao
presidente da Congregação da Caridade para as denunciar. Tirará a sua
escrava desse instituto ou conseguirá fazer com que o encerrem. Como em
todas as batalhas, os apoios a que recorre, em vez de a fazerem raciocinar,
atiçam o fogo e conduzem-na a uma batalha que nunca teria travado sem
eles. No entanto, perante tantos amigos entusiasmados com o caso e
curiosos de ver como se vai sair, já não é a escrava que quer recuperar, é a
dignidade perdida, e todos os golpes são permitidos, passado todos os
golpes pela criança. Conta a Mimmina que Bakhita vai abandoná-la e,
diante da criança, suplica a Moretta, com lágrimas de raiva que passam pelo
mais puro desespero. Brande a criança e berra:
– Ama-a. Suplico-te! Sabes que ela morre sem ti, porque fazes isso?
A criança mergulhou numa angústia abissal e, de escrava, Bakhita
transforma-se em carrasco, de ama em infanticida. Desejaria dizer que
Mimmina lhe deu muita força, deu-lhe a ternura e a con ança, que
Mimmina vai viver, mesmo sem ela, que cresceu, e agora nunca mais cará
doente. Mas não diz nada. Cala-se e aperta o cruci xo com tanta força na
mão que a palma sangra. À noite, quando ca de novo no quarto com a
criança, estão esgotadas, atordoadas pela dor e a incompreensão. Mimmina
diz-lhe que não quer morrer. Bakhita jura-lhe que não vai morrer.
«Nunca?» Bakhita hesita… «Nunca.» A pequena diz-lhe que agora vai
portar-se sempre bem, não fará mais birras e comerá tudo aquilo de que
não gosta, brincará com as crianças pobres que a assustam, ajudará as
freiras a lavar a louça, e pede perdão chorando:
– Asfa, mamma! Asfa!
– Conheces essa palavra?
– Asfa! Costumas dizê-la! De noite, costumas dizê-la!
Bakhita olha para aquela menina que a esquecerá, mas não a fúria
desses dias massacrados.
– Quero que ainda me ames.
– Ainda te amo, Mimmina.
– És completamente negra.
– Sim.
– Como o diabo.
Bakhita não pensava que as coisas se passassem tão depressa. Há
quantos dias voltou Maria Michieli? Uma senhorinha acaba sempre por
amar como um senhor? E choram as duas, porque não há mais nada a fazer
além de deixar correr essa dor inumana, essa separação que marca o m da
vida juntas, as brincadeiras, os ritos, os cantos, a linguagem só das duas, os
seus desejos na noite que cai, tudo o que deixam ao separar-se. Deram a
vida mutuamente: o bebé que Bakhita massajava e cujo muco aspirava e a
escrava que Mimmina pedia no barco, mas não voltarão a encontrar-se. A
dor não se apagará, será reavivada por outras dores, e também pelas
alegrias, que lhes recordarão o que deram uma à outra. A alegria, esse
clarão ardente, trocado de súbito pela solidão.
– Asfa… Mimmina… Asfa, minha querida…
É a primeira vez que Bakhita pode escolher e, seja qual for o preço a
pagar, decide car em Itália. Quer ser batizada e tornar-se lha de um pai
que nunca a abandonará.
Disseram-lhe simplesmente que haveria pessoas, muitas pessoas no
parlatório. Homens importantes que vão ouvi-la e ouvir a Signora Michieli
antes de decidirem se ca no instituto ou se acompanha a senhora. Não
pronunciaram a palavra «processo». Mas é um processo. A Madre Fabretti
fá-la repetir uma frase curta, fácil de xar e que exprime a sua vontade:
– «Amo a Signora, amo a Mimmina e amo Deus. Escolho Deus.»
Concordas com isto? Os homens que virão, muito simpáticos, vais ver que
são muito simpáticos, não falam árabe, nem os dialetos do Sudão, minha
querida. Sabes?
– Sim. A eles, obedeço?
– Compreendeste, a eles obedeces. Mas a Signora Michieli também lhes
obedece.
– Os homens. Conheço-os?
– Não.
– Ah… E tu, tu falas?
– Não. Eu rezo. Rezo com muita força por ti. Mas estarei lá, a teu lado.
– Sempre?
– Quando os homens lá estiverem, sempre.
– Quando?
– Amanhã. No parlatório.
Aquele homem vai falar durante muito tempo, está a ver-se. Não tem
um ar cruel. Tem um ar feliz, um pouco fatigado, comeu demasiado e
dorme mal. Também tem calor e a sua voz é um eco, fala a todos e a
ninguém. Fala a si mesmo. Bakhita aguarda o momento de dizer a sua frase,
mas o cardeal pleiteia. Longamente. Fala de amor absoluto e de futuro
incerto, que será dela depois de abandonar o instituto, tem consciência dos
perigos que espreitam as jovens nesta Itália onde é uma estrangeira, não
seria melhor, uma vez batizada, que acompanhasse na viagem para a bela
África a Signora Michieli, que promete velar sempre por ela, presa fácil e
indefesa, humilde entre os humildes, pobre entre os pobres…? Bakhita não
compreende uma palavra. Quando ele termina, vira-se e procura o olhar da
Madre Fabretti, que empurra a pequena multidão para chegar junto dela.
Segreda-lhe ao ouvido, tenta traduzir sucintamente, mas, sobretudo, diz-lhe
que agora tem de dizer a frase, lembra-se?
– Amo…
A Madre Fabretti aponta para a sua garganta, menos grave, a voz, mais
doce.
– Amo…
E, de súbito, não pode mais. Todos em seu redor estão desejosos de
saber. Custa-lhe respirar nesta impaciência, desejaria fugir e esconder-se,
mas não o faz, é doce e gentil, e eles esperam, paciente e poderosamente.
Então? Deve declarar o seu amor. Numa frase. Tudo o que vive dentro de si.
Uma única frase. Agora.
– Amo…
Quem pode compreender aquilo? Vai magoar a única pessoa que ama:
– Mimmina…
Aquela verdade não chega. É preciso cavar mais fundo. É preciso
continuar: um pouco mais e tudo acabará.
– E quero Deus.
Desmorona-se, cai no soalho escuro, enrola-se sobre si mesma e ouve a
estridência do grito inumano, o grito animal que anuncia a morte e não
serve de nada: «Mamma! Mamma! Aiuto! Mamma!» O parlatório está em
chamas e ela não salva Mimmina, deixa-a sozinha no meio do fogo e da
devastação, não lhe responde, nunca lhe responderá. «Nunca.» É a única
verdade. «Nunca mais.» Bate com a cabeça no chão, evacuam a sala, levam a
criança que grita, levam-na para longe daquela negra a quem Maria
Michieli grita «Ingrata! Ingrata!», como uma maldição. Bakhita já não ouve
mais nada. Nem o amor, nem o ódio. Nem o adeus, nem a sentença, essa
frase que espera há treze anos: «Declaro livre a Moretta.» Não a ouve.
Da liberdade à santidade
Na manhã seguinte, quando vai procurá-la ao quarto, a Madre Fabretti
encontra Bakhita adormecida, enovelada na cama de Mimmina. Contempla
aquela adulta negra na cama da criança branca e vê a carga de tudo o que
ignora, o passado de antes da escravidão, a infância. E a solidão. A aliada
eterna. O seu rosto está dani cado, não apresenta nem libertação nem
exaltação, apenas a fadiga e as lágrimas. É uma mãe desapossada. Uma
criança esgotada e culpada.
Tem con ança em Mimmina, conhece-a. Não pensa que esteja sempre a
sorrir, sabe que chora e que chama por ela porque a ouve. Mas sabe também
que essa menina livre e branca, rica e curiosa em relação a tudo, divertida e
terna, vai lançar uma bela luz sobre a terra mártir do Sudão. E quem sabe?
Talvez um dia, sem descon ar, venha a encontrar a sua irmã. Ou Binah.
Não se sabe. Nunca se sabe onde a vida nos leva.
– Madre, recomeça. Por favor, recomeça.
A Madre Fabretti nunca preparou com tanta aplicação uma adulta para
o batismo. Todos os dias Bakhita pede-lhe que diga de novo as palavras que
deve pronunciar. Tem medo de se enganar, como no processo, e todos os
dias as repete para si própria: «A fé, a vida eterna, renuncio! Quero-o!
Credo! Credo! A fé, a vida eterna, quero, renuncio.» A Madre Fabretti tem
medo de que Bakhita misture as palavras e depois diz a si mesma que tem
de con ar nela. Aos vinte e um anos, tem essa mistura de vulnerabilidade e
de força, a sua energia é forte, a sua inteligência, profunda, e também é
divertida. Por vezes ousa um pouco de humor que as pessoas compreendem
mal, mas ela sorri e elas dizem que aquilo deve ser importante, o bom
humor, para esconder a sua a ição.
Mas quem os vê? Quem os olha a eles que cam à porta? Uma mulher,
pequena, magra e ávida, empurrou-os a todos para se colocar na soleira da
capela, cujas portas de madeira foram abertas de par em par e, erguida em
bicos de pés, contempla como tudo está bonito, no interior. Depois vira-se
para a multidão que se comprime na praceta e grita o que vê. Conta a
história, o que se passa. Mamma mia, como é bonito. E como é bom crer.
«Ámen sim!» Mimmina está com ela. Ouve-a. «Ámen sim!» Mimmina
brincaria certamente com o véu tombado por terra, para ser Santa Alice, a
bela imperatriz. A menina e ela são iguais, agora, ambas lhas de Deus.
Ligadas no mesmo amor, pertencendo à mesma família. Mas quem dirá, à
pequena Mimmina, que ela agora tem um nome? Quem lhe dirá para nunca
mais lhe chamar mamma?
Chama-se o cialmente Gioseffa, mas sempre a tratarão por
«Giuseppina», o diminutivo. Di-lo-ão com di culdade, aplicando-se,
porque, para todos, continua a ser a Moretta. Na certidão de batismo
declara-se que nasceu de pais desconhecidos e é uma maometana vinda da
Núbia. Ninguém conhece a sua história, nem a sua geogra a. O país de
onde vem não tem nome e a sua mãe não existe. A sua infância não é a sua
infância: é uma imaginação coletiva, alguns anos que as pessoas resumem
na palavra «sofrimento» e que se diluem numa Itália que é «libertação». É
batizada desde há um ano, continuou a formação de catequese e desejariam
que estivesse radiante, testemunho vivo do amor de Cristo, porém está
devastada. Encontram-na sozinha na capelinha, prosternada aos pés da
Virgem, orando e chorando. Falam-lhe e não ouve, está perturbada e não
sabem porquê. Stefano convida-a muitas vezes para passar alguns dias em
Zianigo, com aquela família que agora é a sua. Conhece aí alguns
momentos de felicidade, momentos em que nalmente ri, se lança em
relatos incompreensíveis e agita as mãos em todos os sentidos. O riso que
partilham com ela é uma surpresa e uma graça. Stefano preza esses
momentos. Bakhita viu crescer os lhos dele, assistiu ao casamento do seu
lho Giuseppe. A alegria de Bakhita, a beleza da noiva, branca no seu
vestido branco, e a promessa dos lhos que hão de vir, que também serão
sobrinhos dela. Ele diz-lhe isso e ela sabe que é verdade.
Uma vez mais, quer algo que não ousa dizer e o tempo que avança leva-
a à beira do abismo. A sua vida é feita de separações violentas, de raptos, de
fugas, sobreviveu a tudo, no entanto… no momento de confessar o seu
desejo mais profundo, ca siderada, muda e desamparada. A Madre
Fabretti tenta, uma vez mais, tranquilizá-la, compreendê-la e consolá-la.
Em vão. A angústia invade-a e encerra-a. Está separada dos outros por esse
desejo que não consegue confessar.
Então, uma manhã, pede para ver o seu confessor. Teve um sonho que a
levou de volta, uma vez mais, ao tempo da violência, quando não tinha mais
nada a perder, quando se atirava aos pés do cônsul para que a levasse para
Itália e se obstinava, apesar de todas as recusas reiteradas. No seu sonho, a
terra era vermelha e ouvia os risos dos camelos, os dentes que rangiam e as
patas peadas, esse barulho que ecoava na noite, esse ruído no seu sonho
despertou-a sobressaltada. E o medo estava ali, diante de si, sem outro
horizonte. O medo imenso e nu. E, de súbito, decidiu libertar-se dele.
Esse tempo do noviciado, que dura quase dois anos, é vivido por
Bakhita ao contrário do que se espera que seja: uma prova. Para ela é,
nalmente, o tempo da libertação. A Madre Fabretti é nomeada mestra do
noviciado, ajuda as « lhas» a identi car e aprofundar a vocação. Mas testar
a resistência espiritual e física daquela que sobreviveu a tudo é supér uo.
Bakhita só pede uma coisa: a autorização para amar. Hoje em dia, tem
direito a esse sentimento durante tanto tempo proibido, perigoso e portador
de sofrimentos mais fortes do que o mau trato. Dá-se de corpo e alma a el
Paron, esse senhor cujo amor redime os pecados.
Tem vinte e quatro anos e por mais que siga o mesmo ensino, diga as
mesmas orações, comungue, se confesse e use o mesmo uniforme que as
outras, não é como elas. É diferente. E para sempre. Para ela, farão sempre
uma exceção. Pedirão uma derrogação. Hesitarão antes de a aceitar ou, pelo
contrário, regozijar-se-ão ruidosamente. É aquela que se mete num lugar,
mas não se instala nele. Aquela que quer dizer algo e não consegue.
Espanta, surpreende e, com frequência, incomoda. A maior parte das
noviças admira-a, admira-lhe a delicadeza, o ardor inesgotável no trabalho,
levantando-se antes de todas e sendo a última a deitar-se, voluntariosa e
dotada, mas outras sentem-se pouco à-vontade. Não ousam olhá-la de
frente. Não compreendem nada do que diz. Têm medo de se cruzar com ela,
de noite, nos corredores. Não gostam de dormir no mesmo dormitório.
Lavar-se na mesma água e comer diante dela. O modo como segura no
garfo, a sua voz gutural quando diz o Benedicte e as cicatrizes que lhe saem
da manga. Sentem-se constrangidas pela sua própria aversão, confessam-
no, mas nada resolve o problema: têm medo e prefeririam que essa prova,
viver ao lado da Negra, não lhes tivesse sido enviada. Bakhita continua
negra sob o uniforme, como uma falta imperdoável, um pecado sem
remissão.
Pensa em Mimmina, que não conseguia adormecer sem lhe tocar nos
cabelos, e ela não dizia nada quando a criança, ao virar-se, os puxava com
força, porque era bom ser amada àquele ponto. Ao ponto de acompanhar a
pessoa que se ama até ao nal da noite. Sente agora a lâmina da tesoura
contra a cabeça. Pensa nela batida contra o chão, na violência de Samir, na
sua impureza. Mas hoje, celebra os seus esponsais. Hoje, 21 de junho de
1895, é o primeiro dia do verão, é a festa do Sagrado Coração. Vai desposar
Aquele que nunca a deixará e a amará tanto que uma única vida não
bastará, e haverá uma outra depois, eterna e sem falhas. Hoje vai vestir o
hábito das Irmãs Canossianas, semelhante ao traje das mulheres do povo,
vestido castanho, xaile e touca pretos, porque é junto do povo que essas
irmãs vivem para «consolar, instruir e tratar» os mais pobres. Passa a mão
pela cabeça sem cabelos, não tem espelho e não se vê. Mas, na assistência,
todos a veem e reconhecem. Com os cabelos rapados, é semelhante às
escravas fotografadas no jornal, desenhadas nos livros dos exploradores,
botânicos, missionários, médicos. Imaginam-na com a forquilha no
pescoço, a corrente no pé, choram de piedade e, alguns, também, devido a
um pouco de vergonha inexplicada. Todos sentem o mesmo alívio por não
fazerem parte «dessa raça».
Três anos depois de ter tomado o hábito, já com mais de trinta anos,
continua a não saber escrever. Aplica-se na leitura. Fala um pouco melhor o
veneziano. Borda. Reza. Obedece às ordens e gosta daquele enquadramento
tranquilizador, aqueles dias que se assemelham, ritmados pelas orações,
vigílias, laudes, sexta, vésperas e completas. Entre todos os laudes, gosta das
orações da aurora. Nunca transpõe a cortina de veludo negro sem pensar
novamente nessa primeira manhã em que, descalça na soleira do quarto,
vira passar as freiras e se assustara com elas. No entanto, era feliz. Mimmina
dormia na sua cama. Nunca mais voltará a conhecer a felicidade dessa vida
partilhada com uma criança que descobre a vida e nos impele a descobri-la
também. Acabou. Segurar a criança contra si, cantar para ela pousar a mão
na garganta que vibra, espreitar a primeira estrela e o aparecimento da Lua,
partilhar uma linguagem, uma cumplicidade e uma intimidade únicas.
Acabou. O odor quente da pele, a mão dela na sua e o olhar que diz «Espero
tudo de ti». Acabou. Está ali onde desejava estar e lutou para tornar-se a
religiosa que veio a ser. Ninguém voltará a ser alguma vez a sua lha, e
ninguém a substituirá.
É ela que se torna, ao longo dos anos, a lha da Madre Fabretti. Esta é
uma freira idosa, cada vez mais alegre, como se a divertisse esse movimento
do mundo, vaidoso e desorientado. Mantiveram o hábito da passeggiata, o
seu passeio nos cais, ao nal da tarde. Caminham mais devagar, a Madre
Fabretti apoia-se no braço de Bakhita e pensa que a irmã gémea talvez
caminhe assim com a sua mãe, que envelheceu. Falam pouco, contemplam a
luz do poente, as ilhotas submersas, o movimento das marés, dão as mãos
com uma ternura rápida. Por vezes, a Madre Fabretti pede a Bakhita que
recorde. Agora que tem mais vocabulário e que a sua vida acalmou, faz-lhe
perguntas. E as coisas voltam. Recordações tão violentas que parecem não
lhe pertencer e outras que reconhece e não ousa dizer. Por pudor e com
medo, também, de chocar a Madre, essa velha senhora italiana que vem de
uma família abastada. Àquela religiosa que ofereceu a vida aos outros hesita
quanto a dizer o que faziam aos escravos, mas, apesar do sofrimento que aí
há, recorda as imagens do calvário. É bom dizer àquela que a ama o que
viveu. A Madre Fabretti deixa vir os silêncios e as lágrimas, desenreda as
frases incompreensíveis, ouve com um amor perturbado. E quando ela diz
«Minha querida…», Bakhita sabe que acabou. É a hora de regressar. Vai
regressar, rezar e deitar-se, levantar-se-á para rezar de novo, não se
levantará para gritar na noite as recordações da inumanidade.
Está esgotada e desejaria dormir, sonhar que está algures, num lugar
onde não esperam nada dela, a escrava perdida entre as escravas, a negra
misturada com as caravanas do deserto, a rapariguinha que se rouba e
depois se deita fora, a invisível, a que pode ser esquecida, a que não vale
nada, nem sequer um saco de milho. Depois tem vergonha, tanta, desse
sentimento que se parece com a morte. Pensa no escravo Jesus Cristo, não
suportou também as cuspidelas e os risos da multidão? Não quer comparar
a sua vida à d’Ele. Não é nada, Ele é tudo. Quer apenas deitar-se um pouco e
que Ele a guarde, depois rezar-lhe-á, honrá-lo-á, mas esta noite não ser
amada: levaria demasiado tempo.
Sonha com o fogo. Sonha com Binah que tem dores de dentes terríveis.
Tem o rosto en ado na terra e já não quer sair de lá. Bakhita chama-a, diz-
lhe que têm de partir, o fogo está a chegar, tem de vir com ela, mas Binah
diz que não virá, que lhe doem muito os dentes. Bakhita chama-a de novo e
Binah transforma-se, estranhamente, na pequena Yebit, morta sob a tortura
da tatuagem. É prisioneira da tatuadora, cuidada por uma escrava, e
Bakhita está ajoelhada perto dela, dando-lhe de comer com uma enorme
colher. O corpo da criança convulsiona-se e sangra, no entanto come
calmamente, abre a boca a cada colherada. Em breve a cabeça separa-se do
corpo mas continua a comer. Bakhita grita, acorda a suar e, de imediato,
tenta ver se não manchou os lençóis. Espera que aquele grito não tenha
acordado ninguém: já têm todos tanto medo dela, o que vão pensar?
Levanta-se e abre a janela. É uma noite de outono, profunda e fresca. Schio
está protegida pelas montanhas, orlada pelo rio e as ribeiras. Há esse frio
que vem das águas, claro e rápido. Ouve os chocalhos dos animais nas
pastagens alpinas e, de longe em longe, um latido curto. Em seguida, o
silêncio que cobre tudo. Procura as estrelas e a Lua, mas é uma noite
enevoada, coberta de nuvens lentas. Desejaria ver uma estrela, apenas uma.
O vento sopra suavemente nas árvores do pátio, nos ciprestes imóveis, e o
castanheiro faz um ruído de tecidos agitados. Gosta desse ruído que se
parece com o das palmeiras nos ventos tépidos do Sudão. Uma nuvem
descorada abandona o céu e puri ca a noite. As estrelas são como cabeças
de al nete. Bakhita pensa que el Paron criou a noite para o repouso dos
homens e dos animais e também para nada. Para a beleza. Arregaça a
manga, estica o braço pela janela, move-o devagar e obriga-se a olhá-lo. E
talvez seja a primeira vez. O seu corpo está escondido de si mesma, já não é
o seu, carrega as cicatrizes profundas do chicote e as tatuagens escolhidas
pelas senhoras turcas, umas intumescências feias como serpentes cruzadas,
tem tanto medo das serpentes, e sente-as esticarem-se e rasgarem-se
quando se mexe a dormir, ou quando se prosterna, umas garras que tentam
retê-la. O seu braço parece-se com a noite, uma estrela poderia pousar no
punho, como uma ave. Quer esquecer o pesadelo que viveu, esquecer Binah
e a pequena Yebit, esquecer o fogo, mas enquanto expõe a palma da mão ao
ar da noite, compreende que se engana. Não tem de fugir dos sonhos, tem
de os ouvir. Binah está longe e ela é livre. Porquê?
Não sabem que ela compreende o que dizem e que tem a paciência dos
seres salvos. Não se apercebem da alegria que tem em preparar as malgas
para as órfãs do instituto e as lhas dos camponeses que vêm de longe, e
não todos os dias, apenas naqueles em que não ajudam nos campos. E, se
pudesse, até trabalharia de noite, daria o seu repouso, todas as horas de
sono, por uma única fome saciada. A primeira cozinheira, que a vê aquecer
as malgas das crianças para que comam sempre a comida quente, preparar
pratos especiais para os doentes e dobrar por vezes as rações, previne-a: «É
demasiado, Madre Moretta! As crianças não precisam de comer tanto.»
Elvira não conta o que se passa na cozinha. Pediu para trabalhar lá para
estar com a Moretta. Não é dotada para cozinhar e não tenciona, ao sair do
orfanato, arranjar um emprego de criada. Gosta de desenhar e pintar, mas
nas cozinhas está com a Moretta, que conhece desde os dez anos e de quem
gosta tanto. Trabalha nessa cave escura com as paredes cobertas de vestígios
de fuligem, nesse ambiente atarefado e generoso, e cada um dos seus dias é
protegido. Elvira é uma adolescente grande e robusta, cujo corpo se conjuga
mal com a nura do rosto liso e anguloso, os olhos castanhos e vivos, os
lábios pálidos. Dir-se-ia que aquele rosto se enganou no corpo ou, pelo
contrário, é protegido por ele, como uma jovem frágil transportada por
uma atleta. No jardim de infância, Elvira era enfezada, um busto cavado,
pernas nas como canas e caía tanto que os joelhos magoados não tinham
tempo de cicatrizar. Ao longo do tempo, concentrou-se em si mesma para
se fortalecer, atravessou a infância como um terreno minado e venceu.
Desde os dez anos que conhece as histórias da menina negra que foi criada,
a ouvir «Se gritas, mato-te», e que não grita, a menina que dorme na árvore
e não é devorada pelos animais selvagens, a escrava que caminha pelo
deserto e sobe para o barco gigante depois de ter suplicado ao atencioso
cônsul italiano que a levasse consigo para o país que salva os africanos. Tal
como a Madre Moretta, Elvira não tem família, a infância é um campo
inculto onde lhe é difícil desemaranhar as recordações reais da história que
inventa, a infância está atolada num tempo distante que treme como uma
paisagem entre as pestanas, vacila e desaparece. Sabe que a mãe ainda é
viva, não muito longe, do outro lado dos Alpes. Espera-a sem acreditar,
talvez sem o querer. A mãe escreve a dizer que virá e nunca vem, cada carta
é um acontecimento que desilude. Porque é que não vem? Porque é que
escreve? Lembra-se realmente da lha?
– E tu – pergunta-lhe Bakhita –, lembras-te?
– Lembro-me do que me contaram. Pouco tempo depois de ter
emigrado para Genebra, viu que estava grávida, mas, na Suíça, as
imigrantes não tinham o direito de ter lhos. Então, alguns dias depois do
parto, ela deu-me aos meus avós que tinham cado na aldeia. Foi o meu avô
que me trouxe para Posina. Eu não pesava mais do que um bácoro, dizia ele,
e era branca como o leite. Lembro-me de que ele dizia isso, o bácoro e o
leite, e imaginei sempre que eu era um leitãozinho de fraldas. Tinha cinco
anos quando eles morreram, ele e a minha avó. Tive muita sorte.
– Sorte?
– Tive uma boa mãe. Alimentou-me. Não pôs óleo nos seios, como
faziam as outras.
– Que óleo?
– Óleo de cânfora, para que o bebé não mame. Muitas mulheres
emigradas esfaimavam os lhos, paravam pouco antes de eles morrerem.
Então, traziam-nos para o orfanato.
– Ela ama-te.
– Madre, vou ensinar-te as conjugações.
– O quê?
– Vou ensinar-te os tempos. Não podes falar sempre no presente,
porque então o que dizes não está certo.
– Não. O que eu digo está certo. Penso-o.
– Não. Tu dizes que a minha mãe me ama. É tão falso como se dissesses:
«A tua mãe vem.» É preciso dizer: «A tua mãe amava-te» e «A tua mãe
virá».
– A tua mãe virá. E amar-te-á sempre. Bom, agora, é preciso trabalhar.
Bakhita dita as encomendas a Elvira, calcula as quantidades, prevê, e a
sua vida encontra novos pontos de referência. O ponto de referência mais
tangível é Clementina, com os lhos a que Bakhita chama os seus
«sobrinhos». Stefano morreu de repente no ano anterior. Chorou muito esse
homem providencial e bom, mas ele cumpriu a promessa e agora ela tem,
como as outras freiras, uma família. Tem visitas, encomendas postais e
fotogra as na mesa de cabeceira, colocadas ao lado das estampas sagradas e
da estatueta da Virgem. Com Elvira, aprende a falar no futuro e no passado,
e isso modi ca os acontecimentos, ordena-os e classi ca-os. Um dia, Elvira
mostra-lhe os desenhos que fez da pequena escrava que dorme nas árvores.
Fica sem voz. Naqueles desenhos, é ela. É tão pequena, tem um ar astuto e
expedito, mas, sobretudo, parece «doce e boa».
– Como sabes? Como sou.
– Como era, Madre! No passado!
– Não. É como sou. Agora. No desenho, reconheço-me, agora.
Elvira agarra-lhe no pescoço e beija-lhe as faces que cheiram à barrela.
Gostaria de a apertar contra si, mas isso não se faz. Nem efusões, nem
favoritismos. No entanto, parece-lhe que quando ela diz «Madre», a palavra
não é a mesma que para as outras irmãs.
– Amanhã, trago-te outros desenhos. Desenharei a menina que guarda
as ovelhas.
– Não são as ovelhas. As vacas.
– As ovelhas, as vacas, não importa. O que me interessa és tu.
– Mas são as vacas. É mais difícil. E as ovelhas… Não gosto delas.
Conto-te um dia porquê.
E repetem-se, e espalham-se as histórias da Moretta e, aos olhos da
comunidade, é como se ela crescesse, lhes escapasse um pouco, tomasse a
forma de uma pessoa complexa. Humana da mesma maneira que eles.
Não sabia que o que iria dizer seria escrito. Falava e via o que dizia
transformar-se em palavras, umas sequências de manchas pretas, e pediu à
Madre Fabris que lhas lesse:
– «A minha mãe tem muitos lhos. A minha mãe é muito bonita. A
minha mãe contempla a manhã, sempre, quero dizer de manhã ela
contempla o Sol quando nasce. E lembro-me disso.»
Teve vergonha. Fala realmente assim? Como uma criança? Tem
quarenta e um anos e, escrita, aquela vida parece uma cantilena. Uma
cantilena ingénua e banal. A sua vida é banal, a sua vida de escrava é
parecida com a de milhares de outras, há séculos, mas ela está naquele
escritório e escrevem as palavras que diz aquela que «não se revoltou nem
se vingou». Queria fazer-se esquecer. Está prestes a chorar.
– Perdão, Madre Giuseppina, por remexer nestas recordações.
No entanto, a Madre não remexia em nada. Pelo contrário. Escrevia a
sua incapacidade para lhes dizer, para lhes contar. O que era preciso fazer?
Arregaçar a manga, a túnica, e mostrar as cicatrizes? Representar o rapto, o
trabalho, a violência e o medo? É Elvira que sabe, com os seus desenhos
conta melhor do que ela com as palavras. Apontou para a folha escrita e
perguntou:
– Madre, é para fazer o quê?
– Para saber. A tua vida. A África.
– A África?
– Sim, claro.
– Madre, perdão, mas… conheço o mapa. O cônsul mostra-me o mapa e
Giuseppe Checchini mostra-me o mapa. E a África… é grande. E eu… que
posso dizer?
– É preciso contar, Madre Giuseppina, as tradições, a alimentação, a
religião.
– A religião?
– Claro que sim. Antes de encontrar o verdadeiro Deus, que ídolos
adoravas?
– Pre ro passear no jardim.
– Giuseppina, compreendes o que te perguntei?
– Pre ro passear no jardim.
Passearam no jardim por detrás da igreja. Nesse início de outono, a luz
era clara e hesitante, o perfume acre das batatas e das roseiras bravas
lembrava a intimidade das casas, algo dessa divisões atravancadas e antigas;
estava um pouco frio para Bakhita e a Madre Fabris pusera-lhe um xaile
sobre os ombros. Tinha tanta ternura como ignorância e a sua boa vontade
desajeitada traía a falta de experiência. Bakhita perguntava-se como lho
dizer, em poucas palavras. Já conhecia algumas perguntas de antemão,
sobre os seus carrascos, o perdão, a conversão, e o que tinha para responder
parecia-lhe sempre diferente do que esperavam. Era diferente e também
mais simples. Os seus carrascos? Havia muito que os con ara a el Paron,
não se preocupava com eles, a não ser, é claro, quando decidiam fazer-lhe
uma visita nas longas noites de pesadelos. Todavia, está aliviada deles
porque Deus perdoa por ela. É Sua lha e Ele faz isso por ela. As suas
histórias são verdadeiras? Aquelas recordações são as suas? Mas nada é
verdadeiro, além da maneira como fazemos o percurso. Como dizer-lhe
isto? Em veneziano? Em italiano? Em latim? Não tem nenhuma língua para
isso, nem sequer uma mistura de dialetos africanos e árabe. Porque isso não
está nas palavras. Há o que vivemos e o que somos. No interior de nós. É
tudo. Perguntam-lhe se sente a falta da mãe, se sente a falta do pai e das
irmãs, da aldeia, e sente vontade de lhes dizer: como vós. Sim, como vós,
porque toda a gente ama alguém de quem sente falta. Mas não é isso que
querem ouvir. Querem ouvir a diferença, querem amar com esforço,
avançar para ela como se descobre uma paisagem perigosa, a África arcaica.
São sinceros, tão sinceros. Mas só poderia desiludi-los, porque a sua vida é
simples e os sofrimentos passados não têm palavras.
Todas as manhãs, as portas do instituto abrem-se para as alunas e as
professoras e o mundo entra com elas. Nesse dia 3 de novembro de 1911, as
irmãzinhas rodeiam Anna, a mais novas das professoras. O jornal que tem
nas mãos louva um herói nacional, Giulio Gavotti. Olham para a fotogra a.
Não compreendem o que representa, sobre o que está sentado esse jovem.
Há barras metálicas, dois anteparos e ele está sentado no meio, com as suas
botas e o seu chapéu. A madre superiora diz que há dois anos, em França,
um homem atravessou o mar sem lhe tocar, foi a sua sobrinha, que emigrou
para Paris, quem lho disse. Anna a rma que esse francês, Bleriot, voara
sobre o mar.
– Sobre o mar?
– Sim. No céu.
– No céu?
Ninguém ousa ir mais longe. É incompreensível, quase uma basfémia.
Mas há a fotogra a, este homem também voa como as aves no reino celeste.
Anna explica:
– É com essa máquina que voa: «Etrich Taube», chama-se assim, está
escrito: «Monoplano Etrich Taube».
Dito assim ainda é mais agressivo. Não sabem como pronunciar essas
palavras. Mas o nome do homem, do herói, Giulio Gavotti, é tão bonito e
tão italiano que Gabriele d’Annunzio escreveu sobre ele um poema. Não
podem demorar-se mais, as aulas têm de começar e todos se dispersam. O
jornal ca na portaria, em breve esquecido num canto. Nesse dia, as
professoras falarão um pouco disso entre elas. As irmãs, nunca. As suas
refeições são silenciosas, os dias laboriosos, as suas recreações alegres, quase
infantis, e as noites entrecortadas por orações. As palavras no jornal dão
conta do que se passou a 1 de novembro de 1911. O primeiro
bombardeamento aéreo da história. Quatro granadas de fragmentação
lançadas com uma mão pelo piloto Gavotti sobre a Líbia. Ninguém
descon a então de que essa guerra, curta e de vitória fácil, vai despertar o
nacionalismo nos Balcãs porque nunca ninguém vê aproximarem-se as
catástrofes humanas que, uma a seguir à outra, ocorrem no mundo,
sucedendo-se para perpetuar o regresso à selvajaria e o desastre comum. Os
primeiros anos do século XX preparam a Grande Guerra, mas os con itos
são distantes e os mortos têm pouca importância. Trata-se de desertos e de
colónias, trata-se de impérios desmantelados e sonha-se com a expansão e
compensações territoriais. As irmãs canossianas ensinam pacientemente às
crianças as orações e o alfabeto, o cálculo e os bordados. E tudo ruge,
avança na direção delas como uma avalancha na montanha atrás das suas
costas. Aquele mundo vai desmoronar-se, vivem um presente efémero
porque algures uns homens sonham por elas e o heroísmo deles será o seu
martírio.
Bakhita ca a saber por acaso, num dia em que leva à rouparia a casula e
a alva do padre, que caíram granadas em África. A irmã roupeira nunca
gostou da Madre Giuseppina e, embora ela não desbote como temera
quando da sua chegada, deixa às suas auxiliares o cuidado de lavar aqueles
lençóis que a repugnam.
– Lançaram granadas na tua terra, Madre Giuseppina, sabes o que quer
dizer?
– Na minha terra?
– África! Bum!
– Que África?
– A tua. Bum!
Bakhita não dirá o que sabe à irmã roupeira. Nem da África nem das
granadas. Há muito compreendeu que, para sossegar, tem de continuar a ser
a que não sabe e ca impassível quando alguns berram para lhe falar ou
falam uma linguagem entrecortada, palavras privadas de ligações. Cala-se e
sorri. Espera. Sabe esperar muito bem. Teve tantos senhores, recebeu tantas
ordens loucas, sabe que calar-se é, muitas vezes, a mais prudente das
atitudes. Nesse dia, não responde à irmã roupeira, entrega a roupa suja e
levanta a que está lavada, faz como de costume. Mas quando se vai embora,
o seu coração bate em pânico e a respiração silva, fervilha-lhe na garganta,
como os ruídos de água nas gargantas das mulheres, das escravas com o
pescoço entravado. Sente o suor correr-lhe pelas faces e vai como pode até à
sacristia guardar a roupa no armário dos paramentos. As suas mãos fazem
gestos minuciosos, dobram lentamente, alisam e acariciam, separam as
roupas. Tem a visão enevoada, mas veri ca com uma aplicação concentrada
que não há o mais leve vestígio de vermes, de traças ou de ratos nas gavetas,
que as roupas não tocam na madeira, que não há pó nem nenhum rasgão
nas vestes sagradas e depois recomeça, tira as alvas, tira as casulas, as
estolas, desdobra-as, empilha-as, mistura-as. E senta-se. Agora, toda a
roupa está em desordem e já não sabe o que deve fazer com ela. «África!
Bum!» Não faz esse ruído. A África que explode. A ameaça é silenciosa e as
explosões assemelham-se a um grito da terra, profundo e confuso, o seu eco
nas montanhas tem o tempo de um coração que estoura. Pensa novamente
nas investidas do Mahdi. Revê, pela primeira vez, nitidamente, a noite em
que o seu senhor turco reuniu os escravos antes de os dispersar para
abandonar o mais rapidamente possível o Sudão. Ouve os gritos dos que são
separados e o pânico dos seres no limite das dores.
É uma manhã seca e faz um frio de rachar. Vê-se a neve nos picos das
montanhas e os caminhos áridos em breve abandonados pelos rebanhos
anunciam o inverno que vai devorar o dia, gelar a terra e desesperar os
camponeses. O sol é branco, as sombras, pálidas, dir-se-ia que nada se
mantém, que tudo está prestes a apagar-se e desaparecer. Estamos no
outono de 1913, um tempo de que ninguém se recordará e que, todavia,
todos deveriam acarinhar. A estação ferroviária ainda é o local das partidas
escolhidas e da viagem individual, as pessoas deixam-se sem sofrimento
intenso. Bakhita detém-se para recuperar o fôlego. Apesar da frescura do
dia, tem as pálpebras e a fronte molhadas de suor. Olha para Elvira, parece-
lhe tão jovem, mas já podia ser mãe. É estranha essa precipitação do tempo,
como se todos crescessem subitamente.
– Tens razão em partir, Elvira. Há que partir quando se deseja muito.
– Vou escrever-te com frequência, Madre. Vou enviar-te bilhetes-postais
todas as semanas, sempre.
– Desenhos. Pre ro.
– Não vou desenhar nas ruas, vou desenhar nos ateliers. Já te expliquei.
Vou desenhar rapazes bonitos, modelos magní cos! Queres que te envie
desenhos de rapazes bonitos? Perdão… sou parva quando estou
emocionada.
– Tens de ter cuidado, muito. Os homens não compreendem a alegria
das raparigas.
– Os parisienses são muito românticos.
– O que é «romântico»?
– É… delicado… gentil… amoroso.
– Oh! Vou rezar por ti! És tão inocente…
Retomam a marcha e já se ouve apenas a respiração voluntária de
Bakhita. Sofre nos seus sapatos, caminharia tão melhor sem eles, os pés
estão deformados e cada vez mais inchados. Elvira desejaria correr e gritar.
E chorar também, de impaciência e felicidade. Deixa Itália, foge da espera
pela mãe, da sua necessidade dela, não quer passar a vida a aguardar as suas
cartas e não quer estar ao serviço das burguesas de Schio. Não diz que
emigra para França, diz que vai estudar pintura em Paris, como tantos
outros artistas italianos. Dá a si mesma uma identidade e um pouco de
altivez. Chegam à estação e já não têm nada a dizer uma à outra. Estão
nesse tempo que já não lhes pertence, nesse local ruidoso e confuso onde
tudo é inútil. Onde tudo é importante.
– Também tens o bilhete de Milão? Tens tudo?
Elvira não responde, contempla a sua Madre. Há onze anos que se
conhecem e Elvira desenhou tantas vezes aquele rosto profundo, sabe de cor
todas as suas expressões, a concentração no trabalho, os sobressaltos aos
simples ruídos, às chamadas do exterior, aos passos, aos assobios, a surpresa
feliz ao menor sinal de afeto, a mão diante da boca antes de um verdadeiro
riso, os olhos erguidos ao céu e os lábios que morde quando procura as
palavras. Conhece-a e gosta de a abanar um pouco, de a fazer sair das
conveniências, esquecer a religiosa, e que apareça a mulher estranha e
apaixonante que é. No entanto, Bakhita não quer que Elvira faça os seus
retratos quando ri demasiado alto, quando canta fechando os olhos, quando
contempla as mãos em silêncio. Queria uma vida sem olhar. Pede-lhe que
rasgue os desenhos. Elvira nem sempre o faz. Guarda esses retratos como
um privilégio. Agora, a Moretta é conhecida em Schio, antigas alunas do
instituto cruzam-se com ela na rua e aproximam-se com um entusiasmo
contido pela timidez dos que cresceram, já não ousariam chamar-lhe
Moetta Bella, já não ousariam dizer-lhe «Vem!», e lembram-se com
confusão que lhe lamberam as mãos para sentir o gosto do chocolate, que
lhe esfregaram lenços nas faces e como ela as deixava pousar as palmas das
mãos no rosto e sentir a sua pele, dizendo «Não tenhas medo.» E também,
«Tens fome? Dizes-me se tens fome, dizes-me sempre.» Elvira pensa que
talvez tenha sido a sua preferida e também que muitas das alunas internas
teriam gostado disso tanto como ela, de serem aquela que a Madre Moretta
amou mais do que as outras. Agora, vai deixar-lha, será toda delas, das
alunas, das órfãs, e pergunta-se se haverá mulheres negras em Paris, se as
olharão como olham para a sua Madre, como aqui no cais, com este
constrangimento chocado.
Bakhita vê antes dela a nuvem cinzenta que atravessa as árvores ao
longe, incha, escurece, e a força ruidosa da locomotiva, esse silvo que
rebenta os tímpanos, é feito deliberadamente para que se possa nalmente
gritar tudo o que se retém, esse medo de partir e essa eterna sensação de
solidão. Uma pequena madeixa saiu da touca da Madre. Elvira torna a pô-la
no lugar, sorrindo.
– Não me havias dito que tinhas o cabelo grisalho.
– Em breve estou branca.
– Estarei.
– Sim. Estarei branca.
– Nunca faças isso, Madre! Não quero que te pareças com as outras.
Nunca.
Aperta-a violentamente contra si e sente o coração de Bakhita contra o
seu, o corpo tão magro e o suor que lhe escorre pelo pescoço. Não acredita
em Deus, mas é sincera quando lhe diz:
– Reza por mim, Madre. Não sou tão inocente como tu crês, mas
mesmo assim reza por mim.
Bakhita fecha os olhos. É um sim, muito doce, muito verdadeiro. Elvira
afasta-se, deixa-lhe apenas a multidão e o fumo, o pânico habitual dos
viajantes que já se mistura com as saudades e os remorsos, com os beijos
que se atiram e as lágrimas que se levam até casa, com tanta coragem que
nos perguntamos por que razão a vida é esta montanha de renúncias e de
mágoas.
O tempo passa e não se inscreve em mais nenhum lugar além dos
corpos que envelhecem e das crianças que nascem. A guerra começou em
França, do outro lado da montanha, e na Áustria-Hungria, do outro lado do
rio. Os jornais falam de países aliados e de países inimigos, de países
distantes ou cobiçados. Rússia, África, disputam-se desa am-se: é preciso
bater-se, quebrar o pacto de neutralidade, travar a guerra ou não a travar, e
em que campo, com a Alemanha e a Áustria, aliadas de Itália, ou com a
França e a Inglaterra? Os homens instruídos leem os jornais, berra-se nos
cafés, nas famílias e nas praças, fala-se em revolução, em república, império,
democracia e despotismo. Os socialistas, entre os quais o popular
Mussolini, exortam os operários e os camponeses ao paci smo; os
sindicalistas e os intelectuais desejam que o proletariado se bata nalmente;
os patrões sonham com produção em grande escala; os nacionalistas
querem apagar a humilhação da emigração e reconstruir a nação; os
emigrados abandonam a França, a Bélgica e a Alemanha para regressar ao
seu país; nas ruas, o pregoeiro já não anuncia apenas a hora de um funeral
ou a passagem de um vendedor, passa também a convocar comícios diante
da câmara municipal onde o podestà vai falar, mais alto e mais forte do que
os outros; os homens ganham vida tomando partido, falam sem nunca se
calarem, colados aos acontecimentos excitam-se, manifestam-se e batem-se
por uma guerra de que, no fundo, não sabem nada. Então, mudam de
campo e de opinião. Mussolini, expulso do Partido Socialista, faz campanha
pela entrada na guerra, anarquistas e nacionalistas juntam-se a ele, criam os
Grupos de Ação Revolucionária, a Itália divide-se, já se bate no seu seio, é
um frenesi que ninguém pode conter, uma exasperação e uma embriaguez
que extravasam.
Já não está com as crianças. Já não está com os que começam. Trata dos
que têm mais idade e que, amputados, mutilados, des gurados, querem
viver e na sua obstinação reconhece a força terrível e ameaçadora daqueles
que, como ela, numa vida tão distante e tão próxima, decidem não ceder
uma polegada às trevas.
Quando temos dores, quando temos fome, já não amamos. Já não temos
força para o fazer, sabe-o. Então, alimenta os feridos para que reencontrem
simultaneamente com o gosto do pão o da vida. Traz-lhes o que conseguiu
cozinhar substituindo a farinha pelas batatas, as compotas sem açúcar pelas
uvadas de peras, conserva os ovos no leite de cal, a carne no fundo dos
poços no gelo e na palha, inventa, improvisa e ninguém sonha contradizê-
la, trabalha em silêncio e, quando sobe da cave, ajuda as irmãs a alimentar
os soldados. E sabe. O que vai acontecer com os que a veem pela primeira
vez. Vai assustá-los. Como uma violência, vai aterrá-los, porque tudo o que
o homem vê pela primeira vez o aterroriza, toda a novidade é uma ameaça.
Espera os olhares apavorados, os rostos que se desviam, as recusas, as
estupefações mudas e paralisantes. Os dormitórios estão cheios disso, o
medo e a necessidade do outro. Vê as irmãs mais experientes tratarem sem
falhas e aquelas, mais novas, que contêm a vontade de vomitar, de fugir,
uma vontade de estar noutro lugar, de se refugiarem na igreja para rezar,
rezar de olhos fechados, longe do que a vida propõe de desumanidade, tudo
o que nunca deveria acontecer, mas acontece e simplesmente se impõe, se
instala e ca. Aproxima-se dos soldados com o rosto baixo, docemente, para
que os olhares se habituem a ela.
À noite, quando regressa ao quarto, Ida anota tudo o que ouviu a uma
velocidade tal que tem di culdade em reler-se, escreve como uma torrente,
e é a voz gutural, pudica e aos arrancos da pequena Dajou que guia a sua
escrita. Nunca viveu aquilo. Nunca encontrou ninguém como ela. Vacilante
e com uma força mais do que humana. Incandescente. Inclassi cável.
Inteligente e contida. Ainda não sabe onde esse escrito as levará às duas e, se
houvesse sabido, talvez não tivesse ousado. Se tivesse consciência da
projeção, do entusiasmo, da quase loucura que esse folhetim iria provocar
na revista canossiana, talvez tivesse pedido perdão à mulher que, durante
três dias, se lhe con ou, as xiada por vezes pelos soluços, e que voltava
atrás como as pessoas se agarram ao último rochedo da última montanha,
para contar o martírio, das crianças sobretudo das crianças, «compreende:
as crianças, as crianças escravas, as crianças-soldados, compreende, eu não
z nada e a senhora também não e quem poderá, diga-me, quem poderá
um dia?» Era isso que ela dizia, na sua mistura, que por instantes
compreendia tão facilmente.
Tomam juntas o vaporetto e o vento envolve-as com um vigor que faz rir
Bakhita. Gosta desta viagem tão curta e da impaciência do balanço, do
gesto largo da Virgem na cúpula da basílica, como se lhes oferecesse o céu.
É uma jornada feliz deixar Veneza e vê-la aumentar ao afastar-se. «É
lindo!», grita Bakhita e Ida faz um sinal a rmativo, segurando o lenço sobre
os cabelos que se levantam.
Ida sai em bicos de pés, deixa a anciã e a sua protegida voltarem a estar
dependentes uma da outra, num sentimento proibido, um afeto que, sabe,
não tira nada a Deus, mas dá aos humanos um pouco desse amor escolhido,
consentido e subjetivo que faz, de cada um, um ser único.
É falando com todos esses que vinham em tão grande número para a
ouvir (e vê-la, mais do que ouvi-la, e tocá-la mais do que simplesmente
olhá-la), é em contacto com italianos que Bakhita ca a saber que a Etiópia,
esse país tão próximo do seu, é um país imoral, mas com riquezas
inexploradas, petróleo, ouro e prata, platina, nitratos, enxofre, ferro, há lá
tudo e vão devorar, invadir, explorar, cavar tudo. Conhecem esse país
exótico e bárbaro, assistiram às reportagens assustadoras que falam de
in bulação e sacrifícios de crianças, passam uns aos outros, às escondidas,
fotogra as pornográ cas proibidas, as africanas que tentam como o diabo
com a sua pele de diabo. A Etiópia não traz apenas inúmeras riquezas,
também traz fantasmas e desejos reprimidos durante demasiado tempo. Os
vapores que os levam até lá estão carregados de soldados, agricultores,
operários, religiosas e missionários, mas também de italianas prometidas
aos bordéis italianos para que a raça branca não se misture e toda aquela
virilidade se liberte, sem falhas, no local certo.
Ela xou as palavras. O seu instinto diz-lhe que são perigosas. É preciso
abordá-las com prudência. E é com prudência que pergunta à Madre
Benetti, no comboio que as leva de um instituto para outro, o que quer
dizer «arsénico».
– Arsénico? É um veneno. Porque é que falas em arsénico?
Bakhita fecha os olhos. Sente um calor terrível, as mãos tremem-lhe
apertando o seu rosário. A Madre Benetti pensa que está imersa na oração.
Caminha pelos campos etíopes. Perto dos lagos com os peixes mortos, dos
rios envenenados e dos cadáveres de corpos vítimas de convulsões. As
palavras de Andrea Fabiani cobrem essa paisagem assassinada: «Gazearam
a população. Gazearam, compreende? Os obuses, com arsina e gás-
mostarda. A arsina, conhece, certamente? É verdade. Ouvi numa rádio
estrangeira».
Tenta conter a dor. Dirige-a. Condu-la. Segura-a. E à noite, na cela do
instituto que a acolhe, chora. Vive no caos furioso do mundo. E não sabe
onde pousar a sua revolta.
Nesse dia, Bakhita não queimou a carta de Elvira. Trouxe-a contra si,
entre a pele e o hábito de freira. Ali, onde o coração batia com a força que
lhe restava. A sua oração dirigia-se tanto a el Paron como aos seus lhos,
essa família dilacerada, cruel e perdida, que avançava para o desastre e o
ódio.
Tem setenta anos, o comboio que toma é o último, sabe-o. Levam-na
«para casa», para Schio, e dizem-lhe que agora vai descansar. Não pensa que
seja verdade. Ninguém descansa em tempo de guerra. A Itália bate-se ao
lado da Alemanha, uma guerra que os governantes anunciam uma vez mais
como rápida e fácil. Os homens veem as horas nos relógios e calendários,
veem o mundo no atlas ou dos aviões. Pensa que os homens observam tudo
de demasiado longe. Sabe que vai levar muito tempo. Ainda mais tempo do
que a guerra em si. Vai chegar e vai gravar-se, o massacre dos vivos
transmitirá a mágoa à sua descendência, e quem os consolará, a esses lhos
da paz que carregarão a dor invisível dos seus pais? Há uma recordação e
uma marca no universo, que não se apagam. Nada se inventa. E nada se
apaga. Pensa em Elvira, de quem não teve mais notícias, pensa nas jovens
missionárias perdidas entre o amor de Cristo e o medo dos povos
«bárbaros». Atravessou inúmeros anos e inúmeros países e nunca viu senão
a mesma paisagem: a dos homens perdidos, das mães desapossadas e das
crianças sem inocência. O comboio trava com força, guincha longamente e
para de súbito. A mala cai aos seus pés, a irmã que a acompanha precipita-
se, inquieta-se, está bem?
– Sim, estou bem.
O comboio não arranca. Abrem-se as janelas. Está calor. Um calor
muito pesado. O tempo vai mudar. Era bom que chovesse, que o céu
explodisse. Abriram-se as portas e alguns viajantes desceram para os
campos. Bakhita ouve as chamadas, os rumores…
– É uma corça…
– Sim. Levam muito tempo para a retirar.
– Mas que esperam eles?
Toda a gente fala e se mete. Bakhita ca sentada. Tem zumbidos nos
ouvidos, que lançam apitos contínuos. Isso acontece-lhe cada vez mais
frequentemente, uma crepitação entre o mundo e ela. Nada a fazer. E, de
repente, chove. Grossas gotas quentes que fazem subir os odores da terra.
As crianças estendem os braços para o exterior. Ralham-lhes e fecham as
janelas. O ar é sufocante. E o comboio ainda não parte.
– Tirem daí o animal!
– Que estão a fazer?
O tiro é seco. Anula os zumbidos de Bakhita e subitamente reina um
silêncio espantado, seguido de imediato por uma grande excitação.
– Mas então?
– Diga, que se passa?
Depois, lentamente, o comboio arranca. Os viajantes subiram
apressadamente, ensopados pela chuva, riem e sacodem as roupas, tiram os
chapéus. Tiveram medo, mas não era nada. Era impossível retirar a corça
sem a terem abatido. Tinha as patas esmigalhadas. Uma criança começa a
chorar de a ição, a mãe dá-lhe um beijo e um naco de pão. Sentado nos
seus joelhos, observa Bakhita. A anciã de rosto queimado, que sorri a essa
criança acabada de entrar na guerra.
Quanto a ela, vai entrar na velhice. Em Schio, já não tem função nem
horários xos. Está na miséria que a doença dá. Tem os dedos deformados
pela artrite e a sinovite, os punhos estão vermelhos, inchados pelos edemas,
os seus joelhos, ancas, ombros, tudo ca perro e se retrai, está dominada
pela dor e, pouco a pouco, por efeito das cataratas, vai perder a visão. Perde-
se nos corredores, agarra-se às paredes, dirige-se para os ruídos, mas os
seus ouvidos apitam e tudo se mistura, os pontos de referência baralham-se.
O seu corpo retira-se, o espírito vela. Vive no convento o que vivem todas as
irmãs velhas e doentes, rezando e preparando-se para o que vem. A noite.
Ou o dia. Caminha lentamente no instituto, de um local para outro. Aplica-
se a pentear e lavar as mãos das alunas que chegam sujas e negligenciadas,
oferece o seu quinhão de pão e fruta àquelas que têm fome e o escondem,
essas crianças cansadas que se mantêm à parte para verem as outras brincar,
com o ar sonhador daqueles que estão à deriva. Lava todos os dias, à mão,
as toalhas e a roupa da sacristia. Arruma o refeitório. Tricota, cose, remenda
e borda, e ninguém ousa falar-lhe na fealdade nova dos seus lavores, porque
vê mal e tem os dedos tão deformados que se pensaria poderem quebrar-se,
estilhaçar-se como lenha miúda. Visitam-na, na tranquilidade do parlatório
ou no seu quarto, e pouco a pouco dão-se conta de que, quase cega, é de
uma espantosa clarividência, anunciando a cura de um próximo,
predizendo a colocação de uma religiosa e, mais simplesmente, o lugar onde
se encontra uma carta perdida. Tem setenta e três anos quando cai pela
primeira vez. E depois outra. E mais outra. O padre perante o qual se
desmorona pede-lhe que não volte a fazer isso, que nunca mais se prosterne
à oriental diante dele. Ela pede-lhe que a ajude a levantar-se. Em breve
empurram-na numa cadeira de rodas, uma grande cadeira de madeira que é
parecida com ela, escura e sem leveza. Acontece levarem-na à igreja e
depois não a trazerem de volta: ca curvada na cadeira, esquecida na igreja.
Em breve, falta-lhe a respiração. Sofre de bronquite asmática e reconhecem-
na pelo ruído que faz: a cadeira de rodas estala, a respiração apita, ela tosse,
e escarra num lenço que treme nas suas mãos. As estadas na enfermaria são
cada vez mais frequentes. Já não sabe em que posição car. Estar deitada é
impossível. Estar sentada comprime-lhe a caixa torácica, o busto desliza
lentamente e cai. Estendem-lhe as pernas para fora da cama, sobre uma
cadeira, porque sofre de elefantíase. As irmãs vêm fazer-lhe companhia,
mas manda-as embora, pois tem muito medo de que a enfermeira pense
que não trata bem dela e que pesarosa com isso.