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Véronique Olmi nasceu em Nice, França, em 1962, e vive atualmente

em Paris.
Tem escrito peças de teatro, romances e novelas. A sua obra encontra-
se atualmente traduzida em vinte idiomas, sendo os seus textos
dramáticos representados em França e em vários palcos internacionais.
O primeiro romance que publicou, Bord de Mer (2001), recebeu o
Prémio Alain-Fournier. Uma década depois, ganhou o Prémio Maison
de la Presse com o livro Cet Été-Là.
Santa Bakhita
Véronique Olmi
Publicado em Portugal por
Porto Editora
Divisão Editorial Literária – Lisboa
Email: dellisboa@portoeditora.pt
Título original:
Bakhita
© Éditions Albin Michel, 2017
Tradução: Artur Lopes Cardoso
Imagens da capa: Musée Nicéphore Niépce, Ville de Chalon-sur-
Saône/adoc-photos/Fotobanco.pt
1.ª edição em papel: março de 2019

Rua da Restauração, 365


4099-023 Porto
Portugal

www.portoeditora.pt

ISBN 978-972-0-67782-2
Para o Louis
Para a Bonnie
«Tirar-nos-ão também o nome: se quisermos conservá-lo,
teremos de encontrar dentro de nós a força para o fazer, fazer
com que, por trás do nome, algo de nós, de nós tal como
éramos, ainda sobreviva.»

Primo Levi, Se Isto é um Homem


I

Da escravidão à liberdade
Ela não sabe como se chama. Não sabe em que língua são os seus
sonhos. Lembra-se de palavras em árabe, em turco, em italiano e fala alguns
dialetos. Vários são provenientes do Sudão e um do Véneto. As pessoas
dizem: «uma mistura». Ela fala uma mistura e as pessoas compreendem-na
mal. Tem de se repetir tudo por outras palavras. Que ela não conhece. Lê, com
uma lentidão apaixonada, o italiano e assina com uma caligra a trémula,
quase infantil. Sabe três orações em latim. Cânticos religiosos que entoa
com uma voz baixa e forte.

Pediram-lhe muitas vezes que contasse a sua vida, e contou-a uma e


outra vez, desde o início. Com a sua mistura, contou-lhes e foi assim que a
memória voltou. Ao dizer, por ordem cronológica, o que estava tão distante
e era tão doloroso. Storia meravigliosa. É o título da brochura sobre a sua
vida. Um folhetim no jornal e, mais tarde, um livro. Nunca a leu. A sua vida
contada a eles. Sentiu orgulho e vergonha em relação a ela. Temeu as
reações e apreciou que tivessem gostado dela através desta história, com
tudo o que ousou e calou, que eles não teriam querido ouvir, que não teriam
compreendido e que, de qualquer modo, nunca contou a ninguém. Uma
história maravilhosa. Para este relato, a sua memória voltou. Contudo, o seu
nome, nunca o reencontrou. Nunca soube como se chamava. Mas o mais
importante não é isso: nunca esqueceu quem era em criança, quando usava
o nome que o pai lhe deu. Guarda dentro de si, como uma homenagem à
infância, a criança que foi. Essa criança que deveria ter morrido na
escravidão e sobreviveu. Essa criança era e continua a ser o que ninguém
conseguiu alguma vez tirar-lhe.
Quando nasceu, eram duas. Duas rapariguinhas iguais. E ela continuou
a ser a sósia da sua gémea. Sem saber onde ela estava, vivia com ela.
Estavam separadas, mas juntas, cresciam e envelheciam afastadas e
semelhantes. À noite, sobretudo, sentia a presença dela, sentia aquele corpo
que faltava perto do seu, aquela respiração. O seu pai era o irmão do chefe
da aldeia, em Olgossa, no Darfur. O nome dessa aldeia e dessa região foram
os outros que lho disseram, aqueles a quem contou a sua história e que
zeram comparações com os mapas, as datas e os acontecimentos. Em
Olgossa, portanto, o pai expusera-as, à gémea e a ela, à Lua para as proteger,
e foi à Lua que disse pela primeira vez os seus nomes próprios, que
recordariam para todo o sempre como tinham vindo ao mundo e como
para sempre o mundo se lembraria delas. Sabe que as coisas se passaram
assim, sabe-o de uma forma infalível e eterna. Quando contempla a noite,
pensa muitas vezes nas duas mãos estendidas do pai e pergunta-se em que
parte dessa imensidão permanece o seu nome próprio.

Ao serão, em Olgossa, quando o Sol desaparecia atrás dos montes de


pedra, os homens e os rebanhos regressavam, as cabras ajoelhavam-se sob
as árvores, o zurro dos burros tocava uma música falsa, a terra ainda não
estava fria e as pessoas da aldeia reuniam-se à volta da fogueira. Falavam
alto, como a multidão nas feiras. Ela sentava-se no joelho do pai e encostava
a cabeça no seu ombro. Quando ele falava, a voz fazia vibrar a sua pele. Um
arrepio muito longo, um arrepio que tinha um odor, uma música, um calor.
A irmã gémea sentava-se no outro joelho, tinha o mesmo medo que ela na
noite que ia chegando. Pensou tantas vezes nessas noites, na ternura do seu
medo protegido. Fechava os olhos. E guardava para si essa mágoa
inde nida, impossível de explicar. Não possuía a linguagem para o dizer, as
palavras que conhecia eram concretas e rudes, a cada uma podia
corresponder um desenho ou uma forma, não diziam nem o que foge nem
o que permanece. Era no seu olhar que podia ler-se o contraste entre a força
e a inocência, no seu olhar havia sempre o que perdera e o que a vida
interior lhe permitira reencontrar. A sua vida, que protegia como uma
oferenda.
O rosto da sua mãe devia ser belo, uma vez que ela era bela. Era quase
sempre escolhida por isso, pela beleza. A mãe devia ser alta, com as maçãs
do rosto proeminentes, a testa larga e os olhos negros, com aquele clarão
azul como uma estrela colocada no meio. Como ela. Cheirava a painço
grelhado, ao doce amargo do suor, e a leite. Cheirava ao que dava. Se sabe
que a mãe cheirava assim, é porque esse odor regressou várias vezes e lhe
cortou a respiração. Era terrível não poder retê-la, receber o seu choque
sem saborear a sua doçura. Era terrível e também era bom receber aquela
fulgurância, alguns segundos que devia acolher simplesmente, como um
mistério sem desgosto. Dos onze lhos que a sua mãe pusera no mundo,
quatro estavam mortos. Duas haviam sido raptadas.

Tem cinco anos quando isso ocorre pela primeira vez. Cinco, seis ou
sete anos, como saber? Nasceu em 1869. Talvez um pouco antes. Ou um
pouco depois, não sabe. Para ela, o tempo não tem nome, não gosta de
escrever os algarismos, não vê as horas nos relógios, apenas na sombra
projetada das árvores. Aqueles que lhe pediram que contasse desde o início
calcularam a sua idade em função das guerras do Sudão, essa violência que
ela reencontrará noutros lugares, uma vez que o mundo é igual em todo o
lado: nascido do caos e da explosão, avança despedaçando-se.

Tem cerca de cinco anos e é o m do mundo. Essa tarde traz uma luz
que nunca mais foi vista, uma alegria calma que vibra e em que não se
repara. Não se sabe que ali está. Vive-se no interior dessa alegria como aves
atarefadas e, nessa tarde, na sua aldeia, as crianças brincam à sombra do
grande embondeiro e a árvore é como uma pessoa de con ança. É o centro
e o antepassado, a sombra e a referência. Os velhos dormem a esta hora do
dia. Os homens recolhem as melancias nos campos. À saída da aldeia, as
mulheres batem o sorgo, é a música calma de uma aldeia pací ca que
cultiva os campos, uma imagem de paraíso perdido que ela guardará para
se persuadir de que aquilo existiu. Vem de lá o lugar da inocência
massacrada, da bondade e do repouso. É isso que quer. Vir de uma vida
certa. Como todas as vidas antes do conhecimento do mal.
A sua irmã mais velha, Kishmet, deixou a aldeia do marido para passar
a tarde em casa dos pais. Tem quase catorze anos. Não trouxe consigo o
bebé. A sogra toma conta da criança, que tem um pouco de febre, e, então,
durante algumas horas, volta a ser a lha dos seus pais e está com a gémea
que dorme a sesta, na cubata das mulheres. Sente-se triste por viver noutro
lugar, por pertencer ao marido e já não ao pai, mas está orgulhosa por ter
um lho. Os seus seios estão cheios e, antes de adormecer, a gémea bebeu
um pouco do seu leite, isso aliviou-as às duas.

O canto das mulheres que batem o sorgo é como um zumbido de


insetos. Ela tem cinco anos e brinca ao lado da mãe com as suas pedrinhas.
Faz o que fazem todas as crianças: inventa, dá vida aos objetos, às pedras, às
plantas, anima e imagina. São precisamente os seus últimos momentos de
inocência. O conhecimento vai abater-se sobre ela de uma vez só e revirar-
lhe a vida como se fosse uma luva. A mãe canta um pouco mais lentamente
do que as outras mulheres, ouve essa diferença. Os pensamentos dela estão
noutro lugar porque a lha mais velha veio passar ali a tarde. Em breve será
como ela. Já tem um bebé. E terá outro. E mais outro. A vida de uma
mulher casada. O canto lento da mãe revela o orgulho, a inquietação
discreta. E a ternura.

Tem cinco anos e medo de serpentes. Frequentemente, o seu irmão mais


velho desenha grandes tas na areia com a ponta do cajado e ri quando ela
grita. A partida do irmão mais velho é uma brincadeira, mas ele e a
serpente carão associados para sempre no seu espírito. Sentirá saudades
dessa brincadeira desigual, os olhos do irmão que esperam o seu medo e
riem dele antecipadamente, aquele olhar trocista que lhe lançava e lhe dava
uma pequena importância. Nessa tarde, é no momento em que vê o rasto da
serpente que o irmão talvez não tenha desenhado que ouve o enorme ruído.
Desconhecido. Não o compreende, mas, nesse mesmo instante, as mulheres
param de bater o sorgo, erguem os rostos, gritam como se já estivessem
perante a desgraça e correm ao seu encontro. A mãe apanha-a sem a olhar,
ceifa-a como se fosse uma erva e corre, gritando. E depois esquece-a. Deixa-
a ali, de súbito, na aldeia des gurada, no meio das chamas, precipitando-se
para a cubata onde dormem Kishmet e a gémea. Então, ca sozinha. No
meio do fogo e dos mortos. Fixa-se nela o terror do abandono. Chama pela
mãe. Grita o seu nome, mas esse grito perde-se no ruído furioso do fogo,
das pancadas dos homens que batem com as forquilhas, os almofarizes,
derrubam as selhas de água, e o fumo envolve a aldeia e sufoca-a. A
rapariguinha tosse e chama pela mãe, mas nem os seus soluços nem os seus
braços estendidos recebem auxílio.

Quando chega à cubata das mulheres, a mãe procura Kishmet e só


encontra a gémea. Sozinha e viva. Abana-a. Abraça-a. Repele-a. Aperta-a
contra si. Gestos de pânico e sem coerência. Grita à criança: «Diz-me o que
viste!» Repete-o com uma voz aguda, ordena-lho em soluços histéricos,
«Diz-me o que viste!» A criança permanece muda. A mãe sabe o que ela
viu. Sabe o que se passou. Ela própria nasceu na guerra, conhece a
organização da escravatura e sabe por que razão raptaram a sua lha e para
que vai servir. «Diz-me o que viste!» signi ca «Diz-me que ainda a vês!»
Mas a criança não se mexe. Cala-se. O seu olhar mudou, carrega um
conhecimento novo, e ainda não tem as palavras para o transmitir.

Nessa tarde, os raptores tinham chegado a galope, com o fogo, as


espingardas, as correntes, as forquilhas e os cavalos, e apanharam tudo o
que puderam. Os jovens sobretudo. Os rapazes para os exércitos, as
raparigas para o prazer e para o serviço doméstico. Foram rápidos, estão
habituados. Conhecem a aldeia, informados por colaboradores que lhes
haviam indicado o caminho e que talvez fossem da aldeia vizinha. Sabiam o
que iriam encontrar.

Os homens e as mulheres de Olgossa chegaram demasiado tarde. Os


seus rapazes e raparigas tentaram fugir, esconder-se, mas foram capturados,
feridos, mortos e as suas vozes perderam-se no grande sopro das chamas.
Há corpos desmembrados, queimados, agonizando e gemendo em grandes
charcos de sangue. Há cabras errantes, cães que ganem e aves mudas. Há
cubatas dani cadas e cangas de escravos quebradas que marcam a passagem
dos invasores. O fogo ainda corre de uma ponta à outra. É a assinatura dos
negreiros.

A aldeia ca em desordem durante vários dias, como um campo depois


da tempestade. Ela não reconhece a gémea nem o lugar onde vive. Olgossa
está cheia dos gemidos ininterruptos dos feridos, numa repetição do
sofrimento, que soa como um apelo lento e desesperado. Não reconhece as
pessoas com quem vive. Os habitantes recolheram os mortos e contaram os
ausentes. Descobriram velhos decapitados e crianças mutiladas.
Descobriram o saque e a pilhagem, os campos devastados, as vacas
agonizantes, a água do rio contaminada por cadáveres inchados, todo e
qualquer sinal de vida aniquilado. Então, as mulheres arranharam os
próprios corpos até fazerem sangue e bateram com a fronte no solo uivando
sons que ela nunca ouvira. Os homens pegaram nas lanças e nos tambores e
partiram durante a noite. O feiticeiro veio e fez sacrifícios. Dias e noites
depois, os homens regressaram. Sem olharem para as suas mulheres. E
também baixaram os olhos diante dos lhos. Contra as espingardas e a
pólvora, as echas e os arcos apenas serviram para assinalar a sua presença
impotente. Que ironia.

Durante muito tempo, a aldeia conservou o odor dos corpos e da palha


queimados, as cinzas voaram durante vários dias antes de desaparecerem no
vento e, quando desapareceram, tudo terminou realmente. Contudo, na
areia, diante da cubata das mulheres, o corpo da irmã mais velha deixou um
rasto de serpente tão grande como um ramo de embondeiro. Ela vê-o
sempre. Mesmo quando os outros o pisam. Mesmo quando a chuva
transforma a terra vermelha em montes de lama. Vê a imagem da sua
ausência brutal e muda. Esse aviso. E conserva o medo nu, o dos seus
próprios gritos que a mãe não ouviu. É um perigo novo: perder a proteção
materna. Uma mãe que já não reconhece. Uma mulher inquieta, nervosa e
sem sono.

Claro que os habitantes de Olgossa hesitaram quanto a abandonar a


aldeia, dado que agora era conhecida dos mercadores e os seus agentes
regressariam certamente. Depois pensaram naqueles que o tinham feito
antes deles, que tinham fugido da aldeia que fora alvo de uma razia, que
tinham abandonado as plantações, perdido os rebanhos, que haviam
partido para um outro local onde nunca tinham chegado. Haviam sido
encontrados mortos de fome no sopé das colinas, na planície e na oresta.
Então, os habitantes de Olgossa caram. Com o medo de ir recolher lenha,
de ir buscar água, o medo de que as crianças se afastem, de que as mulheres
sejam demasiado belas, o medo de que as espingardas e a pólvora regressem
a galope. A qualquer momento. De dia. De noite. E a sua alegria tornou-se
mais incerta, perturbada pelo luto e pela impotência, e essa descon ança
nova em relação aos desconhecidos, mas também, e sobretudo, àqueles que
não o eram e que tinham indicado, sem errar, onde podiam encontrá-los.
A mãe tinha tantos lhos. Foi assim que sempre se lembrou dela, com
crianças agarradas às mãos, às pernas, dilatando-lhe o ventre, sugando-lhe
os seios, dormindo às suas costas. Uma árvore e os respetivos ramos. É a sua
mãe. Mãe de todas as crianças, mãe carinhosa e universal, espelho de todas
as mulheres que deram a vida, continua jovem e fértil para sempre,
continua carinhosa e poderosa, ela é o amor incondicional, o amor absoluto
e mártir. A mater dolorosa.

Tentou guardar as imagens belas dessa mãe, imagens de antes da razia.


Aquele dia de festa em que viu o seu corpo pintado de vermelho, brilhando
com o óleo, que fazia uma chama estendida sobre a areia. Estava bela como
uma desconhecida. As crianças seguiam-na dando as mãos, com risos
tímidos. A aldeia estava sempre cheia de crianças. Crescia-se com uma
criança nos braços. Sobre a anca. Nas costas. Pela mão. Crescia-se
acolhendo todos aqueles que vinham depois, crescia-se para se poder
transportá-los e isso não tinha m. As crianças fugiam, espalhavam-se, iam
livres e nuas com gritos agudos, risos e choros fugidios. E já outras nasciam.

Para essa festa, lembra-se, a mãe entrançara-lhe os cabelos com pérolas


vermelhas, amarelas e azuis, rodeara-lhe a cintura e os punhos com as
mesmas pérolas vermelhas, amarelas e azuis que tinham pertencido aos
antepassados e eram o sinal da tribo, o seu reconhecimento, como as
pinturas nos corpos e nos rostos, as tatuagens nas pálpebras, aqueles
penteados e aqueles adornos. São cores que voltam, pedaços de infância que
ressurgem e nos quais quer acreditar. Para essa festa, a mãe tirara tempo
apenas para ela e, quando terminou, disse-lhe: «Tu és bela.» Então, ela
pensou que era uma joia por si só e jurou a si mesma que, mais tarde, se
pareceria com a mãe, com aquela chama vermelha que as crianças seguem.

Durante os dois anos que se seguiram à razia, ela pensava que casaria,
teria lhos e preencheria o grande vazio deixado pela irmã mais velha. Era
o que faria. Seria reparadora da desgraça. Para que a mãe deixasse de ser
essa mulher que caía, essa mulher à espreita que ordenava dez vezes por dia
que não se afastasse, que nunca falasse com estranhos, que nunca seguisse
pessoas que não fossem da aldeia, mesmo as mulheres, mesmo os
adolescentes. Era uma litania que já não ouvia, era o cântico novo da mãe.

Tem sete anos agora e sabe que, por detrás das colinas, a irmã mais
velha, outras raparigas e outros rapazes desapareceram. Tornaram-se
escravos. «Escravo» não sabe o que é exatamente. É a palavra da ausência,
da aldeia em fogo, a palavra depois da qual já não há nada. Aprendeu-a e
depois continuou a viver, como fazem as criancinhas que brincam e não
sabem que estão a crescer e a aprender.

Tem sete anos, leva as vacas ao rio, nunca vai lá sozinha, não se afasta,
mas precisam dela e isso agrada-lhe. Tem o seu lugar. E também o seu
carácter. Dizem que é alegre, sempre de bom humor, que não para quieta. A
mãe diz que ela é «doce e boa», por isso, mesmo quando está furiosa,
mesmo quando está encolerizada, tenta parecer o que a mãe diz dela, «doce
e boa». Isso modera-a um pouco, trá-la de volta a algo razoável, a ela que
tem uma imaginação tão grande e todos os dias inventa novas histórias que
conta aos mais pequenos, histórias que representa para intensi car o relato,
com gestos e efeitos de voz. Gosta disso, do olhar dos petizes que esperam a
continuação da história, dos gritos de falso terror, das mãos postas diante
das bocas, dos risos de alívio. Gosta de lhes dar esses momentos de fantasia,
do orgulho que existe em fazer surgir os sentimentos escondidos: o medo e
a esperança.

Tem sete anos e obedece à mãe que, uma tarde, lhe pede que vá buscar
erva à saída da aldeia. Não está sozinha, está com uma amiga que se chama
Sira. Lembra-se de um nome agradável, porque não Sira? Avança
baloiçando as mãos e cantando a sua cançoneta, «Quando as crianças
nasciam da leoa». É uma canção inventada por si que canta aos mais
pequenos. A canção fala de uma anciã que recorda que, outrora, as crianças
nasciam cobertas de pelos e armadas de dentes que perdiam ao crescer para
se tornarem verdadeiros humanos. Quando inventa, ela é espírito, criança
perdida, animal guerreiro. O seu próprio medo acalma-se sempre com o
nal feliz da história.
Nessa tarde, Sira caminha a seu lado, preguiçam um pouco para ir
buscar a erva pedida pela mãe, há algo de indolente, o vento abranda, o sol
perdeu a dureza e talvez seja por causa dessa suavidade que estão tão
negligentes e distraídas. Veem os dois homens e não descon am. Nem
pólvora, nem espingarda, nem cavalo, são dois homens cuja aldeia não ca
muito distante. Vizinhos.

Também eles foram vítima de razias. Perderam tudo. Talvez queiram


trocar uma destas duas crianças por outra que os negreiros lhes tenham
tirado e que esperem reencontrar. Talvez também eles se tenham tornado
esclavagistas. Tendo escapado sãos e salvos de uma aldeia que sofreu uma
razia, procuram sobreviver. E as duas meninas estão sozinhas. Tão novas.
Uma rapariguinha é o que se vende por mais dinheiro, mais ainda do que
um rapazinho. As crianças que têm entre sete e dez anos são as mais
valiosas, e ela já é bela, veem isso, essa beleza que vai desabrochar e que vale
realmente muito. Uma beleza de harém. Sorriem. Cumprimentam, num
dialeto não muito afastado do seu, e esperam um pouco, apesar da
impaciência. Falam baixinho entre si e entram em acordo quanto ao
caminho a seguir: só levarão uma, já não são muito jovens e têm um ar
robusto, devem defender-se como tigresas. Apenas uma é menos arriscado,
a mais bela, evidentemente. Só um fala com ela, para não a assustar, o outro
mantém-se pronto a intervir em caso de resistência.

O homem pede a Sira que se afaste. Que se afaste um pouco. Um pouco


mais. Para mais abaixo. Sira recua, sem se virar, recua. Ele continua a fazer
um sinal com a mão e ela obedece. Para junto do rio. Os homens estão
espantados com a facilidade da coisa, as raparigas não piam, não estão
longe da aldeia, um único grito e ter-se-iam esgueirado a toda a velocidade.
A ela, o homem diz-lhe que caminhe no sentido oposto, em direção à
bananeira. Não se mexe. Parece atordoada, quase idiota. Ele aponta para a
bananeira, diz-lhe que é preciso ir lá buscar um embrulho, mas ela não
compreende. Olha para a árvore e para a amiga. Sira saltita de um pé para o
outro, sem parar, e os seus olhos são imensos. O homem fala-lhe mais alto
agora. «Não pertence à nossa aldeia.» Esse pensamento chega de forma
repentina. A amiga dança mais rapidamente num pé e noutro e os grandes
olhos tam-na, chorando. Sente o medo. Está presa nas redes do medo que
circula dos homens até Sira e de Sira até ela própria. Os seus ouvidos
zumbem e a vista turva-se-lhe. O homem faz caretas, ela vê-lhe os dentes
amarelos, o sorriso impaciente dele e o outro, que conserva a mão na anca,
sopra com força, está zangado. O homem espreita, a aldeia não ca longe,
alguém poderia passar, é o nal da tarde, vão regressar com os rebanhos,
esta miúda é bela, mas estúpida. Ela sente o tempo distorcer-se e pesar. Não
vê o embrulho. Não pode falar. Não tem vontade de gritar. Não tenta fugir.
Sente que desliza, que cai para um lugar qualquer, mas não sabe para onde.
Com os dois punhos metidos na boca, dobrada ao meio, Sira observa-a e
dir-se-ia que o seu corpo se vai cravar na terra. O mundo está silencioso e
em fúria. O vento já não sopra, o céu branco está tomado por uma única e
imensa nuvem imóvel. O homem insiste. A rapariga olha para a árvore para
onde ele pede que se dirija. Não sabe porquê, mas fá-lo. Avança para a
árvore. Os dois homens seguem-na, juntam-se-lhe prudentemente sob a
bananeira. O ruído do seu coração. Como um tantã que toca a reunir. O
homem que tinha a mão na anca puxa de um punhal e encosta-lho à
garganta, cobrindo-lhe a boca com a outra mão, «Se gritas, mato-te!»
Aquela mão é tão grande, cobre-lhe todo o rosto, cheira mal, e o tantã bate
no interior da sua cabeça, no peito, no ventre, e as pernas tremem. Não sabe
o que provocou a fúria daqueles homens. Agora, gritam no seu dialeto e o
punhal pressiona-lhe com força o pescoço, pensa que talvez comam as
crianças como comem as gazelas. Arrastam-na como uma gazela morta.
Está nua como as crianças da aldeia. Avançam, arrastando-a. Olgossa
afasta-se. Desmorona-se mais rapidamente do que sob as chamas.
Caminhou com eles até à noite. Não ouviu as pessoas da aldeia a
persegui-los. Não ouviu soar o tambor da selva. Não viu aparecer o seu pai,
forte e temido. Continuou a andar, durante muito tempo, o dia ia
desaparecendo e ela continuava a esperá-los. Iam inquietar-se, iam
caminhar velozmente, iam correr e encontrá-los. Mas não vinham e então
houve aquele terror súbito, a revelação do que desencadeara. Viu a aldeia
em chamas. Pensou que era por isso que não vinham socorrê-la. Levam
uma criança, a aldeia arde e os habitantes estão ocupados a lutar contra a
destruição. Eis o que zera. Desobedecera e desencadeara a catástrofe, e
chamar a mãe, estender os braços, uma vez mais, era inútil. Já ninguém a
ouvia.

Esperou. Esperou muito e andou muito. Chegou a noite, e depois…


Depois, ela nunca o contou. Como se isso nunca tivesse acontecido. Não é
uma história maravilhosa. Storia meravigliosa. Para que uma história seja
maravilhosa, é preciso que o começo seja terrível, decerto, mas também que
a infelicidade continue a ser aceitável e ninguém saia maculado, nem aquela
que a conta, nem os que a ouvem.

Chegou a noite. Estava sozinha com os raptores. Como contar o que


queria nunca ter vivido?

A caminhada durou dois dias e duas noites. Ela não sabia onde cava o
grande rio, onde cavam as aldeias, o que havia atrás da colina, atrás das
árvores e atrás das estrelas. Então, tentou reter o que via, para fazer o
caminho em sentido inverso e voltar a casa. Tinha medo e memorizava.
Estava perdida e recitava: o pequeno regato. O cercado com quatro cabras.
A duna. Os arbustos. Os poços. Duas bananeiras. Silvas. Um cão amarelo.
Um burro. Dois burros. Uma palmeira anã. Um velho sentado. Acácias. A
duna. Um campo de painço. Um caminho de seixos negros. Um elefante
atrás de um embondeiro. Ervas verdes. Pedras vermelhas. Recomeça. Dois
burros. Um velho sentado. Acácias. A duna. Tropeça. Cai. O pequeno
regato. O cercado. Levanta-se. Um poço. Um camelo. A Lua. Hesita. As
estrelas: o Cão, o Escorpião e as três Estrelas Irmãs. Dois burros. Não. Duas
palmeiras anãs. O campo de painço. Ouve o grito estridente das hienas. O
calor transformou-se em gelo na noite que vem, o vento é frio e veloz. A
paisagem apaga-se. Está no meio do invisível.
A entrada de uma aldeia. Um estreito caminho de terra, algumas
cubatas, alguns cães escanzelados e os ecos de uma vida longínqua. Estão ali
uns homens, falam entre si, distraidamente e sem paixão. Cumprimentam
os dois raptores e regressam à sua conversa. Estão habituados às crianças
roubadas, há-as em todo o lado e a todo o momento desde sempre. Não
olham para a rapariguinha, não há piedade nem curiosidade. É uma noite
como outra qualquer.

Os raptores abrem uma porta. Atiram-na. Cai sobre uma terra dura e
gelada. Fecham de novo a porta com o grande ferrolho. Está aterrorizada e a
palavra «mamã» é tudo aquilo de que se lembra, a única coisa que
verdadeiramente existe. Essa palavra mora-lhe na cabeça, no peito, em todo
o corpo. Mistura-se com a dor, com o grande medo do que lhe zeram, do
que não compreende, é o único nome que lhe resta. Falta-lhe um outro: o
seu. Na primeira noite, os dois homens perguntaram-lhe como se chamava.
Tinha demasiado medo de olhar para eles. Com os olhos baixos, via o
punhal. Brilhante e frio. Como se chama. Como lhe chamava a mamã.
Como se chama. Como lhe chamava o pai quando falava à Lua. Um dos
homens pousou as mãos sobre as suas pernas magras, feridas pelos
espinhos das acácias ao longo da caminhada. Como se chama. Deixou o
nome próprio perto do rio. Deixou-o sob a bananeira. O nome mostrava
como ela veio ao mundo, mas já não sabe como foi. Chora de pânico. Só
resta o nome da sua mãe. Está em toda a parte. Não serve para nada.

No compartimento aferrolhado para onde a atiraram, não há dia e a


noite nunca cai. Não há Sol. Nem Lua. Nem estrelas. O exterior aparece
levemente através de um pequeno orifício no alto da parede. Fica ali
durante muito tempo. Um mês, talvez. É um tempo sem ritmo, um tempo
que se funde com a angústia. Chama pela mãe, mas ela não vem. Com
ternura, suplica-lhe. Pede perdão, «Perdão sinto muito, Perdão não voltarei
a fazer, castiga-me, repreende-me. Perdão.» Por vezes, a mãe aparece-lhe
nos sonhos e nos delírios, umas aparições que a ligam àqueles de quem
gosta. Será que se levanta de noite para a esperar? Será que suplica ao seu
pai que a encontre? Será que a amaldiçoa por lhe ter aumentado a chaga
profunda do desgosto?

Por vezes pensa que vai car ali toda a vida com os dois raptores que, à
noite, vêm com um pouco de pão e água, e a sua violência também. Vai
crescer assim. Será possível? Isso acontece? Ser esquecida por toda a gente,
menos por aqueles dois homens? Existir apenas para eles?

Está na noite e não existe nada depois dela, além do recomeço da noite.
Sente as ratazanas, os piolhos nos cabelos, tudo é invisível e ameaçador, está
suja e atormentada, tem um corpo novo, cheio de dor e de vergonha. Agora,
só se aproximam dela para lhe fazer mal. Uma presença é uma ameaça.
Levará muito tempo a deixar de estremecer quando alguém se aproxima, a
deixar de ter medo de uma mão que se estende, de um olhar demasiado
seguro de si. Levará muito tempo a acalmar o instinto das presas que se
mantêm vigilantes, mesmo na alegria ou durante o sono.

Dorme enrolada como um feto, chupa o polegar e, por vezes, canta a


canção «Quando as crianças nasciam da leoa», pousando a mão no peito
para sentir a pele vibrar como fazia a do pai. A voz treme-lhe como o ar sob
o sol do meio-dia e a sua pele rasga-se. As picadelas das baratas e as
mordeduras dos ratos desenham nela sinais ardentes que segue com os
dedos.

Uma manhã, decide evadir-se. Encontra em si a força para esperar,


acreditar em algo e desobedecer. Durante dias, esgaravata a terra, o buraco
de argila no alto da parede. Em bicos de pés, com o corpo esticado,
esgaravata o máximo que pode. É pequena, é magra, mas decide fazê-lo
sempre, todos os dias, e então o buraco aumentará e regressará a casa.
Descobre em si uma força teimosa, obstinada, essa vontade de viver a que
chamam instinto de sobrevivência. Nela, haverá sempre duas pessoas: uma
à mercê da violência dos homens e a outra, estranhamente preservada, que
recusará esse destino. A sua vida merece algo diferente. Sabe-o.
Todos os dias esgaravata e repete «mamã, mamã», esse nome dá-lhe
força, segue o compasso dessa palavra repetida que se torna uma ordem.
Muito em breve, os dedos começam a sangrar. As crostas formam-se e
depois desfazem-se. Como alargar aquele buraco, com quê? Numa manhã,
atira para lá uns ratos com a esperança de que a ajudem. Mas os que não
caem para trás saem pelo buraco sem nunca o roerem. Os que caem soltam
guinchos agudos que lhe aumentam o medo. «Torna-me pequenina!» pede
uma noite à Lua, que não vê, «Faz-me sair!» Chora e sente-se desaparecer, a
vida abandona-a. E depois levanta-se. Algo a impele, a acorda do desespero.
Olha aquele buraco, fala-lhe. Torna-se um amigo. Um inimigo. Um animal
a domar. Um espírito a quem suplicar. Conserva-o diante dos olhos, ainda
que os feche. Guarda-o na cabeça, mesmo quando dorme. Durante um dia
inteiro esfrega os cabelos nele. Os cabelos partem-se. O buraco não
aumenta. Todos os dias, em bicos de pés, mede-o com as mãos esticadas. É
do tamanho de três. E nunca maior.

Então encontra outra maneira de se salvar. As histórias, agora, é a si


mesma que as conta. Imagina por vezes que os mais pequenos a ouvem,
revê os seus olhos cheios de medo e de esperança, começa a história e nunca
a acaba, não sabe onde vai parar, tudo se esquiva, a febre invade-a e
mergulha no mundo de outrora, no qual ouve os gritos, à noite, para reunir
os rebanhos. Os chamamentos da mãe para vir comer. As vozes quebradas
das velhas que tagarelam quando o Sol se põe. Ouve e vê tudo. Instala tudo
isso à sua volta, transforma os escorpiões, as ratazanas e as formigas em
pessoas amadas, dá-lhes nomes, vê-as viver. Durante um tempo, esta outra
realidade salva-a da morte. E depois o desespero regressa. Vê onde se
encontra realmente. Já não é ninguém. Grita como um animal abandonado.
Grita e chora entre o sonho e o sono, faz viagens entre o imaginário e o real,
entre a infância e o m da infância. Cerra os punhos. O buraco de argila é
um olho que a vigia. Está lá em cima. Não a liberta.

Uma manhã, um dos raptores abre a porta, arrasta-a para fora, e a luz é
como uma faca. Há vozes. Há homens. Um bruaá compacto numa língua
que não é a da sua tribo. Compreende de imediato que aqueles que ali estão
não são da sua aldeia. A deceção é violenta como o sol. Sente as mãos dos
homens sobre si e abre os olhos, umas agulhas brancas que dançam e mais
nada. Um dos homens levanta-lhe as pálpebras e diz que ela está doente.
Então, o raptor agarra-lhe o queixo com a mão, força-a a abrir a boca e a
mostrar os dentes. Atiram-lhe um pau para que corra e o traga de volta. De
início ela não compreende. Não vai buscá-lo. Esbofeteiam-na e recomeçam.
Corre. O homem cospe quando ela cai. As suas pernas já não a sustentam,
está de pé sobre dois pedaços de madeira torcidos. Não compreende o que
deve fazer. Está desesperada. Não sabe o que querem. Inspecionam-na.
Toda. Isso provoca-lhe dores e não compreende por que razão querem
magoá-la sempre. Chora devido a essa incompreensão e chora de desalento.
Então, o raptor enerva-se, mostra ao mercador os músculos da rapariga, as
barrigas das pernas e os braços, e sobretudo repete que ela é bela. Djamila.
É a palavra que a designa. Djamila. Começam as lengalengas, as disputas e
os risos cheios de soberba. Os seus olhos habituam-se à luz. Vê que há
homens e mulheres atrás deles. Um pequeno grupo que espera. Não sabe o
quê. Ouve a negociação numa língua que não conhece, será que vai voltar
para a prisão? Durante um instante, tem esperança de que esses homens
tenham sido enviados pelo pai, mas depois vê dinheiro passar da mão do
homem para a do raptor. Vê as moedas nitidamente. Não quer voltar para a
prisão, car com os raptores, prefere partir com aquelas pessoas, QUER
partir com aquelas pessoas. Apura o ouvido e compreende algumas palavras
que dizem ter cerca de sete anos e chamar-se Bakhita. O raptor guarda o
dinheiro numa bolsinha e empurra-a na direção do grupo que aguarda.
Está aterrada, mas deixa a prisão. Não sabe que «Bakhita», o seu novo
nome, signi ca «a Afortunada». Desconhece que é levada por negreiros
muçulmanos. Na verdade, não sabe nada do signi cado de tudo isso.
Estão amarrados uns aos outros. Os homens à frente. Três. Correntes
em redor do pescoço, presas aos pescoços dos outros dois. As mulheres
atrás. Três. Com as correntes em redor do pescoço. Presas ao pescoço das
outras. Estão todos nus, como ela. Também há uma rapariguinha, pouco
mais velha do que ela, que não está amarrada e ao lado de quem a colocam.
Encontram-se entre dois guardas, fecham a marcha. Vê esse cortejo, os
guardas têm chicotes, espingardas, os acorrentados caminham sem se
queixar, não olharam para ela, não vão olhá-la. Durante toda a vida,
procurará o olhar dos seres maltratados pela vida, o trabalho ou os seus
senhores. Entra no mundo organizado da violência e da submissão. Tem
sete anos e, apesar do medo, está atenta. Não sabia que se podia caminhar
acorrentado e chicoteado. Não sabia que faziam isso aos homens. E não
sabe como isso se chama. Então, pergunta à rapariga como se chama aquilo.
– Chiu – responde-lhe a menina.
– Quem é? – Repete, mais baixo.
Mas a criança faz um sinal de que não compreende. Não fala o seu
dialeto. Ela aponta para aqueles adultos, muito jovens que caminham à sua
frente:
– Eles! Quem?
A pequena franze os olhos, procura compreender e, de repente,
responde:
– Abid.
Depois, aponta para ela:
– Tu: abda.
A angústia atinge-a como uma bofetada. Abda. A sua irmã. É isso. O que
lhe aconteceu. Abda, «escrava», é a pior das desgraças, abda, é Kishmet e é
ela. Subitamente, é real, isso existe à sua frente, está ali, diante dos seus
olhos. E pergunta-se pela primeira vez: «Será que Kishmet está ALI?»
Perguntar-se-á sempre.

Volta a ver-se perdida no fumo da aldeia, chamando pela mãe, que não a
ouve. Olha as jovens acorrentadas e ouve a mãe: «Diz-me o que viste!»
Agora, é a ela que a mãe ordena isso. Então, observa os corpos jovens já
curvados, as cicatrizes nas costas, os pés dilacerados, e a palavra «escravo»,
a palavra do terror, caminha diante de si. A menina ao seu lado aponta para
ela própria e diz baixinho: «Binah. Bi-nah.» Em seguida, aponta para ela e
faz-lhe uma pergunta que não compreende, mas que adivinha. Quer
responder-lhe, porém não sabe como. Há muito que não lhe falam e todas
as línguas são agora línguas estrangeiras. Hesita. Olha para os escravos.
Depois, passa os dedos sobre os olhos molhados, limpa o ranho com o
braço sujo e, apontando para si, diz pela primeira vez: «Bakhita.»

Nos dias subsequentes, tem a impressão de atravessar a terra inteira.


Planícies e desertos, orestas, cursos de água sem água, pântanos
nauseabundos, saltam fendas, sulcos num solo rebentado. Sobem
montanhas. Com pedras escaldantes que se movem sob os pés e fazem cair
os homens carregados como burros, pedras com serpentes em cima que
assobiam ao levantar a cabeça. Repete para si este nome próprio que detesta
e tenta familiarizar-se com ele. «A Bakhita não grita quando vê a língua
dançarina da serpente.» «A Bakhita não agarra a mão da Binah quando cai
sobre as pedras.» Com esse novo nome próprio, tem medo de que o sol e a
lua não a reconheçam. Tenta orientar-se nesta nova vida, mas não sabe para
onde se dirigem, o que se vai passar. Sabe que a sua aldeia se afasta, não
conhece esta paisagem, tudo o que vê é visto pela primeira vez. O vento é
quente, fustiga-lhe as pernas com punhados de areia e as suas picadas
cam-lhe durante muito tempo na pele, como mordeduras de mosquitos
invisíveis. Há dias em que o céu se enche de água, um ventre enorme e
cinzento sobre eles, mas ninguém fala à chuva, ninguém diz as orações e os
cânticos para que venha, e então eles cam com a sua sede, separados do
céu.

Já não está na prisão, está no mundo imenso e inconstante e observa-o,


sentindo o esgotamento, mas também a avidez. Vê aves de asas vermelhas e
azuis que se chamam de muito longe, se encontram, e depois desaparecem,
céleres, como se as apagassem do céu de uma vez só. Será que as aves voam
para junto da sua mãe? Será que as duas podem ver as mesmas coisas? Será
que pode enviar-lhe os seus pensamentos? Em tudo o que vê, procura-a.
Uma manhã, muito cedo, vê um falcão que paira no céu, de asas abertas
como uma mão tranquila, e essa tranquilidade fá-la chorar. Parece-lhe a
mãe antes da grande desgraça. Vê ores que se agitam no vento e pergunta-
se o que aquela dança quer dizer, mas não o descobre. A mãe sabe-o. Ela
sabe ler as paisagens. Vê uma árvore no chão, derrubada por animais
selvagens, os ramos cravados no solo como garras, e pensa no tronco do
embondeiro caído sobre o qual as crianças brincam lá na aldeia, e onde a
mãe se senta para ver chegar o Sol da manhã. Ouve os animais correr, ouve-
os sem os ver, os passos deles tremem sob os seus pés, pensa na mãe quando
ela dança, não a abandona, mas mais além dos seus pensamentos há a
fadiga e a dor. A sede que a faz babar. E as lágrimas quando olha para as
mulheres acorrentadas, que não são a irmã mais velha. As gargantas delas
fazem ruídos de água, tosses que não saem. Arquejam e tropeçam, as mãos
mexem-se incessantemente, os dedos tremem-lhes no nal dos braços. Os
seus pescoços têm cortes e estão inchados, por vezes os dedos tentam
afastar a corrente, repetem sempre esse gesto que não serve de nada e então
param. E depois recomeçam. Isso faz rir os guardas. No entanto, também os
irrita. Dizem que elas têm sorte por ter as mãos livres, mas que tal não vai
durar, e depois servem-se dos chicotes, dos bastões ou dos punhais,
brandem as espingardas. As mulheres têm medo e quando uma cai faz cair
as outras. É uma grande desordem, as correntes estrangulam-nas um pouco
mais, há gritos e choros, há que pensar sempre nas outras acorrentadas. Ela
pensa na irmã mais velha. Será que lhe zeram isto?

Compreende que, desde que foi raptada, não fez uma viagem pequena,
caminhou muito e já nem sequer tenta ter pontos de referência: as colinas,
as montanhas, as dunas, as planícies e as orestas. Não pode memorizar
tudo isso. É o mundo, descobre-o, os dialetos mudam, tal como as
paisagens, a forma das cubatas, os animais nos cercados e os que estão nas
planícies, os rostos dos homens e das mulheres, as marcas no corpo, o negro
da sua pele, alguns estão tatuados, outros estão escari cados, nunca viu isso
antes. É belo e assustador. Alguns são grandes e esguios como troncos,
outros pequenos como crianças velhas e todos estão habituados às
caravanas que passam. A sua aldeia encontra-se na rota dos escravos, que
vão de zériba em zériba, esses centros espalhados por toda a região onde se
reúnem, guardam e se selecionam, para os mercadores a que pertencem, o
mar m e os cativos. Mais tarde, serão encaminhados para os grandes
mercados. Nessas aldeias que atravessam, por vezes realizam-se negócios de
improviso. Os que não têm um escravo para vender vendem alguém que
roubaram ou então um membro da família. Bakhita viu isso uma vez,
naquela aldeia despovoada pela fome, aquele jovem famélico que propusera
uma rapariguinha, des gurada pela magreza. Os guardas tinham cuspido
para o chão, por quem os tomava? Haviam dado uma chicotada à pequena e
ela caíra imediatamente, sendo a prova de que não valia nada. Bakhita não
compreendera que era a irmã do rapaz, fora Binah que lhe explicara e que
insistira em que acreditasse nela. Bakhita tapa os ouvidos. Por vezes, o
conhecimento do mundo é uma grande fadiga. E depois, no momento
seguinte, é o contrário. Quer ver tudo e ouvir tudo. Mesmo o que não
compreende. Quer reter as palavras árabes, reter o que vê, o que a fome e a
miséria fazem aos homens. Vê o medo de onde nasce a cólera e o desespero
de onde surge o ódio. Recebe tudo isso sem poder dar-lhe um nome. O
espetáculo da humanidade. Essa batalha que os dilacera a todos.

Descobre que todos compram e vendem escravos, que não possuir um


ou dois é a pior das misérias. Vê-os nos campos e nas casas, ferreiros,
milicianos, camponeses: estão por todo o lado. É uma epidemia de escravos,
e quando os guardas compram novos, sempre jovens, repete-se o mesmo
procedimento: antes de comprar, veri cam-lhes os dentes, os olhos, a pele,
dentro, fora, os músculos, os ossos, lançam o pau, fazem-nos girar, saltar,
erguer os braços e falar também, por vezes. Batem nas mulheres que
choram. Que gritam quando as separam dos lhos, ou não gritam. Elas
abrem a boca e a voz mora-lhes no fundo do ventre, no gelo. Bakhita olha-
as e pensa no bebé de Kishmet: era uma rapariga ou um rapaz? Está
embrutecida, aturdida por demasiadas desgraças. Está nesta história, abda,
e não sai dela. Continua. Tem medo, também, porque o mercador compra e
abandona. Abandona aqueles que a caminhada esgotou, os que tossem, os
que coxeiam, os que sangram, os que caem, mas a Binah e a ela conserva-as.
Quer que ele as conserve. Porque sem ele será pior, sabe-o. Ser abandonada
pelo guarda não signi ca car livre, pelo contrário. Sabe, desde o rapto, que
outros homens podem capturá-la, car com ela e revendê-la. Então, tem
medo de se ferir. De car doente. De mostrar fadiga ou sede. Segue a
caravana, os homens à frente, as mulheres atrás, Binah e ela entre dois
guardas. É uma longa la nua e desesperada, que atravessa o mundo numa
grande indiferença. A ela, que o pai havia apresentado à Lua, a ela que se
sabia convidada da terra, o universo já não protege. Os escravos passam e
não moram em parte alguma. O seu povo já não existe. Fazem parte dessa
dispersão, desse martírio, os homens e as mulheres longe das respetivas
terras, que caminham e muitas vezes morrem pelo caminho.

À noite, antes do repouso, os guardas retiram as correntes e os cadeados


do pescoço dos homens e das mulheres e colocam-lhos nos pés. São
acorrentados dois a dois. Fazem o mesmo a Bakhita e Binah. Prendem-nas
juntas, pelos pés, e elas fazem tudo em conjunto. Com muita vergonha. De
início, não ousam olhar-se e mal se falam. Uma noite, o embaraço fá-las rir.
Desde então, conservam esse riso e, nas noites seguintes, riem
antecipadamente do que têm de fazer juntas na terra. Apesar de os seus
risos serem mais forçados do que sinceros, dão um pouco de dignidade à
vergonha. Bakhita aprende isso, que conservará durante toda a vida como
uma última elegância: o humor, uma forma de mostrar a sua presença e
também a sua ternura.

Ela e Binah tentam misturar os seus dialetos e é difícil. Misturam-lhes


algumas palavras de árabe, mas as raras palavras árabes que conhecem são
violentas e rudes, inutilizáveis para o que têm vontade de contar. Têm
vontade de contar uma à outra histórias de outrora. De dizer como era
antes, quando eram pequenas (ainda mais pequenas) e, assim, carem
ligadas à vida, terem a sua própria história, com os seus vivos e os seus
mortos. Bakhita compreende que Binah foi apanhada pouco tempo antes
dela. Ela também quer encontrar a mamã. Diz-lhe que a irmã mais velha
não foi apanhada pelos negreiros. Morreu ao pôr no mundo um rapazinho.
Para se fazer compreender, representa através de gestos o parto, o bebé e a
morte. Bakhita não compreende tudo. Contempla aquela rapariguinha e
pensa nas crianças a quem contava histórias, vê no olhar de Binah a mesma
expectativa. Renuncia a falar-lhe da irmã gémea, do pai, da manada de
vacas que guardava junto do regato, do irmão que desenhava a passagem
das serpentes na areia. E quando Binah lhe pergunta o seu verdadeiro
nome, ela torce a boca, belisca o braço para não chorar. Binah sabe como se
chama. Chama-se Awadir. Di-lo a Bakhita como um segredo que ela não
deve repetir nunca. Na noite seguinte, dormem de mãos dadas. Bakhita
sente então uma força insuspeita, uma corrente poderosa, e isso também é
novo: partilhar com uma desconhecida o amor que já não se pode oferecer
àqueles cuja falta sentimos.

Um dia, sob a violência de um sol branco, a caravana chega a Taweisha.


Já não é completamente igual. Alguns escravos foram comprados, outros
morreram, e a caravana foi seguida, ao longo do seu caminho, pelas hienas e
os abutres que esperavam ser alimentados pelos escravos. Os doentes que os
guardas desprendiam e que agonizavam virados para o céu. Aqueles que já
não respiravam e, de súbito, caíam. Aqueles que suplicavam e que os
guardas espancavam à paulada e depois deixavam lá. A rota da caravana
está marcada por esqueletos quebrados como feixes de lenha, limpos e
brancos. Bakhita travou conhecimento com uma morte sem ritos nem
sepultura, que vai além da própria morte: não são homens que morrem, é
um sistema que vive. Teve medo do grito das hienas e do voo pesado dos
abutres, ignora que noutras rotas, as das grandes caravanas, esses animais,
demasiado saciados, já não se deslocam. Os escravos morrem e cam no
grande silêncio das rotas semelhantes a ossários.

Taweisha, esse posto central onde chegam por m, após trinta dias de
marcha, é a última cidade fronteiriça entre o Darfur e o Cordofão. É para
esta zériba que os caçadores de escravos conduzem os cativos que não
levarão à costa. É a cidade de todos os trá cos e do contrabando. Trá co de
eunucos. Trá co de escravos, trocados ou vendidos aos intermediários.
Contrabando de mar m, de chumbo, de mercadorias, de espelhos, de
perfumes; as grandes e pequenas caravanas encontram-se ali, grandes
mercadores ou pequenos bandidos, ali tudo se avalia, calcula e amoeda.
Cubatas de palha e cubatas de pedra estão agarradas à colina e é lá que
as pessoas moram. Aos escravos estão reservadas grandes cubatas sem
janelas. Quando chega a Taweisha, Bakhita ignora que integra a
organização implacável da escravatura. A sua caravana é inspecionada
imediatamente por dois faroucs, negros como o ébano, negros como ela,
negros como os seus raptores, mas também eles escravos. São os
responsáveis pelo acampamento, os militares sem os quais não se pode fazer
nada. São invejados e protegidos, em Taweisha possuem quintas, têm
mulheres, lhos, também têm escravos, rapazes muito pequenos que foram
raptados ou se ofereceram como voluntários para os servir e cuja gratidão é
imensa. São crianças-soldados salvas da miséria. Os faroucs falam com os
guardas, conhecem-se bem, é uma questão de con ança, de organização e
de hierarquia. Alguns habitantes descem a colina e também eles vêm vê-los,
dizendo coisas numa língua que Bakhita não compreende; há crianças que
os olham sem espanto porque está sempre a acontecer, já que os escravos
têm de ser separados antes de partirem para o grande mercado. E, depois,
faz-se silêncio. De repente, os corpos endireitam-se, depois inclinam-se: o
sacerdote muçulmano, o alfaqui, acabou de chegar. Bakhita deveria baixar
os olhos, mas não o faz, é atraída de súbito por um bebé muito pequeno que
dorme nos braços da mãe, habitante de Taweisha. Tem vontade de tocar nos
pés desse bebé. Mentalmente, sai da leira dos escravos, abandona o
sórdido e dirige-se para a vida mais frágil, mais nova. Mal repara no alfaqui,
venerado e temido, todo vestido de negro, com a longa barba a utuar sobre
o peito, que vem procurar os rapazinhos. Há, nas leiras dos escravos,
gritos e choros, chicotadas e súplicas, o medo circula como um sopro.
Bakhita absorve-se na contemplação dos pés daquele bebé, tão pequenos.
Esquecera como é belo um pé com os dedos minúsculos e as unhas quase
transparentes, as pregas, a curvatura, a pele na, esquecera esse pé de
criança, esse pé que nunca andou. O alfaqui continua a fazer a sua escolha,
sabe que, dos vinte rapazinhos que selecionar nesse dia, só dois
sobreviverão à emasculação. A raridade, precisamente, dita o preço, e nada
rende mais do que um eunuco. O ar está carregado, a brisa levanta a terra
seca com uma preguiça pesada. Bakhita estende a mão para os pés do bebé,
a mãe recua gritando, um guarda bate na rapariga com um chicote, há um
silêncio antes de ela chorar e o bebé chora, por sua vez, despertado pelo
grito da mãe. Bakhita não chora apenas por causa do chicote, essa surpresa
ardente: chora os bebés da sua aldeia, o de Kishmet e o que ela foi e que
desapareceu. É uma angústia sem consolo. A mãe e a criança afastam-se. Os
vinte rapazinhos seguem o alfaqui, ele próprio os vai emascular, uma
exceção de que se orgulha porque são os judeus que costumam ser
encarregados de fazer esta operação que nenhum muçulmano deve praticar,
mas os eunucos são raros e os alfaquis do Darfur põem a mão na massa. O
Darfur, no oeste do Sudão, é o novo local do trá co, um local de asilo para
todos os malfeitores, a violência na violência, o inumano no humano.

Bakhita soluça e, através das lágrimas que lhe queimam os olhos cheios
de pó, vê uma jovem escrava arrepelar os cabelos, gritando. Binah explica:
«O seu irmãozinho. Irmão. Dela.» Mostra a Bakhita a la dos rapazinhos
que seguem o sacerdote. Não estão acorrentados, dão as mãos e avançam
calmamente, pois o alfaqui disse-lhes que os escolhia para um grande
destino, uma vida de eleito. Eles não compreendem árabe. No entanto,
avançam sensatamente, porque viram os castigos que são dados aos que
desobedecem e, então, mantêm-se muito ajuizados. Um deles, durante um
breve instante, vira-se para a rapariga que enlouqueceu. É um simples olhar
de uma ternura longínqua.

Depois disso, os escravos cam nervosos e começam a tremer de


cansaço sob o céu branco e a apoiar-se uns nos outros, a magoar-se, a puxar
o pescoço uns dos outros. Os guardas têm medo de que a mercadoria se
estrague, abrem os cadeados para retirarem as correntes do pescoço e
colocá-las nos pés; abrem a porta das grandes cubatas redondas; atiram as
mulheres para uma cubata, os homens para outra e dizem: «Nada de
fornicação.» Os escravos não compreendem esta palavra, mas quem teria
vontade de se unir, qual dele teria força para procriar? Não vivem.
Sobrevivem.

Bakhita compreende rapidamente que estar na cubata é pior do que


estar no exterior. Reencontra essa opressão, essa vida no buraco onde os
raptores a tinham fechado, e aqui os escorpiões são grandes como a mão, as
ratazanas parecem pequenas raposas. Arrasta Binah até ao fundo da cubata,
encostam-se uma à outra e cantarola a sua cançoneta «Quando as crianças
nasciam da leoa». Não diz verdadeiramente as palavras, só a música sai dos
lábios secos, canta sempre as mesmas notas, tenta, uma vez mais, fugir para
dentro da sua cabeça, mas tudo em torno de si grita e geme, o mundo que a
rodeia é mais forte, não consegue evadir-se dele. Sente Binah encostada ao
seu corpo. Esgotada e dócil, pousa a cabeça no ombro de Bakhita e diz:
«Gosto da tua cançoneta.» Não compreende a frase, compreende o
sentimento. E é assim que, doravante, avançará na vida. Ligada aos outros
pela intuição, o que emana deles senti-lo-á pela voz, o passo, o olhar, um
gesto por vezes.

Observa aquelas com quem vive. As mulheres que estavam lá antes e as


recém-chegadas, de que faz parte. São jovens, na maior parte. Há outras
rapariguinhas, olham-se, procuram uma delas, pedem notícias numa
mistura de dialeto e árabe, depois regressam, desiludidas e cansadas, à sua
condição de raparigas para vender. Cheira a vómito e a merda, a suor, a pus
e urina, a sangue menstrual, dormem todas diretamente sobre o chão,
quando dormem. Para onde vão? Que vão fazer com elas? Quanto tempo
vai durar isto? Ignoram-no. Vêm buscar as doentes, saem e não voltam a ser
vistas. Vêm buscar as mais velhas, saem e não voltam a ser vistas. Algumas
jovens são chamadas durante umas horas e, quando regressam, cambaleiam
como mulheres ébrias e falam em matar-se. Outras contam histórias
terríveis que ninguém quer compreender e em que não querem acreditar,
quando as compreendem. Bakhita ouve a história daquela escrava que já
não conseguia acompanhar a caravana e que o mercador amarrara pelo
pescoço a uma árvore para ter a certeza de que não poderia descansar, de
que morreria e de que mais ninguém lucraria com ela. Não ouve o nome
dessa jovem escrava, todavia pensa na irmã e sabe que também ela foi
desbatizada. Como se chama hoje? Um nome muçulmano para que se torne
muçulmana, mas também para que as confundam a todas, para que
ninguém encontre ninguém, as cartas são baralhadas, fazem parte de um
grande rebanho. Fala-se de escravas abandonadas com a canga no pescoço
pelo comprador que já não tem com que as alimentar; de escravas
apunhaladas ou mortas a tiro; fala-se daquela cujo bebé foi atirado aos
crocodilos e que saltou para o rio a m de se juntar a ele; e também daquela
cujo ventre cheio foi aberto ao meio porque os raptores haviam feito uma
aposta quanto ao sexo do feto. Bakhita já não quer ouvir todos esses relatos
que compreende mal. Mais além da descon ança que reina na cubata, da
loucura e do ódio que se apoderam de umas e de outras, há o amor por
Kishmet e então, durante um período de tempo muito breve, todas as
encerradas se parecem com ela. A que arranha as faces até fazer sangue. A
que bate com a cabeça na parede de adobe. Aquela que já não fala, mas
grunhe e geme. A que reza. A que ressona. A que ri chorando. E aquela
rapariga muito pequena que veio encolher-se contra ela, que se recusa a
falar e mantém os olhos fechados. Bakhita sente o coração da criança, que
tem aquele tique de lhe bater no braço com um dedo, talvez se embale,
talvez marque o ritmo de uma história, talvez perca o juízo, como saber? É
como um passarinho mantido por um fogo de palha, um ín mo espaço de
calor onde pode encontrar o descanso. Com os olhos fechados e encostada a
Bakhita, respira fora do medo. Bakhita não a conhece. Nem o seu nome
nem de onde vem ou como chegou ali. Tem quatro anos, talvez cinco.
Bakhita sente que todas as mulheres encerradas gostariam de fazer como a
rapariguinha. Pousa a mão na cabeça da criança e sente na palma da mão o
seu sangue a bater. Acalma-se, por sua vez. Ousa pensar no que lhe é
querido, ousa invocar o rosto da mãe. O riso. A voz. O odor. Aquela outra
vida. Quando se chamava. Quando se chamava… Como se chamava ela? E
a irmã gémea? E o irmão mais velho? E a sua amiga? Como se chamavam
todos eles? Tenta recordar-se e depois adormece, tendo contra si a
rapariguinha, que se baba e solta profundos suspiros.

De manhã, desperta num sobressalto. O galo acabou de cantar pela


primeira vez. Ouve o chamamento para a oração. É tirada subitamente de
um sonho violento, colorido e incoerente. Transpira e sente o coração a
bater na garganta. A criança enlaçou as pernas com as suas, duas perninhas
magras e dani cadas, tem as sobrancelhas franzidas, a boca contraída, está
esticada como uma erva seca. Também tem, certamente, um nome
muçulmano. Um nome que não diz como era o mundo no dia em que
nasceu. Mas os pais não pronunciaram em vão os juramentos à Lua. Os pais
são fortes e bons. E tem a certeza de que o seu nome esquecido vive algures,
protegido. Adivinha os corpos adormecidos no odor atroz e nos ruídos
íntimos e decide que quer realmente chamar-se Bakhita. Decide isso, aceita-
o. Bakhita. Abda. A escrava. Como as mulheres e a pequenina nos seus
braços. Diz «Sim.» E, em seguida, adormece de novo. Desliza para um
sonho no qual a mãe a aperta contra ela. Procura as palavras para lhe dizer
que a ama, para a acalmar, mas ama-a tanto que não as encontra. Para
aquele amor, não existem.
Ao m de alguns dias, mandam-nas sair da cubata. Não só para
trabalhar ou servir o prazer dos homens. Mandam-nos sair a todos. Os
homens, as mulheres. Os jovens, os muito pequenos. Saem. Os mortos
foram deitados fora e, antes de que já não valham mais nada, os doentes
foram vendidos ao desbarato a alguns vendedores ambulantes de passagem,
resta a mercadoria de primeira, jovens e crianças, sãos e robustos. Saem e
reencontram o dia. Os odores de pão cozido, de milho grelhado. Os latidos,
os balidos das cabras e o zurro dos burros, os chamamentos e as vozes da
aldeia. É a vida e a vida é de uma beleza intolerável. Bakhita ouve o ruído do
vento nas folhas do embondeiro, e é forte e tão familiar que os seus olhos se
enchem de lágrimas. Não sabe porque é que tudo o que é belo lhe provoca
tanto sofrimento, porque é que a desordem dessas folhas que balouçam lhe
oprime o coração. Empurram-nas, põem-nas todas em leiras e o medo,
instantaneamente, apodera-se dela. Ouve chorar, um pouco mais à frente, a
rapariguinha que dormiu nos seus braços. Acima do queixume há o ruído
do vento nas folhas do embondeiro. É um canto que incha, desa nado. Já
está calor e em cada escravo há esse grande desalento perante a ideia de
tornar a partir, caminhar sem morrer.

Vai decidir-se quem partirá para a costa, o imenso mercado, Cartum,


onde vivem os grandes mercadores que partilham o trá co entre si. Até aí,
não zeram mais do que passar de mão em mão, de intermediário em
intermediário, mas o destino nal aproxima-se. São inspecionados
novamente, avaliados e repartidos por grupos, os faroucs dirigem as
operações, o alfaqui também se encontra lá, tra câncias, discussões,
lengalengas eternas. Bakhita sabe que não deve arregalar os olhos, que deve
caminhar lentamente para se habituar novamente, sabe que não deve tocar
nos pés dos bebezinhos, olhar de frente para os adultos, falar com Binah,
mostrar fadiga ou pedir para beber, sabe como se comportar, mas tem
muito medo de ser separada de Binah. As pernas tremem-lhe e, de tempos a
tempos, os dedos de ambas tocam-se ao de leve e dizem: «Não largo a tua
mão.» Veem partir os jovens, uns atrás dos outros, a caravana formar-se.
Eles partem e tudo recomeça: as chaves e os cadeados, as correntes. Uns
atrás dos outros são escolhidos e Binah e ela são separadas realmente. Pensa
que vai car louca, como aquelas que viu na cubata, e pensa na mãe, ainda,
«A minha lhinha é doce e boa.» Ainda é a sua lhinha. Ainda é doce e boa.
Não cou louca. Nem vai car. Vê tropeçar e partir a pequenita que dormia
nos seus braços, com o rosto erguido e o olhar perdido que procura uma
mulher a quem se agarrar. O grupo parte, uma nuvem de pó presa na luz
ofuscante.

Quando o ruído dos ferros, dos chicotes e das ordens se afastou, quando
já só se ouviam os latidos dos cães que os seguiam e, depois, os latidos dos
que regressavam, não caram muitos na zériba e entre esses estão ela e
Binah. Juntas, mais uma vez, talvez apenas por um dia ou dois, mas juntas.
Talvez houvesse demasiadas crianças na caravana que acabou de partir, é
complicado, essa mercadoria preciosa que abranda a marcha das
expedições. São postas de lado para outro comboio. É uma surpresa
incrível, o que lhes acontece é o acaso e a alegria, a vontade de gritar e bater
palmas, a vontade de saltar sem sair do sítio, de se lançarem nos braços uma
da outra e sentirem contra o corpo, o seu corpo magro, os ossos de menina,
o odor de humidade, urina e pó, o odor a velho que não combina com a
força desta felicidade furtiva. Claro que não o fazem. Correm o risco de se
ligarem uma à outra, mas sem sinal exterior de ligação, sem um excesso de
humanidade.

O guarda acorrenta-as juntas, encerra-as uma vez mais e elas falam


entre si. Sem compreenderem os respetivos dialetos, entendem as suas
mágoas. Sem acompanharem verdadeiramente os relatos uma da outra,
contam a sua desobediência, a aldeia, os pais, os avós, os irmãos e as irmãs,
os primos, os antepassados, os seus mortos, todos aqueles que as esperam, e
isso torna-se real, e interminável também, como se já tivessem uma vida tão
longa atrás delas. Familiarizam-se com as palavras uma da outra. Por vezes
é descoroçoante e incompreensível, por vezes coincide; então, repetem as
palavras estrangeiras e, quando se calam e cam sozinhas com tudo o que
confessaram, o desgosto submerge-as com tal violência que uma manhã,
numa explosão de loucura, fazem-no, decidem sobre isso, declaram uma à
outra: vão voltar para as suas famílias. É um sinal de inconsciência, de
juventude e de vida. Vão evadir-se.
A situação mantém-se assim durante três dias. A falar e a sonhar com as
suas aldeias e a evasão. Fazem parte de um mundo que não desapareceu,
uma vez que se lembram dele, e vão voltar a ele, voltar para trás, regressar
ao ponto de partida. Bakhita imagina-se nos braços da mãe, apertada
contra ela, de olhos fechados. Sentir-lhe-á o odor a leite, o suor adocicado, a
irmã gémea estará lá, aquela outra ela que a esperou e graças à qual não
partiu totalmente da aldeia; uma parte dela é abda, a outra permaneceu
livre, e todas as noites se refugia sobre os joelhos do pai. A emoção é um
motor e uma paralisia, Bakhita é apanhada pelas correntes contraditórias
do sonho e da angústia, pergunta-se se Olgossa ainda existe, se a sua partida
não lançou fogo à aldeia, se os habitantes não fugiram daquele lugar que se
tornou demasiado perigoso. Será que os locais continuam a existir quando
os deixamos?

Na sua inocência e no seu espírito, nos diálogos imprecisos, Binah e ela


imaginam que as duas aldeias são próximas, que as famílias de ambas estão
juntas, que encontrar uma é encontrar a outra. Durante o dia trabalham
numa das quintas da zériba, no meio de outras escravas, mulheres velhas,
taciturnas e esgotadas, são vigiadas por um guarda e estão acorrentadas. À
noite, na cubata sem janela, continuam presas por correntes. Todavia,
sabem-no, vão encontrar um meio, a evasão começa no espírito. À noite,
Bakhita canta a sua cançoneta, ensina-a a Binah no fundo da cubata, que
está cheia de imagens, de cantigas e de histórias da sua família. Também
contam contos uma à outra: o do mago que repara as raparigas e o da mãe
selvagem voltam à memória, e os jogos de pedrinhas e o da Lua, tudo
renasce e se aproxima. O seu mundo vai mudar, o seu mundo já está a
mudar.

E uma noite, acontece. O guarda regressa dos campos com a carroça


cheia de maçarocas de milho. Está de mau humor e cheio de pressa. Manda-
as sair da cubata e ordena-lhes que escolham o milho, tem de o vender antes
do anoitecer, elas não têm interesse em demorar. Para as coisas irem mais
depressa, tira-lhes as correntes. Elas ouvem-nas cair. Em seguida, sentem os
pés a mexer-se sobre a terra, os tornozelos dançar, da frente para trás,
podem endireitar-se, virar-se, podem mexer-se sem ferir a outra, as suas
pernas são duas penas, poderiam levantar voo. Isso fá-las tremer com força.
Isso quase lhes provoca medo. Porque sabem. É agora. É preciso que o
façam agora. Não precisam de falar. É preciso obedecer e separar o milho
para que não lhes batam, mas também é preciso não separar o milho e fugir.
As mãos tremem-lhes, separam as maçarocas e olham à sua volta,
rapidamente, como aves, viram a cabeça, o milho, a aldeia, o milho, os
caminhos em redor da aldeia, os ruídos, os odores, o mundo que respira, o
milho, o mundo que se abre e se fecha, e depois o guarda entra para a sua
cubata. Deixa-as. Completamente sós. As duas. Sem as correntes. Ouvem o
chamamento para a oração e essa voz já não lhes provoca medo, é uma voz
no vento, no céu, noutro lugar.

O coração de Bakhita recomeça o seu ritmo de tantã, como quando os


homens a raptaram atrás da bananeira, é o mesmo chamamento que ressoa
nos ouvidos e arrasta o corpo suavemente, bate, insiste, não para, bate,
insiste até à vertigem… Já não conseguem separar as maçarocas para
vender das maçarocas para dar ao gado, atiram-nas ao acaso, para um lado
qualquer, olham para a porta do guarda, que continua fechada, espiam,
esperam o momento em que vão pôr-se a correr. As crianças brincam na
colina, ouvem-se os seus gritos e risos na noite que chega, os chamamentos
dos burros que esperam a comida, os cães que giram em volta dos homens
que vão alimentá-los, e é uma grande sorte para elas os cães terem fome. Há
aquela mulher perto do poço. Encheu a bilha, puxou-a, pousou-a sobre a
cabeça e agora continua lá. Binah começa a chorar porque aquela mulher
ca perto do poço, sem motivo, sozinha, com a sua fadiga e preguiça. A
porta do guarda continua fechada. Um homem passa ao lado da cubata,
hesita e depois acaba por não bater, continua, tem um rosário na mão, fá-lo
mexer muito rapidamente, olha-as e parte baloiçando o corpo muito
grande, torto. A mulher abandona o poço. Está escuro. Já não há ninguém.
No silêncio, ainda ouvem o zurrar dos burros. Parece o som das cornetas
em que os músicos sopram. Parece um perigo. Parece um sinal. Sem se
falarem, sem se olharem, atiram a última maçaroca e dão as mãos. Correm.

Ao acaso. O mais velozmente que podem. Correm. A noite vem e elas


correm sobre uma terra sem céu e sem luz, a Lua escondeu-se atrás das
nuvens, a escuridão protege-as. As mãos estão fechadas, agarradas uma à
outra e as suas respirações são como o canto das autas. Correm, já sem
pensar que correm, já sem sentirem a fadiga e o medo, sempre em frente,
fogem. Não largo a tua mão.

Chegam a uma oresta. É impossível correr depressa no meio das


árvores e das raízes, por isso abrandam. As árvores estão cheias de pássaros
que se chamam para passar a noite. Há nos ramos o ruído das asas, umas
bofetadas rápidas e desordenadas. Há os macacos, os seus gritos agudos. As
árvores altas, cerradas, tão perto umas das outras, os seus ramos sobem
para o céu, aspirados pelo ar. Elas caminham velozmente durante muito
tempo. E depois param. Respirar dói. O suor corre como a chuva. A boca
está quente e seca. Não sabem onde estão. Não sabem em que sentido
devem ir. É preciso continuar.

Caminham na noite que é um novo mundo, condensado e pesado, mas,


no nal desse mundo, esperam-nas as suas mães. Já não sentem as pernas,
estão além do cansaço e da dor, além de todo o pensamento. De repente, há
luz, um clarão que vem do fundo da oresta, é uma chama que passa entre
as árvores sem as queimar, é mantida alta e segura. As raparigas
recomeçam, correm novamente, os pés presos nas raízes e, de súbito, a
oresta ilumina-se. Chamas, estão por todo o lado, como se aquela que as
segue tivesse acendido outras, alimentadas com o seu fogo. Correm. Caem,
ferem-se, levantam-se de novo e, precisamente antes de serem tragadas
pelas chamas, renunciam a tudo, o incêndio venceu, param. As pernas em
sangue de Bakhita tremem como se um chicote as perseguisse. Recupera o
fôlego. Observa. A oresta está mergulhada na noite. Já não há chamas. E,
com toda a certeza, nunca houve. Só a imaginação as ameaçou, apenas o
delírio as perseguiu. Ouvem as últimas aves responderem umas às outras, as
últimas folhas a sussurrar em conjunto, os macacos a guinchar e depois
tudo, realmente tudo, se acalma.
Bakhita e Binah são duas crianças perdidas: andaram às voltas,
inventaram o incêndio e, na sua perseguição imaginária, voltaram para trás.
Continuam silenciosas e desamparadas na oresta imóvel, de mãos dadas,
estão vivas. Não descon am quando ouvem o passo calmo e lento
aproximar-se. Pensam que ainda estão a imaginar, mas, em breve, um
rugido profundo e cansado condiz com o passo que se aproxima. É um
animal selvagem. Paciente. Infalível. Bakhita empurra Binah contra uma
árvore e a menina trepa. Impelida pelo medo sobe facilmente. Bakhita
segue-a. Durante toda a vida, lembrar-se-á desta noite. É como um conto,
um mito. Dar-lhe-á um orgulho que a deixará um pouco desconfortável,
mas que a levará à selvajaria real de um Sudão que foi o seu e que ela soube
enfrentar. As crianças gostarão sempre de ouvir contar essa história. A fera
que vai devorar as rapariguinhas evadidas. Gostarão de imaginar Bakhita
em pequena, adormecida numa árvore, como os macacos e as aves.

O que não contará às crianças são os gemidos da pequena Binah, o


terror. O que não dirá é que, no inverno, quando os lobos do Véneto uivam
nas colinas das redondezas, é Binah que ela ouve. Binah que a chama e que
ela não salva.
De manhã, a oresta desperta-as: a algazarra dos cantos dos pássaros,
como se as árvores explodissem, os chamamentos e os gritos famintos dos
animais no dia que nasce, discordantes, furtivos, incessantes. A luz mal
passa entre os troncos cerrados e, lá no alto, as folhas têm a cor transparente
da água. O espírito da noite acalmou-se e dá-lhes uma nova oportunidade.
É a primeira manhã sem as correntes e os guardas. É o primeiro dia.

Colhem uns frutos que não sabem muito bem abrir e cujo nome não
conhecem. O mundo acolhe-as e alimenta-as, é algo de que se lembra, do
tempo sem ameaças. A impaciência de encontrarem as suas mães impele-as
de novo e, ao m de duas horas de marcha, saem da oresta e chegam à
grande planície. É uma paisagem ampla, nova; têm vontade de correr por
essa planície, mas está coberta de pequenas bossas, dir-se-ia que a terra
ferveu e conservou as suas queimaduras, milhares de bolhas. Caminhar é
difícil e, muito em breve, doloroso. Também há aqueles arbustos cheios de
espinhos que o vento empurra na direção delas, perpassam pelas suas
pernas e arranham-nas. Não podem fazer nada para se defenderem e
caminham, apesar de tudo, caminham e o Sol está alto, o céu ardente desce
até elas. É o caminho para reencontrarem as mães, é preciso segui-lo e falar-
lhes a cada momento, acalmar-lhes a inquietação. Bakhita conta à sua o que
viu, o que lhe zeram, e a mãe perdoa-lhe. Esse perdão anima-a, e todo esse
dia de espinhos e de calor, atravessa-o para ela.

O dia acinzenta-se, a noite vai chegar e, com ela, a nostalgia e a


apreensão. Já não falam uma com a outra. Avançam desiludidas, mas sem o
dizerem, desorientadas e hesitantes. E então, no mesmo momento, as duas
ouvem-na. A voz humana. Isso prega-as ao chão. Param para a procurar. A
planície está deserta. Elas são dois pontinhos negros na mão do crepúsculo.
A voz aproxima-se. Agacham-se atrás de uns arbustos espinhosos e
espreitam. A voz está ali. Com as palavras da cólera e da ameaça. O guarda
encontrou-as. A sua voz é trazida pelo vento. Dão as mãos. Binah começa a
chorar, a mão treme-lhe muito na de Bakhita, como se alguém tentasse
separá-las. Agora, a voz está muito perto e é a do chicote. A voz que faz
medo mesmo quando se cala. Voltou muitas vezes à procura de Bakhita.
Vinha quando ela dormia. Dizia-lhe que não tinha direito ao repouso.
Vinha quando ela rezava. Dizia-lhe que não tinha o direito de ter esperança.
Essa voz está ali, na planície que julgavam deserta. Agachadas atrás dos
espinheiros, sabem que o guarda vai vê-las, mas não podem erguer-se
diante dele, não podem largar a mão. De cabeça baixa, enroladas, esperam,
e fazem pelas pernas abaixo, mais sujas e envergonhadas do que nunca. O
guarda talvez esteja agora em cima delas, paciente, gozando a sua cólera.
Fecham os olhos com tanta força que os sentem tremer, mordem as faces, o
interior da boca cerrada, e ouvem. Os gemidos. Os queixumes. As tosses
sibilantes. Bakhita reconhece a crepitação cheia de água nas gargantas das
mulheres. São os escravos. Os escravos que passam à sua frente. São os
escravos que regressam.

Avançam com o ruído pesado das correntes. Arrastam-se, batem a terra


com a sua infelicidade. É o ruído do ferro que bate e geme no vento. A longa
la dos esgotados e dos moribundos. Os esgares de dor e os lábios
queimados. Os olhos cegos. A pele rasgada. E dir-se-ia que não é uma
caravana que passa, mas uma única pessoa, uma única dor que pousa o pé
na planície e a esmaga.

Veem passar os escravos. E, depois, contemplam-nos a desaparecer. A


voz do guarda esfumou-se. Nesse m de tarde, a desgraça passou-lhes à
frente e evitou-as.

Ficarem na planície é como estarem a oferecer-se. Demasiado à vista,


têm de se afastar da pista das caravanas. Não têm outros pontos de
referência além da oresta e, então, é para lá que voltam. Descoroçoadas e
aterradas pela escuridão, voltam atrás no caminho esperando que os passos
as levem algum lado, mas não sabem ler nem o céu nem a terra, e as suas
sombras seguem-nas ao acaso.

Binah tem dores de dentes e geme, segurando a face. Bakhita já não


sente nada, nenhuma dor, o seu corpo está além do sofrimento, é um bloco.
Caminham até à noite profunda e quando, por m, entram na oresta,
direita e alta como uma rainha gigante, não é um alívio, mas uma grande
confusão. Bakhita não sabe reconhecer os espíritos benfazejos. Olha a noite
e tenta recordar-se do que a mãe lhe contava sobre o mundo, teme que a
noite a apague, a faça desaparecer. Tudo pode acontecer. Tudo aconteceu já.
Nessa noite, não têm coragem para dormir novamente numa árvore, com a
apreensão de cair, então abandonam-se a uma con ança fatalista e deitam-
se no chão. Binah continua com dor de dentes. A areia abriu feridas nos pés
de Bakhita, a dor bate até ao coração. É a ín ma parte dela que ainda vive.
Está estendida sobre as folhas duras e secas sem se mexer, sem medo, sem
desgosto. Deriva. E, de súbito, acontece. Uma luz muito na, uma mão
pousada dentro de si, que agarra nas suas dores, a da alma e a do corpo, e as
embrulha sem a agitar, como um véu que pousa. Respira sem que lhe doa.
Vive sem que seja aterrador. Espera um pouco, surpreendida, pergunta-se
se vai durar. Dura, então senta-se e observa a noite. É clara e treme com um
calor que passa sobre ela, e abandona-se a esse calor.

Contou essa noite. O folhetim Storia meravigliosa descreve-a como «o


encontro com o seu anjo da guarda». Quanto a ela, não chama assim a essa
noite de consolação. Era um mistério e uma esperança, era sobretudo uma
vontade de continuar a viver, o interstício pelo qual passa a última força
humana, com a certeza fulgurante e violenta de não estar completamente
só.

No dia seguinte, menos seguras, menos inocentes, caminham durante


muito tempo, saem da oresta, não é a planície atravessada pelas caravanas,
mas a estepe. Uma estepe que lhes parece imensa. A perder de vista. Bakhita
guardará sempre a recordação dessa estepe como de um oceano, de umas
vagas baixas que não terminavam, a estepe desenrolava-se sempre, ao
caminhar faziam-na nascer de novo, perdiam todos os pontos de referência.
Era, para essas duas rapariguinhas, uma vertigem.

Tropeçam nas ervas sem se queixarem. O vento empurra-as, evita-as, e


depois volta para lhes bater com grande desdém. As ervas cortam-lhes os
pés e as pernas, mas elas continuam a andar, sob o sol imenso que não
indica nada. A paisagem nunca muda, as mesmas horas sob o mesmo céu
vazio, elas caminham com os olhos a arder, os lábios em sangue e Bakhita
sente o corpo encolher-se na sede e na fome. Sente que a sede está dentro
dos músculos e sob a sua pele. Sabe que em breve já não sentirá nada.

E depois, de repente, há os campos. De início, não acreditam, está tudo


esbatido e irreal, são como uma ilusão. O regato – Binah ouve-o antes de o
ver –, um ruído que bate contra o vento, um ruído muito leve que se
mistura com o seu sopro largo. Bakhita não o ouve. Sem Binah estaria
morta. Sem ela não haveria tido a força de acreditar: no ruído do vento
também há ruído de água. Bebem durante muito tempo e, quando já não
têm sede, continuam a beber, bebem até ao vómito, como os cavalos
imprudentes. Bebem e lavam-se, sentem o uxo escorregadio e tépido da
água, com as lágrimas de reconhecimento a misturarem-se com a água do
rio. É um momento como os de outrora, que lhes diz que a infância não está
muito longe. Que surpresa vão provocar às suas famílias, que assombro esta
alegria, é quase uma dor.

Recomeçam a andar e reencontram a vontade de falar, contam uma à


outra, uma vez mais, aqueles que vão encontrar, os vivos e os mortos. Os
pais e os antepassados. Bakhita conhece as histórias de Binah, parece-lhe
que compreendeu algumas totalmente: a irmã mais nova que ensinou a
andar e se chama Mende; o gatinho que o pai lhe deu e que se chama Gato.
Ela quer sempre que Bakhita lhe cante a cançoneta «Quando as crianças
nasciam da leoa», e as suas recordações, compreendidas ou não, misturam-
se, como se as oferecessem uma à outra para terem mais. Todavia, guardam
para si os rostos das suas mães e as vozes delas, numa esperança de tal
modo forte que se conserva num soluço. Não devem voltar a ser, demasiado
depressa, duas rapariguinhas muito pequenas. É preciso aguentar. Ter
coragem. E força por duas.
O dia seguinte é um dia feliz. É o terceiro dia, estão muito perto. Acabou
a oresta, acabou a planície dos escravos, acabaram as ervas móveis da
estepe, agora há os campos, o gado, o trabalho dos homens. Há a vida e os
sinais da vida. Quanto às aldeias, mantêm-se afastadas delas, por instinto.
Ficam à espreita dos vendedores ambulantes montados em burrinhos
carregados ou nos bois descarnados, ouvem-se vir ao longe, vendem
tecidos, cebolas, missangas, anéis de ferro ou de cobre e, por vezes, seres
humanos, velhos ou doentes, frequentemente os fracos com que os
negreiros não se incomodam. Ter um escravo para vender aumenta um
pouco o seu comércio. Aquele que nem sequer vende isso é
verdadeiramente o mais pobre entre os pobres. Começam a compreendê-lo.
Também cam à espreita dos acorrentados e dos homens sós. Foram buscar
ao animal a moderação e o pressentimento, avançam a observar de longe,
ladeiam o mundo, esse mundo que as atrai e as intriga, e perguntam-se qual
será a primeira a ver surgir a árvore da sua aldeia. Subitamente, Binah dá
uma cotovelada a Bakhita:
– Não é a tua mamã, além? A tua mamã? Além?
Bakhita não sabe para onde olhar. Binah mostra-lhe uma mulher que
traz, contra a anca, uma criança que canta e, às costas, outra que dorme.
– É ela! Hem? É a tua mamã? A tua mamã?
A mulher não se parece nada com a mamã de Bakhita, nem na altura
nem no rosto nem na cor da pele; e que faria ela aqui, nesta aldeia que não é
a sua? Bakhita mostra uma manada de vacas a Binah:
– Não são as vacas da tua aldeia, além? Hem? As tuas vacas? Ali! Olha!
Calam-se e começam a chorar, desalentadas e desiludidas, como se a
outra não zesse qualquer esforço para reconhecer os seus, como se
estivesse de má vontade. Queriam perguntar qual o caminho, mas não
ousam dirigir-se aos estranhos; queriam pedir ajuda, porém, assim que
abrirem a boca, aperceber-se-ão de que elas não são daqui. Mas porque é
que não existe em parte alguma uma colina, um cercado, um campo, um
transeunte, um único sinalzinho das suas famílias? Tanta gente e nada que
esteja relacionado com elas após três dias de marcha e de coragem, nada
que lhes seja familiar. Continuam a andar e em breve a escuridão
acompanha-as, leva-as docemente para uma outra noite no exterior. E
subitamente aparece. O estupor prega-as ao chão.
– É ela! – grita Binah.
Bakhita olha-a. A angústia apunhala-lhe a garganta. Binah está feliz,
repete: «É ela! É ali! Chegámos!» É a fogueira da aldeia de Binah, a fogueira
do serão, que arde ao longe. Para Bakhita, é uma coisa diferente. Desde a
razia e a aldeia em chamas, o fogo é uma outra coisa. Binah agarra-lhe na
mão, o riso sobe dentro dela, nervoso e camu ado, e corre, arrastando
Bakhita. Ela pensa que não devem ir até lá, mas cede ao entusiasmo de
Binah. Contra a própria vontade segue-a, porque também ela tem vontade
de gritar: «Mamã!», e de que isso seja possível. Gritá-lo como um último
recurso, um cântico de vitória, «Mamã!» em todos os tons, um
chamamento, uma ordem! Então elas correm e o fogo fura a escuridão e,
quando param um pouco para recuperar o fôlego, um homem aproxima-se.
Instintivamente, recuam. Olham-no com toda a descon ança e o desa o de
que são capazes.
– Beber? Um pouco?
Um cão ruço juntou-se ao homem que lhes estende uma cabaça, elas
hesitam, recusam a contragosto, ele insiste. Esticando o braço ao máximo,
uma delas agarra-a. Bebem, ora uma ora outra, e é quase tão bom como o
banho no rio. Acalma-as. Sossega-as. A fadiga cai-lhes em cima de uma vez
só naquele momento de descanso. Devolvem a cabaça ao homem,
murmuram «Choukrane» e vão-se embora. Dão as mãos e caminham
lentamente, como que aturdidas e desanimadas, em direção à fogueira. O
frio cai com a noite e as estrelas aparecem, colocadas lá como um sinal de
boas-vindas, mas distantes e desordenadas. A Lua alaranjada está grande
como um sol. Em breve, o cãozinho trota a seu lado, apertam-se uma contra
a outra, ele acompanha-as. O homem assobia-lhe, chama-o, é um cão
desobediente e ele é obrigado a ir buscá-lo. Castiga-o com um pontapé e
pergunta qualquer coisa às raparigas num dialeto que elas compreendem
mal. As mãos, os olhos, a entoação da voz dele faz-lhes uma pergunta. Mas
qual? Bakhita não gosta daquela voz. Binah compreendeu, responde
apontando para a fogueira que arde ao longe:
– Além!
O homem parece espantado:
– Agora?
Bakhita puxa pelo braço de Binah.
– Sim, além!
O homem faz um sinal de que a fogueira está longe. Elas não se
importam. Ele gesticula para representar o frio e a noite. Elas não se
importam. Aponta para a noite e rosna como uma fera. Como sabe? Como
adivinhou que elas conhecem as feras? Que isso lhes aconteceu?
– Não temos medo – diz Bakhita.
– Muito bem! – responde o homem, sorrindo.
Depois, com as mãos juntas contra a face, representa o sono e mostra-
lhes a cabana.
– Dormem ali e amanhã vão para lá.
Elas respondem que não e recomeçam a andar. A fogueira está
realmente longe, contudo, não afastam os olhos dela, é uma pequena
procissão, uma teimosia de crianças já não muito certas de si mesmas.
Repentinamente, Bakhita solta um grito de terror, recua dobrando-se sobre
si, torcida pela dor. Binah não compreende o que se passa. O cão corre à
frente delas e regressa com uma serpente entre os dentes. Bakhita continua
a gritar, o homem bate no cão, abre-lhe a boca e atira para longe a serpente
já meio devorada. Bakhita chora. O homem pousa-lhe a mão no ombro.

Na cabana, dá-lhes de comer e de beber. Ao lado do casebre, há um


redil. Ouvem o barulho das ovelhas e dos bodes que lá estão encerrados
para passar a noite. O cão está sentado na ombreira, protege-os das feras e
das serpentes. Elas pensam que é o guardião do rebanho, um bom cão. O
homem, o pastor, diz-lhes que descansem um pouco na cabana. No dia
seguinte, mal o dia nasça, ele próprio as conduzirá à aldeia onde a fogueira
arde esta noite. Hem? Amanhã? A mamã? Compreendem? Estão de acordo?
A mamã? Não quer forçá-las. Podem partir, se quiserem. Não têm força
para responder que não querem. Adormecem encostadas uma à outra, num
sono imediato. Chegaram ao m do que podiam fazer, do que lhes era
possível viver.

Quando o homem as acorda a meio da noite, não pensam que seja o


meio da noite. Pensam que é dia e que ele as acorda para as conduzir
pessoalmente à aldeia de Binah. Está frio. As meninas despertam do sono e
ainda estão no mundo dos sonhos, mas veem o cão, reconhecem-no, rosna-
lhes agora mostrando-lhes as presas. São acordadas como se lhes tivessem
lançado ao rosto um balde de água gelada. Bakhita ouve Binah chorar e
depois sente a corrente em redor do tornozelo. Quando tenta correr, Binah
fá-la cair. Estão as duas no chão. Binah grita, tenta rastejar, as mãos dela
agarram-se à terra gelada. Bakhita agarra-lhe na mão, puxa-a contra ela,
segura-a com força. Binah soluça nos seus braços. Bakhita cala-se. Não
sente surpresa nem dor. Já nem tem medo. Está tão alta e fria como as
estrelas que a lua empalidece. Vive muito longe, para lá desta noite, com a
pequena Binah nos braços. Ligada a ela. Ainda.

A recordação do que viveram nesse redil é um dos traumas mais fortes


de Bakhita. É um aviso, uma recordação que está em todos os medos e em
muitas das suas noites. Como uma visitação. O incêndio em Olgossa, o
buraco onde os raptores a encerraram e este redil são três abismos. Os
degraus do Inferno. Depois de o pastor lhes ter posto as correntes, são
fechadas nesse redil, espezinhadas, agredidas, mordidas por rebanhos
inteiros de ovelhas e bodes que andam por cima delas, as sufocam, lhes
batem, fazem sobre elas o que fazem nos caminhos, e sempre aquela
corrente no pé que lhes escava as barrigas das pernas. A pequena Binah só
se mexe quando soluça. Bakhita não tem palavras para a consolar. Já não
falam. Tocam-se com a mão. Dormem um pouco durante o dia quando as
ovelhas e os bodes saem do redil, dormem na terra imunda. O odor das
dejeções dá vontade de vomitar. Dormem durante breves instantes,
assediadas pela sede e a fome e, quando o sol desce, ouvem os rebanhos
voltar. Os balidos que se aproximam são uma angústia longa, na como
uma agulha. Quando os bodes se enfrentam, recebem cornadas e choram
devido a toda esta injustiça. Todavia, mesmo tratadas como animais,
maltratadas por animais, encerradas, espezinhadas, acorrentadas, a sua
personalidade, os seus sonhos e mesmo uma parte da sua inocência, o que
são, mantêm-se.
Uma manhã, o pastor vem buscá-las, trá-las para o exterior. Quantos
dias, quantas noites passaram no redil, não sabem. Três dias? Dez? Trinta? É
um pesadelo com o qual o tempo não tem nada que ver. Estiveram nesse
tempo deformado da violência à mercê de um homem cruel, sádico e
retardado. Quando saem do redil, parecem mais duas velhas do que duas
rapariguinhas. A sua pele está estragada, coberta de crostas e suja.
Encurvadas, dão as mãos, cujas unhas estão partidas, e saem para a luz do
dia, meio humanas, meio animais, com a mesma obediência e
embrutecimento. Puxam-nas para fora: não resistem, não pensam e não
preveem nada, obedecem apenas. A escravidão apanhou-as uma vez mais,
como se qualquer outra forma de vida tivesse desaparecido. A única
verdade é a escravidão.

O mercador a quem o pastor as quer vender toca-lhes, fazendo caretas.


Bakhita compreende que não valem muito. Mas são jovens, «É o que se
vende melhor.» As crianças. Podem ser formadas mais facilmente. «Pô-las
ao nosso gosto.» Mandam-nas agachar-se, levantar-se, tocam-lhes a
intimidade e Bakhita tem vergonha de estar tão suja. Essa vergonha é o
primeiro sinal de que ainda está viva. Quando retiram as correntes para as
ver andar, Binah cai, Bakhita grita o seu nome, um grito estridente como
pedras, porque é assim que está: cheia de terra e de pedras. Tem medo de
ser comprada sem a amiga. No chão, Binah olha para Bakhita como se a
visse ao longe, como se procurasse lembrar-se de quem ela é. A luz do dia é
ofuscante, Bakhita estende-lhe a mão. Binah olha-a sem se mexer. O pastor
dá-lhe um pontapé nas costas para que se levante. Então, ela encolhe-se,
vira um pouco o rosto para o céu, fechando os olhos, e ca ali. Bakhita
continua a estender-lhe a mão. Quer ouvir uma vez mais a história da
pequena Mende a quem Binah ensinou a andar. Quer cantar-lhe uma vez
mais a sua cançoneta. Porque ela sabe que, se Binah tiver força para se
levantar, recomeçarão a viver. No entanto, se uma for escolhida e a outra
não, então essa voltará para as ovelhas e os bodes. Sozinha com eles. E isso,
isso não é possível. Sozinha com o pastor. Isso não é possível. O mercador
começa a impacientar-se. Os escravos esperam atrás dele. Tremem de fadiga
e de cólera. Os que choram são de certeza os que foram capturados há
pouco. Esses são açoitados incessantemente, mesmo imóveis, mesmo
enquanto esperam, recebem chicotadas. Bakhita ouve os resmungos dos
guardas a cada pancada, o assobio do chicote antes de bater na pele com um
ruído molhado, os choros que vêm dos homens e os que vêm das mulheres.
Tenta esquecê-los, inclina-se para Binah e sussurra «Awadir», o seu nome
próprio de criança amada. Binah abre os olhos. Desejava que Bakhita lhe
perdoasse, mas não consegue, não pode mais, é tudo. Acabou. Fica ali. O
seu olhar pede perdão e depois os olhos fecham-se sozinhos, é uma
renúncia tão doce. Então Bakhita esquece o mercador, o pastor, os guardas e
o chicote, para dizer a verdade, está-se nas tintas, está decidida a salvar a
amiga, toca-lhe no ombro e estende-lhe a mão com rmeza, a mão que
Binah agarrou tão frequentemente, aquela força.
– Não me deixes… – pede Bakhita.
Binah sorri um pouco, um sorriso desgostoso.
– Não me deixes sozinha…
Binah hesita, quer sorrir-lhe e não consegue.
– Vem, por favor…
O mercador bate em Bakhita, que recua. Diz algumas palavras,
encolerizado, e bate-lhe de novo. Ela põe o braço diante do rosto e, quando
ele para de lhe bater e ela baixa o braço lentamente, vê, de pé à sua frente,
Binah. Levantou-se e espera que a inspecionem. O mercador volta-se para
ela, cospe no chão e faz caretas enquanto lhe apalpa os ossos e o ventre.
Depois bate-lhe nas pernas, ergue-lhe as pálpebras e, quando lhe segura no
queixo para ver o interior da boca, Binah recua, doem-lhe muito os dentes.
A sua face e a garganta ardem. O mercador abre-lhe muito a boca, dir-se-ia
que procura abrir Binah ao meio, e en a os dedos dentro dela. Puxa. Binah
parece uma potra. Tem os olhos desvairados como os dos cavalos quanto
têm medo. Grunhe e recua, mas o mercador agarra-lhe rmemente a
mandíbula. Arranca dois dentes do fundo, dois molares, que atira para o
chão, e depois recomeçam as discussões com o pastor. Binah cospe uns os
de sangue, Bakhita passa-lhe a mão pelas costas; queria dizer-lhe que vai
sentir-se melhor sem aqueles dentes estragados, mas cala-se. Chora. Porque
acabou. Não voltarão a ver as suas mães. Olha em redor, mas, é claro, nesse
dia luminoso não há nenhuma razão para uma fogueira as esperar algures.
Acabaram os reencontros e a esperança de que eles aconteçam. O mundo é
demasiado grande, demasiado pobre, demasiado ávido. E é ali, no meio das
conversas intermináveis do mercador e do pastor, dos acordos, das disputas,
no meio dos soluços dos homens e das mulheres, dos balidos dos carneiros,
dos cantos dos galos, no meio de toda aquela confusão, é ali que Bakhita
ouve, entre os escravos, um bebé chorar. Instantaneamente, pensa que a sua
mãe está com os escravos. Com um único movimento, vira-se para eles.
Procura a mãe com o olhar. É uma caravana pequena, olha-os atentamente
a todos, com grande rapidez, e com a mesma rapidez compreende que se
enganou. Ela não está ali. E, no entanto, isso nunca a abandonará. Durante
toda a vida, até ao nal da vida, quando ouvir um bebé chorar, achará que
está nos braços da sua mãe. Mesmo quando ela já não tiver idade para ser
mãe. E, depois, quando já não tiver idade para estar viva. Cada criança que
chorar estará nos braços dela e esperará o seu conforto.

Binah também o ouve. O grito daquele que é mais pequeno do que ela.
As duas têm a idade das irmãs mais velhas, a idade das mãezinhas nas suas
aldeias. Aquele bebé é mais frágil do que elas. Então, Binah assoa-se com os
dedos, toma a decisão de não chorar mais. O bebé continua a gritar e Binah
mostra que pode manter-se direita como uma adulta. Respira com
di culdade, a dor da boca irradia-lhe para todo o rosto, mas aquele bebé
lembra-lhe a ordem. Ele, o recém-chegado, faz parte da caravana, então
elas, aos sete anos, também devem ir nela.

São compradas juntas, Binah e ela. Uma vez mais. E uma vez mais, sem
as correntes, caminham entre os guardas. Vão. Continuam. Não largo a tua
mão.
Com a caravana, caminham sobre a terra do Sudão aberta sob o céu
imenso e manchada pelas trocas e o trá co. Caminham e Bakhita
compreende que o tempo da fuga é um tempo perdido, o mundo dos
escravos é o seu, mas há sempre, para a manter viva, uma esperança. Talvez
passem pela sua aldeia. Talvez encontrem Kishmet. Não passarão a vida nos
caminhos, um dia a marcha terminará, um dia haverá outra coisa que não
pode ser pior: o pior já foi vivido. Bakhita segue o caminho longo, sinuoso,
perigoso, como os desenhos das serpentes que o irmão traçava para lhe
meter medo, e decide que nunca mais as temerá. A que a fez gritar na noite
em que o pastor as capturou foi a última. Nunca mais ter medo da serpente
é como vencer a serpente. E esta solução, estranhamente, sossega-a. Está
espantada com ela; gostaria de a partilhar com Binah, mas falar é proibido
e, de qualquer modo, falta-lhes a força para o fazerem. Tudo está
concentrado na marcha e na coragem necessária para a realizar. Porém, essa
vontade de viver que a invade ali, naquele cativeiro em que é menos
considerada do que um burro, é como uma promessa que faz a si mesma:
quer viver. Esse pensamento é seu. Ninguém pode tirar-lho. Viu os escravos
abandonados aos abutres e às hienas. Viu os escravos invendáveis e os
vendidos ao desbarato aos miseráveis. Não sabe se vale dinheiro – uma
cabra, quatro galinhas, sal, alguidares de cobre, colares, tangas, uma dívida,
um imposto –, não compreende pelo que a trocam, mas sabe uma coisa:
não quer morrer abandonada à beira da estrada. Então, obedece. Marcha.
Concentra-se no esforço. Está com Binah, salva do redil e do pastor.
Marcha. E tem uma amiga. Uma outra vida a que tem tanto apego como à
sua.

Todavia, há esse bebé, sempre. Esse bebé que chora. A mãe dele não está
acorrentada. É muito nova e aquele é o primeiro lho. Teve tanto medo
quando o fogo começou na palhota onde vivia que o seu leite já não corre. É
o que Bakhita compreende no rumor partilhado na caravana. Os negreiros
incendiaram-lhe a aldeia. Como a de Bakhita. Porque é a mesma história
por todo o lado: uma repetição da violência, o fogo das espingardas e dos
archotes, o fogo que consome as cubatas e as pessoas dentro delas, o fogo
que devora o gado, as árvores e os campos, o fogo que corre mais depressa
do que a vida.
Ao m de um momento, o bebé que chora impede Bakhita de respirar.
Já não consegue caminhar sem perder o equilíbrio. Não é a única. Esse bebé
no meio de todas aquelas correntes, gritos, pancadas, de todo aquele
tumulto: não se ouve mais nada além dele. A mamã agarra-o contra si.
Tenta embalá-lo, mas treme tanto que salta no mesmo sítio e, abanando o
bebé, comprime os seios, tentando extrair leite; o bebé apanha-lhe os
mamilos, lambe-os, gritando, e depois recomeça, a sua boca torce-se, bate
com a cabeça no peito da mãe, agarra o mamilo e o choro recomeça de
imediato. O guarda mais próximo, um homem pequeno, compacto como
um bloco de pedra, chicoteia a mãe para que aquilo pare: «Fá-lo calar! Fá-lo
calar!», grita. É jovem, mas tem idade para ter lhos, talvez os tenha. E está
realmente incomodado com os gritos do bebé. Ou talvez, diz Bakhita para
si própria, talvez tenha medo dele. Parece-lhe que vê, na crueldade deste
homem, o medo.

Algumas mãos estendem-se para a mãe e depois voltam a cair. Algumas


mulheres observam o bebé e desviam os olhos num esgar de dor. Outros,
como o guarda, estão irritados e também angustiados, conhecem a história
repetida e temida, escrita de antemão. E depois há aquele rapaz muito novo
cuja cólera é tão forte que, se o guarda tivesse cruzado o olhar com o dele,
teria ardido imediatamente. Tem o crânio rapado, o rosto já forte,
simultaneamente obstinado e delicado, o rosto de um irmão mais velho
disposto a combater, mas que ainda carrega uma ternura frágil que o
estorva.

Depois de ter marchado durante uma longa hora, talvez duas, a


caravana chega perto de campos cultivados. As aldeias não devem car
longe. A mãe solta um risinho, como um soluço. Continua a abanar o bebé,
pensando embalá-lo, e o seu rosto vira-se em todas as direções. Com o
pânico, urina. O o da urina ao longo da perna é algo que não sente,
procura em redor e, de súbito, precipita-se para o guarda. Viu a cabra. Diz
que será rápida, não atrasará a caravana, voltará a correr. O guarda repele-a
com uma cotovelada na têmpora. Ela quase sorri, isso não a desencoraja.
Dir-se-ia que não vê o que se passa, dir-se-ia que perdeu a razão. Está com
eles e já longe deles, tão longe. Volta para junto do guarda com o bebé que
chora e diz-lhe que, se o seu lho crescer, ele poderá ter um bom lucro.
Olha para os escravos, quer que a aprovem, sim, é uma boa ideia, se o bebé
tomar o leite da cabra, não morre e valerá bastante. Contudo, ninguém
pensa que irão parar para que a cabra alimente o bebé. O jovem
encolerizado diz, muito alto, algumas palavras que ninguém compreende, a
voz treme-lhe sob a revolta, embate nas pedras e extingue-se. O guarda não
lhe bate. Então torna a dizer três vezes essas palavras que ninguém entende,
três vezes olhando para o céu, mas o céu só lhe devolve um sol feroz.
Bakhita e Binah dão as mãos, têm medo agora, o hábito do perigo humano.
O seu ventre contorce-se de apreensão. Algo de mau utua e envenena o ar.
Uma mulher jovem, mas que tem idade para ter lhos, olha para aquela
mãe e diz-lhe baixinho: «Asfa.» «Perdão.» E abana a cabeça, consternada,
porque a jovem mãe, que tem a idade da irmã mais velha de Bakhita,
catorze anos no máximo, não compreende o que está a acontecer.

A caravana passa diante da cabra, diante dos campos, do regato, o


espaço torna a car vazio. E continua a ouvir-se o choro do bebé como um
canto antigo, misturado com os soluços da mãe. Isso envolve e entorpece os
escravos, estão todos cobertos por essa angústia, alguns choram baixinho
com a impotência daquelas lágrimas que não servem para nada. O jovem
irado caminha mais direito do que os outros, como se isso o ajudasse a
conter a raiva. Tem os olhos xos num ponto à sua frente, as maxilas
fechadas como uma armadilha que apanhou a presa. Parece imune à fadiga.
Bakhita pensa que deve ser um bom irmão mais velho e um bom lho, mas
olhá-lo causa-lhe quase tanto sofrimento como ouvir a mãe e o bebé. Talvez
estejam quase a chegar, alguém simpático a vá comprar, alguém que lhe dê
leite, diz Bakhita a si mesma. Não vai demorar muito. Então, vê a colina.
Isso tranquiliza-a. A paisagem muda, é um bom sinal, vão chegar a um
qualquer lugar, talvez uma aldeia. Porém, a colina torna-se uma parede.
Estão no seu sopé e a paisagem é isto e só isto. Bakhita ergue a cabeça para
ver toda a colina e quase cai. É muito alta e está cheia de cascalho, dir-se-ia
um calhau gigante que se tivesse partido. Caminham descalços sobre esse
calhau esventrado. Bakhita observa a jovem mãe que caminha a olhar para
o bebé, que chora mais baixo, geme e, com a cabeça inclinada, recebe a
queimadura do sol como um archote apontado a ele. Bakhita e Binah
apoiam-se, agarram-se pelo cotovelo, pela mão, pelo punho, de cabeça
baixa, e até os próprios guardas têm di culdade em andar, chicoteiam sem
gritar, cerrando os dentes e, quando param para beber, vê-se no olhar de
alguns escravos o desejo de os matar. A sede dói até em lugares que Bakhita
não conhecia. Lugares dentro dela que se contorcem, e as pernas doem-lhe
tanto que dir-se-ia que não lhe pertencem. O jovem irado olha para o bebé
e resmunga baixinho, os olhos são duas chamas sombrias.

Na colina, a criança recomeça a chorar. O chefe da caravana para a


marcha bruscamente. Os acorrentados empurram-se e chocam uns com os
outros, as suas respirações têm o ruído quente da forja. «Faz calar esse
imbecil!», grita o chefe à mãe, que o olha com um espanto longínquo,
metendo um mamilo na boca do bebé. A mão treme-lhe. «Já não posso
mais! Já não posso mais!», urra o chefe.

O bebé chora mais alto. Bakhita tenta falar-lhe, na sua cabeça, envia-lhe
algum reconforto, palavras gentis e loucas. O sol martela com tanta força
que o ar treme, está tudo desfocado, como se já tivesse desaparecido. O
chefe aproxima-se. Diz que vai fazê-lo calar. Ao seu imbecil. Ao seu
atrasado mental. Quanto a ela, não grita quando ele lho arranca dos braços.

Não grita, abre a boca e o esgar cobre-lhe todo o rosto, como uma
máscara de guerra. Onde encontra a força para se lançar sobre o chefe e
recuperar o lho? É tão jovem e tão magra, nunca se poderia pensar que
tivesse tanta força, o seu grito é mais forte do que ela e os punhos tão
violentos no rosto do chefe da caravana. Mas forte claro que ela não é não
consegue recuperar o lho. Tenta apanhá-lo, saltita e atira-se, o chefe recua,
rindo. Segura a criança por um pé e fá-la girar no ar como uma corda para
apanhar um animal. O bebé vomita e, depois, o homem bate com ele numa
pedra. O bebé tem uma convulsão. Os seus olhos sangram e treme como
um peixe retirado de um rio. Um escravo cai de joelhos e ela reza,
soluçando. Outros gritam olhando para o céu.

Bakhita não compreende o que dizem. Tem di culdade em manter-se de


pé, sente que Binah lhe agarra na mão. Sente isso. E mais nada. Quando a
mãe pede ao chefe que a mate, também não compreende. Está ajoelhada e
suplica: «Mate-me! Mate-me!» Bakhita já não sabe o que isso quer dizer. A
vida. A morte. É realmente necessário car aqui? Não compreende o que vê.
As coisas acontecem e ela não as entende. Uma sideração.

Um escravo grita palavras furiosas dirigidas ao chefe, outros fazem


como ele: é um burburinho de cólera, dialetos, orações e revolta. Então, o
chefe ergue o chicote e bate na mãe até ela cair de joelhos, até já não haver
dela mais do que uma grande pele rasgada. E, de repente, todos os escravos
se calam. Já só se ouvem o ruído das chicotadas e os rugidos do chefe, que
sua e se baba de fúria. O corpo da mãe estremece, depois abre-se sob as
pancadas e as pedras cam vermelhas. O barulho do voo dos abutres ecoa
contra as pedras, uma bofetada pesada e lenta que bate o ar quente. O
jovem irado dobra-se ao meio e vomita. Os homens acorrentados a ele têm
de se baixar também e dir-se-ia que se prosternam. O jovem irado perdeu, a
sua revolta não serviu de nada e sabe que nunca mais voltará a sentir
orgulho de si, sabe que é aquele a quem nunca pedirão ajuda. Ila al’amam!
O chefe manda recomeçar a marcha. Bakhita chora nos braços de Binah,
não pode obedecer. Contempla o céu. Desejava ler um sinal algures.
Desejava que a mandassem cavar a terra para deitar lá a mãe e o lho.
Desejava que os mandassem cantar. Desejava que algo, aqui, no meio das
pedras, viesse dos homens. Ila al’amam! Recomeça a andar. Como os outros.
Obedece. Já não sabe onde estão os vivos e onde estão os mortos. De que
lado está a vida.
Após trezentos quilómetros de marcha, a caravana chega ao centro do
Sudão, ao grande centro das caravanas, El Obeid, a capital do Cordofão. A
cidade vive do comércio da goma-arábica recolhida das acácias e dos
escravos que vão para o Egito e o Mar Vermelho. Dessa cidade onde chega
esgotada, Bakhita guardará, antes de tudo, a recordação do barulho. Ao m
de vários meses de marcha, os souks, as chamadas para a oração, a multidão,
os animais: é um contraste violento. Lembrar-se-á de um ruído profundo,
um fragor de ferros e vozes, como se tudo se quebrasse. Uma desordem de
que não compreende nada. Tem sede e dores, os músculos estão
entrelaçados como as folhas secas dos embondeiros, rugosas e rangentes. Já
não vê os escravos com que caminhou, sente-os à sua volta, umas sombras
pesadas, um sopro que caminha quando ela caminha, para quando ela para:
transformaram-se num único animal negro e curvado. Um único animal
ferido. Um quarto dos escravos morreu pelo caminho. Só a presença de
Binah é real.

No souk de El Obeid, os gritos dos animais e os dos homens são iguais.


Uma excitação brutal. Silvam, resmungam, interpelam-se no ar húmido, os
odores misturam-se, o couro, o tabaco, a bosta, as especiarias, o carneiro
grelhado, agarram a garganta, causam náuseas, há por todo o lado poeira
que vem da terra, levantada pelos animais e pelo vento, e os homens
mantêm-se agachados sobre esta terra de pó seco, ao lado do que têm para
vender, num tempo distendido, uma espera eterna. A cidade espalha-se,
perdida entre a terra cinzenta e umas nuvens desoladas. É um local de
passagem, de descon ança e de trá co.

Bakhita foi lançada para ali, com o alívio de ter chegado e a angústia de
fazer parte daquela barafunda. Tem sede. Todos têm sede. Estão esgotados e
doentes e perguntam-se o que vai acontecer. Acorrentam-nos, esperam
durante horas ao sol sem saberem o que esperam. Os seus guardas foram
restabelecer-se, conversar com os faroucs e apresentar-se ao alfaqui,
organiza-se a estada. Ao m de algumas horas, trazem-lhes de beber e,
embora saibam que não se trata de um ato de humanidade, mas de
precaução para não perderem a mercadoria, muitos agradecem. Homens
solitários passam à sua frente e observam-nos, avaliam com o olhar os
recém-chegados. Um deles, espadaúdo, enrugado, com o ventre enorme a
abaular-se sob a galibieh, aproxima-se de Bakhita, alisando o bigode. Ela
recua um pouco, mas ele desvia-se rapidamente dela, atraído por dois
rapazinhos que adormeceram um contra o outro e que contempla durante
um instante, em silêncio. Em seguida, recuando e continuando,
simplesmente, a alisar o bigode, afasta-se.

Tal como os outros escravos, Bakhita tem medo. Há em cada olhar, em


cada encontro, algo de subentendido e viciado. Para amansar o medo,
obriga-se a olhar a vida que tem pela frente. Gostaria de compreender onde
verdadeiramente se encontra, esse mundo da escravatura organizada, com
os homens armados que passam diante deles sem lhes dirigirem um olhar
sequer, as mulheres veladas, carregadas, que nunca andam sozinhas, as
crianças-soldados que marcham com espingardas mais altas do que elas, e
depois vê passar outras crianças, ainda mais novas, que trazem, como em
Olgossa, os rebanhos de volta ao redil. Não quer pensar na sua aldeia, na
evasão falhada. Concentra-se tanto quanto pode no presente, acorrentada a
Binah, amontoada com os escravos abandonados sob o sol. Pensar na
família dera-lhe força para fugir. Atualmente, esse pensamento é uma
tristeza demasiado pesada.

Desde Taweisha, sabe que esta cidade não é, em nada, um lugar


tranquilo. Aqui são todos mercadores e guardas de escravos, escravos,
mulheres ou lhos de escravos, escravos de escravos. É uma vida
hierarquizada, sob o alto comando do sacerdote, que se encontra, ele
próprio, às ordens dos grandes negociantes. O respeito vai para eles, os
ricos e os religiosos. Aqui os homens não têm apenas a seu cargo aquilo que
tiraram às aldeias vítimas de saque: também têm o que arrancaram aos
elefantes e aos animais selvagens. As suas mulas e os camelos de dentes
amarelos transportam os tesouros de pedras e ouro. Rasparam e
esventraram a terra e as árvores, vão vender os homens, os dentes e as peles,
o sal, a borracha e o cobre. O mundo foi saqueado por eles e Bakhita ouve o
ruído das massas que martelam a madeira para fazer cercados, o dos
animais e o dos homens, prisioneiros e inocentes semelhantes.
Ao m de intermináveis horas, vêm buscá-los. A noite cai e o frio
instala-se com a penumbra, sempre aliado a ela, como se à as xia do dia só
pudesse seguir-se o excesso da frialdade. Há em todas as coisas uma
violência que nunca capitula. O mercador, os guardas e os faroucs começam
a seleção. As mulheres, de um lado. Os homens, do outro. Os que estão de
boa saúde, de um lado. Os que estão em má forma, do outro. Os escravos
receiam a dispersão, é a sua vida que está em jogo, uma vez mais. Os
guardas beberam, fumaram, e as ordens que dão são brutais,
incompreensíveis e contraditórias. Têm pressa, já não suportam ter de
continuar a ocupar-se daqueles escravos, culpam-nos por quase todos os
quilómetros que tiveram de fazer, odeiam-nos por aquele trabalho que não
tem m, há no ar escuro sinais de fúria e de frustração.

Alguns basbaques observam a seleção, aquele tumulto, toda aquela


desordem, e Bakhita reconhece entre eles o homem do bigode no e ventre
enorme, que se aproxima, fala durante um momento com um farouc, que
parece ser o chefe dos agentes, e este em breve dá uma ordem. A voz é grave
e as palavras breves. Obedecem-lhe rapidamente, mandam vir os dois
rapazinhos que dormiam um contra o outro algumas horas antes. Eles
sentem medo de imediato. Ser apontado é estar sempre sob ameaça. Há o
medo instintivo de ser agredido violentamente e o de ser separado do
grupo, como se estarem juntos constituísse uma segurança. O homem, um
pequeno subcontratante, quer os dois. Puxa pelo dinheiro. O farouc repele-
o com cólera. O homem volta. A disputa começa, jogo habitual, ritual. Os
dois rapazinhos gemem olhando os escravos que estão atrás deles e dos
quais nenhum é parente, mas de quem não querem ser separados. Coçam as
pernas, os braços, fungam, o pânico invade-os. Finalmente, quando já é
praticamente noite, o farouc mete a comissão ao bolso e dá uma criança em
vez de duas. Pequeno contrabando habitual: riscará o miúdo da lista, o
grande negociante não se aperceberá de nada. Bakhita observou a cena e
compreendeu que os dois pequenos são irmãos. Espera gritos, choros, uma
resistência, mas o rapazinho que não foi vendido nada diz. Esconde o rosto
com o antebraço e, docemente, o seu corpo dobra-se, deixa-se cair e,
dobrado sobre si mesmo, sem um ruído, treme sobre a terra na. Com o
braço ainda diante do rosto, treme e agita a poeira. O guarda levanta-o com
um único gesto, a criança não pesa muito, põe-no de pé e atira-o para o
meio dos homens, o grupo dos saudáveis. Um escravo recebe-o contra si
como se fosse uma bola lançada, com as duas mãos abertas, e recua. Então,
parece a Bakhita que o grito que ouviu ao longe não é de um animal, nem
de um homem, nem do outro irmão, mas sim de uma dor pura, que está
além do humano. É o grito dos seres separados, mas o que quer guardar
desta cena é a criança recolhida nas mãos do escravo.

Está desorientada. Segura a mão de Binah, que a leva com ela, juntam-se
ao grupo das mulheres saudáveis. Vão limpá-las com grandes baldes de
água, alimentá-las, deixá-las recuperar as forças; o segundo grupo, o dos
doentes, será tratado, antes de ser vendido ao desbarato a alguns beduínos;
o terceiro grupo, o dos demasiado velhos e fracos, é atirado para uma fossa.
Neste último grupo, encontra-se o jovem irado com o olhar que queima.

Quando haviam recomeçado a andar, na colina, depois de terem


abandonado a mãe e o bebé, o jovem vomitara e depois pusera-se a chorar
como uma criança de tenra idade. Já não tinha cólera, nem orgulho, nem
idade. Era uma grande a ição que causava vergonha aos homens aos quais
estava acorrentado. Disseram-lhe que se recompusesse. Era grande, já devia
ter sido iniciado e por certo havia muito que não dormia na cubata da mãe.
Mas ele não os ouvia. Chorava batendo os dentes, talvez tivesse febre, uma
grande febre que o gelava no interior. Os guardas revezavam-se para o
chicotear, uns atrás dos outros, e então isso tornou-se um hábito, era a ele e
apenas a ele que chicoteavam, uma chicotada atrás da outra, a acompanhar
a marcha. Avançava curvado, com os joelhos dobrados, os braços
abandonados ao longo do corpo quebrado. E após quilómetros de marcha,
quando a caravana descia o outro lado da colina, depois de lhe ter
desnudado o osso da espádua e arrancado a pele das costas, o chicote levou
os olhos do jovem irado que, havia muito, já não tinha ira.
Em El Obeid, durante vários dias, deram-lhes de comer e beber,
lavaram-nos, cortaram-lhes ou entrançaram-lhes os cabelos, mataram-lhes
os piolhos, cortaram-lhes as unhas, vestiram-nos com um pano, puseram-
lhes pomadas nas feridas, mandaram-nos beber ervas amargas e mascar
raízes terrosas, deixaram-nos dormir e, agora, podem ser vendidos.

Uma manhã, expõem-nos no grande mercado. É um dia esperado e


temido. A venda. Estão amontoados num hangar, num terreno vago, e
esperam, acorrentados e silenciosos, aparentemente resignados e aterrados
no fundo de si próprios. Binah está ao lado de Bakhita, não são as únicas
rapariguinhas, mas mantêm-se perto uma da outra e ninguém tem nada a
dizer sobre isso, estão juntas, como um lote. A algazarra dos animais e dos
homens que berram no ar rançoso, os tambores, os chamamentos à oração,
para Bakhita calou-se tudo. Os odores a peles curtidas e café, a menta e
ferro queimado desapareceram. Está de pé, seminua e à venda, e não ouve
nem cheira nada dessa realidade. De manhã cedo, o seu espírito elevou-se
nas alturas, como um pássaro livre, alheio a El Obeid. Tomou-o entre as
mãos, depois soltou-o por cima do mercado e vê-o dançar no céu, como um
véu que se agita. Segue-o com curiosidade, tem a capacidade de se imaginar
noutro lugar, fugir de um corpo que pertence a todos para viver a sua vida
secreta. Está no hangar e está com esse pássaro. Por vezes, é claro, ouve os
homens. «Djamila.» Chamam-na, soltam-na, avança e faz o que lhe pedem.
Como é habitual. De frente. De costas. Depressa. Lentamente. Com os olhos
baixos. A cabeça inclinada. Calma e sem expressão. Paciente e obediente.
Por vezes, as mãos são grossas e molhadas. Por vezes é apenas um dedo que
martela e examina um ponto após outro, como um bico. Bakhita pensa no
céu claro, junta-lhe umas nuvens brancas para o pássaro, desenha, executa
traços. Pedem-lhe que fale. Fala. Fá-los rir. Sorri. Umas moscas pousam-lhe
nos lábios. Fecha a boca. Um pau abre a sua intimidade. Acrescenta mais
um pássaro ao céu, uma ave que vai juntar-se à sua, e pergunta-se o que irá
sair dali. É o que se vende melhor. Pior para ti. Regressa ao lugar. Tornam a
prendê-la. Quanto ao segundo pássaro, não consegue concentrar-se nele,
desaparece com demasiada rapidez.
Após esta exibição, o seu espírito está desatento e ouve o que se diz:
– Quanto custa esta negra?
Na multidão, um homem aponta para uma rapariga bela, de formas
generosas e pernas musculadas. Também é escravo, é um soldado, um
abastado. Hoje de manhã, vem comprar uma mulher para si. Partirá com
ele para o campo, servirá de empregada doméstica e dar-lhe-á lhos. Já tem
onze, das suas duas outras mulheres, é respeitado. A escrava indicada
caminha diante do miliciano enquanto o mercador lhe gaba a força e a
submissão. Ela sabe que, se vier a ser a mulher do militar, terá lhos que
servirão no seu exército, lhos que não lhe serão retirados, e poucas
escravas têm essa sorte. O miliciano é velho, observa-a com os olhos
semicerrados e a boca amarga, aproxima-se e ela cheira o seu hálito de
tabaco frio e cerveja. O homem hesita, estala a língua contra os dentes,
toca-a um pouco e, subitamente, pede para ver outra, mais nova, com
pouco mais de doze anos, quase formada.
– Essa é abissínia – diz o mercador. – É obviamente mais cara!
A primeira escrava volta para junto das outras. É menos bela do que as
abissínias, as mais procuradas e mais conceituadas. Já não é su cientemente
jovem para ser formada para os haréns. É demasiado bela para servir como
uma mera criada doméstica, trabalhar nas cozinhas ou fazer a lide da casa.
É demasiado frágil para trabalhar nas minas. Ainda faz parte das escravas
de valor, talvez outro miliciano venha comprá-la, talvez venha a ter lhos e
a conservá-los a seu lado durante toda a vida. É a única coisa em que pensa,
nessa esperança que inventou, porque é muito necessário tê-la, dar a si
própria a possibilidade de uma vida. Todavia, o miliciano já negociou com
o mercador, o negócio concluiu-se rapidamente: mal a mandou ir-se
embora e ajoelhar-se, pagou pela abissínia, que é não só mais bela, mas
também mais saudável. Está contente com a compra, e a partir desta noite
vai metê-la na sua cama. Doze anos… Ele sorri. Um jovem proprietário
fundiário aproxima-se, vê a compra do miliciano, reconhece a raça da
rapariga, está um pouco descoroçoado e frustrado, pois, apesar de os preços
terem descido, não tem com que pagar nada de especial. Se pelo menos não
estivesse sufocado com os impostos, também compraria uma rapariguinha
para si, mas tudo é aplicado nos campos, todas as suas economias, mal tem
uma piastra de lado, renova o material, os escravos de idade madura que
morrerão dentro de poucos anos. Desde que o governador britânico
Gordon Paxá, que todavia está ao serviço do Egito, tenta erradicar o trá co,
é o apogeu, o grande trá co, já não se sobe o Nilo com os vapores para ir
buscar os escravos e o mar m à volta do rio, vai procurar-se a mercadoria
mais longe, no Uganda, no Sudão do Sul e no Darfur do Sul. É um bom
viveiro, o Darfur, mas é preciso ir lá, atravessar os desertos, os rios
intransponíveis, morre-se no caminho à ida e no regresso. Que importa? O
país está cheio de pessoas para vender e ele nem sequer tem uma rapariga
na sua cama. Vai-se embora como veio, cansado e invejoso. O mercador
manda soltar Binah: um rico negociante organiza uma festa, vem à procura
de alguns presentes para os seus convidados. Binah olha para Bakhita,
como fazer para carem juntas? Bakhita pede ao pássaro imaginário que
proteja a amiga, fala-lhe, palavras simples que o pássaro compreende, tem a
certeza, quer que assim seja. O pássaro paira sobre elas com as asas abertas
como uma carícia que vai de uma à outra. O negociante olha Binah, toca-a
um pouco, está cansado logo à partida, é bela, sim, mas um pouco jovem de
mais, de certeza que não sabe nada, não será e caz… Não é que os
convidados não gostem de crianças, mas quer que a próxima festa seja
inebriante, desenfreada, a dança, o canto, as brincadeiras eróticas, e aquela
miúda já parece prestes a chorar. Faz um sinal irritado e o guarda torna a
levar a pequena. Bakhita vacila, e o movimento furtivo da mão de Binah na
sua é confundido por ela com o bico do pássaro, a sua cabeça tão suave,
então agradece-lhe, inclinando por sua vez a cabeça. Binah geme baixinho,
de alívio e de fadiga. Não largo a tua mão.

E a venda continua, horas intermináveis sob um calor indiferente, um


cansaço de cair. O ar está carregado de angústia, o verdadeiro nome de El
Obeid é angústia. O peso do sofrimento humano lastra a cidade e a cidade é
maldita. A venda continua durante todo o dia, com escravos comprados,
escravos vendidos ao desbarato, escravos separados e suplicantes,
lamentações inúteis. Isso nunca servia de nada, dirá Bakhita, mais tarde.
Nunca servia de nada gritar, chorar. Era como um canto que ninguém
ouvia, «o canto dos separados». A aversão a si mesmo nunca abandonava os
escravos. O desejo de ter outro corpo, outra pele, outro destino e um pouco
de esperança. Mas em quê?

A noite cai sobre o mercado de El Obeid, o pássaro branco já é apenas


um ponto no céu abafado, Bakhita está prestes a perdê-lo. Se quer
sobreviver, tem de o encontrar, de voltar a esse mundo marginal, mas a sua
concentração esgota-se, baba-se de tanta sede que tem, o suor corre-lhe
pelo peito e pelo ventre. As vozes dos compradores aproximam-se com os
seus dedos, os lances sobem, as piastras passam de mão em mão, grita-se,
ri-se também, as pessoas interpelam-se e troçam, gabam-se, bajulam-se,
Bakhita ouve sempre a palavra djamila, é bela, mas para que serve a beleza
de uma rapariguinha, além de ser o orgulho da família, não compreende. E
o medo aumenta com a fadiga, todos se mantêm imóveis e servis como
perante espingardas apontadas.

De súbito, Bakhita ouve o riso de Binah. É uma alegria desvairada,


quase um pânico aquele riso. Não compreende imediatamente. Tiram-lhes
as correntes. Um homem acabou de as comprar. Sem qualquer
demonstração, comprou-as. É um civil, árabe, grande, largo, quase
quadrado, o seu olhar cintila quando as contempla, como se tivesse acabado
de fazer uma descoberta divertida. Sente furtivamente a mão de Binah na
sua, a rapariguinha tem aquele riso idiota e enervado. Repete: «As duas!
Estamos as duas!» É o m do dia. Os que não foram vendidos regressam ao
acampamento com os guardas. Bakhita e Binah não os acompanham.

Bakhita não compreende logo o que isso signi ca. Que vão fazer com
aquele homem? Porque comprou as duas? Para onde as leva? Não existe
nenhuma resposta, é uma situação desconhecida e diz para si que Binah
tem razão. Estão juntas e não é preciso pensar em mais nada. Furtivamente,
passa uma mão pelas costas da amiga. As costas diminutas encolhem-se sob
o efeito da surpresa e Binah sorri. E depois solta um soluço, breve, ruidoso.
Bakhita olha-a e ama-a. Sabe que é um perigo, mas ama-a verdadeiramente.
Olha para o céu e agradece ao pássaro, que agora paira lá tão alto, absorvido
pela noite.
Agarradas por um guarda, saem do mercado, deixam os souks. Há
quanto tempo não caminhavam fora de uma caravana? O espaço é
diferente, quase utuam neste espaço ralo. É uma outra vida que começa e
Bakhita pergunta-se se, nesta vida, a irmã a espera. Treme devido à
esperança que surge.

Atravessam uma pequena alameda orlada de eucaliptos enfezados e


palmeiras sacudidas pelo vento da noite. Veem as paredes altas e vermelhas
de uma casa com janelas sem vidraças de onde sai a luz dos primeiros
candeeiros. Veem os terraços desertos, aproximam-se e a casa ergue-se
diante delas como uma montanha, profunda e misteriosa. Percebem que é
para ali que vão. Não é uma cubata. Não é um redil. Aquela casa. Que vão
fazer naquela imensidão?

O jardim cheira a estábulos, a capoeira e a goivos. Um gato famélico


corre sobre o telhado de um edifício ao fundo do jardim. Aí há duas
casinhas. É quase uma aldeia, então? Alguns homens e mulheres passam
furtivamente, negros na noite, como sombras profundas. Será que vão viver
com aquela gente?

Na porta de entrada, um negro precipita-se ao encontro do homem,


prosterna-se, Ia Sidi, meu senhor, a sua voz é atroz, aguda e infantil, abre de
par em par a porta da casa e, depois do senhor, elas entram. Na montanha
profunda.

Seguem-no até ao primeiro andar, a parte reservada às mulheres.


Quando pousam os pés descalços no solo liso, frio, uniforme, dão as mãos.
É difícil caminhar naquela terra sem pontos de referência e, quando têm de
subir a escada, a cabeça anda-lhes à roda. É como subir uma torrente:
pensam que vão cair e levantam a cabeça para não verem o seu re exo no
chão. No patamar do primeiro andar, uma mulher velada precipita-se,
inclina-se diante do senhor, beija-lhe as mãos e desaparece. Ele avança sem
um olhar, sem uma palavra, avança, é o dono do local, o proprietário da
casa. Bakhita e Binah continuam a segui-lo ao longo de corredores in nitos.
Bakhita pensa na serpente. «A casa serpente.» É assim que sempre falará
dela e sempre a temerá. Atravessam corredores cobertos de esteiras,
divisões sem porta diante das quais estão abandonadas chinelas de seda.
Mulheres esperam diante das divisões, outras passam transportando uma
bandeja ou candelabros. As que têm o busto nu erguem bruscamente a saia
diante do senhor e cobrem o rosto à sua passagem. As que usam véus
baixam os olhos. O mundo abre-se e teme o senhor. Bakhita e Binah
descobrem objetos desconhecidos, espessos na penumbra: divãs, cadeirões,
tamboretes, tapeçarias, espelhos, e Binah grita quando tem de passar diante
da raposa do deserto de beiços arreganhados. Os seus olhos são vermelhos e
a boca está aberta e cheia de dentes tão aguçados como pequenos punhais.
Nunca passará diante da raposa empalhada sem pensar que esta vai
despertar e retalhá-la. No dia em que ela já não a temer, o animal
despertará, como fazem os espíritos ofendidos.

Depois entram no quarto das lhas do senhor, Sorahia e Radia. São


pouco mais velhas do que elas. Estendidas numa otomana, comem frutos
sem prazer. A divisão tem grandes janelas sem vidraças nem persianas: uma
dá para a colina, a outra para a praça do mercado de onde chegam as
últimas blaterações dos camelos e os relinchos dos cavalos. O mundo lá em
baixo já é um outro mundo, o coração longínquo do trá co. Aqui a luz dos
candelabros é suave, vacilante e os mosquitos dançam à sua volta; cheira a
limão, um pouco ácido, familiar. Pela outra janela veem-se os brilhos
rosados do último sol. Durante um momento, Bakhita pensa em todos os
que ainda estão acorrentados. Ela, ela está salva, mas não saberia dizer de
quê.

À chegada do pai, Sorahia e Radia levantaram-se com um ruído de


pulseiras e risinhos, dirigem-se para ele, que parece nalmente à vontade, a
sua voz é doce, é feliz. Aponta para Bakhita e Binah:
– Vejam o que vos trouxe do mercado!
É sempre uma pancadinha no coração. Uma violência que surpreende.
Essa maneira de falar delas, esse tom que diz mais do que as palavras, esse
desdém e esse apetite, como se fossem surdas. Completamente idiotas. Será
que ainda irão dizer djamila, essa palavra sempre casada com o dinheiro?
– Choukrane, baba!
Bakhita compreende essa palavra, conhece-a e acha-a bela. Baba, uma
pessoa tem vontade de a dizer, de a repetir. Uma palavra que diz tão bem
com a noite. Ergue um pouco os olhos e vê pela janela a montanha escura,
um quarto de Lua pálido colocou-se mesmo por cima dela. É uma grande
calma que contrasta com a excitação do quarto. As duas raparigas falam
alto, saltitam e aplaudem:
– São negras! Tão negras!
Mandam-nas andar, virar-se, passam um dedo ao longo da sua pele,
arranham um pouco, tocam-lhes nos cabelos crespos, lançam gritinhos de
medo, têm vontade de car com elas de imediato. O pai modera-lhes a
impaciência:
– É preciso prepará-las! Acabam de chegar do mercado!
Bakhita nunca esquecerá que é no momento em que as rapariguinhas
começam a insistir: «Baba, deixa-nos brincar um pouco! Babaaaaa… Por
favor…», é nesse momento que ele entra. Ele entra e tudo se congela, o ar
deixa de circular, é como se as janelas estivessem fechadas. Quando vê
entrar o lho, Samir, o senhor deixa de rir. O olhar torna-se cinzento e tem
um esgar de desprezo nos lábios. Samir tem catorze anos. Já não tem o
direito de estar no lado das mulheres, mas dorme por vezes no leito das
irmãs, da mãe, das primas. É quase um homem. Em breve deixará o harém
e descerá para o mandara. Tem os olhos redondos, demasiado grandes,
transbordam das pálpebras, o rosto está cheio de manchas castanhas e
cicatrizes de varicela, o rosto é uma batalha. Nunca deixou a memória de
Bakhita.Nem o seu odor, que podia aterrá-la sempre, mesmo idosa, mesmo
noutro lugar, num outro continente. Um odor como se tivessem mandado
queimar, em conjunto, um animal morto e um fruto acre. É um odor que
vem da pele, mas que parece vir do interior do ventre, como que esquecido
e duro. Todos se calam e o silêncio diz qualquer coisa. Sorahia é a mais
velha. Olha o pai com insistência. Bakhita e Binah recuam instintivamente e
cam de cabeça baixa. Samir aproxima-se, gira em seu redor sem uma
palavra, com suspiros irritados. É como estar à venda uma vez mais. Esse
terror da avaliação. Sorahia diz que o irmão também tem, sem dúvida, um
presente. «Não é verdade, baba, que o Samir também tem um presente?»
Bakhita não compreende tanta audácia. Uma pessoa não se dirige assim ao
pai. Não se lhe ordena nada. Pensa que vai eclodir uma discussão e tem
medo. Sente vergonha de estar seminua, cheia do suor e da poeira do
mercado, sente vergonha por esta família mostrar as suas rivalidades a duas
estranhas. O silêncio é brutal. De súbito, Sorahia agarra-lhe no braço e
atira-a contra Samir, fazendo-a chocar com o ventre grosso, o odor espesso.
Diz:
– Aquela é a mais bonita!
E, de seguida, fá-la rodar sobre si mesma, dizendo com rapidez longas
frases que Bakhita não compreende totalmente. Roda como os mosquitos
na luz, vê a noite agarrada às janelas, toda aquela escuridão dança em seu
redor. Sente uma dor de cabeça que lhe dá vontade de vomitar e, quando
Sorahia para de a fazer rodar, está tão atordoada como se tivesse dançado
durante muito tempo uma dança que não liberta, não chama nada nem
ninguém: a dança forçada dos senhores. O odor da carne morta e do fruto
acre corre em regos pela fronte de Samir. Bakhita vê esse o de suor sobre o
rosto estragado e baixa novamente os olhos. Sorahia vai formá-la.
Compreendeu isso. Sem saber o que verdadeiramente signi ca. Depois, dá-
la-á a Samir para as noites antes do casamento. Também compreendeu isso.
E sabe o que signi ca.
Foi assim que começou a vida ao serviço dos senhores. Aquele era o
primeiro. Era um chefe árabe, um homem rico que gostava de comprar,
tra car, que conhecia toda a gente e todas as negociatas. Fizera negócios
durante muito tempo com o governo egípcio na época em que as razias
serviam para lhe pagar as taxas e os impostos; tra cava agora com os
governadores corrompidos, precisamente os mesmos que participavam na
cessação do trá co. Começara por enriquecer com o comércio de mar m,
orgulhoso por ter formado os rapazinhos raptados da sua aldeia que, uma
vez adultos, se contavam entre os caçadores furtivos mais bárbaros. Nunca
participara em nenhuma carni cina, tinha os seus lugar-tenentes para isso,
homens impetuosos que ordenavam aos escravos que trouxessem o mar m,
mas também as crianças, o gado, os víveres. Tudo o que podiam roubar,
roubavam com a força das espingardas. O senhor sabe quanto custam uma
bola de bilhar, o cabo de uma faca, um colar. O homicídio em grande escala.
Pode converter uma cubata, uma aldeola, uma vila ou um distrito em quilos
de mar m, fá-lo por vezes, quando os seus convidados lho pedem, mas com
os pormenores, todos os pormenores, o tempo do esplendor e da aventura.

Bakhita e Binah moraram no edifício reservado às escravas, no fundo


do jardim. Escondia o edifício minúsculo onde viviam os escravos casados.
Bakhita nunca esqueceu aquele casal cujo terceiro lho viu nascer, o lho
do escravo Idris e da escrava Mina. Segundo a lei islâmica, o senhor
autorizara esse casamento e os lhos pertenciam-lhe. Mina era feia e
trabalhava nas cozinhas. O facto de Idris a ter escolhido para esposa era
tema de troça e murmurava-se que em breve teria outra. Mas Idris nunca
teve uma segunda mulher e o que os unia continuou a ser, para todos, um
mistério e motivo de troça. Bakhita via-os viver como se respira, um lugar
onde a vida tinha dimensão humana, mesmo havendo aquele medo
permanente de que, um dia, o senhor viesse buscar uma das crianças e
nunca mais voltassem a vê-la. Encontravam-se por vezes à noite, iam
partilhar a refeição, alimentar os lhos, e Mina cantava certamente canções
de embalar às crianças para as adormecer. Isso existia e ela lembrava-se de o
ter conhecido. O terceiro edifício, ao lado do das mulheres, estava reservado
aos escravos. Bakhita nunca se aproximou dele. Por vezes, ouvia lutas
violentas, havia rixas, ajustes de contas durante várias noites seguidas, e
depois mais nada durante semanas. As lutas ocorriam amiúde durante os
períodos do ramadão, que eram tão duros. Bakhita lembra-se do grito de
um homem, gritava uma ou duas vezes todas as noites, talvez durante o
sono, um grito de angústia que vinha de algum lugar, que chamava.
Ninguém lhe respondia nem o tratava mal. Ele gritava e depois, de novo, o
sossego da noite.

Na primeira noite, quando entram no edifício das escravas, escuro, com


o odor húmido de porcaria, de legumes cozidos e de tabaco, Bakhita
procura Kishmet instintivamente. Penetrar naquele grande silêncio cheio de
mulheres é como nadar no fundo do rio. Um mundo secreto e taciturno,
povoado de espécies diferentes. Antes de terem visto as duas meninas, todas
as escravas sabiam que o senhor as trouxera do mercado para as lhas. Sem
muitas ilusões, mas sempre com um espírito tenaz, têm curiosidade em vê-
las. Talvez sejam suas irmãs, lhas ou netas. E, se não forem, talvez as
tenham conhecido, talvez tenham ouvido falar delas. Aproximam-se e
tocam-lhes, tentando reconhecê-las, ouvir o seu dialeto, ver as marcas que
têm na pele, perguntam-lhes de onde vêm, que aldeias atravessaram, que
senhores tiveram, em que zéribas, e será que viram Awut, aquela que tem os
sinais da águia nas maçãs do rosto; e Amel, uma muito pequena com a
irmã, que canta como a cotovia-das-castanholas; ou Kuol, o bebé que vem
da região dos azande, capturado certamente com a mãe, muito jovem; e o
velho Aneh, que vem de Maba, um homem sábio, com braços longos e
mãos nodosas, viram-no? As palavras em dialeto e em árabe, os nomes
próprios desconhecidos, a azáfama das mulheres fazem com que não se
compreenda nada e se confunda tudo. Talvez elas tenham visto Awut, Amel,
e os bebés e o velhote, mas não se lembram e todas essas perguntas, sem
verdadeiramente as compreenderem, já as ouviram enquanto caminhavam
com as caravanas e no acampamento de Taweisha e em cada aldeia
atravessada. Já não são perguntas; trata-se de uma litania de esperança e
desespero, de vidas roubadas que depois se esfumaram, de crianças que já
não têm nada da infância, de um desmoronamento de toda a cronologia e
toda a normalidade. Então como poderão reconhecer-se quando todos se
perdem mal passam a pertencer a terceiros? Bakhita não tem nada a
responder às mulheres, mas repete o nome da irmã e tenta, num dialeto que
elas não compreendem, dizer-lhes que ela tem dezasseis anos, vem de
Olgossa, no Darfur, é uma Dajou e se chama, en m, se chamava Kishmet.
As mulheres encolhem os ombros e afastam-se. Ela vem de longe e não traz
mais nada para além da sua ignorância. Bakhita pensa na mãe e no lho
esmagado contra as pedras. Será que ele se chamaria Kuol? De que região
vinha? Essa história nunca a contará a ninguém. E o rapaz irado que já não
tinha cólera nunca deixará nenhuma mulher pensar que talvez fosse seu
lho.

Binah está tão assustada que se sentou num canto da divisão, de cabeça
baixa. Não quer ver ninguém e, sobretudo, que ninguém lhe toque
pensando reencontrar a querida lha. Bakhita vai ter com ela e a pequena
pousa a cabeça nos seus joelhos. Bakhita acaricia-lhe lentamente os cabelos
e pensa noutras coisas. Pensa que Kishmet está nesta cidade. Sabe-o, sente-o
até ao fundo do ventre, não há perguntas a fazer, nenhuma dúvida, é uma
evidência. A presença da irmã mais velha dá um sentido à presença dela
aqui, na casa dos seus primeiros senhores. Todo este caminho foi para se
reaproximar de Kishmet. Nada foi inútil nem fruto do acaso. Caminhou
bem, obedeceu bem e chegou ao local certo. Vai reencontrar a irmã e
regressar a Olgossa com ela. Binah adormeceu encostada a si. Ergue-a
muito suavemente e deita-a sobre a esteira que uma mulher lhes trouxe.
Estende-se na sua, fecha os olhos e canta dentro de si «Quando as crianças
nasciam da leoa», as palavras e o ritmo da sua língua materna para não a
esquecer e se manter afastada, o mais possível, do que viu esta noite e do
que compreendeu: Samir, o seu rosto furioso, Samir, contra quem Sorahia a
empurrou. Djamila. A beleza, essa maldição.
Bakhita cou três anos ao serviço das senhorinhas. Após as violências
físicas, as marchas, a reclusão, a sede e a fome, quase teria agradecido por
viver no harém. Era um mundo fechado, povoado por senhoras e escravas,
todas viviam juntas e todas eram cativas. Nenhuma senhora devia ser vista
por um homem, nenhuma saía sozinha e nunca depois do pôr do Sol. As
esposas aceitavam a poligamia, as concubinas, os outros lhos e umm
walad, essas «mães do lho», escravas desposadas e engravidadas pelo seu
marido e que se haviam tornado semilivres semiescravas. A vida era um
carnaval de máscaras enganadoras, de alegria arti cial, uma festa suscetível
de ser interrompida muito rapidamente.

Bakhita fazia o melhor que podia. Queria que cassem com ela. Que
cassem com ela por estarem contentes com ela. Porque gostavam da sua
presença. Mas nunca tomou isso como amor. Sabia o que era o amor,
recebera-o dos pais, era um reconhecimento, uma partilha e uma força. O
amor das senhoras por si era um capricho. Vivia na intranquilidade e na
submissão. O projeto de reencontro e evasão com Kishmet era um remédio
para o desespero, um objetivo secreto. Algo no fundo de si que a tornava
única.

Era Zenab que, todas as manhãs, preparava Binah e Bakhita para as


senhorinhas. Penteava-as, perfumava-as e vestia-as. Zenab passara quarenta
anos ao serviço do senhor antes de ser alforriada. Continuava a considerá-
lo seu patrão e propusera-se pessoalmente para preparar as duas meninas.
Nunca se misturava com as famílias livres, que eram de uma classe superior
à sua, nunca saía da casa, não falava a ninguém e cava sentada durante
todo o dia num canto do jardim a fumar um longo cachimbo, com os
minúsculos olhos semicerrados. Cheirava a tabaco frio, a hortelã-pimenta,
que mascava entre duas sessões de fumo, e a urina de gato. Quando punha
as pérolas nos cabelos das pequenas escravas, as pulseiras de cobre nos
tornozelos e nos pulsos de ambas, cada um dos seus gestos libertava um
odor sombrio e hostil. O rosto era fechado, os gestos, bruscos. Bakhita e
Binah nunca lhe ouviram a voz. Estava cheia de rugas como a avó de
Bakhita e a menina teria apreciado que lhe contasse a história das suas
rugas, como fazia a avó, um acontecimento importante para cada uma
delas, nascimento, luto, confronto. A avó conhecia toda a história da sua
família: «Aqueles que vemos, os antepassados, e aqueles que esperam para
vir ao mundo.», como ela dizia. Para Bakhita, o passado apagava-se e o
futuro pertencia aos outros. Cada dia era um dia de dor e de esforços. Era
preciso agradar às senhorinhas. Tudo o que elas queriam. Tudo o que
imaginavam. As ordens, as contraordens, os caprichos e os devaneios. Viver
para obedecer e agradar. E levantar-se todas as manhãs com um único
objetivo: sobreviver ao dia.

Quando Bakhita começa a viver ao lado das senhorinhas, naquele


grande quarto de divãs profundos, cheio de tapetes, almofadas, colchões de
seda, essas chillas colocadas sobre o solo, de consolas douradas, bandejas de
faiança e de prata, esse quarto onde Sorahia e Radia dormem, comem,
brincam, recebem as amigas, quando ela começa a viver no harém, Bakhita
pensa que este nome próprio lhe assenta bem. Bakhita, a Afortunada. Que
já não caminha sobre as pedras. Já não está encerrada com as ovelhas. Já
não dorme nas árvores. E que, como Binah repete com tanta admiração, já
não tem, realmente, fome nem sede. Tenta ser «doce e boa», como a mãe lhe
ensinou, doce e boa, distingue-se e existe graças a isso, a essa
particularidade. Quer fazer tudo com alegria para mostrar às senhorinhas
que obedecer-lhes lhe agrada, e que fazem bem em mantê-la junto delas.
Durante a maior parte do tempo, estão deitadas e Bakhita ventila-as. Elas
falam, comem, jogam dominó ou cartas, dormem. Bakhita ventila-as. Pensa
que inventaram aquilo. Pensa que, um dia, tiveram a ideia de um jogo: dar-
lhe o grande leque que agita lentamente sobre elas. Acha que é uma boa
ideia, porque está muito calor e transpira muito, mas agora nunca tem sede
ou, pelo menos, não a tem durante muito tempo, e não pode chamar-se-lhe
sede, apenas uma dorzinha. Ventila-as e faz o melhor que pode para não se
mexer, não tremer, não respirar muito alto, «Não arfes como um elefante!»
dizem elas, rindo, e embora Zenab a perfume todas as manhãs, sabe que
cheira mal por causa de todo aquele suor, mas Sorahia diz que é porque ela
é tão negra e acrescenta: «E muito bela, também.» Djamila! Têm orgulho
nela. Quando as amigas vêm vê-las, mostram-lhes tudo o que a escrava sabe
fazer. O macaquinho é o que preferem. Bakhita solta gritos agudos, coça-se
debaixo dos braços e apanha com a boca o que elas atiram ao ar. Por vezes
também faz de cavalo que escoiceia e galopa e as amigas sobem-lhe para as
costas umas a seguir às outras. Faz tudo o que lhe pedem. Tudo o que
querem. Quando não se porta bem, põem-na num canto. Quando querem
impressionar as amigas, pedem-lhe que cante e dance como se faz na sua
tribo, que o faça com muita força e de todo o coração. Fá-lo, e de todo o
coração, mas nunca canta a cançoneta «Quando as crianças nasciam da
leoa». Essa canção é o seu segredo e não quer que se riam dela dando
pancadas nas coxas e ululando. Quando estão muito contentes com ela, as
senhorinhas autorizam-na a sentar-se a seus pés e, por vezes, acariciam-lhe
furtivamente a cabeça, umas pancadinhas satisfeitas. Bakhita ca
apreensiva nesses momentos: tem sempre medo de que as pancadinhas se
tornem mais insistentes, como na pele tensa dos tambores. Imagina-se
en ada no soalho por essas pancadas repetidas, a cair no mandara, a chegar
à casa dos homens, às histórias horríveis que se contam, como o que
acontece às escravas nos dias festivos. E o que lhes acontece quando a festa
termina. As torturas. Os assassínios. As sacas atiradas ao rio com as
mulheres unidas umas às outras. Aquelas pancadas na cabeça são carícias
ameaçadoras.

No andar das mulheres, há os rapazes muito pequenos e há Samir. De


início, ele não exige nada, vagueia e cala-se, mal a olha, parece mais atraído
por Binah, que se diverte a fazer chorar todos os dias. É um desa o ritual
que o faz rir. Precisa de vê-la chorar diariamente. A espera por esse
momento é um enervamento constante, os nervos de Bakhita estão à or da
pele, queria tomar o lugar da amiga quando Samir lhe bate ou a humilha,
quando mostra a todos os dentes que lhe faltam, a sua voz que se esganiça e
o seu medo da taxidermia. Pica-a com uma águia empalhada, obriga-a a
cavalgar um crocodilo. Ela suplica e, por vezes, urina pelas pernas abaixo. E
chora. Como é que Samir soube do medo de Binah? Será que Zenab lhe
contou a sua apreensão, todas as manhãs, ao passar diante da raposa do
deserto? Por ela ou por outra, tudo se sabe. Tudo se repete. Toda a gente
escuta, toda a gente espia. Isso distrai. Os escravos, eunucos ou mulheres, as
criadas, as alforriadas, as senhoras: é um mundo fechado, uma prisão sem
grades. No quarto das senhorinhas, há tantas escravas que servem as
refeições, trazem os vasos para as libações, acendem os candeeiros e à noite,
no terraço, cantam e dançam para as senhoras durante os longos serões em
que as pessoas se aborrecem, em que as mulheres do senhor, os lhos e as
concubinas contam histórias e bebem café. Os dias e as noites são
intermináveis. Muitas escravas dormem diante dos quartos das suas
senhoras, nunca fechados à chave, dormem nos corredores, no chão,
mantêm-se sempre prontas. Quando nalmente autorizam Bakhita e Binah
a irem deitar-se, no edifício ao fundo do jardim, continua a ser um mundo
hostil. As mulheres que trabalham nas cozinhas e as que trabalham nos
campos do senhor não gostam delas. Têm o lugar privilegiado junto das
suas duas lhas e esperam que isso passe. Porque vai passar e, nesse dia,
compreenderão o que é realmente ser uma escrava. Elas recebem chicotadas
todos os dias, os seus corpos não passam de chagas abertas que difundem
permanentemente o fogo das suas queimaduras. Dia e noite, a dor corre-
lhes sob a pele. A loucura espreita-as. Bakhita teme aquela Mariam, que
chama incessantemente os lhos, corre atrás deles e os repreende
ternamente. Está sempre a querer alimentá-los, dar-lhes de beber e nunca se
apercebe de que só fala e persegue os patos. Os lhos foram vendidos, os
dois em conjunto, um lote para o senhor que perdera uma aposta. Bakhita
pensa em Kishmet. Será que tem saudades do lho? Agora já tem mais de
dois anos. Será que teve outros? Será que a deixaram car com eles? Será
que suplicou e cantou o cântico da separação que não serve de nada?
Quando a angústia é demasiado forte, pensa na mão quente que pousou
dentro de si naquela noite na oresta, durante a evasão. Não sabe se era um
antepassado, um espírito, um fantasma, não sabe como dizê-lo, explicá-lo
seria impossível. Contudo, suplica que essa mão regresse. Por vezes, volta.
Leva-a, durante a noite, acima dos seus medos. Acima do tempo do harém,
acima de El Obeid, talvez mesmo além do Sudão, de toda a África. Um
espaço de clemência e de repouso. Ali, sente-se de novo doce e boa. Tal
como a mãe a via.
Cerca de dois anos depois da chegada de Bakhita a casa das
senhorinhas, houve dois acontecimentos importantes num período a que
chamará «a época da grande infelicidade», dois pesadelos parecidos. O
primeiro desses acontecimentos foi a saída prevista com as senhorinhas ao
mercado dos escravos. O segundo foi a preparação do casamento de Samir.

Bakhita tem nove anos e está aterrorizada. O mercado e o casamento


dão aos senhores a mesma excitação violenta, e cada um parece sempre fora
de si. Samir cresceu e vai deixar o harém. Vai casar com Aicha, que lhe está
prometida há seis anos, e que nunca viu. A mãe lamenta-se e aperta o lho
contra si com um impudor extravagante. Ele está orgulhoso, desiludido e
também impaciente. Ora se lamenta como um bebé, ora se torna cruel
como um velho rei.

Bakhita lembra-se dos combates que se realizavam todos os anos, na sua


aldeia, para celebrar as colheitas. Os rapazes que tinham chegado à idade
adulta lutavam contra os adolescentes de outras aldeias, era uma luta
fraternal, como uma dança. A respetiva aldeia cava ao lado deles, com
orgulho, e o seu irmão era então mais do que ele próprio, também era,
como dizia a sua avó, «os antepassados, aqueles que vemos e aqueles que
esperam para vir ao mundo». As mulheres vestiam as melhores roupas,
vestiam as melhores roupas aos lhos: dir-se-ia que uma única pessoa
poderosa e venerável se desmultiplicara em centenas de outras, com o
mesmo desejo intenso e infatigável. Mas na casa serpente, a festa, a
preparação do casamento de Samir parece-se com a do grande mercado. É a
mesma alegria feroz, uma organização ansiosa, ordens e acusações de
manhã à noite. É tudo tenso, como se se esperasse uma vingança, e todos
vivem no pânico e no medo. No grande mercado, o senhor quer comprar,
vender, ter lucros, vai procurar mercadoria, homens e animais, mar m e
ouro, ca fora durante longos dias, regressa e isola-se para fazer as contas,
passa da excitação mais ruidosa ao abatimento mais cruel. Pune e castiga os
escravos, sobe ao harém e atormenta as mulheres. Para o casamento do
lho deseja magnanimidades inultrapassáveis, riquezas escaldantes e
atraentes como o fogo. E são as mesmas contas e as mesmas oscilações de
humor, um lunatismo incontrolável, é o senhor absoluto, mas acaba por já
não saber de quê. Casar o lho entre o esplendor ou voltar do grande
mercado ainda mais rico é, para ele, a mesma vitória. Porém, antes de ser
vitorioso, é preciso combater e ele já não conhece o repouso.

Na memória de Bakhita, os dois acontecimentos misturam-se, mas o


que ocorre primeiro é o grande mercado. Do edifício das escravas e do
quarto das senhorinhas, ouve dia e noite o tumulto dos viajantes que
passam por El Obeid antes de irem para Cartum, centenas de etnias,
homens com os seus rebanhos, que caminharam dia e noite, meses inteiros,
para trocar, vender e comprar. Bakhita sabe que os homens chegam
carregados, sabe que haverá «ébano» e, aí, preciosa entre as preciosas, estará
a sua irmã. Sabe, mais nada. É uma certeza que lhe dá vontade de gritar. A
espera torna-se física, invade-a. À noite, quando está deitada, imagina o
momento, conta a si mesma o encontro com Kishmet, esse amor
reencontrado que lhe dará um sentido para a vida.

É claro que, antes desse grande mercado, já percorreu El Obeid com as


senhorinhas e os eunucos para as acompanhar. Sair com algumas escravas é
sinal de riqueza, escolhem-se as mais bonitas, e Bakhita é um belo
ornamento. É claro que já procurou a irmã entre a multidão, diante das
casas, nas ruelas, no bazar, à esquina das paredes altas, no caminho para o
cemitério orlado de ciprestes, já esperou, mas nunca com esta certeza.
Descobria a vida de uma cidadezinha que lhe parecia tão grande. O mundo
tomava forma e ela nem sempre tinha palavras para compreender o que via
dele, a miséria a cujo lado se pavoneia a riqueza, sentia essa estranha
fatalidade, os mendigos e os escravos sem revolta, as raparigas na soleira
dos botequins, os aguadeiros e as inúmeras e miseráveis lojinhas. Passava
com as senhorinhas veladas e os eunucos, como aves coloridas, pipilando e
fugindo, borboletas no meio da imundície. Viu as crianças abandonadas,
doentes e inválidas, que morreriam em breve e das quais ninguém se
lembraria. A não ser ela. Ainda não sabe, mas não esquecerá essas crianças
das ruas de El Obeid, e reencontrá-las-á, algures, noutras infâncias, noutras
ruas, a miséria universal.
Sorahia e Radia tinham previsto levá-la com elas ao grande mercado
dos escravos. Iriam com a mãe, três eunucos e algumas criadas. Bakhita
esperava essa manhã como a do reencontro com Kishmet, esse reencontro
que anuncia a Zenab, uma manhã murmura-lhe: «No mercado, está a
minha irmã.» Di-lo em árabe e o anúncio nessa língua torna-se o cial.
Oukhty. A minha irmã. A minha irmã mais velha. A minha irmã Kishmet.
Estará lá. Será que Zenab compreende? Bakhita também tem uma família.
Alguém que a ama e não está longe. É assim, o árabe certi ca-o. Tem uma
irmã mais velha que tem um lho de dois anos, sim, e também tem uma
gémea, e o pai é irmão do chefe da aldeia, é uma grande família e a avó sabe
toda a história dessa grande família e, oh! se ela conhecesse su cientemente
bem a língua de Zenab, tudo o que lhe diria, enquanto ela a veste e a
perfuma. Dir-lhe-ia tudo porque, com o grande mercado a aproximar-se, já
não tem prudência nem tristeza, e a esperança que traz é tão grande que
irradia. Mesmo que quisesse escondê-la, não poderia fazê-lo.

A sua presença no grande mercado é anulada no último minuto. Sem


explicação, claro, sem razão. Talvez por estouvamento ou por manha, nunca
o saberá. As senhorinhas partem e Bakhita ca no harém, durante todo o
dia, de pé à janela do quarto delas, mantém-se no terraço esmagada pelo
calor e contempla, lá em baixo, a cidade onde não está, o grande mercado
onde a irmã vai aparecer sem que se reencontrem.

Espia. Desde o sol brutal até ao sol em declínio, no calor feroz e no ar


escurecido, espia. Observa a multidão imensa, aqueles que se cruzam
envolvidos por tantas cores, gritos e poeira, analisa a multidão, observa e
separa Kishmet de todos os que não são ela, mantém-se pronta e atenta
durante todo o dia, no calor, na sede e na vertigem, e, ao m de horas de
paciência e de esperança, vê-a. No meio da multidão que fervilha em
miniatura, encontra-se Kishmet. Alguns segundos de choque, despertar
brutal, a luz explode. Está ali, em baixo, diante da casa ou quase, naquele
grupo de escravas que vai para o mercado. Grita o seu nome e, nesse grito,
reconhece o das mulheres em Olgossa em fogo, ouve a própria voz como
nunca a ouviu: esse grito é a sua voz adormecida que acorda e se apodera de
si, como num transe. Kishmet volta-se. E Bakhita torna a encontrar o que
pensava ter esquecido. A silhueta, os olhos, a boca, e o modo como se virou,
viva, à espreita: é ela, ela que transporta a sua infância, a tribo, a vida
anterior ao rapto. Kishmet virou-se e, depois, um guarda bateu-lhe. Cai de
joelhos, ergue-se de novo, vira-se uma vez mais para a voz, mas,
acorrentada às outras, presa e levada por elas, afasta-se, apaga-se, deixa de
existir. Bakhita quer chamar alguém na multidão, fazer um sinal, pedir
ajuda. Vê Kishmet desaparecer e ca ali, tomada pelo terror, e depois avança
até à beira do terraço, abre os braços, já não tem nenhum medo nem
nenhuma prudência, lança-se em direção ao grande mercado como uma
ave poderosa. Uma mão agarra-a, esbofeteia-a com violência, e ela desfalece
nessa mão. A escrava que a salvou não quer que as senhorinhas a acusem de
negligência ou de preguiça e, então, arrebata-a à morte e depois deixa-a no
chão do quarto, inanimada.

Fica sem sentidos ainda durante muito tempo. Samir sente-o de


imediato. A jovem escrava perdeu a sua vitalidade. Tem vontade de a fazer
reagir, de testar o seu poder viril naquela rapariguinha sem vida. Antes de
se casar, quer testar a potência, essa potência que será a sua arma de homem
e a sua lei.

Bakhita tem quase dez anos. A vida no harém vai chegar ao m, mas ela
ainda não o sabe. Uma noite, Samir chama-a e as senhorinhas dão-lhe
autorização para ir ter com ele. Pousa o grande leque e dirige-se para a
divisão onde a espera.

Samir diz-lhe que se aproxime. Pelo tom de voz, pensa que vai bater-lhe
por causa de um disparate que fez, não sabe qual, mas haverá um,
certamente, há sempre. Lança-se aos seus pés, prosterna-se e diz «Asfa.»
Perdão. Por favor, não me bata. «Asfa.» Isso fá-lo rir. Repele-a com um
pontapé e Bakhita cai. Manda-a levantar-se, ela levanta-se e sente-lhe o
odor de fruto acre e animal morto. Começa a chorar baixinho. Ele
esbofeteia-a para que pare de chorar ou para que chore mais alto, não sabe.
Esbofeteia-a para a despertar ou para a entorpecer. Esbofeteia-a por hábito.
Os dentes entrechocam-se, as têmporas doem-lhe, mantém a cabeça baixa,
como deve ser, e vê desenharem-se no tapete, vermelhas e amarelas, aves e
luas, acha estranho que sejam luas e não sóis. Recebe as bofetadas e tenta
pensar nisso: porquê luas e não sóis? A respiração de Samir aproxima-se, ela
recua, então a bofetada é tão forte que cai sobre o tapete, as aves e as luas.
Ele diz-lhe aos gritos que é uma idiota e cai sobre Bakhita. Agarra-lhe a
cabeça com a mão e bate-a contra o chão, como se quisesse fazê-la explodir,
abri-la ao meio. Está em cima dela, como uma montanha, com as pedras e
as serpentes nas pedras, inundado de ódio, quer matá-la.

O que se passa em seguida, o saque, ser agredida por dentro e por fora, é
algo que já conhece, é o abismo sem m, sem socorro, a alma e o corpo
presos e esmagados juntos. O crime de que não se morre.

Depois de terminar, o jovem senhor levanta-se. Ordena-lhe que o faça


também. Ela não consegue. As pernas tremem, não consegue. Ele agarra-a
pelo braço e ergue-a para que se ponha de pé, mas Bakhita continua a
tremer, dir-se-ia que dança acocorada, já não pode obedecer, já não
recupera o fôlego, está cheia de espasmos, como se lhe tivessem lançado um
feitiço. O jovem senhor continua a gritar, umas palavras que não
compreende e outras que compreende, diz que ela é impura, najas, e
recomeça a bater-lhe.

Ela pensa que suja o tapete, porque caiu uma vez mais e sangra de
diversos lugares. Pensa que o jovem senhor vai partir a chibata, as mãos e os
pés à força de lhe bater. Pensa que a casa vai desmoronar-se sob os seus
gritos. Pensa que o corpo vai abrir-se ao meio. Pensa que tudo acabou.
Pensa também que quer viver. Arrasta-se para sair da divisão. O senhor
segue-a enchendo-a de pontapés como se a impelisse. Ela refugia-se no
quarto das senhorinhas. Sorahia e Radia estão deitadas nos seus colchões
no chão, comem, devido ao tédio passam o dia a comer, cospem a pele das
uvas, os caroços das tâmaras, Bakhita refugia-se atrás delas, pede-lhes
ajuda. «Ainadja… Ainadja…» Samir continua a bater-lhe. Elas continuam a
comer.
Agora, Bakhita é um brinquedo quebrado e impuro. Logo, vai ser
expulsa. Mais tarde, quando lhe perguntarem porquê, o que se passara
exatamente, dirá: «Parti um vaso.» A uma pessoa, uma única, dirá a
verdade. Uma única que guardará para si o relato da ofensa.
Depois das pancadas de Samir, levam-na para o edifício das escravas,
onde ca um mês inteiro deitada numa esteira, a tentar sobreviver.
Ninguém a trata nem lhe fala. Pousam, em silêncio, comida e água a seu
lado, sem se preocuparem se ela lhes toca ou não. Chama Binah, que não
vem. Quando abre os olhos, não a vê. Nunca sente a mão dela na sua. Já não
ouve a voz da amiga. Quando retoma a consciência, dizem-lhe apenas que o
senhor tinha uma dívida de jogo.

Nunca se lembrará de quando a viu pela última vez. O desaparecimento


de Binah é como o desaparecimento do seu nome, como um coração que
para. Ela era a sua possibilidade de sobrevivência. A sua humanidade. Livre,
afastada, envelhecida, Bakhita irá guardá-la consigo. Sempre e até ao último
dia. Com ela, realizara o sonho de cada escravo: haviam desobedecido,
tinham esse valor e essa força.

No dia em que pode levantar-se sozinha, acham que pode voltar a


trabalhar. Está fora de questão apresentar-se no harém. Trabalha nas
cozinhas, no fundo do pátio. É um local de uma sujidade inimaginável, que
as senhoras não conhecem, onde nunca lhes ocorreria ir. As paredes estão
negras de imundície e do fumo que sai do forno, não há chaminé, os gatos
erram entre as baratas e as ratazanas, os cães comem das próprias panelas.
Todos os dias, Bakhita levanta-se antes do primeiro chamamento à oração
para acender o lume e pôr água a ferver. Vai buscar lenha à arrecadação e
por vezes ergue os olhos para as janelas das senhorinhas, para o terraço
deserto. É já um mundo distante e que talvez nunca tenha existido. Prefere
contemplar o céu, o dia que vai nascer, e pergunta-se se nesse mesmo
instante a mãe está sentada no tronco do embondeiro derrubado, se
contempla o nascer do dia, como gostava de fazer. Mas já não ousa falar-lhe.
Já não tem nenhuma promessa a fazer-lhe. Não obterá nem o perdão dela,
nem o m dos seus sofrimentos, e avança sozinha num mundo que, todos
os dias, a abana como um vento faminto. Está perdida nesse mundo. A
partida de Binah é uma separação que ressuscita as outras separações.
Alguns escravos, para evitar esse sofrimento, decidem não voltar a amar,
esquecem um coração que só serve para sofrer. Bakhita fala às galinhas, aos
cães, aos melros, às últimas estrelas que se apagam na novidade do dia; fala
à lenha que apanha, à água, ao vento; pergunta se é possível que a Lua se
lembre do seu nome, e parece-lhe que o único lugar tranquilo, o único
abrigo está ali, nesse instante em que a noite desaparece para ceder o lugar
ao dia. Depois retoma o trabalho. É burrinho teimoso que baixa a cabeça,
trabalha, obedece sempre, e recebe pancadas sem tentar perceber porquê,
quem as ordena, quem as merece, quem decide que parem, que recomecem.
Pensa na mão de Binah na sua, na coragem que lhe dava. Não largo a tua
mão. Talvez ainda seja verdade. Decide que é.

E assim decorrem meses na casa serpente onde cada um faz o seu


trabalho sob um escudo de indiferença, no tumulto das ordens e das
pancadas, na grande desordem repleta de medo. Um dia, o senhor manda
buscá-la. Um eunuco condu-la ao escritório, no andar dos homens. Passa
diante da raposa empalhada que tanto assustava Binah, então compreende
que, no escritório do senhor, a infelicidade a espera calmamente. Desde que
Samir gritou que ela era impura, o senhor quer vendê-la, sabe-o.
Nesse dia, está com um homem de porte militar que a examina, depois
saem para o jardim para que o militar a veja em pleno dia e a observe a
correr. Com uma grande fadiga, corre para não ir a lado nenhum, corre no
magní co jardim indiferente e, quando para, baixa o olhar e espera. O
dinheiro circula. Então, caminha atrás do novo senhor, com as mãos presas
a uma corrente que um guarda segura. Vai. Tenta levar Binah consigo,
guardar o coração de ave da amiga junto do seu e deixar para trás os dias de
dor, de vergonha, de todos os sofrimentos. Lembra-se do sorriso de Binah,
que dizia: «Já não temos, realmente, nem fome nem sede.» E traz consigo
essa gratidão de criança.
Deixa a casa serpente sem levar nada, nenhum objeto, nem sequer uma
pedra, um pouco de terra, uma palavra, um adeus, um olhar. Nada, além do
medo do desconhecido e dessa impureza que toda a gente vê, tem a certeza,
no olhar baixo, na sua respiração minúscula, na voz que mudou, tão grave,
e que agora desa na, descarrila e divaga. Fala menos, é prudente, insegura,
e não é apenas a sua linguagem que é uma mistura: é ela. Tem dez anos e
não sabe como crescer. Crescer bem. Crescer doce e boa, ela, que está
impura, dani cada e sem inocência. A sua vida é como uma dança
invertida, um turbilhão de água suja. Procura um ponto de referência, tem
sede de algo que não encontra. Um conselho. Uma palavra sábia. Não sabe
para onde se virar.

O homem que a comprou é um general turco, dirige exércitos de


escravos ao serviço do governo turco-egípcio que mantém o Sudão sob a
sua lei. As milícias de escravos-soldados fazem reinar a ordem e cobram os
impostos, saqueiam o gado e os homens.

A casa do general é rica, mas austera. É um enorme edifício vermelho e


quadrado com janelas gradeadas, o jardim é despido, sem ores nem
árvores, a fonte está seca e, no pombal, o canto dos pombos é lento como
um queixume. O pátio é sombrio, o sol não desce até lá. No primeiro dia,
Bakhita não ouvirá o gongo. Muito em breve temerá ouvi-lo, porque
signi ca a cólera dos senhores, uma cólera que exige ser apaziguada sempre
de igual forma: depois de ter tocado o gongo, mandar um escravo descer ao
pátio para que lá seja espancado.

Nessa casa reinam duas mulheres: a mãe do general e a esposa. As duas


detestam-se. O ódio mútuo que sentem é um alimento que procuram
incessantemente. Remexem-no, revolvem-no como as velhas cinzas que é
sempre possível reacender. Este ódio esgota-as e anima-as também, por
vezes gozam com ele. O desagrado que uma sente pela outra é tão forte que
as une, é uma aversão como um bem comum, uma doença partilhada. É a
essas duas mulheres que o general dá Bakhita. Fica ao serviço da esposa, vai
aprender a penteá-la e vesti-la, sem nunca lhe tocar. Vai aprender a prever as
ordens, os desejos, a adivinhar as pancadas e a aceitá-las. As senhoras falam
turco e as escravas, árabe. Uma vez mais, Bakhita guia-se «de ouvido» pela
entoação, o gesto, a expressão, e é muito feliz durante a maior parte do
tempo por não compreender as palavras que as duas mulheres proferem,
umas palavras que parecem tão violentas que mais de uma vez se espanta
pelo facto de as suas línguas não se queimarem sob tal grosseria.

É Hawa, uma escrava Dinka um pouco mais velha do que ela, com
apenas doze anos, que forma Bakhita, que lhe ensina como se ocupar da
senhora sem nunca lhe tocar, de manhã tirar-lhe as camisas de noite, a blusa
e as cuecas de dormir, desatar o cordão, atar o cinto dourado, vestir a
galibieh de percal, fazer com que caia perfeitamente, retirar o lenço da noite
para pentear e entrançar os longos cabelos antes de os esconder sob um
lenço de gaze, e sempre sem lhe tocar, pôr-lhe os brincos de diamantes, os
enormes anéis, o colar de pérolas. À noite, fazer a mesma coisa, ao invés.
Bakhita ajuda-a a tirar o vestido, e envergar uma longa samarra branca
sobre as cuecas de pano, sem lhe tocar nas ancas ata-as com um cordão de
cânhamo e quando a senhora lhe pede para o apertar com mais força, sabe
que ela faz durar a prova, a enriquece com algumas variantes bastante
repetitivas e esperadas. Bakhita, em bicos de pés, veste-lhe em seguida uma
blusa e depois duas ou três camisas sobrepostas. Põe-lhe o lenço da noite
em redor da cabeça e deixa que as tranças caiam pelas costas. Sem nunca lhe
tocar.

Tudo isso se parece com um calvário. Essa cerimónia é impossível de


realizar sem ter um contacto com o corpo ou a pele da senhora. É uma
tortura re nada, um jogo com que a senhora se deleita e que termina
invariavelmente com uma pancada no gongo, o aparecimento de um
eunuco que conduz Bakhita ao pátio onde um escravo-soldado lhe bate
conscienciosamente. A senhora chama a isso «entregar Bakhita aos corvos»,
negro sobre negro, vários tons da mesma cor. O escravo bate na escrava. Os
escravos obedecem às ordens, Bakhita ouve-os praguejar contra essas
jengas, essas «negras», é a hierarquia da reclusão, há as escravas do andar de
cima e os de baixo. Bakhita, quanto a ela, por causa da sua beleza – ou
graças a ela – não é a que ca pior.
Os escravos domésticos e do campo dormem em dois edifícios
separados: um para os homens, outro para as mulheres. São dois edifícios
deteriorados que fedem a palha húmida e urina, onde pululam as ratazanas,
se transmitem as doenças, mas onde reina sobretudo o medo. Os escravos
têm medo a toda a hora. Medo de dormir quando talvez seja a hora de se
levantarem. Medo de não dormir e estarem demasiado esgotados para
trabalhar de manhã. Medo das pancadas que acordam as pancadas da
véspera. Medo das pancadas que não vêm e vão cair de surpresa. Medo dos
antigos escravos e dos novos, dos que sabem demasiadas coisas e dos que
chegam numa inocência perigosa. Medo de dia e medo de noite, porque a
mulher do general vem todas as manhãs, antes do canto do galo, para lhes
bater. E os que trabalharam durante a noite e acabaram de se deitar nas
esteiras são espancados de igual modo. E as que estão grávidas de uma
criança, e os que saem dos seus sonhos, e aqueles cujo espírito ainda está
unido com a noite, e aqueles que têm febre, e aqueles que são tão velhos que
em breve os atirarão para o monte de estrume, e as criancinhas ainda de
mama, todos, ainda deitados, são espancados do mesmo modo. Todas as
manhãs, antes do canto do galo, a mulher do general grita com um prazer
furioso: «Abid! Escravos! Raça animal!» Depois disso, ca melhor.

É nesta casa que Bakhita cresce. Fala com as outras, que não falam com
ninguém, e tem medo de crescer como aqueles escravos esgotados,
esfomeados, cujo olhar não exprime qualquer desejo, nem o de viver, nem o
de morrer.

Embora continue a viver em El Obeid, Bakhita sente-se longe de toda a


humanidade. Kishmet não está em parte alguma e Binah perdeu-se na
multidão dos cativos. Tenta lembrar-se das histórias que contava, da sua
língua, dos devaneios, mas tudo pertence a outra, a uma rapariguinha sem
nome. Tenta reconstituir o rosto da mãe, mas este esquiva-se; tenta ouvir de
novo as vozes da aldeia, mas o seu dialeto empobrece. A coragem a que
recorre para sobreviver a cada dia esgota-lhe o espírito e, à noite, nenhum
sonho faz reviver um pouco a doçura passada, os sete anos da sua vida de
Dajou, gémea, doce e boa, que tinha medo dos rastos das serpentes e que
pousava a cabeça no pescoço do pai, à noite, quando o Sol desaparecia atrás
da colina. Um dia, fecha os olhos e vê o seu coração. É um pássaro de asas
dobradas que dorme docemente. Esta imagem faz-lhe bem, é bela como um
presente, mas, sobretudo, signi ca que não está morta. Dorme,
simplesmente. Dorme. Um dia, despertará.
Bakhita cará quatro anos na casa do general turco, até aos treze anos
mais ou menos, em 1882. O seu corpo começa a car alto, como os das
pessoas da sua tribo, ágil e de um negro profundo. Os olhos ligeiramente
amendoados conservam uma candura espantosa, como uma interrogação
tímida; o rosto é de uma beleza que ela não vê e que a embaraça, é uma oval
perfeita, as maçãs do rosto altas e, sobretudo, tem uma nobreza que se
parece com a graça. Esse rosto que se torna delicado e esse corpo que cresce
naquela casa de espíritos furiosos são uma grande infelicidade, como uma
árvore no campo errado.

Tem quase doze anos e o peito começa a ver-se. Os senhores andam


vestidos. As escravas apenas se cobrem com uma tanga. Bakhita desejaria
estar escondida, invisível como os espíritos, coberta como as senhoras.
Estar nua em Olgossa era tão natural como a erva agitada pelo vento, mas
estar vestida com uma simples tanga na casa do senhor é uma vergonha
permanente.

O general turco chamava-lhe o jogo do esfregão. Era rápido e fazia rir


sempre, como um passe de magia que continua a espantar. Na primeira vez,
ela não sabe. O senhor manda chamá-la, ela vem a correr, prosterna-se,
pede perdão, ele ordena-lhe que se levante, de súbito agarra-lhe os seios
incipientes e torce-os como se quisesse «espremer um esfregão», como se
quisesse separá-los dela, arrancá-los da sua carne, fazê-los derreter-se, é o
que diz, quer fazê-los derreter-se, não voltar a vê-los. Ela grita de dor e de
terror, é um sofrimento brutal, uma estupefação. Julga que o senhor
inventou essa tortura para ela por causa do que ela fez, do que ela
representa. Não sabe que os senhores não inventam nada. A tortura do
esfregão é in igida às mulheres há séculos e se ao menos lhe tivessem dito
que não era a única, talvez ela tivesse querido mal ao senhor e não a si
própria.

Por vezes, os escravos falam entre si. Um pouco. Histórias breves, em


momentos rápidos, fulgurações. Porque a ração de sopa foi um pouco mais
generosa, porque tiveram tempo para ver o pôr do Sol, porque viram nascer
um pinto, porque se lembraram de um cântico da sua terra. Porque a vida
não pode estar sempre separada da vida. Então, durante um momento,
ousam a emoção da beleza que lhes lembra que fazem parte do que vive.
Falam uns com os outros com palavras pobres, concretas e raras. É um
momento roubado ao anonimato da exploração. E morre como surgiu, uma
trégua entre dois combates, e depois cada um torna a partir sozinho, para o
silêncio, para o passado, cada um se cala para continuar a sofrer.

Num nal de tarde de outono em que aperta contra si um gatinho com


algumas semanas, Bakhita sente-se bem. Está espantada por reencontrar
essa sensação. É uma alegria emocionada, quase uma tristeza por recordar
tanto o que foi. Aquele tempo em que fazia parte do que vive. Hawa está
sentada no chão a seu lado. Deviam regressar ao edifício, mas roubam esse
momento, oferecem-se um pouco do nal de tarde, do céu e do ar que se
suaviza. São cúmplices, elas, que todos os dias servem as senhoras, que
partilham o exercício sádico de «sem nunca as tocar». Por vezes riem disso
entre elas, desse absurdo. Nesse nal de tarde de outono, com o gatinho
entre as mãos, Bakhita con a a Hawa num murmúrio de orgulho: «Já fugi
uma vez. Compreendes? Firar. Compreendes? Fugi. Com a Binah, a minha
amiga, fugi.» Hawa compreende e Bakhita conta. Acaricia o gatinho e
reencontra o prazer de narrar, da escuta da outra, dessa partilha tão
simples: «Na árvore, sim, dormimos na árvore! A fera passou lá! Sob a
árvore!» Hawa ri um pouco, suspira e acompanha a história. Bakhita leva-a,
segreda a sua evasão louca, segreda, mas é ouvida. A mãe do general, que se
gaba de não falar nem compreender árabe, ouviu tudo e compreendeu tudo.

O gongo ressoa. O castigo é aplicado.

Durante um ano, Bakhita viveu com uma corrente no pé como um cão


raivoso. Dia e noite a sua perna era um peso de dor, haste de ferro ardente
que lhe subia pela anca, pelas costas, pelo braço, que se agarrava à nuca,
onde batia incessantemente. Não só lhe era difícil andar, subir escadas,
baixar-se ou levantar-se, como também lhe era difícil fazer o que quer que
fosse repentino. E era isso o que a corrente queria. Que o arrebatamento
fosse impossível, o do corpo, mas também o do espírito: a prudência e o
instinto sem os quais um escravo não é mais do que uma presa.

Aos doze anos, com aquela grilheta presa ao pé, Bakhita balançava e
ofegava como uma velha. Ouviam-na e viam-na ao longe e se alguns
escravos baixavam os olhos quando se aproximava, outros pediam-lhe que
zesse menos barulho. Quando lhe retiraram a corrente durante alguns dias
de indulgência dedicados às festas de Alá, coxeava como se a corrente
faltasse ao seu equilíbrio, como se uma parte do corpo tivesse necessidade
daquele peso para não cair. Quando as festas de Alá terminaram e lha
tornaram a pôr, sentiu que a fechavam em si mesma. Era a sua própria
prisão, isolada de tudo, obstruída e obstrutora, e a sua presença
incomodava, porque lembrava a todos o martírio que queriam esquecer, as
longas marchas em que seguiam acorrentados e que os haviam trazido para
aquele inferno. Tinha o tornozelo inchado, com crostas e in amado. Então
começou a falar-lhe à noite, na sua esteira, acariciava-o como se fosse um
animalzinho, consolava a parte castigada e torturada, porque aquilo não
podia durar, não queria coxear, ser inútil. Um escravo inútil é um escravo
que se alimenta para nada e de quem se livram. Por vezes, Hawa conseguia
roubar raízes de gengibre que Bakhita roía, cuspia e aplicava sobre o
tornozelo. A in amação acalmava-se um pouco. Bakhita revia a avó, que
triturava as ervas e curava todos. Tentava lembrar-se, mas não se lembrava:
quais eram essas ervas que cresciam na sua aldeia, qual era o nome das
ores, o nome das plantas? Não sabia, mas teria sabido alguma vez? O que
guardara da vida de menina? O que é que nela ainda era de uma Dajou do
Darfur? Há quantos anos era escrava? O tempo passava sem pontos de
referência. Tentava contar as festas de Alá, as estações das chuvas, mas, na
maior parte das vezes, era confuso e desencorajador. Não queria ser
desencorajada. Não queria continuar acorrentada. Não queria crescer na
casa do general turco. Trazer no ventre, um dia, os lhos do seu senhor, tal
como as outras, que ele lhos tirasse. Não sabia orientar-se no tempo,
contudo, o tempo passava mesmo assim e arrastava-a no seu movimento.
Os medos que tinha eram abismos. Para os esquecer, inclinava-se sobre o
tornozelo de velha, falava-lhe, tratava-o e, sem o saber, nesse cuidado
encontrava uma maneira de sobreviver.
Tem treze anos mais ou menos, é uma jovem com seios mutilados e
sinais aterradores de que a maternidade é possível. Tem medo de que isso
também se veja, de que o senhor, a quem nada escapa, o saiba. Tudo o que
emana dela lhe parece condenável, o que é, o que faz, e inclusive o que vê e
o que ouve. Nunca está no local certo e tudo a condena.

Uma manhã, Hawa e ela são testemunhas de uma discussão entre o


general e a mulher. Estão no quarto da senhora, em quem Bakhita não
tocou, e que está vestida e penteada como gosta de estar, ricamente, com
véus e cores. Com a cabeça baixa e as mãos atrás das costas, imóveis e
mudas como os tapetes e as almofadas que as rodeiam, esperam uma
ordem. Nessa manhã, a luz de El Obeid é fria. Em breve será inverno e tudo
está pálido e com uma tristeza lenta. A mulher do general, excecionalmente,
não grita. Ameaça o senhor com um ódio gelado como a água do poço no
inverno. Umas palavras tão más que o general que comanda exércitos, o
general que ordena os ataques e acumula medalhas, o general, sob o
impacto dessas palavras, baixa a cabeça. Como um escravo. E depois ergue-
a. Aproxima-se da mulher e, quando está muito perto dela, levanta o braço
durante um longo momento sobre o seu rosto, o braço treme devido à
cólera. Há um silêncio e um zumbido de silêncio. Há respirações que se
abafam, um sopro que bate. E então o general baixa o braço e contempla-as,
a Hawa e a ela. Em breve, ouvem o gongo.

No pátio, dois soldados atiram-nas ao chão e batem-lhes. Dura tanto


tempo que durará toda a vida. A coxa de Bakhita guardará essa cova, essa
falta de carne, arrancada pelas vergastas. O senhor observa a tortura e,
quando se sente realmente apaziguado, faz sinal aos soldados para pararem.
Eles param.

Transportam Bakhita e Hawa, desmaiadas e cobertas de sangue, para as


respetivas esteiras, onde cam durante mais de um mês. Não conseguem
viver fora da dor. Estão invadidas pelo sofrimento, à beira da inconsciência,
já não pensam em nada, apenas sofrem. Não há clemência nem ajuda.
Ninguém para se debruçar sobre os dois corpos supliciados. Em primeiro
lugar, porque é proibido e depois porque a piedade poderia fazer vacilar os
escravos mais resistentes e vacilar é perigoso, vacilar pode ser mortal. Todos
os que ali estão devem-no a uma terrível vontade, a uma força e uma
resistência de gigantes. Sobreviveram. Não perderão o combate por
compaixão para com duas escravas espancadas. Ser espancado é o
quotidiano, a condição. Muitos são como Bakhita, jovens, assustados, não
encontram o seu lugar e não sabem como se devem comportar. Não
deveriam fazê-lo. Cada um deles tem o seu lugar, nenhum escravo é
comprado ou vendido por acaso, está vivo ou morto por acaso, é espancado
ou violentado por acaso. Fazem mal em sentir-se à mercê de uma violência
imprevisível. Os senhores velam muito pela própria casa e sabem
exatamente como dirigi-la. No entanto, nos anos de 1880, esses senhores
mantêm-se surdos perante a ameaça que avança. Um homem, o Mahdi, o
salvador do islão, chefe religioso sudanês, opõe-se ao ocupante egípcio. Ao
povo escravizado, explorado, promete a libertação do Sudão e o
renascimento do islão. O governo turco-egípcio ignora a cólera e a força do
povo, porque elas estiveram sempre do seu lado, pertencem-lhes, tal como
os homens. Governa e oprime como se o mundo se fosse conservar para
sempre nos seus punhos cerrados, mas esse mundo fende-se, esse mundo
vai quebrar-se, amanhã explodirá.

Durante esse mês de sofrimento, estendida na esteira, Bakhita vive


também, à sua maneira, fora do mundo. Encerrado na dor, o corpo trabalha
para sobreviver, para se curar, e a sua consciência desperta pouco a pouco e
ouve. Ouve que, debaixo de si, a terra treme, abanada pelos corpos desses
escravos que vieram antes dela, deitados no mesmo lugar, precisamente
sobre a mesma esteira. A terra guardou a marca de tais corpos, com a
respiração e o calor, com a água das lágrimas e a espessura do sangue, e
lembra-se de todos, de como são diferentes, de como os seus espíritos
nunca poderiam misturar-se, e de que cada um teria tanto para contar: as
paisagens que viu, os animais de que gostava, o momento do dia que
preferia, os alimentos que a sua mãe lhe preparava, a pessoa que amava em
segredo, os dons que eram seus. A terra lembra-se de tudo. E essa terra diz a
Bakhita que não é justo. O lugar do escravo não é justo. Não existem sobre a
terra duas rapariguinhas como ela: é insubstituível. Talvez não se lembre
bem do rosto da mãe, talvez não pudesse desenhá-lo na areia, mas o corpo
sentado no tronco do embondeiro derrubado, quando aguarda o nascer do
sol, ela não esqueceu e só isso conta. O rosto da mãe mudou e mudará ainda
mais, mas o amor pela manhã que surge é eterno. Durante dias e noites,
Bakhita ouve a terra e, uma manhã, levanta-se. Baloiça e agarra-se às
paredes do edifício para dar alguns passos, olha à sua frente, habitua a
perna dorida, reeduca-a. Não se deve fazer parte dos doentes durante muito
tempo, não se deve fazer parte dos escravos inúteis, não se deve morrer. A
terra falou-lhe, a terra sagrada que as pessoas da sua tribo veneram dirigiu-
se a ela. Então, levanta-se.

Avança, vacilante e voluntariosa num mundo à beira do abismo. Os


soldados do Mahdi são cada vez mais numerosos. Os escravos-soldados dos
senhores juntam-se aos seus exércitos. Agora os homens vão bater-se pelo
próprio país. As batalhas são sangrentas, as ofensivas cada vez mais
numerosas, o ventre da revolta incha. Em El Obeid, em casa do general
turco, dão-se festas, compram-se duas circassianas e um eunuco. Em casa
do general turco, governa-se um mundo de degenerescência e de orgulho.

É assim que, uma manhã, a mulher do general acorda com uma nova
ideia. Está radiante com ela. Essa ideia já não pode esperar. «Tão belas! São
tão belas!» Djamila! Güzel! Olha para três das suas escravas e chama-as,
gritando como se tivesse esquecido uma coisa que, no entanto, está ali,
debaixo do seu nariz. «Güzel!!!», grita à sogra, a quem mostra aquelas três
negras: Bakhita, Hawa e uma outra escrava, tão jovem, tem seis anos no
máximo, e chegou há tão pouco tempo que o senhor ainda não lhe deu um
nome próprio, mas a quem chamam Yebit, «Aquela que não merece nome».
Não parece compreender o que se passa, o que faz ali, na parte das
mulheres, onde estende desajeitadamente a bandeja das abluções e as
alcarrazas, onde estende os mosquiteiros em redor das camas, traz a
lamparina, os cigarros, o cinzeiro, e os seus grandes olhos espantados que se
esquece de baixar procuram um assentimento, não encontrando nada. O
senhor trouxe-a do mercado, numa noite, com mais três rapariguinhas que
participaram nas festas dos homens. A pequena Yebit não fala árabe nem
turco. Bakhita não sabe de onde vem. Nada na sua atitude permite
compreender a história dela. Não se queixa, mantém os grandes olhos
negros abertos como duas eternas perguntas e parece esperar qualquer
coisa que não vem.

Djamila! Güzel! A mulher do general chama-as com uma impaciência


ávida partilhada pela sogra. Sim, por uma vez, as duas estão de acordo.
Aproximam-se das três escravas e, com as mãos frias, as unhas que lhes
tocam, avaliam, acariciam, arranham um pouco, e aplaudem. «Mas porque
é que não pensei nisso antes!» Recuam para as contemplar, para as avaliar
melhor. Bakhita pensa que vão vendê-las. Às três. Um lote. Vão partir,
servir algures, servir para outra coisa. Engana-se. Não vão vendê-las. Vão
decorá-las.

Querem ter orgulho nelas. Querem mostrar às amigas que elas são belas
e lhes pertencem, com sinais que o digam, desenhos, marcas, como uma
bandeira ou um brasão. Não gostam da nova moda. Agora, algumas vestem
as escravas. Pensam que uma escrava vestida é tão ridícula como um
macaco de chinelas. Não. Elas, as suas escravas, serão admiradas nuas. E é a
sua pele que vão vestir. É a pele de negras que vai mostrar a todos a riqueza
dos seus senhores.

Começam por levá-las para uma divisão. Uma divisão que não
conhecem. Escura, com tecidos muito pesados nas janelas, que escondem o
dia e mostram a poeira. Bakhita olha esse pó durante todo o tempo que
demora. E demora muito. A tatuadora que mandaram vir e que é a melhor
trouxe folhas com desenhos que mostra às senhoras. Perante os olhos
baixos de Bakhita, a poeira é como uma areia imóvel, cinzenta e pesada. As
senhoras examinam os desenhos para escolher aqueles que a tatuadora irá
fazer e hesitam. Há muito por onde escolher. E são tão belos. Güzel.
Djamila. Realmente muito belos. Bakhita ainda não compreende de que
natureza se reveste o perigo, mas o tantã volta a vibrar em todo o lado
dentro de si, e o ruído desse tantã é tão poderoso como a poeira é
indiferente. A pequena Yebit, habitualmente tão doce e plácida, de uma
con ança submissa, geme baixinho. Bakhita a ora-lhe os dedos, a pequena
agarra-os com toda a força de que é capaz, as unhas da pequena são moles
como o bico de um passarinho, os dedos estão molhados de medo. Bakhita
sabe que ela chama pela mãe, então aperta com força aqueles dedinhos que
ainda não foram dani cados pela escravidão, os seus dedos tão jovens que
sabem tão poucas coisas. E então Bakhita compreende o que vão fazer-lhes.

As duas mulheres acabam por chegar a acordo quanto aos motivos que a
tatuadora desenhará nelas. Vai car muito bem! E depois, subitamente, já
não estão de acordo. O tom sobe, as injúrias chovem. Bakhita e Hawa
temem o gongo e, de uma forma confusa, têm a impressão de que a culpa
dessas disputas, dessa indecisão, é sua. Falam delas. É culpa sua. Agora, a
pequena chora e o rosto banhado de lágrimas ergue-se para Bakhita, que
lhe sorri e, com a mão dela sempre na sua, baloiça um pouco o braço da
frente para trás, como um jogo. Desejaria embalá-la toda, puxá-la para si e
pousar-lhe o rosto no pescoço para que não veja nem oiça mais nada, para
que respire apenas o odor da sua pele… A angústia regressa. Bakhita
pergunta-se onde, em que parte dos seus corpos a tatuadora vai desenhar. É
esse precisamente o tema daquela discussão impossível de acalmar. As duas
mulheres mandam chamar o general. Quem defenderá ele? A mulher ou a
mãe? Qual das duas ganhará? Em breve se ouve o ruído das botas, o passo
viril e furioso.

Bakhita desejaria ser a poeira. Desejaria ser o tecido diante da janela.


Desejaria ser verdadeiramente uma coisa. Não uma escrava. Uma verdadeira
coisa. Quando o general entra na sala, o medo entra com ele. Contanto que
não lhes toque, contanto que não que muito tempo, contanto que acalme a
mãe e a mulher. A mãe é a primeira a falar, explica: quer que entalhem o
rosto das escravas também, não tem razão? Bakhita e Hawa entreolham-se.
A pequena não compreendeu as palavras em turco. Que entalhem o rosto,
também. Agora, Bakhita deseja que o general que. Muito tempo. Que
anule o que se vai seguir, uma vez que é assim, uma vez que não há um
entendimento, que a tatuadora se vá embora e se passe para outra coisa,
outra ocupação, cânticos, danças, jogos, uma ida ao bazar. O general volta-
se para a mulher: «Está fora de questão! O rosto não!» A sua mãe troça e diz
que as amigas mandam escari car também o rosto das escravas, que é assim
que se faz hoje em dia. «Isso estragaria tudo!», diz a esposa. Cruza os braços
com força contra o peito e olha o marido com um ar de desa o que parece
uma ameaça familiar. Os dedos da pequena Yebit tremem na mão de
Bakhita como dois animaizinhos que quisessem correr. Oh, irmãzinha,
pensa Bakhita, não vais correr! Compreende que o que lhes vai acontecer
será terrível, já o viu noutras e sempre estremeceu por causa disso. Aquelas
intumescências por todo o corpo, como uma terra lavrada, arranhada por
uma fera, aquela pele deformada, inchada e queimada. «Estou de acordo
contigo!» Foi à mulher que o general falou. É à sua opinião que adere. Não
ao rosto também.

O gongo soa. Mandam-nas descer ao pátio. Bakhita solta os dedos da


jovem escrava que a contempla com os olhos cheios de perguntas
desvairadas e então pestaneja um pouco para lhe dizer Não largo a tua mão.
Sabe que ela compreende. Sabe também que a acompanha ao martírio e
gostaria de lhe pedir perdão, de pedir perdão por esta vida.

No pátio, esperam-nas dois escravos-soldados. Dois homens robustos. É


a um deles que a mulher do general pede que o faça: deitar a pequena Yebit
no solo, de costas, e segurá-la, enquanto trazem duas malgas à tatuadora,
uma cheia de farinha, a outra de sal.

Bakhita não protegeu a pequena Yebit, não a consolou, cou a olhar


para ela. A pequena treme tanto que a tatuadora tem de recomeçar três
vezes os desenhos com a farinha sobre o seu corpo. Dirige à senhora um
olhar de censura. A senhora faz sinal a um escravo para acalmar a pequena
Yebit. Ele esbofeteia-a e isso atordoa-a durante alguns minutos. Então, a
tatuadora recomeça os desenhos, aplica-se, os punhos dançam, são quase
belos, esses arabescos, aquela habilidade, como um artesão, branco sobre
negro, luminoso, tão estético. Depois, tira do avental uma navalha de barba,
e segue os desenhos da farinha, escava a carne vinte e três vezes, muito
profundamente, começando pelo ventre, de onde jorra o sangue, como se a
velha mulher libertasse regatos vermelhos. Primeiro o ventre, depois os
braços, as pernas magras, tão curtas. A pequena urra como um animal
selvagem, a tatuadora tem as mãos e os braços cobertos de sangue, mas não
se preocupa, vai até ao m da sua encomenda em, uma vez terminados os
entalhes, com muita aplicação, abre cada ferida para a encher de sal. Depois
pressiona-a com força para que o sal penetre bem. Os gritos fortes da
pequena enfraquecem. Depois ela murmura e cala-se. O corpo convulsiona-
se com uma terra em cólera e, como um animal no chão, acaba por
imobilizar-se. O soldado aligeira a pressão. Acabou. Com um sinal da
cabeça, a senhora ordena que levem o pequeno cadáver. A tatuadora
levantou-se, trazem-lhe uma bilha, lava os braços e as mãos, bebe um chá
de menta, sopra um pouco. Bakhita cai aos pés da senhora e suplica-lhe que
a poupe. Hawa soluça e suplica como ela. A senhora olha-as com uma
repugnância irritada, lança-lhes palavras ácidas e depois ordena aos
escravos que lhes batam para as acalmar antes da tatuagem. Recebem as
pancadas sob as quais gostariam de desfalecer. Queriam não estar no que
vai seguir-se, esquecer o que viram, o que vai acontecer, mas não desmaiam
e, quando tudo termina, a senhora aproxima-se de Bakhita e, baixinho
desta vez, olhando-a direta e calmamente nos olhos, diz-lhe:
– Tu! Tu vais assistir até ao m.
A tatuadora começa por Hawa. Bakhita assiste até ao m. Até ser a sua
vez.
Bakhita não protegeu a rapariguinha. Quando saiu do edifício, um mês
depois, procurou-a por todo o lado, queria saber se restava qualquer coisa
dela, qualquer coisa que tivesse podido pôr na terra e oferecer aos espíritos,
mas claro que era demasiado tarde e ninguém queria falar da pequena
Yebit, que não merecia um nome, nem sepultura. Então, Bakhita olhou para
o céu antes do nascer do dia e pediu às estrelas que lhe perdoassem.
Todavia, as estrelas caram frias. Bakhita baixou os olhos e pediu à terra
que lhe perdoasse. Contudo, a terra cou muda. Bakhita tinha mais ou
menos treze anos, seis dos quais vividos em escravatura, e estava de novo
impotente e assustada como nos primeiros dias, quando a pequena Binah
lhe dissera: «A isto chama-se escravos.», abid, e ela pensara na irmã antes de
compreender que também ela o era. Abda. Como os outros. Nem melhor
nem pior. O seu corpo é propriedade exclusiva dos senhores; o seu corpo
está petri cado e a sua alma já não sabe onde viver. Não protegeu a
rapariguinha, reencontrou Kishmet sem pode juntar-se-lhe, perdeu Binah e
vive num mundo furioso que se devora a si mesmo. Das investidas do
exército mahdista nada sabe e, no dia em que sai do edifício, em que
reencontra o mundo dos vivos, está como que arrancada a si mesma. As
feridas estão inchadas, apesar do sal algumas ainda supuram e cheiram mal.
Está decorada com cento e catorze entalhes no ventre, no peito e no braço
direito. Esses dias de sofrimento, ao lado de Hawa, a tentar sobreviver, são
os últimos tempos do seu calvário, mas não o sabe. Durante trinta dias
lutou e sobreviveu à dor, à infeção e à sede terrível que era provocada pelo
sal nas feridas. Num sono semicomatoso, julgou-se muitas vezes nos longos
caminhos sem água das caravanas, lembrou as horas sob o sol sem querer
morrer. A desidratação dava-lhe vertigens mesmo quando não se mexia, o
seu cérebro baloiçava, urinar era uma dor insuportável, a boca estava seca e
a língua coberta de crostas. Teve febre, delirou, o seu corpo hesitou entre a
vida e a morte e depois adaptou-se àquilo em que se transformara, aquela
carne entalhada, aquela pele ardente e inchada, aquelas cicatrizes para toda
a vida, porque há vida. Todos os dias depositaram uma malga de água
diante da esteira, mas nem sempre teve força para agarrar. A tatuadora
cobrou um preço elevado, por isso as senhoras não querem que Bakhita e
Hawa morram. Reservam uma surpresa às suas amigas e sabem exatamente
o percurso que farão para as exibir na cidade e a que haréns as levarão.
Mal terão tempo de o fazer. As senhoras bem podem continuar a sua
vida como se fosse um reinado. A mulher do general bem pode chicotear os
escravos todas as manhãs depois da primeira oração, o sistema acaba por se
encravar… E, um dia, termina. Um dia, o general ordena que deixem de
bater aos escravos. Em seguida, abandona El Obeid. Vai-se embora, não se
sabe para onde, mas essa ordem, a ordem de já não chicotear os escravos,
enregela. Provoca medo entre os cativos: prepara-se qualquer coisa, vai
acontecer qualquer coisa e não há uma mudança, nunca, que seja em seu
favor. Deixam de lhes bater, mas o que vai acontecer depois? Os seus corpos
não estão habituados a não ser sovados. Estremecem à espera das pancadas.
A pele está pronta, o espírito descon a. Espiam os ruídos, os passos, todas
as noites, no edifício, perguntam uns aos outros: quem ouviu os senhores a
falar, quem esteve no mercado, quem acompanhou as senhoras à cidade,
que dizem os convidados, os eunucos, o aguadeiro, as criadas, os soldados?
Quem sabe algo? Se deixam de lhes bater, é forçosamente para fazer subir os
preços. O senhor precisa de dinheiro, mas para quê? Vão vendê-los, mas
com que m? Vão separá-los, dispersá-los sem piedade. As escravas que
estão grávidas soluçam durante o sono; as que são casadas cam longas
horas sem falar; as mães contemplam os lhos com um amor aterrorizado e,
à noite, repetem-lhes palavras em rosário, sempre as mesmas, palavras de
amor que vão acabar. Os mais velhos calam-se, pois já viram tudo, não
esperam nem temem nada, todavia a mágoa submerge-os. Os doentes
suplicam às cozinheiras ervas e pós que antecipem a morte. Sabem que não
deixarão a casa do general: vão abandoná-los no edifício, onde morrerão de
fome e de sede. Tentam escolher uma morte mais doce. Bakhita e Hawa
falam um pouco uma com a outra, em árabe, a sua língua comum, mas o
que as liga não se conta. Têm corpos gémeos des gurados. Partilham o
serviço quotidiano às senhoras, com o chicote, os insultos, a fadiga e o
medo. E a pequena Yebit. Partilham-na, também. A pequena Yebit. Morta
como tantas outras sob as torturas de uma tatuadora. Sacri cada sem deus
nem cerimónia.

Numa tarde, a senhora adormeceu e Bakhita para de a ventilar durante


um instante. Passa um punho sobre a fronte suada. Contempla as suas
mãos, duas asas negras abertas. Olha-as e, de súbito, revê os dedos de
Binah. E os da jovem escrava de Taweisha. E os da pequena Yebit. Sente
esses dedos de crianças pousarem de novo na sua mão, muito suavemente,
como penas, e depois esses dedos ganham carne, entrelaçam-se, movem-se
e quase dançam. Contempla a palma da mão aberta. A mão da irmã gémea,
a da amiga, as das crianças pequenas de Olgossa a quem contava histórias,
todas vêm pousar nas palmas das suas, vêm as mãos daqueles que amava
em liberdade. Depois sente uma outra pousar na sua. Grande. Fina.
Reconhece-a. Reconhece aquele calor profundo, aquela pressão
tranquilizadora. É a mão da mãe que pousa e envolve docemente a sua, com
uma autoridade calma. Bakhita fecha o punho lentamente. Não sabe o que
lhe vai acontecer neste mundo que soçobra, mas agora, e para sempre, é a
mão da mãe na sua que lhe diz Não largo a tua mão.

Continuam. Todos. Poderiam, uma vez que já não lhes batem, revoltar-
se, amotinar-se, vingar-se, fugir. Mas não sabem o que se passa. As guerras
entre milícias existem desde sempre, os exércitos defrontam-se, os homens
são capturados, as aldeias e os cercados atacados, nasceram no coração
dessa violência. E sobretudo têm fome. Têm medo. Não têm nenhum lugar
para onde ir. Falam mal o árabe. Estão seminus e completamente
quebrados. Ainda se guardam um pouco uns aos outros, têm medo de se
perder. Trabalham menos bem. Acontece a Bakhita tocar na senhora ao
penteá-la e, quando recua à espera das pancadas, o que ouve é o ruído dos
objetos atirados ao chão. A senhora descarrega a raiva em tudo o que a
rodeia, menos nela, mas as palavras que grita são para ela. E essas palavras
estão cheias de cólera. Bakhita pensa que alguém lançou um feitiço àquela
mulher, porque tamanha cólera contra a sua escrava é uma montanha que
tenta escalar sem nunca conseguir. Tem correntes invisíveis, mas Bakhita
vê-as.

Os escravos vivem assim durante alguns meses. É uma vida presa na


bruma lenta e malsã da dúvida. Depois, uma noite, ouvem o cavalo do
senhor, um galope pior do que o gongo. Manda-os acordar e vir para o
pátio, todos. É a primeira vez que estão reunidos assim, os homens e as
mulheres, de todas as gerações, de inúmeras tribos. Estão os que dormiam
nos edifícios e os que nunca deixavam os seus senhores, noite e dia ao seu
serviço, os simples palafreneiros, as circassianas e as cozinheiras, os
conselheiros e os ferreiros, os escravos próximos do senhor e os menos do
que nada. É uma sociedade que se desmorona numa noite. Os soldados-
escravos ajudam o senhor, como sempre. Os outros esperam, negros na
noite negra, magros no frio lento. Os que se amam agarram-se, rezando; os
que reconhecem este medo antigo que sidera; aqueles que se mantêm
prontos: todos esperam o sacrifício. O senhor vende-os a proprietários
particulares, faz lotes, listas e grupos, empurram-nos, dispersam-nos.
Bakhita pôs-se ao fundo do pátio, à direita, perto do pombal. Hawa não vai
ter com ela. Bakhita procura-a com o olhar, mas ninguém distingue
ninguém e ouvem-se na noite os gritos esparsos dos que lançam sinais de
despedida e palavras pobres àqueles que amam. O chicote estala, as pragas
misturam-se com as súplicas, os choros agudos das crianças com os soluços
roucos dos velhotes e com os gritos das mães à beira da loucura. Um clarão
aparece na janela da senhora. Bakhita levanta os olhos. Sozinha agora no
seu harém deserto, a mulher do general vê fervilhar tudo o que lhe escapa e
não compreende nada desta injustiça.

O general decidiu regressar à Turquia. Ele e a família vão deixar o Sudão


o mais rapidamente possível. Os preparativos fazem-se num pânico furioso.
Os senhores têm de deixar em El Obeid tudo o que possuem. As riquezas
escorrem-lhes por entre os dedos e eles afogam-se no pânico. Restam-lhes
tão poucos escravos, só dez, e o ritmo dos dias é um caos. Sentem que caem,
caem sem socorro e, de súbito, tudo lhes desagrada, tudo lhes é
insuportável. Apercebem-se de que nunca gostaram deste país, deste vento
constante, da humidade pegajosa, das noites geladas e desse deserto a toda a
volta. É como um despertar. Levantam os olhos, veem onde estão, e o que
veem é hostilidade e ameaça, um mundo que não fala a sua língua e
maltrata os seus costumes. Agora têm pressa de fugir, de voltar à pátria e
retomar o seu lugar.

Bakhita ca com os senhores. Desta vez, não é escolhida pela beleza,


mas pela habilidade a servir a mulher do general, que fez esta rapariga, o
que ela trará sobre si para sempre, a pele escari cada, o seu corpo: foi ela
que o domou e adornou. Bakhita é a sua criatura. O general deixou que ela
a conservasse, mas Hawa foi vendida a um grande proprietário agrícola.
Conseguiu um bom preço por ela. Esperava um lho seu e matou dois
coelhos de uma cajadada. Nenhuma mulher grávida foi mantida. Vão viajar
de camelo até Cartum, a mais de seiscentos e trinta quilómetros para norte.
Precisam de escravos robustos e e cazes.

Partir, para Bakhita, é sempre ter esperança. Não compreende que, ao


deixar o Cordofão, ao subir em direção ao norte, para as margens do Mar
Vermelho, se afasta do Darfur. Quando sobe para o camelo, quando a içam
para cima desse animal gigantesco, esconde o medo, agarra-se como pode e
olha o mundo de cima. Está perto do vento que dança nas árvores, agita as
bandeiras, levanta a areia e o pó, está perto do céu e contempla, a perder de
vista, os campos, os desertos, os montes. El Obeid é mais pequena do que
julgava. Por onde veio há quatro anos? Onde ca o Darfur? Mal sabe que é a
oeste, mal sabe onde é o oeste, lembra-se das marchas intermináveis e das
paisagens variáveis que apagavam os vestígios da sua aldeia. Já não sabe
onde nasceu. Todavia, está comovida como se fosse possível, como se lhe
fosse dada a oportunidade, agora, de reencontrar os seus. Tem medo de
perder tempo, franze os olhos, vira a cabeça para todos os lados como uma
ave antes de levantar voo. Mas o que se estende a perder de vista, durante
esses dias de viagem, é o deserto, com as dunas imensas, os montes nus, as
serpentes invisíveis, as sombras alongadas, a areia que dança e entra nos
olhos, na boca, na mais ín ma parcela de pele. Contra a sela, a coxa
eternamente ferida de Bakhita abre-se e sangra. Esconde o melhor que pode
esse ferimento, sabe que a abandonarão ao primeiro desfalecimento. É
vigilante, obediente, mas sempre, na fadiga, na sede e na dor, tenta avistar
Olgossa.

O calor é perigoso porque pesa sobre a caravana como uma as xia.


Viajam, na maior parte das vezes, de noite, guiando-se pelas estrelas. As
noites são geladas. Eles avançam, são como blocos oscilantes sobre camelos
que balouçam, e o nervosismo dos senhores só encontra igual na sua
inquietação. Durante a noite, as ordens ressoam contra as pedras. São os
ecos de antigas ordens dadas antes deles, esses chefes de guerra e esses
escravos, de todas as fugas e as retiradas, do trá co e das trocas diretas. O
deserto acolhe na sua imensidão rosa e azul a la dos homens sem
descanso, essas silhuetas que oscilam no dorso de camelos elegantes e
malvados, e carregam nos ombros a queda de um mundo.
Bakhita procurou a sua aldeia e é a cidade que descobre após aquelas
noites de viagem. É Cartum que aparece ao nascer do dia, os clarões
rosados que bailam ao ritmo nauseante do camelo. Através dos olhos
cobertos de areia, carregados de sono, vê a cidade ao longe, os seus dardos
de luz na noite ampla e, perante a excitação que se apodera dos senhores,
sabe que, uma vez mais, vai acontecer alguma coisa.

Não entram na cidade. Param imediatamente antes, na periferia


próxima. A primeira estalagem serve. Bakhita segue as senhoras, dormirá
diante da sua porta, no chão, pronta para obedecer às ordens, constantes,
deslocadas, cada vez mais fúteis e inúteis. O domínio familiar dá segurança,
coloca cada um no devido lugar. A mulher do general esbofeteia Bakhita
por tudo e por nada, puxa-lhe os cabelos, cospe-lhe na cara, acalma a sua
fúria alucinada, insulta-a em árabe, para que compreenda melhor e todos
oiçam, e repara, com um desprezo nauseado, que gosta daquela rapariga
estúpida. Odeia-a e estima-a. Chora de raiva na cama com o mosquiteiro
furado. Aquele hotel miserável infestado de mosquitos e de baratas, aquele
ar viscoso que enlouquece e aquela vergonha de ter apenas um punhado de
escravos ao seu serviço: a sua vida vale assim tão pouco?

Bakhita está esgotada. O corpo é um emaranhado de dores e a sua alma


procura Kishmet. A cidade está tão próxima, parece tão grande, dizem que
é a imensa encruzilhada do comércio. É ali que tudo converge, que tudo
vive. Dizem que o Nilo se torna um único rio que reúne o Nilo Azul e o
Nilo Branco. Dizem que o Egito está próximo e o mar também, aquele a que
chamam Vermelho. Dizem tantas coisas. Já não é uma raposa empalhada
que abre as fauces: é o governo egípcio. O senhor dos senhores. E ela, abda.
Apanhada na tormenta como numa tempestade de areia, dorme na soleira e
as suas lágrimas queimam e lavam os olhos cobertos de areia. A mulher do
general grita durante o sono. Palavras turcas e árabes misturadas. Bakhita
fecha o punho para segurar a mão da mãe na sua, pousa esse punho na boca
para não chorar demasiado alto e, uma vez mais, tem esperança.
O dia seguinte é quase vulgar. As ordens. As pancadas. A fome. A sede e
a dor. No entanto, o senhor perde o controlo e a con ança rígida. É um
militar nervoso, como que perdido num campo de batalha demasiado vasto.
Faz contas. Recomeça. E a senhora soluça de desprezo. O marido é um
minúsculo escorpião, Akrep!, repete enquanto o persegue, Akrep!, diz-lhe
com o rosto velado e com o rosto descoberto também, de tal modo perde a
cabeça, de tal modo está a car louca, Akrep! Akrep!, e Bakhita ca a saber
por um escravo que vão vendê-los novamente. Não irá para a Turquia? O
senhor mandou transmitir a mensagem: «Escravos para vender.» Vende-os a
todos? Precisa de dinheiro, de ainda mais dinheiro para regressar a Ancara.
A senhora tem razão: o senhor é um escorpião que se morde a si mesmo, o
senhor perde a partida, o senhor tem pressa, logo, falhou.

A senhora já não suporta que Bakhita se ocupe dela. Queria matá-la,


enterrá-la, queria vê-los ir a todos para debaixo de terra, e à sogra, que
ajuda o lho com um triunfo mordaz, também. Bakhita pousa outra vez as
escovas, os ganchos para o cabelo e os véus. Fica ali, de pé, inútil e
petri cada. Calcula. Se o general não car com ela, se for comprada, será o
seu quinto senhor. É isso? Pensa. Revê os dois raptores perto da bananeira,
revê as longas marchas, os centros de seleção, a fuga com Binah, revê o
pastor e a serpente na boca do cão, revê Samir e as senhorinhas, revê as
facas, os chicotes e as derrotas. Era tão pequena quando isto começou e
agora sabe muitas coisas e não sabe nada. Desaprendeu os seus costumes e
as suas crenças, já não saberia conduzir uma manada ao rio, bater o sorgo,
cantar no seu dialeto e pergunta-se: se a minha mãe proferisse o meu nome,
eu reconhecê-lo-ia? Faz essa pergunta a si mesma e, de súbito, ouve
chamarem-na:
– Bakhita! Bakhita, vem cá!
Foi assim que as coisas se passaram, com essa simplicidade. Como basta
um passo para cruzar uma fronteira, como basta uma assinatura para que
uma guerra termine, acontece num minuto aquilo que se esperou durante
anos inteiros. Bakhita aproxima-se. É comprada pela quinta vez, agora por
um homem que se chama Calisto Legnani, cônsul italiano em Cartum. E
esse homem vai mudar o curso da sua vida.
Quando se apresenta pela primeira vez perante esse senhor, o Signore
Legnani, Bakhita prosterna-se, testa contra o solo, braços estendidos, mãos
para a frente, e ouve uma ordem que não compreende. Beija os pés do
senhor, um após outro, três vezes, mas ele repete a ordem. Em árabe, desta
vez: «Taali! Levanta-te.» Ela levanta-se, com os olhos baixos, o coração
esbaforido, confusa já com este novo mundo onde faz, mais uma vez, o que
não se deve fazer. Guardami. Não compreende. Sente a mão do senhor
sobre ela, recua instintivamente quando ele lhe agarra no queixo e a obriga
a levantar o rosto. Sabe que não deve recuar, que deve obedecer a tudo, mas
não compreende o que o senhor disse. Ele fala de novo em árabe: «Shu ilai!
Olha-me!» Mas isso não pode fazer. Olhar um homem de frente. Um
senhor, ainda por cima. O pânico apodera-se dela, observa os seus olhos,
não sabe ler o que exprimem. Morde o interior das bochechas para não
chorar, não ser mandada de volta já. Olha-o, mas sabe que é errado fazê-lo.
Ele larga-lhe o queixo e afasta-se. Abana a cabeça várias vezes, como se
estivesse só, e desolado. Em seguida, faz sinal a uma criada para se
aproximar, diz umas palavras incompreensíveis, uma vez mais. Bakhita
pede perdão várias vezes, Asfa! Asfa!, mas é demasiado tarde: a empregada,
uma mulher de pele clara, leva-a consigo. Bakhita segue-a de rosto baixo,
não sabe onde vivem os escravos nesta casa, em que pátio lhes batem.
Caminha ao longo dos corredores e chega a uma divisão escura, húmida e
enevoada. A criada aponta para uma grande bacia de cobre, muito
comprida, e explica-lhe que deve meter-se lá dentro. Ainda não conhece
aquela tortura. Obedece.

Nesse dia, Bakhita foi lavada. A criada, Aïcha, deu-lhe um banho. Ao


sentir a suavidade da água sobre a pele, Bakhita reencontrou a pureza do
rio, dos folguedos e da infância, a mãe. No entanto, continuou imóvel,
espantada e de sobreaviso. Quando a água correu sobre os cabelos
emaranhados, que a criada penteou, pensou que a preparavam para uma
festa com os homens, mas no fundo sentia que talvez fosse uma coisa
diferente. A criada contemplou as escari cações, a coxa escavada, as
cicatrizes nas costas, os pés deformados, fez um sorriso triste, breve, e
deixou cair a água tão suavemente sobre os seus ombros que a pequena
escrava disse a si mesma que talvez ela não a preparasse para os homens.
Depois, Aïcha ajudou-a a sair da banheira, estendeu-lhe um lençol para
que se secasse, fez-lhe sinal para esperar e voltou com uma longa túnica
branca decorada com os vermelhos e pérolas. Parou diante de Bakhita,
sem uma palavra, e como esta não se mexia, caram assim durante um
momento, a olhar-se, com a túnica branca entre as duas. Os cabelos de
Bakhita gotejavam sobre o lençol. Ela pensava ter esgotado as lágrimas.
Nunca chorara de gratidão, nem pensava que fosse possível esse tempo, o
tempo do silêncio entre Aïcha e ela. O tempo do olhar. Sem ameaça. Então,
estendeu a mão para pegar na túnica e Aïcha ajudou-a. Fez passar a cabeça,
as mangas cobriram-lhe os braços e o tecido agarrou-se-lhe aos ombros, ao
ventre, às pernas e a todo o corpo. Por cima da túnica branca só sobressaía
o negro do seu rosto, como que esculpido pela luz e miraculosamente não
escari cado. Todas as marcas de infâmia estavam escondidas, a túnica era
como um véu de pudor e, pela primeira vez desde o seu rapto, sentiu que
havia algo dela que só a si pertencia. O seu corpo, objeto de lucro e de
tantas violências, era-lhe devolvido, escondido dos outros. Tornava-se um
segredo. O seu segredo. Era o primeiro.

É assim, por meio desse corpo restituído, que não voltará a ser sovado
nem cobiçado, que encontra lentamente o mundo dos humanos. Tem algo
seu, e é ela. Pertence ao senhor, mas uma pequena parte da sua vida está
protegida. Sabe que isso pode acabar de um dia para o outro, por uma razão
que não compreenderá, uma decisão que não lhe explicarão, um adeus a
que não terá direito. Está vestida e penteada, usa pulseiras, pérolas nos
cabelos. É doce e frágil.

Pede notícias de Kishmet aos escravos do cônsul, às criadas, e no dia em


que uma delas lhe pergunta através de que sinal particular poderia a irmã
ser reconhecida, não encontra nada para responder. Os seus gostos? A voz?
O riso? As cicatrizes? Bakhita não sabe. O novo nome? Os lhos? Os
antigos senhores? Bakhita não sabe nada disso. Então, tenta contar, calcular
o tempo que passou. Diz a si mesma que Kishmet talvez esteja casada com
um soldado, talvez viva numa das inúmeras guarnições de Cartum ou em
casa de um rico comerciante, um harém imenso, como dizem que há aqui.
Talvez dance para entreter as senhoras, ou pior… Não quer pensar nisso.
Tenta reencontrar essa intuição que teve em El Obeid, quando soube que
Kishmet estava lá, na mesma cidade, muito perto. Mas a intuição
desapareceu e não poderia dizer se a irmã vive no seu coração ou na cidade.

Uma manhã, o cônsul manda-a vir ao escritório. É um homem afável,


que fala com uma voz tão doce que é difícil ouvi-la. A sua presença é quase
uma ausência, a gentileza, um retraimento. Pergunta a Bakhita o nome da
sua aldeia. Pergunta-lho em árabe para ela o compreender bem. É uma
questão surpreendente, abrupta, que esconde certamente uma armadilha.
Ou uma má notícia. Falou demasiado em Kishmet? Aconteceu alguma
desgraça à sua aldeia? Olha lá para fora, é cedo, mas o céu já está branco, o
calor turva o horizonte. Pergunta, muito baixo, se houve fogo.
– Fogo? Que fogo?
O fogo. Depois de um rapto há sempre fogo, mas não ousa dizê-lo ao
cônsul, e ca ali, de cabeça baixa, com o coração apanhado e que se debate
com um mau pressentimento. Ele insiste:
– Qual é o nome da tua tribo? Da tua família?
Ela murmura:
– La arif… Não sei…
– Não sabes? Faz um esforço… quero ajudar-te. Compreendes? Ajudar-
te.
Ouviu dizer que o senhor era bom. Que alforriara escravos. Que os
comprara para isso, para os tornar livres, e pergunta-se o que fazem eles,
depois de serem livres, em Cartum.
– Diz-me o nome dos teus. Da tua aldeia. Da tua tribo.
Ela levanta para ele um olhar estupefacto. Compreende que a quer
ajudar e, sobretudo, compreende que não sabe o nome da sua tribo.
Apercebe-se disso ali, naquele escritório que cheira a couro e a tabaco, com
o ar agitado pelo enorme ventilador do teto e um ruído de vento imóvel.
Não conhece o nome da sua tribo! Julgava sabê-lo, nunca zera essa
pergunta a si mesma, procurava os seus e mais nada. Eles existem porque os
ama, esperam-na algures porque tem saudades deles e vai juntar-se-lhes…
O nome da aldeia. O nome da família. Tem a cabeça cheia de nomes árabes,
de perguntas fugidias. Torna a dizer:
– Não sei…
Ele não parece surpreendido. Abre uma gaveta e desenrola à sua frente
uma folha de papel tão grande que ocupa toda a secretária. Faz-lhe sinal
para se aproximar. Diz-lhe que é o seu país, que é o Sudão. Ela vê a
imensidão desse mundo que contempla pela primeira vez.
– Andaste muito. Andaste onde?
Ela faz que sim, andou muito, meses, anos, andou muito. Sim.
– Mas isso começou onde? Antes de El Obeid, onde estavas? Vens de
onde? De que ponto?
Ela murmura:
– Sim.
Ele insiste, um pouco mais depressa, mais rme:
– Foi sobretudo nas partes amarelas, ou verdes, ou cinzentas? Havia
montanhas? Montes? O Nilo Azul? O Nilo Branco? Era o oeste, não é
verdade?
O dedo bate no mapa como se fosse fazer surgir dele areia ou água. Não
compreende como é que o grande rio pode ser tão no, e onde estão as
estrelas e a Lua. Não entende o que o mapa mostra. Lembra-se da última
imagem da sua aldeia, dos dois homens perto da bananeira. Olha para o
mapa e repete:
– Não sei.
O cônsul não desiste, com a voz baixa, quase débil, pergunta:
– Na tua região, quais eram os animais? Bois ou búfalos? Burros ou
cavalos? Trocavam frequentemente de aldeia? Partiam, hem? Andavam a
pé? Comiam os animais? A que deus rezavas? Como se chamavam os teus
antepassados?
Ela começa a soluçar. Desejaria cair aos pés do senhor e que aquilo
terminasse. Caminha à beira do vazio e ele empurra-a com aquelas
perguntas. Está perdida e perdeu os seus. O cônsul dá-lhe um lenço e um
pouco de água. Torna a dobrar o mapa do Sudão com todos os locais e as
palavras que ela não soube ler. Torna a dobrar essa terra que não tem céu e
guarda-a numa gaveta.
– Quero ajudar-te, não há motivo para chorar.
Bakhita olha para a gaveta onde está guardado o mapa com a família e
todas as suas esperanças mortas. Onde estão? Mas onde estão todos?
Soluça, com as mãos diante do rosto, sofre mais do que sob as pancadas e as
injúrias, sofre por si própria. O cônsul aproxima-se, acaricia o bigode com
um ar sonhador.
– É muito simples. Vais dizer-me uma única coisa e saberei a quem me
dirigir depois. Um amigo que conhece os vossos dialetos… Muitos dos
vossos dialetos.
Bakhita nunca esteve tanto tempo no escritório de um senhor, nunca lhe
zeram tantas perguntas. Está esgotada, sem esperança e cheia de vergonha.
– O teu nome.
– O quê?
– Tuo nome? Ma smouki? Nome? O teu nome?
Bakhita contempla o lenço branco nas suas mãos escuras. Dobra-o em
dois. Em quatro. Em oito. Lentamente. Já não chora. Ouve-se respirar como
um burrinho esgotado. Agora o senhor está irritado, um pouco desiludido
também, claro.
– Como te chamas?
Ela inclina-se lentamente para ele e, para lhe mostrar boa vontade, e que
não é ignorante em tudo, diz com a sua voz grave, escandindo bem cada
sílaba:
– Non lo so.
E sai da sala, recuando.

Esta conversa marca o início de um grande desgosto. Bakhita


compreende que perdeu a língua materna. A sua infância oculta-se, como
se não tivesse existido. Não pode nomeá-la. Não pode descrevê-la. No
entanto, sente-a dentro de si, escaldante e viva, mais do que nunca.
Aprendeu árabe com a facilidade das crianças. Há sete anos que não ouve
uma única palavra do seu dialeto. Lembra-se de «Kishmet», esse talismã,
essa obsessão, o nome próprio que a irmã já não usa, sem dúvida. Di-lo ao
cônsul, como uma última esperança, e pelos olhos cansados, compreende
que não signi ca nada, que talvez seja uma deformação, uma ilusão,
também ele. Volta a encontrar as longas noites de desespero à espreita de
um sonho, de uma intuição. Mas nada nem ninguém a visita. Já não é
espancada, anda vestida como os senhores e tem essa impressão de queda
interminável. Tenta cantar a sua cançoneta, aquela de que Binah gostava
tanto, «Quando as crianças nasciam da leoa», traduziu-a já há muito para
árabe. Compreende que diz ami, em vez de mamã, e baba em vez de papá, e,
sobretudo, asfa, asfa, asfa, perdão por este abandono. Pensa de novo no
mapa do Sudão. Gostaria de voltar a vê-lo, de aprender a ler as palavras que
estão nele, perguntá-las pelo menos. Lembra-se também das paisagens
atravessadas, do redil, do bebé esmagado contra as pedras, e de Binah nos
centros de seleção. Traz nela tantas vidas, porque é que as imagens da sua
infância estão perdidas? Faz esforços terríveis para se juntar a ela. Pensa de
novo naquilo de que gostava, na fogueira das palavras, nos joelhos do pai,
na irmã gémea, na avó. Revê a aldeia, fragmentos de cerimónias, como
sinais distantes, os desenhos da serpente, o irmão. «A minha lhinha é doce
e boa.» A sua mãe com lhos múltiplos, a mãe como uma chama vermelha.
Todas as noites faz este exercício: relembra os seus com a esperança de que
os nomes deles voltem, mas cam encerrados nesse amor imenso e
anónimo, e estende os braços para seres que não pode agarrar.

Todos os dias ajuda Anna, a governanta, e é um novo mundo a que, uma


vez mais, se adapta. Há o italiano, para começar, essa língua
incompreensível, com palavras que dançam ao contrário daquelas que
conhece, que não vêm, como o árabe, do fundo da garganta, mas que se
soltam de outro local, algures no seu peito. Demorará muito tempo a
descobrir de onde. Em frente à casa do cônsul ondula uma bandeira que
não conhece, sem o crescente islâmico, e, na casa, os homens e as mulheres
estão misturados. As mulheres italianas têm o rosto descoberto e vão para o
meio dos homens. Reúnem-se todos para comer numa sala feita
especialmente para isso, a que chamam sala de jantar. Lavam as mãos numa
divisão separada, não as utilizam para comer, mas sim garfos e colheres, e
cada um tem um copo para si, colocado diante de um prato só seu. A
cozinha é inspecionada todos os dias, é limpa e limpa de novo. Nunca
rezam a Alá. O senhor só tem uma mulher que nunca ninguém viu e dorme
sozinho, todas as noites, numa cama imensa. O seu quarto é fechado à
chave, nenhum escravo dorme no quarto do senhor ou na soleira da sua
porta. Nenhum escravo dorme nos corredores. É estranha, de início, a
ausência desses corpos que povoam habitualmente as casas. Bakhita ouviu
tantas vezes os patrões falarem contra os escravos, dizerem que os espiam,
que difundem os mexericos por toda a casa. Os senhores odeiam esses
corpos subjugados que não podem dispensar, desprezam-nos por estarem
ali, por partilharem o seu quotidiano, essa partilha que ao mesmo tempo
procuram e com que se horrorizam. O país não se alarma verdadeiramente
quando os jornais noticiam as batalhas ganhas pelo exército do Mahdi, as
tribos árabes que ele subleva, esses escravos-soldados que se juntam a ele, o
país age como se essa jihad fosse uma pequena revolta. Eles são tão fortes.
Depois do m do trá co decidido por Gordon Paxá, o exército britânico
captura, de tempos a tempos, grandes comerciantes que leva a julgamento
em Cartum e depois tudo continua como antes. A corrupção instala-se. As
infraestruturas do Egito são deixadas às potências ocidentais em relação às
quais a dívida atinge um nível tal que os britânicos se encarregam da sua
administração scal. Os banqueiros ocidentais e os empresários pouco
escrupulosos mantêm o país à sua mercê. A Europa inteira está presente em
Cartum. Esses senhores discutem e tiram os mapas das gavetas, os
embaixadores de França, de Inglaterra, da Alemanha, da Áustria, com
quem o senhor de Bakhita, Calisto Legnani, se encontra. A Europa inteira
tem os seus exércitos em Cartum, e o do Egito é mobilizado. O Mahdi
continua a sua investida.

Bakhita adapta-se aos novos costumes, à nova língua, embalada pelos


relatos de Anna que lhe diz que a mulher do Signore Legnani escreveu ao
marido e suplicou que voltasse para o seu país, aquele onde se fala italiano e
que se chama Itália. Descreve a Bakhita esse país, tão belo, tão distante, tão
livre, soalheiro e sem estação das chuvas. Bakhita pergunta-se qual será o
aspeto do mapa de um país sem escravos e sem desertos, sem zéribas e sem
violência, onde todos os homens se parecem com o cônsul. E a esposa, a sua
única mulher, será que é tão amável como ele? Anna diz-lhe que sim, que é
muito amável e feliz, porque em Itália as mulheres não são repudiadas,
mesmo que não tenham lhos, e podem sair sozinhas, sem véu e inclusive
depois do crepúsculo. Nisso, Bakhita não acredita, mas perdoa a Anna
porque ela gosta do seu país e sabe descrevê-lo. Quanto a Bakhita, apenas
transporta as cinzas de uma tribo sem nome.

Uma noite, após o dia de trabalho, Bakhita senta-se num banco do


jardim. Ouvem-se as últimas aves. É sempre surpreendente esse canto dos
pássaros na noite que cai. Ouve-os e fecha os olhos. As aves atravessam a
noite, sente o voo rápido das andorinhas, a dança de roda dos morcegos, o
vento lento na palmeira, de tempos a tempos o canto dos sapos. Reabre os
olhos, o céu volta a juntar-se, negro e cerrado. As primeiras estrelas
acendem-se, tão pequenas de início, como pontos esquecidos. Vê-as
aumentar a noite e, nesse m de tarde atento, algo desperta nela. Este país é
belo. Esta terra dos antepassados, este céu do Sudão, são belos. E pergunta-
se porque é que o mundo é tão bonito. A quem se deve. A fealdade dos
homens, conhece-a. A violência que provém da sua terrível cólera. Mas de
onde vem a beleza? A noite paira por cima dos homens, livre e imortal. E
essa noite fala-lhe. Como fez a terra, que se lembrava do sofrimento dos
escravos que ali haviam passado antes dela. Bakhita compreende que se
pode perder tudo: a língua, a aldeia, a liberdade. Mas não aquilo que nos é
dado. Nunca perdemos a nossa mãe. Nunca. É um amor tão forte como a
beleza do mundo, é a beleza do mundo. Leva a mão ao coração e chora
lágrimas de consolo. Teve tanto medo de a perder.
Tem catorze anos e é o seu segundo ano ao serviço do cônsul. Viu
escravos libertos partirem para uma aldeia reencontrada, uma missão
católica, viu-os partir e regressar depois, esgotados e mais magros, reviu
alguns, sentados e esgazeados nas esquinas das ruas. Desviou os olhos para
eles não terem vergonha e pergunta-se se uma outra vida é possível por
vezes. Ouve Anna falar daquela Itália sem milícias nem crianças-soldados,
sem razias nem guerra nas ruas.

Tem medo de Cartum. Sente aí a violência que conhece tão bem, a da


extrema pobreza e a do lucro, essa mistura sem piedade. A cidade está suja,
invadida por baratas e gafanhotos que chocam com os transeuntes, os gatos
são magros e ferozes como cães do deserto, as pessoas trabalham e morrem
nas ruas, fazem as necessidades contra as paredes de lama, os escravos
fazem rodar a grande roda do painço, o ar está vibrante de pânico. O nome
de Mahdi circula como uma chicotada. O padrone fala inglês com os outros
embaixadores em reuniões tardias e cheias de fumo. Bakhita ouve aquelas
vozes de homens enrouquecidos pelo sono e a cólera, passa-lhes qualquer
coisa debaixo do nariz, que não querem abandonar. Os britânicos
assumiram o controlo do país, administram-no com a arrogância daqueles
que nunca perderam nem as suas conquistas, nem o orgulho. O padrone
está menos afável do que antes, torna-se mesquinho, maníaco, como um
homem que perde con ança. As cartas da mulher tornam-se mais
numerosas, «suplicantes», diz Anna, que sabe ler e não se priva de o fazer
quando faz a limpeza no escritório do senhor.
– Volta depressa, escreve-lhe ela. Subito!
– Ela fala assim ao marido? – pergunta Bakhita.
– Claro. É italiana.
– As turcas também são assim.
– De qualquer modo, creio que o padrone vai regressar. Vai partir de
novo.
– Partir de novo? Para El Obeid?
– Para Itália!

Inicialmente, claro, pensa que a Itália não é para ela. É uma palavra para
os outros, aqueles que têm a pele branca como um frango depenado,
aqueles que sonham e se gabam da sua felicidade. Está habituada ao
nervosismo e à impaciência dos senhores, e sabe que Anna tem razão: o
padrone vai partir de novo. Ele previra isso, queria que ela regressasse à sua
terra, que não mendigasse nas ruelas doentias de Cartum. Todavia, como
ela é ignorante, incapaz de dizer o nome dos seus, sabe o que lhe acontecerá
quando o cônsul partir. Numa ruela ou num palácio, sabe o que quererão
dela. Regressará ao lugar de onde veio, à violência e à vergonha. E é sem
premeditação que, um dia, decide: nunca mais lhe tirarão a túnica branca.
Nunca mais. Está no lavadouro, lava os lençóis e as toalhas de mesa, esses
tecidos de algodão pesados de que os italianos gostam, a água está gelada e
ela observa as próprias mãos a esfregar, esfregar, esfregar. O movimento
arrasta-a, é como um cântico agora, ao ritmo dos seus pensamentos. E,
bruscamente, endireita-se, derruba o alguidar das cinzas, seca mais ou
menos as mãos no avental e corre até ao escritório do padrone. Prosterna-se
a seus pés. Ele não gosta disso, mas ela fá-lo porque não teria a audácia de
lhe suplicar de pé, olhando-o de frente.
– Leve-me… Padrone…
Ele nem sequer compreende, pensa que Bakhita quer voltar à aldeia.
Acha-a um pouco estúpida porque fala mal a sua língua e porque, apesar da
sua bondade, considera aqueles negros uns simples animais submetidos. E
gosta de animais. Tem horror a que se prosternem a seus pés. É algo físico,
visceral, não o suporta. Obriga-a a erguer-se e diz-lhe que já não tem tempo
para procurar a aldeia onde nasceu, pois prepara a partida, o regresso a
Itália. Ela está de pé, diante dele, e repete sem o olhar:
– Leve-me, Padrone.
Gosta muito dela, mas excetuando um rapazinho muito jovem que
prometeu oferecer a uns amigos queridos, não vai sobrecarregar-se com
outro escravo. Até Anna vai esperar que ele lhe envie o dinheiro para o
regresso. Já começou a vender os seus últimos escravos a proprietários
particulares ou a alforriá-los e, além dessas discussões de preços, passa os
dias entre o telégrafo, os jornais, as reuniões e as bagagens. Com aquela
amargura de partir vencido. Pede a Bakhita que lhe traga um café.

Está dominada por esse desejo de deixar o Sudão. Tenta trabalhar ainda
melhor, crê que o padrone vai ver isso, a maneira como limpa os soalhos,
como lhe engraxa os sapatos, passa a ferro as toalhas de mesa, mas muito
em breve dá-se conta de que ele se não apercebe de nada. Tem pressa. Sabe
o que se passa dentro dele. É um homem que já não vê nada ao seu redor.
Prepara a viagem e não pensa em mais nada. Partirá para Suakin de camelo,
serão vários dias de viagem no deserto e, depois, para atravessar os mares,
tomará um enorme barco a vapor, o aliado tão precioso dos mercadores de
escravos, esses seres sem importância. Bakhita pensa que tem importância.
A terra e o céu disseram-lho. Numa noite em que está deitada no edifício
dos escravos, a Lua encontra-se tão cheia, tão resplandecente, que alumia a
esteira onde está deitada. Estende as mãos para aquele clarão de luz que é
belo como uma surpresa, como uma exceção, e todos dormem em seu
redor. Está sozinha com aquele luar que a despertou e, quando a manhã
chega, carregada de nuvens, é estranho ver como está mais escuro do que de
noite. Pensa nisso, durante o dia de trabalho, no que viu e que os outros não
viram. Ajuda a transportar as malas, a fazer as bagagens, e ouve as
blaterações pesadas dos camelos que o padrone acabou de comprar. Ouve-o
falar com o cameleiro, não compreende o que diz, fala um árabe
incompreensível… Sai de casa e vai até ao pátio. Não se prosterna. Não pede
perdão. Mal baixa os olhos. Ousa ser uma escrava de pé entre dois homens:
o cameleiro e o senhor. Com o seu italiano desajeitado, explica ao senhor
que é preciso pear os camelos todas as noites, que nunca se deve deixar um
animal livre durante a noite. E acrescenta:
– Já viajei com os camelos. Posso ajudar. Leve-me, Padrone.
– Agora julgas-te indispensável?
– Podem morrer os camelos, sabe, Padrone? Caem e morrem. Julga que
a água não é precisa. Mas eles caem e morrem.
– Ocupar-me-ei dos camelos, não te preocupes.
Sente o rosto arder sob a emoção, o corpo treme com um vigor contido.
– Leve-me, Padrone.
– Mas que farias tu, minha pobre Bakhita, em Suakin? Sabes o que é
Suakin?
– Leve-me para a sua terra, Padrone, para Itália.
Ele começa a rir. Faz-lhe sinal para se ir embora e volta-se para o
cameleiro, com os olhos erguidos ao céu, em sinal de clemência. Poderia
ter-se indignado com a audácia dela, mas não o fez. É um homem bom.
Bakhita suplicará três vezes. Acolhe dentro de si a mão quente e
luminosa que a salvou na noite da evasão com Binah, e compreende que é
exatamente a mesma situação, que tem de fugir, tem de correr sem olhar
para trás. É uma outra marcha, outra travessia, suplicar ao senhor e
convencê-lo. Quer viver. Sente dentro de si uma tal força, ela, vestida e
penteada como uma rapariga livre, e alforria-se a si mesma, dá esse presente
a si própria, essa dignidade. O padrone parte no dia seguinte ao nal da
tarde para não ter demasiado calor. Viu o rapazinho prometido como
presente. Chama-se Indir e está aterrado como um jovem animal enjaulado.
Não pede nada, olha, chupa no polegar quando julga que não o veem, e
chora por vezes, quando ouve homens a gritar. É no e gracioso, será um
belo presente, o padrone deve muito, sem dúvida, a esse amigo a quem o
destina.
Já está menos segura de si enquanto caminha ao longo dos corredores
que conduzem ao escritório do padrone. O coração bate com força inclusive
nos ouvidos; o sangue choca; o mundo em seu redor está amortecido; treme
ao caminhar em direção a ele; a perna direita coxeia um pouco, como
sempre nos momentos difíceis; a dor na coxa desperta e falta-lhe o fôlego.
Ela, tão bela e tão graciosa, tem, por vezes, esse andar lento e difícil que terá
na velhice, como se as correntes invisíveis reaparecessem. Está sem fôlego
quando entra na sala e, sem preâmbulo, diz ao senhor:
– Sei cuidar dos pequenos. Das crianças pequenas.
Ele ergue a cabeça, espantado, e demora algum tempo a olhá-la. É
verdadeiramente bonita, muito bonita, a pobre.
– Eu sei, Bakhita, eu sei.
Diz isso e volta ao que estava a fazer: arruma bandeiras minúsculas
numa caixa de ébano e nácar. Dir-se-ia uma criança nostálgica que lamenta
ter crescido.
– É um bom presente.
Volta-se. Ela ainda ali está! Aquela voz grave que ela tem, nunca se
habituou a ela, estremece sempre que a ouve e disfarça por vezes um riso
histérico.
– Indir é um belo presente. Frágil para atravessar o deserto.
Desta vez, ele solta uma gargalhada. Bakhita é astuta como uma raposa.
– Não, Bakhita! Não te levarei! Conheces o deserto, os camelos e os
rapazinhos, sim, conheces muitas coisas. Mas não o preço de uma travessia
em vapor. É muito, muito cara. Mais cara do que um escravo.
Compreendes?
Falou demasiado depressa, não compreendeu tudo. Menos o riso. E o
olhar. Que dizem não. Não se prosterna: desmorona-se. Desaba aos pés do
cônsul e soluça sem conseguir parar, uns soluços que a abanam como se
estivessem a bater-lhe, prantos que vêm de tantos anos de sofrimentos
suportados que não consegue retê-los, não pensa nisso, soluça e mais nada,
perde toda a coragem, toda a resolução, não serve para nada nem para
ninguém, esgota-se nos seus soluços, desejaria que lhe causassem a morte.
Ele detesta mulheres que choram, e então uma escrava! Recua. Afasta-se
para junto da janela e olha-a. O corpo dela treme e a manga da túnica
descobre-lhe um ombro. Vê a longa cicatriz sacudida pelo pranto. É um
desenho sinuoso e bem feito. Essa tortura estética perturba-o subitamente.
E diz:
– Está bem!
Ela não o ouve, chora e sufoca no pranto. Ele aproxima-se, com um
gesto tímido tapa-lhe o ombro, obriga-a a levantar o rosto e diz-lhe,
olhando-a nos olhos:
– Está bem, a Itália.
É, como toda a alteração, uma libertação e um sofrimento. Uma
mudança de vida que se opera em alguns segundos. Vai partir. Vai viver no
país do sonho branco e do sol suave. Vai viver onde as aldeias não se
incendeiam. Onde as crianças crescem no local onde nasceram. O espanto
deixa-a sem fôlego. É quase injusto que isso exista. É injusto e é bom. Nunca
salvará Kishmet. Agora é tarde de mais. Nunca consolará a mãe. Tem de
aceitar essa traição. Salva-se e salva-se sozinha. Está presa na tempestade de
sentimentos contraditórios, mas há nela essa certeza de que tem razão.
Parte. Afasta-se com esforço de tudo o que conhece, de todos aqueles que
esperava rever, afasta-se com esforço da possibilidade de um dia
reencontrar o nome que o pai ofereceu à Lua. Fala à irmã gémea, pede-lhe
que proteja o seu nascimento, que transporte esta parte de si, livre e ligada
aos antepassados. Pela gémea, não se trai. Deixa o Sudão. E ca lá. Fica
inscrita na sua terra. Nas tradições. Na língua. Viverá lá para sempre. Pede à
gémea que pronuncie o seu nome, tantas vezes quantas as que puder para
que ressoe algures. No vento, na água, para que vá e pouse nas pedras, nos
campos, nos animais pací cos. Pega num pouco de terra vermelha e mete-a
num lenço. Pela primeira vez na vida, faz a sua mala. E sabe que o padrone
não a deixará morrer no deserto. Não a abandonará aos abutres se estiver
doente e sente-se levada por essa invencibilidade. E além disso é
responsável por Indir. Indir que não sabe que ela lhe deve esta viagem. Indir
que não sabe nada. Que não compreende italiano nem árabe nem turco, que
segue Bakhita como um cãozinho cheio de mágoa. Pergunta-se de onde
saiu ele. Há tantas crianças sozinhas. Onde estão as mães sozinhas, não se
veem. Cantaram o cântico da separação que não serve para nada e depois
nunca mais se ouvem, enlouquecem em silêncio. Indir tem uns grandes
olhos ternos com pestanas compridas e con a com a tristeza daquele que
não se revoltará. Bakhita vê isso. É um rapazinho que não se tornará mau
nem doido. Guarda dentro de si o segredo da violência e não espera nada.
Não tem ar de ser lho de um senhor, a sua pele é de um tom negro
carregado, os lábios espessos. Bakhita passa-lhe a mão pela cabeça, sente as
pequenas protuberâncias, e a criança pisca os olhos muito rapidamente
quando ela lhe toca, retesa-se um pouco e sorri para que lhe perdoem.
Bakhita diz para consigo que se foi escolhido para partir com o senhor é
porque vale muito. Cartum é um dos maiores centros de castração. E a
criança traz em si aquela doçura estranha e aquele sofrimento que, sabe,
será sempre invisível para os outros. Será um homem com as recordações
de uma infância que não se conta. Um ser sem descendência.

Calisto Legnani foi o último europeu a atravessar o deserto antes da


queda de Cartum a 26 de janeiro de 1885. São quatro que partem: ele,
Bakhita, Indir e Augusto Michieli, um amigo do cônsul, que conhece bem o
Sudão, onde faz negócios há inúmeros anos. A sua mulher deve vir juntar-
se a ele, e nunca vem. É frágil, é triste, de uma tristeza escondida, oculta.
Augusto Michieli traz dentro de si uma derrota que não enfraquece nem a
alegria de viver nem a vontade de empreender. Longe da mulher, sente-se
um jovem. Perto dela, tem medo da infelicidade e inquieta-se com tudo,
tem cem anos.

O cônsul congratula-se por ter trazido Bakhita. Pensa que a mulher


cará encantada por ter mais uma criada ao seu serviço e Bakhita tem um
sentido prático surpreendente para a idade. No camelo, com o pequeno
Indir encostado a ela, tem a segurança de uma mãe. Acalma-o, protege-o
dos mosquitos, dos tavões, da areia, da sede, do sol; à noite, deita punhados
de farinha de painço em água a ferver, mistura com um pau e alimenta-os
com um custo ín mo. Os dois burros que têm consigo estão carregados de
bagagem, víveres e presentes. Avançam debaixo do calor, desvairados com
as picadelas dos tavões, à noite. Bakhita cobre com cinzas os seus pescoços,
que sangram. De noite, zurram tanto que o cônsul teme que atraiam os
chacais. Bakhita dá-lhes palmadinhas na fronte, torce-lhes as orelhas.
Calam-se de imediato. Faz sinal ao pequeno Indir para que faça o mesmo. A
criança torce as orelhas dos burros e ri atirando o rosto para trás, ele
próprio surpreendido com a sua alegria. À noite, os camelos mordem-se e
procuram bater-se. Ouvem-se as suas mandíbulas raspar e ruminar, dir-se-
ia que a noite range. O padrone pede a Bakhita que o ajude a peá-los para
que não vão procurar comida. Ela treme ao passar a tira de couro entre as
patas anteriores e as posteriores e durante a noite, o estalido incessante
daquelas peias impede-a de dormir. No entanto, gosta das noites
ameaçadoras do deserto. Gosta da violência da natureza que junta os
homens e os animais. Gosta desse lugar perigoso, dessa fragilidade das
vidas. É uma região que caminha, que foge. E onde, todavia, a lentidão é um
ritmo de sobrevivência. Uma região implacável, uma terra pilhada. Nos
oásis que atravessam, vê os escravos a cultivar as palmeiras, colher as
tâmaras, a fazer a manutenção das canalizações. Estão curvados. Ali ou
noutros lugares, nos campos, nas minas de sal, nas minas de ouro ou de
pedras preciosas, estão curvados. São homens cortados ao meio. Com o
peito perto dos joelhos. Os pés descalços são sólidos como couro velho. A
alma apanhada. O coração sangrado até à última gota de sangue. Troçam
deles. Dizem que não conhecem nem a revolta nem a dignidade. Dizem que
são preguiçosos e que é preciso bater-lhes para que trabalhem, sem isso
aproveitar-se-iam da comida e da dormida sem sequer agradecerem aos
senhores. Nas noites do deserto, com o pequeno Indir adormecido contra
ela, Bakhita ouve os dois italianos roncar como os seus burros. Hesita entre
o riso e as lágrimas. Podia ser tão simples viverem juntos. E parece sempre
uma vingança. Sente vontade de dizer Asfa, mas não sabe a quem.

De Cartum a Suakin, percorreram mais de oitocentos quilómetros.


Tudo o que viu, viu-o pela primeira vez. Atravessou o Nilo e gostou da sua
força indiferente, da água vermelha por causa do sol poente, dos re exos da
lua que riscavam a noite, do jogo das horas, todas as horas sobre a água que
permite a vida. Compreendeu que nenhum homem, nenhum rei, paxá,
sultão, governador, chefe militar ou religioso, nenhum homem dominava o
Sudão. Era ele que mandava. Teria querido que o cônsul os reunisse aos
quatro à beira-rio e dissesse qualquer coisa, mas ele certamente ter-se-ia
recusado a aproximar-se das margens, por causa dos crocodilos e dos
hipopótamos cujos grunhidos lancinantes o assustavam tanto. Então, ela
pediu-lhe que desenhasse na areia o percurso de Taweisha a El Obeid, de El
Obeid a Cartum, de Cartum às margens do Mar Vermelho, com o desenho
do rio, também. Voltava a pensar com frequência no mapa na gaveta. Teria
gostado tanto de o compreender. O cônsul fez longos traços na areia, não
terminavam, traços tão nos que não diziam nada, e os seus dias de marcha
pareciam abstratos e desaparecidos.
– Compreendes, Bakhita?
– Sim.
– Que compreendes?
– Eu era muito pequena.
O cônsul pensa que, decididamente, ela não percebe nada e pergunta-se
se está a ajudá-la levando-a para Itália. Olha-a, apertou Indir contra si e
embala-o docemente, está a amolecê-lo, a amá-lo como não se faz. Tem
di culdade em compreender: Bakhita é simultaneamente dócil e pensativa,
com uma presença infalível, que, no entanto, escapa. Se não fosse prestável e
e caz, censurar-lhe-ia o ar sonhador. A sua mulher irá formá-la melhor do
que ele saberia fazê-lo.

E então, um dia, é o Mar Vermelho, como uma invasão, um alívio


violento, irremediável, que abre para todos os desconhecidos. Bakhita
descobre o mar segurando a mão de Indir e tem a mesma idade que ele. A
idade de uma primeira vez diante do oceano.
– É para ali que iremos – diz-lhe o cônsul com um gesto generoso, como
se lhe oferecesse o mar, com a viagem.
– Sì, Padrone… – murmura em italiano, por delicadeza.
– Não terás medo?
Tem vontade rir, ela ca ali, imóvel, com os olhos sempre xos entre a
atenção viva e a ternura. «Uma gazela do deserto», dissera a Augusto, uma
noite. O outro rira com um riso embaraçoso.
– Hem? Não terás medo?
Ela não responde. Tirando as serpentes, teve sempre mais medo dos
homens do que da natureza ou dos animais. Tem vontade de lhe dizer que
dormiu numa árvore com os macacos e as aves, que dormiu num redil com
as ovelhas e os bodes, que sem ela haveria tido bastantes di culdades com
os camelos e os burros, os nómadas cuja língua não compreendia, os poços
que não encontrava, e as tempestades de areia sabia enfrentá-las bem pior
do que ela, pois não sabe cobrir-se e respirar ao mesmo tempo.
– Não, Padrone. Não tenho medo.
Pensa que vai con ar no mar. Que com o ele não há mais nada a fazer
além de se render. Contemplá-lo-á e esperará que a Itália apareça. Com as
mulheres felizes, as crianças felizes, os maridos que regressam carregados
de presentes. Pela primeira vez pergunta a si mesma o que vai fazer no meio
de tanta gente feliz.
Ficam um mês num hotel da pequena península de Suakin à espera do
vapor. Ficam a saber da tomada de Cartum, da morte de Gordon Paxá,
decapitado na escadaria do seu palácio, da morte dos egípcios e de uma
grande parte dos habitantes sudaneses de Cartum, incendiada e em ruínas.
Bakhita tem dezasseis anos. Sabe que se tivesse cado lá, também ela teria
sido pilhada como uma cidade. Tem pesadelos com Cartum incendiada,
ouve os meninos da rua, vê-os estenderem as mãos para uma mãe que não
vem. Aperta contra si o pequeno Indir, que não sabe do que escapou. Com
ela, não tem medo de nada. Nem dos gritos na estalagem, nem dos ruídos
de Suakin, as sirenes dos vapores, as ordens berradas, as gaivotas famintas,
os mugidos dos bois selvagens nos odores furiosos de ervas e de carvão
queimados, de sargaço e de peixes mortos. Bakhita cheira isso tudo sem que
lhe expliquem nada. Viu o mar como um rio encolerizado e sabe que essa
selvajaria os in ama a todos. É uma cidade de pedras altas que treme. Os
barcos são carregados até às goelas com as riquezas do Sudão, da Índia e do
Egito. É um mundo entre dois mundos. Uma cidade independente e fora do
tempo. Bakhita sente nela o medo da falência e a violência do lucro.
Mantém Indir perto de si, tenta ensinar-lhe algumas palavras de italiano. É
preciso que saiba dizer Grazie Padrone e Sì Padrone e Mi scusi Padrone.
Porém, Indir não tem vontade de aprender. Conserva esse ar sonhador e
distraído e encolhe-se contra ela como um gato que ignora em que mundo
dorme. Ela protege-o de tudo e também dos olhares. Já ouviu mais de uma
vez as lengalengas, as dos homens que querem. Este rapazinho castrado,
querem-no. E espantam-se por o cônsul dizer: «Não. Não o vendo. É um
presente, prometi-o. Não, levo-o para Itália, é para um amigo, não se pode
fazer isso a um amigo, não… co com ele.»

E ela… Também vai car com ela? Tem con ança, claro, o padrone é um
homem bom e, se ca com Indir, cará forçosamente com ela. Quem se
ocuparia dele durante a longa travessia? Ele disse quatro mil quilómetros. E
acrescentou: «É muito, compreendes? Nunca poderias fazer quatro mil
quilómetros a pé.» Ela sorri contemplando o mar… a pé, não… Por vezes, o
padrone anda um pouco na lua.
E depois, um dia, é a partida. A verdadeira partida. A confusão gritante
no porto como nos mercados. Há homens e mulheres atrás e à frente dela,
está entalada entre esses corpos que batem com os pés e que sopram, esses
corpos que chocam, agarra com força a mão de Indir, que chora agarrado à
sua túnica branca. Agora acabou. Deixa o seu país. Acabou. E desejaria que
ela aparecesse. Aquela que lhe gritaria: Não partas! Aquela para quem isso
não seria suportável. Ouve pessoas a gritar «Adeus!» em todas as línguas,
mas não ouve ninguém suplicar «Não partas!» Volta-se, olha por cima dos
fardos que vão às costas, à cabeça, aos ombros, é um mundo carregado, um
mundo de cordas e de lama, de ordens e de obediência, alguns fazem sinais
para dizer «Adeus!» ou «Estou aqui! Sobe para o meu lado!», há aqueles que
se se separam e aqueles que se juntam. Na margem, ouvem-se os cães latir
até carem roucos. A água bate contra o barco e as aves piam no vento
pesado. Todavia, a mulher que suplicaria a Bakhita que não partisse, a
mulher que abriria os braços de par em par para que ela voltasse, não a vê.
Essa vive do outro lado do rio, nem sabe que o mar existe. Que a Itália
existe. E que Bakhita se vai embora. Fecha os olhos para os ver a todos, o
melhor que consegue lembrar-se dos seus, e levá-los. Com os olhos
fechados, projeta as imagens da infância, a muito longínqua infância,
quando Kishmet era a irmã mais velha e velava por eles, porque era assim a
ordem do mundo. Pací co. E protegido. Lembra-se disso.
Era verdadeiramente necessário que essa viagem fosse longa para que
Bakhita a absorvesse. Era necessária essa travessia de quarenta dias, a lenta
passagem do Canal do Suez, corredor conquistado ao deserto entre a África
e a Ásia, e que liga o Mar Vermelho ao Mediterrâneo. Era verdadeiramente
necessário que houvesse dias e noites diferentes, céus unidos ao oceano sob
os quais já não somos nada. E em cada escala, assistir à cerimónia das
despedidas e à dos reencontros. Pessoas minúsculas que esperam e se
reencontram nos cais. Vemo-las abraçar-se e desaparecer. Olhamos para a
margem e já não as vemos. Os seus rostos estão noutro lugar. Encostados a
um ombro. A humidade ligeira do pescoço. Agarram-se.

Ao longo dos dias, explica a Indir que se separarão em breve: ele cará
numa casa e ela noutra. Será que ele compreende que não terão o mesmo
senhor? Indir assume um ar obstinado, cerra os dentes e Bakhita consegue
perceber que ele lhe bateria se pudesse, se não se contivesse. Não o faz.
Contudo, quanto mais se aproximam das costas italianas, menos ele suporta
a viagem. Vomita, a sua fronte está transpirada, geme e recusa-se a comer.
Nos primeiros tempos, Bakhita tem medo, como se fossem lançar borda
fora aquele pequeno escravo inútil. Mas Calisto Legnani só a censura por
não conseguir acalmar a criança. Ela espanta-se por um homem tão
inteligente, tão sábio, não compreender o desgosto de um rapazinho. Há um
remédio, claro. Ela conhece-o, porém, não pode dar-lho. Não pode dizer-
lhe que não se separarão. À noite, ele tem movimentos bruscos, durante o
sono atira a cabeça contra o peito dela, corta-lhe a respiração. Ouve-o
chorar e chamar. Desejava consolá-lo, mas nunca consolou ninguém. E
lembra-se da pequena Yebit morta entre as mãos da tatuadora. É uma visão
que regressa muitas vezes e, mais do que um remorso ou uma dor, é a
consciência da impotência, da derrota perante o mal. Acaricia a cabeça de
Indir, aperta o seu corpo tão magro que dir-se-ia serem longos pedaços de
ébano mal montados, é desajeitado e está aturdido. Ela pensa que a
«operação» lhe dani cou o espírito.
Dormem os dois no chão no camarote do cônsul e do seu amigo, que
não quiseram correr o risco de os deixar na parte dos escravos, criados,
bandidos e tra cantes de todos os tipos. De dia, ela ca no convés superior,
muito perto do camarote. Não se aventura nos labirintos do barco.
Vislumbra pelas janelas os salões, as salas de jantar, ouve por vezes o piano.
Contempla o oceano e pensa em tudo o que existe lá em baixo. O mundo
frio e profundo onde o sol se detém. Sabe que navegam por cima de mortes
antigas. Soube das travessias dos escravos para chegarem a mundos novos,
sabe que arrancam a África à África. As espingardas mandam. No entanto,
há céus que a consolam, estrelas que atravessam a noite como chuvas de luz,
e luas tão grandes que poderia dizer-se que o barco se aproximou do céu.
Quanto a ela, aproxima-se de um outro continente. De uma outra vida. E,
por uma vez, sabe para onde vai: vai para casa do padrone, cará ao serviço
da sua mulher, a Signora Legnani, numa cidade que se chama Pádua. Sorri
ao cônsul quando pensa nisso, não sabe que ele em breve desaparecerá da
sua vida para sempre.
O barco entra no porto de Génova. É uma entrada lenta e triste que
marca o adeus de nitivo ao Sudão. A sirene de nevoeiro rasga as colinas. É
primavera, abril de 1885, o ar está adocicado, o céu exibe uma claridade
pálida que parece a aurora. Bakhita repele a mão de Indir, que se agarra à
sua túnica. Desejaria que já não gostasse de si, desejaria também apertá-lo
entre os braços e dizer-lhe tantas coisas que já não terá tempo para lhe
dizer. Não sabe se se morre de pancada aqui em Itália. Indir agarra-lhe na
mão e grita-lhe: «Sì Padrone grazie Padrone mi scusi Padrone!» É a sua
surpresa. O seu presente de chegada. Aprendeu e xou às escondidas: «Sì
Padrone grazie Padrone mi scusi Padrone!» Ela sorri-lhe, mas a emoção
cerra-lhe a garganta, oxalá ele aguente o embate. Transporta as bagagens.
Calisto Legnani e Augusto Michieli, também eles carregados, caminham à
frente, têm o ar feliz daqueles que regressam de uma conquista. O cais está
tão atravancado como o de Suakin, as sacas de cereais no chão, as cargas nas
redes, os estivadores que praguejam, os mendigos e as crianças descalças. É
o primeiro choque, a incompreensão: as crianças descalças num porto
italiano. Bakhita pensa que vêm de outro lugar, como ela, e esperam car
aqui, no país que Anna lhe descreveu, soalheiro e livre. Está uma mulher no
porto que os olha e abre os braços de par em par. É a primeira imagem que
Bakhita terá de Maria Turina Michieli: uma mulher que abre os braços
como uma mãe. Augusto aproxima-se da esposa e aperta-a pudicamente
contra si, antes de lhe depositar um beijo na fronte. Bakhita pensa que Indir
é para ela, que é para ela o presente, vê-o nos seus grandes olhos felizes.
Todavia, rebenta uma discussão, cujo sentido compreende mais ou menos,
apesar de Maria e Augusto não falarem o italiano que conhece. Maria olha-
os, a Indir e a ela, e espera algo que não vem. Augusto encolhe os ombros,
embaraçado como uma criança, então ela aponta para os dois escravos, os
olhos enchem-se-lhe de estupefação e de cólera, a sua voz é seca, demasiado
aguda:
– Não tens nada, Augusto? Nada para mim?
– O pequeno é para os amigos do cônsul, Maria… E a rapariga é a sua
própria criada.
– Mas a mim, Augusto, a mim tu não trazes nada? Nenhum negro?
– Maria… partimos tão depressa. Cartum caiu, sabes, as notícias são
terríveis.
– O que eu sei é que Calisto pensou nos presentes. Não pensou apenas
em salvar a pele.
Calisto Legnani aproxima-se, explica-lhe que a travessia com dois
escravos foi perigosa e onerosa, e que é um milagre terem sobrevivido a
tempo de Cartum, um milagre que tenham sobrevivido à travessia do
deserto. Depois acrescenta, em voz baixa, que havia muito que prometera
um eunuco aos seus amigos, um casal de Génova que os espera na
estalagem. Amanhã partirá para Pádua com Bakhita, que é para a sua
mulher. Maria olha para os dois homens como se estivessem combinados,
quer-lhes mal por a terem desiludido e quer mal a si própria por se lhes ter
mostrado como a consideram desde sempre: uma mulher azeda e
reivindicativa. Estava tão contente por ter feito a viagem para os receber no
cais de Génova. Esperava algo diferente e agora está tudo estragado. Bakhita
segue-os com a bagagem, tem aquele andar gingado dos que descem dos
barcos. As ruelas sobem sem m, são estreitas e cheiram a peixe e às ervas
adocicadas como ores condimentadas. São odores novos, fortes e secos.

Chegada à estalagem, pelo olhar dos amigos do cônsul, os Sica, sabe que
são os novos senhores de Indir. É um olhar que conhece, que avalia e se
alegra. Reservaram quartos para os seus amigos. Quanto a eles, vão-se
embora no mesmo dia, moram no alto da cidade. A Signora Sica anda em
redor de Indir e aplaude, rindo. Bakhita não compreende bem a língua, mas
percebe que Indir é para ela. Diz que o adora! Como se chama? «Indir.» Ela
diz: «Não, Enrico.» E pede-lhe que cante. Quer treiná-lo: «La-la-la», e faz-
lhe sinal para continuar com a sua voz de castrato. Porém, Indir limita-se a
dizer: «Grazie Padrone sì Padrone mi scusi Padrone!», e depois olha para
Bakhita. Ela faz-lhe sinal que sim, que está bem, mas corrige mesmo assim:
«Padrona». Considera-a mais razoável do que ele, sentiu que Signora Sica
era gentil, e que estava contente com o pequeno. Os casais despedem-se:
beija-mão e pancadas amigáveis nas costas. Bakhita observa esses códigos
estranhos, a mulher reajusta o chapéu e agarra o braço que o marido lhe
estende. Vão-se embora. Dão alguns passos, viram-se. Olham para Indir e
esperam. Ela dá uma pequena risada espantada. Assobia para o pequeno se
juntar a eles. Bakhita sente esse ar que respiram todos juntos e que não é o
mesmo para nenhum deles. Vê a situação conhecida, eterna. A de um
escravo que vai para casa dos novos senhores. É desprovida de violência. De
uma doçura terrível. O cônsul empurra as costas de Indir, dá um risinho
pouco à vontade, o seu presente não está totalmente acabado. A criança
hesita, ca tensa e imobiliza-se. Bakhita baixa-se até ele, aperta-o contra si e
recebe o odor da sua pele, segreda-lhe que parta agora, que corra para os
novos senhores. Mas eis que ele se põe a gritar. É um grito insuportável,
agudo e lancinante. Os amigos entreolham-se em pânico, entendem-se em
silêncio, com as faces vermelhas. Estão confusos. Maria Turina Michieli
olha para Bakhita e vê o que os outros não veem. Esse rapazinho que está a
ser arrancado a essa negra, esse amor que há entre os dois, olha para aquela
rapariga e quere-a. Não é mais complicado do que isso. Quere-a. O cônsul
arranca a criança dos braços de Bakhita, solta, um após outro, os dedos
agarrados à túnica. O rapazinho grunhe e ofega, levado pelo cônsul como
uma saca. Ainda se volta e estende os braços para Bakhita, soluçando. O
cônsul quase o atira ao Signor Sica, cuja mulher faz um pequeno
movimento de recuo, e depois vão-se embora. Ouvem-se os gritos
extenuados da criança, os sapatos da signora que batem com ruído no chão
e, depois, mais nada, silêncio entrecortado por aves indiferentes. Acabou.
Maria Turina Michieli continua a olhar para Bakhita, que sabe certamente
muitas coisas. Transportar bagagem. Fazer-se amar pelas crianças. E chorar
em silêncio.
Da janela do quarto, Bakhita observa. Aí está. A Itália é isso.
Certamente. Vê o mar apagar-se na noite que cai, como se recuasse para
desaparecer. Alguns candeeiros de iluminação pública acendem-se nas
ruelas e é verdade o que Anna dizia: há mulheres fora de casa a esta hora e
algumas andam sozinhas, mas estão todas vestidas e são todas brancas. Por
mais que olhe, Bakhita não vê um único rosto negro ou mestiço, nenhuma
mulher de djellaba, nenhum homem com turbante. As vozes que ressoam
contra as paredes das casas altas são vozes estridentes e espantadas, os
habitantes chamam-se com palavras longas e cansadas, como que
inconsequentes, e Bakhita espanta-se por não compreender o que dizem.
Será que falam outra língua que não é italiano? Todavia, é isso. É a Itália.
Chegou. A esse país onde não tem nenhuma irmã, ninguém para procurar,
ninguém para reconhecer. Deixou Indir, tal como estava previsto, e tem o
coração despedaçado. Porque é que não ajuda, pelo menos uma vez na vida,
uma criança? O pequeno escravo pensa que o traiu e não deixa de ter razão.
Não suplicou ao seu senhor que casse com ele.

Agora, é mesmo noite. Ainda há, certamente, homens no porto que


carregam e descarregam as riquezas pelo prazer dos lucros. O seu prazer
pessoal seria estar com os seus. Para lhes contar esta viagem, narrá-la a
alguém. Falar da terra que se vê do mar e está sempre longe, mesmo quando
nos aproximamos. Falar do vento que se levanta com a violência de um
combatente. Os homens no convés que jogam às cartas e apostam dinheiro
como se não ouvissem o combate do vento. E bebem. E lutam. O bruaá da
cólera, sempre.

A única coisa que a acalma quando se deita nessa noite é saber que no
dia seguinte vai partir com o padrone. Compreende cada vez melhor a
língua que ele fala e sabe servi-lo. Deu-lhe a túnica branca, nunca lhe tocou
e salvou-a de Cartum, antes de a cidade ser incendiada. Deve-lhe a vida. Há
uma cama no quarto da estalagem. Estica os lençóis, aconchega-os melhor.
E depois deita-se no chão. Procura o calor do pequeno Indir. Sabe que,
nesse mesmo instante, ele chupa no polegar e chama por ela. Parece-lhe
estar ainda no balanço do barco e, para dominar o seu enjoo de terra,
harmoniza a respiração com esse oscilar. Dobrada sobre si própria tenta
acompanhar o balanço. É a primeira vez que dorme sozinha. Desde o
encarceramento pelos raptores, nunca passou uma noite sozinha. E, de
repente, sente a falta de Binah. Essa falta surpreende-a porque há muito que
não a sentia. A parte da sua vida partilhada está tão longe agora, será que
existiu realmente? Será que não inventou recordações com uma
rapariguinha que a teria ajudado a aguentar tudo? Será que inventou uma
amiga? Uma irmã? Uma infância? Já não sabe de onde vem. Ouve o mar,
ouve-o sem vê-lo, enquanto ele respira uma tão longa solidão.

Na manhã do dia seguinte, quando a vê, Calisto Legnani aproxima-se


alisando o bigode e, nesse tique, vê o seu embaraço. Pergunta-se o que se
esqueceu de fazer. O que fez mal. Mas a voz do cônsul conserva a doçura
habitual:
– Bakhita, porque é que quiseste vir para a Itália?
– Para a ver.
– Ah, está bem… está bem.
– Padrone…
– Sim?
– É aqui? A Itália?
– Claro, é aqui, a Itália! Mas que julgavas? Que era uma escala?
– Não compreendo as pessoas que falam. Os seus amigos. São italianos?
– Evidentemente que são italianos! Falam o seu dialeto. Toda a gente,
em Itália, fala o seu dialeto.
– O senhor também?
– Eu conheço as duas línguas.
– Sim, claro, Padrone…
Compreende que a Itália é muito grande, tão grande, ou até maior do
que o Sudão, deve haver lá muitas tribos, muitos dialetos e muitos chefes de
guerra também. E a cidade do padrone, é longe? Será que se vai para lá a pé?
Já não ousa perguntar nada. Tem medo de que o amo se ria. Mas é ele que
insiste:
– Então, na verdade, a Itália agrada-te?
– Obrigada, Padrone.
– Vais estar bem aqui. Acabou a escravidão. Estás contente?
– Sim, Padrone.
Ele olha-a, hesitante, sorri-lhe como as pessoas pedem desculpa e vai ter
com Augusto e Maria. Olham-na todos três e é como se ainda estivesse no
mercado. Como se não tivesse a sua túnica. Nenhuma proteção. Não devia
ser assim, mas o coração recomeça o ritmo de tantã, sente o perigo que se
aproxima. Maria olha-a e há nos seus olhos algo de feliz e de vitorioso. Uma
vingança esplêndida. E depois vira-se e ri. Augusto também ri um pouco, de
alívio. Bakhita não compreende o que nela é tão divertido para os italianos.
Baixa a cabeça e aperta as mãos uma contra a outra atrás das costas. Calisto
aproxima-se e diz-lhe:
– Vais acompanhar os meus amigos para casa deles, em Zianigo. Tu és
deles agora. Compreendes? Vais servir a Signora Maria Michieli.

Não se prosterna a seus pés. Não lhe suplica. Não chora. Está
estupefacta. Nunca pensou que lhe mentisse. Porque mentiu: não acabou a
escravidão. É apenas mais lenta e menos barulhenta. De olhos baixos,
acompanha os novos senhores. Sem sequer ter dito adeus ao cônsul.
Enredada na confusão da partida, das bagagens, das palavras que trocam
entre eles, dos gestos, ela, sozinha no seu silêncio, acompanha-os, com
submissão estupefacta e sem revolta, essa longa tristeza.

Não compreende nada do que diz a Signora Michieli. Augusto traduz o


dialeto veneziano da mulher para italiano, que Bakhita compreende um
pouco. Fica a saber que não a compraram: foi oferecida pelo cônsul à
signora. Fará parte das criadas, cará bem. Aperta as mãos uma contra a
outra para não gritar. Está furiosa consigo, não aprendeu realmente nada:
um senhor nunca tem amor aos seus escravos. Porque é que o cônsul a teria
conservado?

Sobem para um monstro negro que cospe o mesmo carvão que o barco,
mas engole os campos, en a-se sob túneis e apita tão ruidosamente como
ela respira. Bakhita não mostra o medo que sente. Não pergunta como é
que aquilo se chama nem quanto tempo vai demorar. O comboio para
frequentemente. Os senhores não se mexem. Ela também não. Descem e
mudam de comboio. Sem falar, segue-os. Fica assim durante todo o dia, a
contemplar a Itália atrás dos vidros. Campos a perder de vista, com
camponeses curvados, homens, mulheres e crianças muito pequenas. Será
que são livres? Nenhum é negro. E, mais uma vez, todos vestidos, embora
não tenham sapatos. Deve haver muito que comer aqui, como disse Anna,
porque os campos são numerosos.

Ao nal da tarde, chegam a Mirano. Uma caleche espera-os. Os


senhores sobem para lá, mas ela não sabe se deve caminhar ao lado do
cavalo ou sentar-se junto do cocheiro. Porém, os senhores fazem-lhe sinal
para ir para ao pé deles. Deixam a cidade e entram no campo. Vê os
burrinhos montados por velhotes, as cabras e as ovelhas guardadas por
miúdos, mulheres sentadas na berma das estradas, homens de uniforme
reunidos, soldados, certamente. Então, aqui também há um exército?
Observa e tem a impressão de que se encontra à beira do mundo e de que
este desliza lentamente. O seu olhar cruza-se com o da senhora. Aquela
mulher tem um sorriso cavado no rosto, como um entalhe feito à faca.

Atravessam Zianigo, uma minúscula aldeia dominada por uma igreja


enorme, demasiado grande para o tamanho da praça, e em breve o cavalo
caminha ao longo de uma alameda orlada de ciprestes, com a casa grande
no extremo. Há uma árvore cor-de-rosa, uma magnólia em or que quase
esconde a entrada da mansão burguesa. A casa dos novos senhores. Bakhita
desce da caleche e aperta o lenço no bolso. A terra vermelha do Sudão
secou, é menos mole. Há um grande jardim e um pátio, mas não vê os
edifícios destinados aos escravos. Então talvez seja verdade que os homens
ali sejam livres. O senhor diz que está contente por regressar, contempla a
esposa, contempla a casa e depois começa a rir. Falou em árabe! Torna a
dizer as coisas, de um modo diferente, e a mulher inclina a cabeça com
indulgência, extinguindo a sua alegria de imediato.

Na soleira da porta, uma velha come. Com um ritmo lento, rapa a


escudela. Levanta o rosto e grita. A escudela cai ao chão, ela levanta-se e
corre fazendo sinais desvairados e rápidos na fronte, no peito, grita coisas
incompreensíveis, mas terríveis, certamente. Vindos do jardim e da casa,
aparecem mulheres e alguns homens, que avançam com prudência para
transportar as bagagens do senhor e que olham Bakhita com um terror
mudo. Uma mulher cospe, outra brande os dedos cruzados à sua frente,
com os braços estendidos para Bakhita, e murmura uma oração inaudível.
Bakhita não conhece essa cerimónia. É verdade que o senhor regressa a casa
após uma viagem muito longa. Então sorri. Se pudesse participar, fá-lo-ia,
porém, não conhece esse rito. Maria Michieli bate palmas e grita três vezes.
Ainda assim, cam todos ali, imóveis e temerosos, esperam algo.
Rapidamente, Augusto faz entrar Bakhita na casa, onde os criados já não
ousam vir, e os seus rostos pálidos colam-se às vidraças.
– Têm mais medo do que tu, olha!
– Sì, Padrone…
– Vão habituar-se e acabarão por compreender, realmente, que não és o
diabo.
Ela conhece o diabo, é temido por todos os muçulmanos.
– O diabo, Padrone?
– Bem, sim! O diabo negro! E chama-me paron. Faz um esforço,
aprende o dialeto deles.
Nas vidraças, há vestígios dos dedos e da respiração dos criados
atemorizados. Olha esses vestígios e diz a si mesma que vai limpar os
vidros. Veio para isso. Foi para isso que a ofereceram à padrona… à
parona… Para que tudo esteja limpo. E pergunta-se o que será pior: ser
Djamila ou Sheitan.

Tem, pela primeira vez na vida, um quarto só para si, com uma cama,
uma mesa de cabeceira, um candeeiro de petróleo, uma pequena cómoda e
uma janela na parede, por onde trepa a glicínia. É um quarto alto, por cima
dos estábulos. Na primeira noite, não acende o candeeiro e quase nunca o
acenderá. Compreende melhor com a luz do exterior. Quando é noite, há
que dormir. Ou olhar para o céu. Quando amanhece, levanta-se. Mesmo
que toda a casa ainda durma. Habitua-se a dormir na cama, embora com
medo de cair e sentindo a falta da terra, do solo e das suas vibrações. Faz
como diz o paron, esforços. Tenta dormir como os outros. Falar como os
outros. Parecer-se com os outros. Nesta luta permanente, esta vida de
adaptação e de grande vergonha, esta vida sem amor e sem ternura, vai
encontrar um homem, o primeiro depois do pai, que a amará
verdadeiramente. Esse homem no seu caminho é como uma estrela caída
aos seus pés.
Chama-se Signore Illuminato Checchini, mas toda a gente o trata pelo
pseudónimo que usa enquanto jornalista local: Paron Stefano Massarioto.
Administra os bens dos Michieli durante as longas ausências do senhor,
como fez para outras propriedades. É um autodidata que gosta do povo, dos
camponeses, de que é o principal defensor junto dos proprietários. Está em
todos os mercados do Véneto, conhece os preços exatos, a cotação das
frutas, dos cereais, do tabaco e dos legumes, conhece os jornaleiros e os
meeiros, e todos con am nele. Também é o organista de Zianigo, é um
homem inclassi cável, apaixonado, religioso, caloroso e divertido. Aquilo a
que chamaríamos «uma gura», se não fosse antes de tudo um humanista.

Apresenta-se em casa dos Michieli no dia seguinte ao regresso do


senhor. Vai, claro, fazer o balanço da atividade agrícola da propriedade, mas
também vai, como os outros, por curiosidade. Na véspera, os lhos mais
velhos, Giuseppe e Leone, disseram-lhe que havia «um diabo negro» em
casa dos Michieli. Viram-no da rua! Interrogou-os e, em seguida,
amavelmente, obrigou-os a porem-se no seu lugar: trata-se, de certeza, de
uma africana. A aldeia só fala nisso. Essa mulher é negra como a madeira
queimada, talvez esteja queimada, prestes a reduzir-se a cinzas, dir-se-ia
mergulhada em carvão, doente, perseguida pela noite. É incompreensível. E
aterrador. Stefano viu, em casa dos Michieli, máscaras africanas e outros
objetos exóticos trazidos do Sudão, mas é possível? Uma mulher que se
parece com essas máscaras? E quando, do salão onde conversa com Augusto
Michieli, a vê passar, tem um choque. Desejaria esconder a sua surpresa, no
entanto está transtornado. Michieli ri da sua perturbação.
– É a Bakhita, é da minha mulher. Tem dezasseis anos, é uma escrava do
Sudão, foi capturada em criança e tem cicatrizes em todo o corpo, se tu
soubesses! É muito corajosa, um pouco lenta, mas e caz.
– Trouxeste-a? Salvaste-a?
Michieli tartamudeia que… sim… servia em Cartum em casa de um
amigo de Pádua e salvou-a, sim… Stefano diz-lhe que está abençoado por
isso, por salvar um ser humano, e Michieli passa imediatamente para os
cereais e o tabaco. Não gosta das beatices do seu administrador e lamenta
todo o ruído que acompanha a chegada dessa moretta, como toda a gente já
lhe chama, a «trigueira», a «morena», e ca surpreendido quando Stefano
pede autorização para a convidar para almoçar nesse mesmo dia.

Bakhita acompanha-o. O Paron Michieli explicou-lhe que ia comer a


casa do seu amigo e ela perguntou-lhe se iria regressar depois. Explicou-lhe
que só ia car fora algumas horas. A jovem pensa que vai servir lá, mas
«algumas horas» não sabe o que é, e não compreende uma palavra do que
aquele homem lhe diz. Com os olhos baixos, segue-o sem fazer perguntas.
Como de costume, vai para onde lhe dizem que vá. Na rua, algumas
crianças aproximam-se, agarram-na aos gritos, seguem-na com estalidos de
língua, como se provocassem um animal. Um rapazinho lambe-lhe os
dedos e vira-se, cuspindo. Atraídas pelos gritos dos miúdos, aparecem umas
mulheres, com as mãos diante da boca. Algumas caem de joelhos, outras
persignam-se, uma ousa aproximar-se, puxa pela túnica de Bakhita, dir-se-
ia que procura arrancá-la. Bakhita lança um grito rouco. Todos se
imobilizam, mudos, e, no silêncio, chegam outros camponeses, um
zumbido de alegria e de terror insolente. Então a voz de Stefano eleva-se,
rme e baixa, ralha aos adultos como se fossem criancinhas e a sua
autoridade acalma-os durante um instante. Aproxima-se de Bakhita, dobra
o braço e estende-lho. Reconhece o gesto dos amigos do cônsul, quando
deixaram a estalagem de Génova. Pergunta-se o que deve fazer. Ela é uma
criada e ele um senhor. Em redor, renascem os risos disfarçados, lançam-se
algumas pedras. Stefano continua à espera, com o braço dobrado e virado
para ela. E, como ela não se mexe, aproxima devagar a sua mão da dela, que
tem um movimento de recuo e um arrepio de medo. A mão de Stefano é
rugosa e quente. Ele pousa a mão dela no seu braço e diz qualquer coisa que
ela não compreende. Tem vergonha de tocar num homem em plena rua, no
entanto não troçam deles, pelo contrário, sente que a violência se acalma.
Caminham e seguem-nos com passos prudentes e sussurros espantados.
Atravessam assim a aldeia: Stefano com o olhar orgulhoso, ela com os olhos
baixos. «Dir-se-ia que a leva ao altar!», murmura uma mulher, à sua
passagem.
É um pouco isso.
Vai sentar-se na mesa familiar no meio dos cinco lhos de Stefano e
Clementina. Três lhos e duas lhas, dos cinco aos onze anos. Com Bakhita
agarrada ao seu braço, o pai anuncia com voz forte: «Aqui está a Moretta!
Convidei-a para almoçar!» Lê no olhar da esposa o medo e o respeito. «Não
tem ninguém no mundo. Sofreu muito.» As crianças calam-se, não querem
desagradar ao pai, mas não compreendem o que veem. Ela vê esse medo no
olhar delas e avança a mão para a pousar docemente na cabeça de Mélia, a
mais pequena, que começa a chorar. Vira-se para Clementina: «Asfa,
Padrona… Parona…» Até Stefano estremece. É uma voz de homem. Ele diz:
«Pois bem, apresento-vos a vossa irmãzinha, sorellina Moretta!» Ri ao dizê-
lo e todos riem com ele. Bakhita ainda não compreende que acabou de ser
aceite numa família onde, doravante, lhe chamarão «irmãzinha».

Está ao serviço de Maria Michieli, mas é através de Stefano que


conhecerá o mundo onde vive. Em sua casa, para onde é convidada com
frequência, não se passa uma refeição, um serão, sem que batam à porta. Os
camponeses vêm suplicar-lhe que interceda junto dos patrões. Manda-os
sentar e oferece sempre de beber, um pouco de leite e pão para as crianças.
Ouve-os. O seu dialeto, o paduano, mais rude, mais de nido do que o
veneziano, é incompreensível para Bakhita. Contudo, ela olha-os e
reconhece neles o esgotamento, a magreza cavada e tão feia dos que têm
fome. O olhar xo, quase fraco. A pele vermelha, arrancada, que acaba por
cair. Espanta-se que seja apenas nas mãos, no pescoço, nos braços e nas
pernas. A pelagra, «a pele acre», apresenta os seus estigmas nas partes
expostas ao sol e aqueles escravos não andam nus. Também reconhece as
suas tremuras, o ventre inchado das crianças pequenas, a paralisia
progressiva e aqui, tal como no Sudão, a demência dos que não comem e
vão morrer por causa disso. Suplicam ao Paron Stefano, choram, e por vezes
caem mesmo de joelhos. Sente essa necessidade violenta de ir ter com eles.
De lhes dizer que os conhece, sim, ela, a Moretta, conhece-os há muito
tempo. São submissos e desesperados. Trabalham e morrem e os seus lhos
estão condenados. Por ter fugido de Cartum, sabe que os homens suportam
o insuportável e depois, um dia, alguém os chama e eles seguem-no. Então,
já nada os pode deter. Os camponeses de Zianigo têm medo de Bakhita e ela
não conhece a língua que falam. Reprime o seu impulso e, antes de dormir,
conta à noite o que a atormenta. É-lhe impossível adormecer sem ter
enunciado o seu desgosto, a sua impotência para ajudar aquela pobre gente.
Dirige-se a esse céu que é o mesmo em todo o lado e então parece-lhe que o
mundo não é assim tão grande. Não há uma manhã que se levante sem que
pense na mãe, sentada no tronco do embondeiro. Por vezes é irreal, como
uma vida que seria de outra, mas na maior parte das vezes sente uma
presença tão nítida que tem a certeza de que, nesse mesmo instante, a mãe
pensa nela e sabe que ela está protegida.

A Parona Michieli tem para com ela uma gentileza irritada, uma
bondade forçada. Bakhita já viu isso e sabe-o: uma mulher que cala a sua
infelicidade é uma mulher que traz em si um grande inimigo. Aquela
mulher deveria dançar e gritar durante muito tempo, obrigar a sair esse
espírito que a possui. No entanto, fala suavemente, num tonzinho seco e
interrogador, tem sempre algo a censurar e os seus suspiros anunciam a sua
presença. Não tem ciúmes do afeto que Stefano tem pela Moretta. Ele é um
aliado precioso para a propriedade, mesmo quando o marido está lá,
porque ele, mesmo quando está presente, está ausente. Pensa noutros
negócios, pensa em partir de novo, sempre. Foge dela. Foge dessa casa onde
ninguém é feliz. Maria Michieli também é estrangeira em relação a Zianigo
e a Itália. Vem de São Petersburgo, onde Augusto, que fazia negócios com
mercadores de peles, se apaixonou por ela. Não é italiana e, sobretudo, não
é católica. Claro que se converteu para casar numa igreja, em Paris, mas é
ortodoxa, por tradição e sem convicção. Partilha uma coisa com o marido: a
irritação para com as beatices de Stefano. Não! Não há um cruci xo em casa
deles! E não, não vão à missa! E tanto lhe faz que a desprezem por isso. Ele,
evidentemente, é o grande amigo do padre, dirige o coro, organiza as
peregrinações e ajuda nas obras de caridade. O órgão, iria ouvi-lo de bom
grado, adora música, mas voltar a entrar na igreja… Aliás, proibiu-o de
falar de Deus a Bakhita, que não ceda a essa moda italiana dos missionários,
que guarde para si as suas ideias de bem e de mal. Ela saberá bem ocupar-se
sozinha das criadas.

Mas Bakhita não precisa de que lhe falem do bem e do mal. Conhece de
cor essa batalha e compreende muito rapidamente que o mundo é um só. O
mar entre o Sudão e a Itália não é uma separação. São reencontros. Tudo é
igual. E os homens sofrem. Numa manhã em que acompanha a Parona
Michieli ao mercado, vê um camponês algemado entre dois carabineiros.
Fica estupefacta. As correntes! Também aqui encontra as correntes! A
Parona Michieli empurra-a para frente e diz-lhe, escandindo as palavras:
– Ele-roubou-um-fruto.
– Um fruto, Parona?
– Tu compreendes o veneziano!
E compreende também que esse fruto, forçosamente, foi ele que o
plantou. Não conhece as palavras «pilhagem» e «código penal», mas
observa e compreende tudo. Não tem proteção, é imediato, a vida atravessa-
a e ela não poderia defender-se dessa compaixão. Como dizia a sua mãe? «A
minha lhinha… A minha lhinha é doce e boa. A minha lhinha…» Olha
para a Parona Michieli e, de súbito, compreende essa mulher, a sua
malvadez e infelicidade.

Abre-se sobre isso com Clementina, a esposa de Stefano. Com poucas


palavras, muitos gestos e alguns risinhos histéricos, comunicam como
podem. Nesse dia, Bakhita não tem vontade de rir e não sabe como abordar
o tema. Aponta para a lha mais nova de Clementina, a pequena Mélia, fala
da criança e da Parona Michieli, associa-as. Clementina ouve-a
atentamente, põe o chapéu e faz-lhe um sinal para a acompanhar.
Atravessam Zianigo, saem da aldeia, veem as pequenas veredas cobertas de
mato e silvas, com o ruído da água invisível entre as pedras, os muretes
pesados, as casas de campo profundas como zéribas, as imensas residências
patrícias da nobreza de Veneza. Bakhita gosta desses passeios, dos odores
das amoras e dos cizirões, das aves que descobre e das que reconhece, os
melros, as cotovias e as águias ao longe, na montanha. Tem sempre medo de
assustar alguém, de levar uma pedrada, mas diz a si própria que, à força de
a verem, os habitantes acabarão por se habituar e talvez um dia a deixem
aproximar-se deles. Graças à Parona Michieli, anda vestida à europeia, usa
uns bonitos ganchos nos cabelos crespos e, para as saídas de caleche com a
família Michieli, enverga o vestido vermelho escarlate e até mesmo os que a
temem dizem: é bela. De uma forma surpreendente. Assustadora. É bela e
não sabe que o é.
Sobem um pouco a colina, Bakhita ouve as vacas antes de as ver e de
súbito… a rapariguinha que guarda a manada, perto do rio. É muito
pequena, perdida na solidão, que agita a vara magra como as suas pernas
nuas e lança, de tempos a tempos, gritos curtos e assobios. Bakhita mostra-a
a Clementina e depois bate no peito. Aquela rapariguinha é ela. Disso
lembra-se e é como se se visse a si mesma, como se se reencontrasse. Foi há
muito e é agora. Ainda saberia fazê-lo, levar a manada ao rio, pela manhã, e
trazê-la de volta à aldeia, ao m da tarde. Clementina compreende e felicita-
a, di-lo-á a Stefano, nessa mesma noite: «A Bakhita sabe guardar as vacas.»
Afastam-se e Bakhita volta-se para contemplar o seu passado que aparece
em Itália, o tempo desordenado.

Quando Clementina empurra o portão do cemitério, Bakhita baixa


instintivamente os olhos. Sabe onde está. Viu, em Cartum, os pequenos
cemitérios das missões católicas. Não foram feitos para ela e não se sente à
vontade, é como um local proibido, como estar num jardim onde não teria
o direito de entrar. Clementina condu-la até uma sepultura minúscula.
Bakhita compreende ainda antes de ela lhe mostrar as palavras que não sabe
ler:
– Carlo Michieli. Giovanni Michieli.
A infelicidade da Parona Michieli está ali. Ela sabia-o.

À noite, Bakhita serve os patrões. Jantam na grande divisão vazia, sem


se olhar comem o cordeiro, os legumes, o arroz, as frutas, o pão, bebem o
vinho, o café, tudo o que os camponeses cultivaram e que nunca comerão
nem beberão. Bakhita observa a parona. Queria dizer-lhe que não se
preocupe. Sabe que há nela outra criança. Não se deve esperar uma criança
no medo. Observa-a e ca ali, imóvel.
– Ela é lenta, mas lenta! – diz Maria ao marido. E com a paciência
esgotada, explode. – O quê?
Então, a voz grossa da Moretta ousa um tímido:
– Estou aqui, Parona.
Augusto esconde o riso no guardanapo. A parona cora e baixa os olhos
para que ninguém veja as suas lágrimas.
Essa criança, vão esperá-la juntas. A patroa e a criada. Maria não
esqueceu Génova, a angústia do pequeno Indir que não queria deixar a
Moretta. Sabe que o menino atravessou o deserto e os mares com ela e
graças a ela, e duvida muito que tenha sido o marido ou o amigo a tomar
conta da criança! O cônsul deu-lhe Bakhita como um prémio de
consolação, mas ela queria aquela negra. E não era uma birra.

Augusto não adivinha que há algumas semanas que Maria está grávida
outra vez. Pensa que a palidez e as náuseas fazem parte da panóplia: a
mulher é histérica, não se pode fazer nada quanto a isso. Sabe que fugiria
dela se lhe dissesse que espera, novamente, um bebé. Como se não fosse
dele, apenas seu, uma criança gerada pela mãe e que só a ela pertence. Pensa
que os dois lhos mortos são a vergonha da esposa. Com ela, as crianças
não vivem. Que os das camponesas morram é habitual e lógico: são gerados
por bebedores de aguardente adulterada, comedores de polenta analfabetos,
imorais e sujos. Mas ela! Ela não sabe fazer viver uma criança. A primeira
vez ainda passa, não se pode nada contra o sarampo, mas a segunda? Nem
sequer conseguira fazê-la viver dentro de si, dera à luz um morto. O que
saía dela era a morte. «Deus chamou-o a Si, a ele também», dissera o
arcipreste. Foi então que Maria decidiu que terminara, não queria voltar a
ouvir falar desse Deus que tinha mais necessidade dos seus lhos do que
ela. Dera à segunda criança, antes de receber a extrema-unção, o nome do
sogro, Giovanni. Depois tinham-lhe enfaixado os seios. De qualquer modo
não seria ela quem a teria amamentado, mas aqueles seios enfaixados
causaram-lhe dores terríveis, bem mais do que aquando do nascimento de
Carlo, que via mamar na gorda Alessia, com os olhos indiferentes e o peito
desmesurado. Detestava-os a todos e ao seu Deus também. Deus para cá,
Deus para lá, como um tique de linguagem, um ídolo que se intrometia em
todo o lado, intervinha em tudo e a quem «ela devia oferecer os seus lhos»,
como se fossem d’Ele.

Agora, vai ocultar esta gravidez de que só a Moretta se apercebeu. Que


ninguém, nem Stefano, nem a sua família, nem o pároco, nem os amigos
descon em. Sabe o que pensam dela: é uma estrangeira que o marido faria
melhor em trocar por uma robusta italiana, uma mamma que veriam na
missa ao domingo, que tricotaria para os indigentes e participaria nas
procissões à Virgem. Como as outras. E como as outras curvaria a cabeça
sob a infelicidade, com o veuzinho negro e as oferendas ao Senhor que leva
as crianças.

Esta Moretta não sabe nada de tudo isso. É como se fosse muda e não
pode transmitir nenhum mexerico nem nenhuma verdade. Então, uma
noite, pede-lhe que abra a porta do armário do seu quarto, faz-lhe sinal
para tirar a grande caixa azul e pousá-la ali, em cima da mesa, vai mostrar-
lhe uma coisa. Àquela criada, a quem vai falar em russo, conta a vida, tão
breve e tão bela, do pequeno Carlo. Tira as roupas, que guardara para o
segundo, porque, antes mesmo de ter secado as lágrimas, a sogra ordenara-
lhe que zesse «outro» de imediato, como se apenas tivesse cozinhado mal
um prato. Não queria fazê-lo e fora certamente por isso que o segundo
nascera morto. Um substituto cansado, incapaz de abrir os olhos. Parecia-
lhe, enquanto o segurava nos braços para lhe escolher um nome, que era a
sua alma que apertava contra si, uma alma apagada, e que queria apenas
que a esquecessem. Mas Carlo! Carlito crescera e vivera quatro anos! Conta
na sua língua a vida de mãe que teve com ele. Porque foi a mãe dele, digam
o que digam. Conta os primeiros passos, as primeiras palavras, os primeiros
dói-dóis e as pequenas doenças que ela tratou, sim, sabia fazê-lo! E depois
mostra as roupas à guisa de provas, pede a Bakhita que lhes toque, que sinta
como são belas e, sobretudo, verdadeiras. Proíbem-na de falar desse lho,
como se trouxesse «más recordações», mas ela quer falar dele e dizer a esta
Moretta, que a ouve falar russo e que não esconde as suas lágrimas, como
foi um bom lho e como foi uma boa mãe. Gosta que Bakhita chore porque
se até uma estrangeira tem pesar, então, é normal que ela própria tenha
desgosto, não é? Não é uma doença! Ela não é louca! Embala-se, fala cada
vez mais depressa, cada vez mais alto, misturando o veneziano, o russo, o
francês e o inglês, que também fala, «Guarda! Toca-lhes, não tenhas medo»,
e agita os desenhos, os peluches, as toucas, as meias pequeninas, «So small!»
Com uma mão diante da boca, ri agora, porque essas meias são tão
pequenas! Não consegue parar de rir, o seu corpo baloiça enquanto ri. «So
small! Mio cuore! Sertse maïyo! Amore mio!», di-lo em todas as línguas e a
sua angústia explode.
Bakhita ouve, desde aquele dia em Taweisha, o urro da mãe em cujo
bebé tocara no pé minúsculo, tão belo. Lembra-se de que lhe bateram por
isso e de que o bebé também chorou. Devagar, aproxima-se da parona e
aperta-a contra si, é um gesto inesperado e proibido, que quer dizer
simplesmente «descansa». A parona refugia-se nos braços da Moretta e
soluça. Tem, nalmente, direito ao desgosto.
A criança nasce a 3 de fevereiro de 1886. O senhor havia deixado a Itália
três meses antes, regressando a Suakin, de onde escreveu à mulher palavras
desoladas que prognosticavam a futura derrota, e recomendando-lhe que
cuidasse de si.

Quando o parto começa, a Parona Michieli pede à Moretta que que a


seu lado. Durante três dias, Bakhita dorme no divã, sem ousar dizer-lhe que
gostaria muito mais de car no chão. Os seus sentidos estão despertos,
levanta-se dez vezes por noite, pousa as mãos no ventre que sofre, mas sabe
que está tudo bem. A Parona Michieli sente o ventre distender-se, sob as
mãos da Moretta a pedra torna-se líquido, então a angústia diminui um
pouco e consegue mesmo dormir.

Bakhita está emocionada como se fosse a primeira vez que assistisse a


algo assim. No entanto, viu tantos nascimentos, festejados ou aterrados,
mulheres felizes ou rapariguinhas esquartejadas pela dor, bebés que se
conservam ou bebés que se entregam, mães de mãos vazias e outras como a
sua, uma árvore e os seus ramos, viu tanta gente vir ao mundo e tantos
mundos. Tem dezassete anos, sabe que nunca terá lhos, diz-lho o seu
corpo de escrava, que se encarquilhou sob as violências. A parona vai dar à
luz deitada e ela espanta-se por imobilizarem uma mulher que vai fazer o
exercício mais intenso, pensa numa gazela que fosse peada antes de a
obrigarem a correr. Todavia, não diz nada e, quando a parteira chega, ao
terceiro dia, faz sinal à Moretta para sair. As coisas sérias vão começar.

É uma menina. A parona chama-lhe Alice, Alessandrina, Augusta.


Telegrafam ao pai a comunicar o nascimento e toda a aldeia está ao
corrente. Maria Michieli conseguiu nalmente! É uma rapariga, mas ela está
feliz mesmo assim, e talvez Augusto também que. Quem sabe a sua
mulher façá melhor na próxima vez e tenham um lho. Depois, algumas
horas mais tarde, quando começa a anoitecer, mandam vir o padre. É
preciso dar muito rapidamente os santos sacramentos, sem esperar pelo
batismo na igreja. A pequena não vai viver. À cabeceira de Maria Michieli, o
padre murmura palavras latinas e faz uns sinais que Bakhita não
compreende. A voz dele é terna e desolada, gostaria de falar um pouco com
a mãe, mas Maria recita as orações sem convicção, xando à sua frente esse
futuro que não existe. Não chora, está atordoada e esgotada. Já não quer ver
a menina, nem tocá-la, já não a ama, odeia-a. A parteira regressa e enfaixa-
lhe os seios num silêncio resignado, aperta com força as faixas brancas, já
manchadas, depois deixa a casa com alívio. A Moretta tem o direito de car,
de esperar com a mãe que o bebé, agora que está abençoado, envie para o
céu a sua alma puri cada.

A noite torna-se pesada, profunda e muda, há vapor de água nas


vidraças e uma luz hesitante que vem dos candeeiros, há o odor a sangue e
suor, essa fadiga incómoda. O quarto está fechado e o tempo só passa para
três seres: a mãe, a criança e a criada, com a morte que avança como um
rasto de fatalidade.

As duas mulheres não se olham. A criança que vai morrer está sozinha
no berço e o seu sofrimento invade o quarto. É um ser minúsculo, com uma
presença imensa e sem ajuda. Bakhita aproxima-se do berço que a Parona
Michieli quis longe de si, no outro extremo do quarto. Contempla o rosto
azulado da pequena Alice, respiração curta, sopro rouco, pensa num rio
entravado pela rocha, ouve a corrente da água retida, e vê que a vida luta
contra o poder de uma morte já aceite. Então, faz uma coisa que só fez uma
vez, há tanto tempo, quando se evadiu de Taweisha: não pede autorização.
Pega no bebé, tira-lhe as roupas, senta-se e deita a pequena sobre os seus
joelhos, cospe nas mãos e massaja-lhe o tórax, lentamente, enquanto
profere palavras incoerentes e meigas, com o rosto tão perto daquele
corpinho que a parona só vê a massa de cabelos crespos e o seu pescoço. A
pequena emite um crepitar de choros roucos e fracos, Bakhita está presa na
litania do gesto e da palavra, a sua voz triste mistura-se com a respiração
fraca da criança, ouvem-se os estalidos da madeira na lareira, crepita e
estala, e a pequena tosse cada vez mais alto. Bakhita compreende essa
linguagem: é a dor e a revolta. Então, cospe de novo nas mãos e massaja,
fala, com o rosto contra o do bebé, recebe a tosse e o choro como presentes
a ela destinados.
A parona ca muda, espectadora desapossada, sente renascer a
esperança ao mesmo tempo que a recusa da esperança. Bakhita ergue a
criança, mantém-na sob os braços, ela sufoca e as xia-se com as
mucosidades. Bakhita deita-a de novo, toma a sua cabeça na mão, pousa-lhe
a boca no nariz, aspira profundamente e cospe, para o chão. Várias vezes
seguidas, muito rapidamente, quase sem recuperar a respiração, aspira e
cospe as mucosidades. É barulhento e sujo como a vida. Repetitivo,
instintivo e autoritário. E quando nalmente a pequena já não chora de dor,
mas de fome, Bakhita veste-a de novo e leva-a à mãe. A parona faz um
movimento de recuo, os seus olhos perguntam à Moretta se não é louca por
ousar isso, mas Bakhita, com um gesto lento, retira a grande faixa branca e
liberta os seios da patroa. Diz a palavra que ama, com a sua voz baixa. Diz:
«Madre.» E mostra-lhe como deve fazer. Porque é ela que deve fazê-lo. Ela
deve alimentar a lha.

Chamá-la-ão, também, de «Mimmina». Um nome que é como um beijo,


uma guloseima, uma profunda ternura. E é a Bakhita que Maria Michieli a
con a. Aceitou amamentá-la, mas a Moretta deve manter-se a seu lado,
teme que a pequena cometa um erro, não «tome» o su ciente, ou «tome»
demasiado, e depois não sabe pô-la a arrotar, nem mudar-lhe a fralda, nem
lavá-la, mal ousa tocar nessa coisinha forte e misteriosa. Manda instalar o
berço da criança no quarto da criada, lá no alto, por cima dos estábulos e,
tanto de dia como de noite, Bakhita trá-la cá abaixo para mamar. Os papéis
invertem-se, a Moretta é a mãe e a mãe torna-se a ama de leite. Que
importância tem? Há muito que Maria Michieli se está nas tintas para o que
pensa dela a burguesia de Zianigo: o marido está longe e a família dele é
estúpida. Vê crescer a lha como espectadora ansiosa e maravilhada, e o
orgulho aumenta ao mesmo tempo que o desprezo por esse mundo que
sempre a rejeitou.
Bakhita não põe o bebé a dormir no berço. Agarra-o contra si, debaixo
dos lençóis. Os seus dias, as suas noites não são mais do que isso, esse
encontro perpétuo com a criança. Numa noite em que a lua está grande
como um sol, violenta e vermelha, puxa a pequena para si e pronuncia três
vezes o seu nome. Isso não diz como estava o mundo no dia em que
Mimmina nasceu, diz como o mundo mudou no dia em que ela nasceu.
É simultaneamente uma alegria profunda e uma privação renascida.
Com o bebé encostado a si, Bakhita chora a própria mãe, a falta que sente
dela irrompe no que é bom tal como irrompera no inferno, é uma ausência
que nada compensa e que tudo recorda. Desejaria partilhar com ela esta
maternidade de substituição, mas também voltar a ser essa vida poderosa e
minúscula nos braços daquela a quem chamava mamma numa língua
esquecida. Ser a mãe e a lha. Esse amor. Está cortada em duas e espanta-se
com a força dessa privação, será que esse amor insubstituível embaraçara
toda a sua vida? Embala Mimmina e agradece-lhe por estar viva. No amor
que dá à criança estão todos aqueles que amou e que lhe foram arrancados,
vidas cruzadas e perdidas, feridas discretas e ardentes. Com os olhos xos
nos de Bakhita, o olhar desfocado de Mimmina concentra-se e responde, e
do que dizem uma à outra na sua língua inventada, do que se dão nas
carícias e no sono partilhado, ninguém duvida. São duas vidas salvas e tão
unidas que não se podem desemaranhar.

Três meses depois do seu nascimento, por pressão dos que a rodeiam,
sob a in uência do Paron Stefano e também, há que dizê-lo, por
superstição, Maria Michieli aceita que Mimmina seja batizada. Um
verdadeiro batismo desta vez, na igreja de Zianigo. A Moretta ca à porta.
Maria leva a criança, toda em rendas brancas, até à pia batismal, onde os
seus gritos ecoam nas pedras frias. Maria também chora, sob o domínio da
emoção, pensam as pessoas, mas é simplesmente por desdém. Tem pressa
de devolver à Moretta aquele bebé que berra no fato de batismo, e quer mal
àquela rapariga por ter poderes que ela não tem. O seu reconhecimento está
manchado de rancor.

Bakhita gosta desse tempo da primeira infância de Mimmina. Aos seis


meses, a mãe deixa de a amamentar e é ela que a alimenta, cozinha as
sopinhas e as papas, é também ela que tricota as suas toucas e botinhas,
borda o enxoval, trata as febres, as diarreias, as gengivas inchadas.
Aprendeu tudo, sabe fazer tudo, «astuta como um macaco», diz a
governanta. Passeia a criança todos os dias pelos campos de Zianigo e,
muito frequentemente, o passeio para em casa de Stefano. Se ele lá não está,
Clementina e os lhos acolhem-na, felicitam Bakhita pelos progressos da
criança, pelo bom aspeto, o peso e os sorrisos; se Stefano lá está, prepara-
lhes sempre uma pequena merenda, pois é um homem que não pode ver
ninguém, faminto ou saciado, sem lhe dar de comer. Tenta sempre, não
consegue evitar, falar de religião com Bakhita. Mostra-lhe a medalha de
Mimmina: «A Santa Maria, percebes, irmãzinha? A Santa Maria!», Bakhita
sorri, com aquele sorriso doce e desarmante. Ele refreia-se quanto a fazê-la
entrar na igreja para lhe mostrar as estátuas, o cruci xo, os quadros. Tocaria
órgão enquanto ela descobria a Virgem, Cristo, os santos e a Presença Real.
Bakhita compreende tudo sem as palavras, sabe-o, mas Maria Michieli
proibiu a criada de entrar na igreja. Isso atormenta-o. Já não dorme de
noite. Sente-se culpado como se visse Bakhita a afogar-se e casse de braços
cruzados. A sua alma perder-se-á e ele não terá feito nada para o impedir.
No entanto, emana dela uma verdadeira força, como um segredo bem
guardado. Sabe, por falar dela aos pobres de Zianigo e também aos
burgueses, que não é só a cor da sua pele que os atemoriza. Não é só por
ignorância, superstição ou estupidez que fogem dela. Ela é bela, doce e
resignada, mas também é indestrutível. Como uma sobrevivente, transporta
nela um mundo incomunicável. E é isso que os assusta, esse poder que não
compreendem.

Como é que Stefano teve um dia essa ideia? Como a julgou exequível?
Decide adotar Bakhita. Ela não lhe chama babbo, como fazem os seus
lhos? Já é um pouco o seu pai e, se a adotar, ela terá um nome, uma
família, uma herança. Poderá batizá-la, apagar o pecado original e salvar-
lhe a alma. Lança-se numa batalha cega por papéis que não existem,
certidões de nascimento e de remissão, uma aldeia esquecida, uma
nacionalidade perdida, escreve, telegrafa, recorre a todas as suas relações,
pede ajuda ao arcipreste, ao presidente da câmara de Zianigo, ao doge de
Veneza, vai a Pádua a casa do cônsul Legnani, que regressou há seis meses
ao Egito, escreve a Augusto Michieli, pede-lhe que, de Suakin, faça
pesquisas sobre a origem de Bakhita. Tem uma fé capaz de mover
montanhas, as montanhas de um país sobre o qual ignora tudo, e quanto
mais vãs são as suas pesquisas, mais se obstina, apanhado num pânico
altruísta, mas talvez… talvez também tenha a intuição de que é preciso
andar depressa, que em breve esta vida tranquila, esta acalmia apenas serão
uma recordação longínqua para Bakhita.
Bakhita corre sozinha pelas ruas de Zianigo. Corre como se fugisse.
Como zera com a mão da pequena Binah na sua, evade-se. Corre e as
crianças que a veem passar comprimem-se contra as paredes amarelas das
casas inclinadas, os velhos sentados diante das portas tiram os chapéus e
cam em silêncio, as mulheres pensam que aconteceu uma desgraça a
Mimmina, porque é a desgraça que corre com a Moretta, qualquer mulher
da aldeia o reconhece.

Ela sente a corrente no pé, a corrente que carregou em casa da ama turca
pesa e fá-la coxear, reencontra o andar de escrava, o coração de escrava e o
medo que lhes está associado. Os sapatos apertados provocam-lhe dor, o
vestido cola-se-lhe ao corpo suado e, debaixo do chapéu, os cabelos estão
encharcados. No carreiro de terra que conduz a casa de Stefano, tropeça
num buraco e a lama cola-se ao seu rosto como placas de pele. Stefano já
está ao corrente da vinda de Bakhita, pediu a Clementina que fosse buscar o
médico e o mandasse a casa de Maria Michieli: aconteceu uma desgraça a
Mimmina. Vai ter com Bakhita ao carreiro de terra, vai para a tomar nos
braços, mas ela atira-se-lhe aos pés, como os pobres camponeses. Levanta-a
e não reconhece o seu rosto: está simultaneamente mais jovem e
terrivelmente velho. Os olhos são os de uma rapariguinha e, no entanto,
emana dela qualquer coisa aterrada e antiga.
– Mimmina?
– Não.
– Maria?
– Não.
– Il paron?
Faz um sinal negativo e aponta para si própria, bate no peito, o seu
coração, mostra que é ali, no interior dela, que há uma grande desgraça.
Instintivamente, olha-a, ela correu e não tem ar de doente, durante um
instante pergunta-se se ela recebeu os papéis da adoção, más notícias da
família, da aldeia, e apercebe-se de imediato que não é possível, pois em
todas as diligências que faz dá sempre apenas o seu endereço. Manda-a
sentar-se num banco de pedra. Diante de si, grandes ciprestes baloiçam no
seu odor doce e triste. Choveu durante todo o dia e o ar está saturado de
uma humidade pesada, as aves cantam nas árvores encharcadas, ouve-se o
último trovão na montanha, ao longe. Algo está a terminar. De súbito,
Stefano compreende. O choque corta-lhe a respiração. Todavia, é uma
evidência. Culpabiliza-se por não o ter previsto, por nunca ter falado nisso à
irmãzinha Moretta, a culpa é dele, deveria tê-la prevenido… Mas dizer essas
coisas num dialeto que ela compreende tão mal teria sido ainda mais
terrível, mais confuso, mais inquietante… Vai partir para Suakin com a
Michieli. Vai deixar a Itália. Pousa a mão na dela, que agora chora, e é a
primeira vez que chora à sua frente. Então chora com ela, soluça, e eis os
dois naquele banco, no ar húmido de uma chuva esgotada, com aquele
desgosto contra o qual nada podem fazer porque não há qualquer
consolação para o que vai acontecer. Desejaria pedir-lhe perdão: se ao
menos tivesse pensado na adoção mais cedo, se ao menos lhe tivesse dito o
que poderia vir a suceder. Há um ano que Augusto Michieli o deixa
administrar a propriedade sozinho, não conhece a lhinha, nunca esteve
tanto tempo ausente de Zianigo… Stefano tira os óculos redondos, limpa os
olhos e pergunta:
– Suakin?
– Sim, babbo, sim… Aiuto… Socorro…
Ele olha para o céu, mas este não lhe responde.

Leva-a de volta a casa de Maria Michieli. A parona ordena-lhe que vá


mudar de roupa e depois liberta a governanta da guarda de Mimmina.
Acrescenta que, no que se refere àquela evasão, falarão mais tarde, sozinhas.
Bakhita sobe ao quarto que lhe deu a ilusão da liberdade, a ilusão da
maternidade, uma vida própria.

No salão, Maria pede a Stefano que se sente e serve-lhe um copo de


grappa.
– Vou precisar de si mais do que nunca, Stefano.
– Eu sei…
– A propriedade vai car inteiramente nas suas mãos. Claro que haverá
uma compensação nanceira.
Ele não toca no copo. Contempla o jardim molhado, a magnólia pesada
e as ores arrancadas pela chuva. Pensa que é estranho como o tempo, por
vezes, se harmoniza com o nosso coração. A chuva vai cair de novo, o céu
não tem cor. Pergunta:
– Vão partir para Suakin? – E detesta essa palavrinha tão curta.
– A Mimmina tem nove meses e o pai não a conhece.
– Claro.
– Ele não pode voltar, como poderá calcular. Não é uma boa altura para
deixar o hotel.
– Ah… comprou-o, nalmente…
– Escreveu-me a dizer que, em Suakin, as casas são feitas com pedras de
coral, consegue imaginar isso, Stefano?
– Deve ser muito bonito.
– Escreveu-me a dizer que Suakin é uma península completamente
redonda, está a ver, mas completamente, como… como uma pérola pousada
no Mar Vermelho… consegue…
– Imaginar isso, sim, sim posso, signora. Deve ser muito bonito.
– Toda a Europa faz negócios lá: os ingleses, os alemães, os franceses, os
italianos, as riquezas da costa sudanesa, se eu lhe contasse…
– Posso imaginar, signora.
– A África, depois do canal do Suez, a África, é…! Ah, Stefano, é… uma
encruzilhada, é uma colmeia, é…
– Claro, claro, signora, mas diga-me, a Moretta, não tem medo de que…
– De quê? Que acontece lá, ela evade-se?
– Oh, não, o que quero dizer…
– E evadir-se para ir aonde? Ela nem sequer sabe como se chama!
– O que quero dizer é que…
– Quando o cônsul a quis ajudar a encontrar os seus, ela não sabia
sequer o nome da aldeia onde nasceu, não tem qualquer sentido de família.
– Estava a pensar no desgosto que ela deve ter por regressar ao Sudão.
– No Sudão ou aqui, tanto faz, vai ocupar-se da pequena!
– Signora, posso pedir-lhe uma coisa… sentir-me-ia mal comigo se não
lhe pedisse… Diga-me… Não quer mandá-la batizar? Mandar batizar a
Moretta? Antes de partir?
– Gosto muito de si, Stefano, você é teimoso e supersticioso, mas gosto
muito de si. Será a única pessoa deste país de analfabetos sarnentos de
quem terei saudades.
A chuva provoca um ruído surdo sobre as folhas da magnólia e as
vidraças do salão. Muito rapidamente, o jardim ca desfocado e deixa de
haver horizonte. O trovão regressa pela montanha como uma fera
preguiçosa. De súbito, parece quase noite. Stefano ouve Bakhita passar no
corredor com a pequena Mimmina nos braços, as suas vozes misturadas,
uma tão baixa e a outra tão frágil, como um canto íntimo. Sente-se como
um pai desapossado. Sente-se cobarde e sem direito. E tão triste. Maria foi
buscar os livros de contabilidade, as cartas de Stefano, os mata-borrões, a
tinta e a pena, ele contempla as colunas e os rabiscos, as datas e os
algarismos e, com uma voz cansada, diz:
– Signora, devo dizer-lhe que Giuseppe, o meu lho, está a tentar
ensinar a Moretta a ler. Algumas letras. Nada mais. É importante.
– Algumas letras retiradas do catecismo?
– Não. Do alfabeto.
– Estou a meter-me consigo!

Teria querido meter na bolsinha de couro uma medalha da Virgem, mas


não o faz. Em seu lugar, mete um pouco dessa terra de Itália, profunda e
escura, essa terra generosa e maldita. Teria querido escrever-lhe uma carta
em que lhe tivesse dito que a amava como a uma lha. Apenas essas
palavras e depois, talvez, algumas das suas recordações, lá em casa, à volta
da mesa familiar, os pratos que ela descobre, os que ela prepara, o riso que
lhes oferece, e aquele serão em que ele se pusera ao piano e Bakhita batera
as palmas para acompanhar a música. Chiara desatara a rir e então a
irmãzinha Moretta, com vergonha, parara de imediato. Ele tocara mais
depressa e, com um olhar, Clementina compreendera: batera palmas, por
sua vez, e levara os lhos a fazê-lo também e todos riam dessa
incongruência. Nunca tinham aplaudido assim a Marcha Turca de Mozart.
Ter-lhe-ia escrito falando-lhe da alegria que ela trouxera à sua casa, e do
respeito que tinha por ela, tudo o que via e que lhe escapava: quando ela
puxava a manga para esconder as cicatrizes; quando, de súbito, coxeava;
quando o olhar lento e grave pousava nos meninos das ruas, ranhosos e
obstinados; quando murmurava a Mimmina palavras incompreensíveis;
quando apanhava as pedras que lhe atiravam e as olhava docemente antes
de voltar a colocá-las no chão… Teria tanto a dizer-lhe, a escrever-lhe. Mas
ela não conhece nem a escrita nem o veneziano. Então, ele pousa a bolsa de
couro na mão, aperta-a contra si com a sua falta de jeito brusca e, que se
trame a Parona Michieli, murmura-lhe ao ouvido «Rezarei por ti todos os
dias.» Faz aquele sinal furtivo na sua fronte, abençoando-a. Depois vai-se
embora, infeliz como um cão. Ele, o exuberante, a gura local, regressa a
casa e involuntariamente coxeia como ela, um pé aqui, outro lá, nessa
África em cujo limiar todos cam a bater os pés, como os miúdos na base
do pinheiro, mais frequentemente mercadores do que missionários, e ele vai
car com os seus camponeses sem esperança. Então, de repente, muda de
direção e não volta para casa. Com o passo sacudido regressa à aldeia,
dirige-se à igreja. Sobe os degraus de madeira estreitos e poeirentos, senta-
se ao órgão e para ela, a irmãzinha, a sua quase lha, toca a Ave Maria. Toca
assim, durante uma hora, uma hora lenta e grave, para não ouvir o ruído da
caleche que a leva à estação de caminho de ferro. Não pensar na aldeia que
a vê partir, nesta vida que chega ao m. Toca, sem pensar em mais nada e,
de súbito, decide. Vão chamá-lo novamente de original e excêntrico. Não é
grave. Vão dizer outra vez que é sonhador e idealista. Talvez seja verdade.
Virá todos os dias à igreja tocar a Ave Maria. Todos os dias. E será o seu
chamamento, para que ela regresse. Porque agora sabe: ela regressará.
É o Sudão. Diante do Sudão. É uma terra. Separada da terra. Uma etapa
entre o deserto e o mar. A porta da África. Uma ilha onde se detêm os
peregrinos que vão para Meca, do outro lado do Mar Vermelho, um mar a
que arrancam o coral e cujas margens são invadidas por dhows miseráveis e
navios gigantes. Parte-se para as Índias, as Américas, falam-se árabe e turco,
egípcio e inglês, falam-se todas as línguas e, sobretudo, fala-se de dinheiro.
Há civis e militares, governadores e bandidos, mesquitas e bordéis, cafés e,
ao longo das ruas, e ao longo do dia, mercados. Porque toda a gente vende e
tudo está à venda. Os homens, a goma-arábica, as plumas de avestruz, o
carvão, os dentes de elefante, o copal e o incenso, as riquezas que se
descobrem, que se exportam. Poderíamos julgar que o mundo se abre, se
encontra e cresce. Ele encolhe, fragmenta-se e cava-se.

Bakhita chega ao Sudão em setembro de 1886, um ano e meio depois de


o ter deixado e todas as chagas se avivam. É o país dos antepassados, da
mãe, o país da sua cor, da língua que falou e do nome que teve. É o país que
atravessou e que não reconhece em nenhum mapa. O país a que sobreviveu,
mas onde não encontra ninguém. Das janelas do hotel de Suakin, observa-
o. Está ali, colocado à sua frente, distante e terrivelmente próximo. De dia,
as margens da costa estão perdidas na bruma, a humidade paira e o céu
imóvel não deixa ver nada. O seu país é profundo e encravado. O seu país
cala-se. De noite, a cidade demasiado luminosa oculta as estrelas. Suakin
nunca descansa, a ilha está sempre barulhenta e atarefada, embriagada e
perigosa, os gritos dos macacos misturam-se com os gritos dos homens e
dir-se-ia que todos riem. As estrelas estão distraídas, só a Lua permanece, a
brilhar mais alto do que os clarões da cidade, e Bakhita fala-lhe.
Está nesse hotel imenso como num país sem lei e conhece o vazio dessa
vida de lucro, essa vida sem vínculos, sem outra ancoragem além dos livros
de contabilidade e a caixa do hotel. Não sabe o que fazer às gorjetas que lhe
dão os homens a quem serve álcool forte e café turco. Nunca soube o que
fazer ao dinheiro. Deixou em Zianigo as gorjetas que lhe davam os
convidados da Parona Michieli que servia nas noites de receção. Agradecia-
lhes baixando os olhos e guardava as moedas com a roupa branca, na sua
cómoda, mas depois esquecia-as. Ouvira um convidado perguntar a
Augusto por quanto cara com a negra e ele, incomodado, zera um gesto
de pudor. Não, daquele salvamento não falaria… E houvera no salão aquele
ambiente entendido e admirativo que a boa sociedade sente pelos homens
ricos e discretos.

Não sai do hotel, como quer a Parona Michieli. Não vê nada da ilha.
Dizem que é tão bela como suja, tão perigosa como poderosa, ainda
selvagem apesar das altas mansões dos ricos comerciantes, dizem que o sol
se deita sobre o mar como a mão de Alá mergulharia nas ondas, e faz jorrar
dele cores que não poderíamos identi car. Falam de Suakin como de um
animal vivo, que se teme e se doma. Falam dos peregrinos andrajosos, das
espingardas de contrabando, dos sabres acerados e das feras que de noite
entram nas habitações. Falam dos fantasmas das quarenta virgens, escravas
abissínias grávidas de djinns, cujas quarenta lhas fundaram a cidade e
assombram o palácio. Reinam a maldade e a miséria.

Ela lembra-se da ilha. Com o pequeno Indir comprimido contra si,


naquela estalagem provisória, o odor dos camelos e do couro, da urina e do
sargaço, e essa areia que levara sobre si até Génova, após dias de deserto.
Lembra-se dos cães selvagens e dos seus combates nas margens lamacentas
do porto. Das raparigas sem véu diante das estalagens, com os olhares
vazios como céus passados. Mulheres que vendiam peixe velho à unidade e
leprosos sentados sob as palmeiras, perto de cestos de especiarias e de
corais secos. Lembra-se de todos os sudaneses arrancados à sua terra.

Quando não serve no bar, passeia Mimmina no jardim, e isso lembra-


lhe os haréns, essas cidades fechadas, os pombais, o galinheiro, as paredes,
os terraços e os edifícios dos escravos. Também aqui os criados se vão deitar
à noite nessas casinhas baixas e não mistas, onde as crianças têm olhos de
velhos e desejos de repouso. Vê as raparigas grávidas, os rapazinhos muito
jovens submissos e tristes a quem dizem que têm sorte. Por terem senhores,
um telhado, uma escudela e água. A quem dizem para se manterem dóceis e
servis. E sabe, sem os olhar, o que todos perderam, e a solidão que é deles
para sempre. Porque ela está ali, intacta, eterna. A solidão. Bakhita já não é
espancada. Não se deita no edifício dos escravos, mas tem, cravada nela
como uma estaca, a necessidade de algo diferente. De outra luz. Um pouco
desse amor que recebeu em casa de Stefano e Clementina e que, sendo tão
diferente da sua infância, tinha, no entanto, a mesma música. Mantém as
mãos nos bolsos do avental, quando desejaria estender os braços,
generosamente, com toda a força da sua juventude. Está presa na noite
quando sabe que existe uma luz, muito próxima, para a qual não se pode
virar. Nunca esqueceu a voz do consolo, a terra que lhe dizia que não era
justo. Abda. Não era justo e não era culpa sua. Então, deve haver algo
diferente para ela.

Da pequena fonte do centro do jardim, Mimmina chama-a. Grita


«Mamma!» e Bakhita não tem tempo de lhe ralhar: «É preciso dizer
Bakhita! E não Mamma!» A menina já está nos seus braços. Riem as duas de
felicidade e surpresa. Mimmina andou pela primeira vez! Deu os primeiros
passos para ir ter com a ama. Liberta-se dos seus braços, quer recomeçar.
Recomeça, cai e levanta-se, chora e ri, suja-se, esmaga as ores e assusta os
gatos. Não tem medo de nada, vê o mundo de pé. Bakhita sorri-lhe e sabe.
Hoje, a pequena Mimmina aprendeu a andar. Em breve deverá chamar-lhe
Alice. E Alice nunca cometerá o erro de lhe chamar «mamma». A voz do
muezim ressoa no céu como uma ordem rouca e dançante. Bakhita olha
para a menina e sabe que não crescerá aqui. Irá à escola, como todos os
lhos dos brancos. Sairá do jardim. Deixará Suakin. E ela? Onde viverá? A
quem pertencerá? Olha aquela rapariguinha que salvou da morte e que
mergulha as mãos na água da fonte, direita e orgulhosa sobre as pernas
minúsculas. Tem o vigor e a autoridade de quem descobre uma nova
liberdade.

Vive assim nove meses, nesse tempo incerto, esse hotel de passagem
onde, apesar da beleza dos dezoito anos, apesar da cor da sua pele, os
homens que serve não lhe tocam. Baixa menos os olhos. Quando reconhece
a ofensa na voz deles, olha-os brevemente. Ousa fazê-lo, durante alguns
segundos, e nos seus olhos não há nem desa o nem cólera, mas os homens
que fazem tentativas deslocadas em relação a ela recebem um olhar que diz:
«Conheço tudo isso há muito tempo.» Continua a ser um enigma. A
submissão casada com a força. É isso que intriga, como se esta escrava, esta
Bakhita, não estivesse no lugar certo. O seu senhor é cristão, ela nunca será
nem sua esposa nem sua concubina e, aparentemente, não virá a ter lhos
dele. Veem-na ocupar-se da lhinha do senhor, por vezes, mesmo quando
vem para o bar, segura a criança nos braços, como um macaco num ramo.
Esta escrava tem um lugar à parte. Fala pouco e a sua voz tem a
profundidade das grutas escuras, é uma criada de bar e ousa mostrar a
apatia daqueles que estão seguros de si próprios. Foge dos homens e
interessa-se pelos miúdos. Tem sempre nos bolsos um pedaço de pão, um
fruto para lhes dar, e também um gesto, uma mão pousada nas suas
cabeças, uma carícia na face. A senhora devia puni-la, pois todos aqueles
miúdos são contagiosos, arrastam diante do jardim do hotel a mendicidade
e as suas doenças de pele. Juntam-se diante dos portões como moscas no
suor. O jardineiro expulsa-os, porém eles voltam. Têm fome, ela alimenta-os
em vão, porque se multiplicam tão rapidamente como morrem.

Bakhita vive num tempo incerto, mas que avança. Os patrões afadigam-
se e fazem cálculos, e esses cálculos, um dia, dão um resultado. Aquele para
que trabalham dia e noite. O êxito. Não lhe dizem nada, todavia ela sente, vê
e, como compreende um pouco o veneziano, ouve conversas entre Maria e
Augusto. Há no ar um movimento de pânico e de esperança, uma mudança
de vida que se inicia na alegria nervosa das grandes decisões. Mimmina
também o sente, a parona bem pode dizer que lhe estão a nascer os dentes,
Bakhita sabe que não é isso que a faz chorar de noite. São os pesadelos.
Sabe-o porque têm os mesmos. Pesadelos de areia alta, das dunas em
círculos por cima delas com estacas de madeira cravadas em toda a volta, e
não há qualquer maneira de sair nem de ver o horizonte, estão de pé,
Mimmina e ela, nessas orlas cercadas, e cam lá. Imóveis, angustiadas e
incertas.

E depois, um dia, há as malas. Aquelas goelas abertas que se enchem


com as roupas da senhora e as de Mimmina. Regressam a Itália. É preciso
vender a propriedade e voltar porque agora é de nitivo: a família Michieli
instala-se em Suakin. Bakhita já descon ava, claro. A estalagem está sempre
cheia e a Parona Michieli reina, já não é a estrangeira de quem Zianigo
troçava. Aqui, ser estrangeiro é ser africano. Os outros estão no seu país. A
angústia de Bakhita desperta. É pobre e determinada, é uma luta entre o
medo e a sobrevivência e, tal como suplicara ao cônsul, pede à Parona
Michieli que a leve consigo para Itália.
– Demasiado caro, Bakhita.
Oferece as suas gorjetas. Maria começa a rir. Põe-se de joelhos. Maria
explode:
– Isso não!
Levanta-se, beija-lhe as mãos. Leva uma bofetada. A primeira da Parona
Michieli. Há alguns anos, mal teria sentido essa bofetada, primícias
habituais das chicotadas e das injúrias. Hoje, é uma violência que vem
atingir a sua vida e lembrá-la de que é menos do que uma criada: é uma
escrava. Imediatamente a seguir à bofetada, Maria e ela têm o mesmo
movimento e olham para o parque onde Mimmina brinca. A criança não
viu nada, está sentada de costas voltadas. No entanto, é mesmo ali que tudo
se joga. Em redor da criança. Maria quer fazer sozinha a viagem com a
lha. Podia deixá-la com a ama e evitar-lhe duas travessias esgotantes, mas
quer viver aquilo, quer estar sozinha com a lha. Vê-se chegar triunfante a
Zianigo, com a criança nos braços, ou melhor, dando-lhe a mão e
caminhando a seu lado. Gosta muito de Bakhita, mas tem raiva dela, como
os seres fracos têm raiva daqueles a quem devem muito. Bakhita olha para
Mimmina, que se diverte a tocar no seu pequeno tambor. Baixa os olhos e
diz:
– Vai fazer bem, Parona.
O vapor para Génova parte a 21 de junho de 1887. Maria pede a Bakhita
que lhe leve a bagagem e as acompanhe até ao porto. Quando sai do hotel,
reencontra a violência da cidade fervilhante de vidas escondidas e de
miséria exposta, onde se respiram a ameaça e a força. A claridade do céu
queima o olhar e o mar atrai como uma placa de prata aquecida ao sol. Há,
para lá das ruas a abarrotar e das mansões altas, terrenos vagos e campos
áridos, a selvajaria dos locais inexplorados; há cemitérios esquecidos e
hangares desertos, carcaças de barcos, depósitos de carvão; há sobretudo a
memória daqueles milhares de escravos nos tempos mais intensos do
trá co, e Bakhita sente-o: a terra treme por causa disso, a vida dos homens
roubados. Abid. Injusto. Injusto. Injusto… Caminha atrás da parona, que
leva a lha apertada contra si, toda vestida de branco, como para uma
cerimónia e é pena. A parona ignorará que o carvão em breve vai sujar
aquelas roupas tão pouco adequadas? Ela também se vestiu de branco, e dir-
se-ia uma noiva segurando nos braços uma batizada. Por cima do ombro da
mãe, Mimmina fala a Bakhita, palavras e bolhas, beijos e caretas. Bakhita
culpabiliza-se por não lhe ter repetido que iam separar-se, vê bem que a
criança não compreendeu. Sabe como é deixar a pessoa que amamos.
Passou a noite a vê-la dormir e a falar-lhe baixinho.

A chegada ao porto é a habitual do pânico e da brutalidade, como se


cada um fosse perder o lugar, não só no barco, mas também no mundo,
como se a vida estivesse em jogo agora. Talvez porque as pessoas dizem «até
à vista», ou mesmo «adeus», há esse rompimento que vibra no cais, na
escada de acesso ao navio e no convés. Bakhita não sabe se a parona a vai
deixar despedir-se de Mimmina, se vai deixar a escrava beijar a sua lha em
público. Dá as malas ao bagageiro e Maria volta-se para ela. Gostaria de ser
boa. Uma grande dama que não tivesse nada para ser censurado.
– Conto contigo para o bar, hem, Moretta?
– Sim, Parona.
Nos braços da mãe, Mimmina tenta agarrar o chapéu de Bakhita e esta
recua um pouco, quando gostaria de avançar de a apertar contra si.
– Mimmina, diz adeus a Bakhita!
Mimmina abre e fecha a mãozinha.
– Atira-lhe um beijo.
Mimmina atira-lhe um beijo. A mãe dá meia-volta e afasta-se. Bakhita
não teve tempo para a beijar. Vê-as afastarem-se no meio da multidão e ca
ali, direita e estúpida, empurrada, insultada, já não distingue nada nem
ninguém no calor daquela multidão, chocam com ela, pedem-lhe que se
mexa dali. Ela sente apenas que o coração vai rebentar, o corpo vacila sob o
sol brutal. E por cima desta incoerência e desta selvajaria, de súbito, ouve o
grito daquela que conhece como sua lha. É Mimmina que berra, sabe-o.
Pensa nos cânticos de separação que não serviam de nada, em todas essas
mulheres que viam partir os lhos e ca como elas, muda e sem direito, mas
o grito de Mimmina empola-se e em breve ouve a tosse em cima dele e
depois a as xia da cólera, o pânico que a faz ter soluços. Leva a mão ao
peito. Também ela tem dores.
– Uma birra! É uma birra!
A Parona Michieli está imóvel à sua frente, e Mimmina atira-se para os
seus braços.
– Sim, Parona, uma birra.
E Bakhita aperta a criança com tanta força que se diria que dará meia-
volta e fugirá com ela.
– É incrível como se tornou birrenta!
Há uma certa censura na voz da parona, medo e também uma imensa
pergunta: agora, que faço, eu?
– Não tenho o dinheiro da viagem.
– Não, Parona.
– Não tirei um bilhete para ti!
– Não, Parona.
– E nem sequer tens mala.
– Não é grave… Parona… A mala…
Mimmina, esgotada e con ante, adormece contra Bakhita. Finalmente
já não tosse, aquela as xia já passou. Transpira e o seu vestido branco já está
manchado. Bakhita sente o medo terrível da parona, não baixa os olhos,
suplica-lhe com o olhar, e o suor corre dos seus cabelos para o pescoço, daí
para as costas. Maria contempla a lha. E depois, como uma derrota,
murmura:
– Seria uma pena acordá-la.
Foi assim que Bakhita pôs o pé na escada de acesso ao barco. Apertava
contra si a rapariguinha birrenta que, sem o saber, acabava de fazer o que
Bakhita zera por ela um ano e meio antes: salvar-lhe a vida.
AveMariagratia plena… Dominus tecum benedictis… benedicta!
AveMariagratia plena…

De manhã e à noite, ajoelhada aos pés da cama, Bakhita recita a oração


com Mimmina. Foi a parona que o exigiu. Mandou-as aprender a Ave
Maria, o Pater Noster e o Gloria. Em latim. Depois de ter posto à venda a
propriedade, os móveis e os animais, perguntou-se como é que a lha
cresceria em África. Consultou o médico e o padre, um a seguir ao outro. O
médico recomendou uma dose de quinino pela manhã e o padre as três
orações essenciais, duas vezes ao dia. À força de repetições, e sem
compreender uma única palavra, Bakhita aprende as orações com
obstinação, e não é apenas de manhã e à noite, é também ao longo do dia
que as recita para as decorar. Em Zianigo, dizem que a Moretta se tornou
piedosa, não batizada, mas piedosa, porque as pessoas não podem passar
por ela sem a ouvir murmurar: «Pater noster, qui es in caelis», «Gloria in
excelsis Deo» ou «Ave Maria gratia plena». Já não lhe atiram pedras,
persignam-se lentamente à sua passagem e murmuram que é um milagre e
a própria Maria Michieli já não é olhada da mesma forma. Quase gostariam
dessa estrangeira, agora que vai partir e não voltarão a vê-la. Bakhita não
sabe porque é que a parona exige aquelas palavras de manhã e à noite, mas
apesar da di culdade para as xar sem as compreender, gosta desse rito que
se harmoniza com a contemplação do dia que vem e as suas con dências à
noite. E depois há a vozinha de Mimmina a quem ensina uma coisa. A
cumplicidade entre as duas reforça-se ainda mais no esforço e nos risinhos
histéricos proibidos, proibidos sim, porque aquelas palavras parecem graves
e devem recitá-las sempre muito seriamente à parona, que as ouve com uma
lassidão exasperada.

Estranhamente, se há alguém a quem aquilo não impressiona, é Stefano.


Para ele, o regresso de Bakhita foi um duplo choque, o da surpresa e o da
revelação: não tocara em vão, todos os dias em que esteve em Zianigo, a Ave
Maria no órgão da igreja. Rezou por ela intensamente e estavam ligados por
um amor lial inalterado. Mas está chocado por ouvi-la recitar, sem as
compreender, as palavras sagradas das orações. Assim, podem fazê-la
repetir o que quiserem, sem lhe explicar nada. Não é assim que se ensina
uma habilidade a um cão amestrado? Pensa que Bakhita merece melhor e
enraivece-se por ela compreender apenas as palavras habituais do
veneziano. É Clementina que, uma noite, tenta acalmá-lo e encontra talvez
a solução para o seu tormento:
– Stefano, devias alegrar-te.
– Alegrar-me? Quando a oiço recitar sem compreender? Ela diz «Sed
libera nosam lo» em vez de «nos a malo». «A malo», Clementina! «A malo!»
O mal, ela sabe o que é e não sabe pronunciá-lo!
– Não é assim que deves ver as coisas.
– Fico doente quando oiço aquilo! Sim, doente! A malo! A malo!
– Acalma-te! Farias melhor em aproveitar o facto de a Michieli baixar a
guarda para falar à nossa irmãzinha.
– E que devo fazer, hem? A tradução de latim para veneziano? Estás a
gozar?
Clementina vai à sua cómoda e pega num minúsculo objeto que estende
ao seu marido.
– Dá-o à nossa irmãzinha Moretta.
Ele olha para a mulher, espantado e acalma-se de repente.
– Achas?
– Tenho a certeza.
– Não vais sentir a sua falta?
– Não. Terei muito prazer.
– Mas era do teu pai…
– Stefano! Obedece-me, hem, por uma vez…

Ele observa Bakhita que, sentada no jardim, toma conta de Mimmina. A


criança brinca com Mélia e Chiara ao pé do grande carvalho. A pequena
Alice cresceu muito. É magra, ainda frágil, mas há nela uma força de vida e
é tão alegre que se reconhece pelo riso. O riso de Mimmina é como o seu
passo: anuncia-a. Tem a alegria das crianças nunca assustadas, sempre
protegidas.

Nessa tarde, Bakhita vigia-a, com um tricô na mão, porque nunca ca


sem fazer nada, as mãos estão sempre ocupadas com qualquer coisa.
Stefano acha que ela se pareceria com todas as amas das famílias burguesas
de Zianigo se não fossem a cor da pele e a sua calma, que as jovens italianas
não têm. E também, para ser totalmente honesto, o seu mistério. Tem esse
olhar lento e triste das mulheres que não vivem despreocupadas, um sorriso
profundo, de uma bondade distante. A sua beleza não atrai os jovens
italianos, a sua negritude é uma barreira natural. Entre eles, a Moretta não é
uma estrangeira: é uma singularidade. Senta-se a seu lado, ela arranja-lhe
lugar e aponta para Mimmina:
– Feliz!
– Sim. É feliz a tua pequena Mimmina. Muito feliz…
Ela dirige-lhe um olhar discreto e inquiridor, sentiu o seu incómodo.
Não se lhe pode esconder nada: ela sabe. Pelo modo como se sentou, o som
da sua voz, sabe. Tem qualquer coisa a dizer-lhe. Vai esperar. Tem essa
paciência de outra era, quase irritante para ele, o efervescente Stefano. Ele
hesita. Faz um pequeno gesto com a mão às lhas, vira-se para a Moretta e
ri um pouco, com as mãos afastadas e o ar de quem diz «brincam bem umas
com as outras, hem?» e essa linguagem gestual italiana é coisa que a Moretta
aprendeu muito rapidamente. Stefano contempla o céu, as nuvens chegam,
de detrás das colinas, a frescura instala-se no odor das ervas cortadas e das
rosas bravas. Bakhita pousa o seu trabalho e vai vestir um casaquinho a
Mimmina. Quando volta a sentar-se, ele tem o braço estendido para ela,
com o punho fechado. Bakhita para e espera, olhando sem surpresa para
aquele punho estendido. Então, ele abre a mão e diz-lhe:
– Aí tens, foi a Clementina que mo deu para ti. Vês? É um cruci xo, é
Nosso Senhor Jesus Cristo morto na cruz pelos nossos pecados, é o Filho do
Pai, o Filho de Deus, e por Ele seremos todos salvos. Claro que sei que a
Parona Michieli proíbe que eu te fale de religião, por isso tens de manter
isso em segredo, mas eu já não posso calar-me. Tu compreendes, porque, se
cares na ignorância da fé, tenho tanto medo por ti. Nem sequer és
batizada, que vai acontecer-te? En m, não digo isso para te inquietar, o meu
objetivo não é inquietar-te, mas aí tens. É o cruci xo da Clementina. Ela
recebeu-o do seu pai. Ele morreu. Deus tem a sua alma, mas ela está
contente, sim, muito, muito contente por to dar.
Mete-lhe na mão o pequeno cruci xo de madeira e metal, depois
levanta-se de um salto e grita com uma veemência perfeitamente deslocada:
– Mélia! Já te disse mil vezes para não deixares a tua irmã trepar à
árvore, mamma mia!
Bakhita olha aquele homem emocionado que acabou de lhe dizer uma
coisa incompreensível e aparentemente muito importante. Algo que não
podia guardar para si. É isso que compreende: ele deu-lhe um segredo. Olha
o cruci xo na palma da mão. Disse várias vezes «Clementina». É um
presente de Clementina. Já viu essa cruz, com aquele homem nela, nas casas
dos italianos, nas encruzilhadas das veredas, no cemitério onde estão
enterrados os bebés da Parona Michieli. Parou uma vez diante de um
calvário de pedra a cujos pés um ramo murcho deixava uma mancha de cor
um pouco triste. Contemplou o homem pregado. Não sabia que em Itália
também faziam isso aos escravos, e pergunta-se por que razão aquele é mais
representado do que os outros. Agora pergunta-se por que razão aquele está
na palma da sua mão. É um aviso? Um objeto protetor? Olha-o e depois
pousa-lhe um dedo em cima, a pequena cruz é de madeira e o corpo de
metal, tão magro, com o rosto alterado. Revê aqueles escravos que eram
pregados às árvores como punição e para que outros não pudessem lucrar
com eles. Aquele homem é um branco. É um italiano. Abafa um soluço.
Abandonou os seus. Kishmet nunca será salva e Binah talvez tenha morrido
de pancada, ou tenha sido encerrada num harém. As lágrimas correm-lhe
pelo rosto de criada bem alimentada. Jura a si mesma que, quando regressar
a Suakin, porque vão regressar em breve, ajudará o seu povo, ignora como
fará algo mais do que amar Mimmina e ser amada por ela. Algo mais do
que servir os homens no bar e dar um pouco de pão aos garotos no portão
do hotel. Tem dezanove anos, é adulta há tantos anos! E não faz nada para
devolver um pouco do que lhe é dado. Stefano volta para junto dela. Olha-a
e não pode impedir-se de a beijar, dois beijos que estalam de
reconhecimento nas faces molhadas da sua irmãzinha Moretta.

– Foi iluminada! – dirá nessa noite a Clementina.


– Iluminada?
– Estou a dizer-te! Encontrei-a em lágrimas, com uma mão sobre o peito
e o teu cruci xo na outra!
– Mas que lhe disseste?
– Tudo! Disse-lhe tudo!
– E que disse ela?
– Ela?
– Pois, sim, ela!
– Mas ela… chorava, não falava, chorava, mais nada! Tivera a revelação!

Não teve a revelação. Um pressentimento, quando muito. Essa


impressão, mais uma vez, de estar diante de uma porta e não poder abri-la.
Quanto a esse objeto cuja função desconhece, esconde-o. É a primeira vez
que esconde alguma coisa, que tem esse sentimento de posse. Tem a certeza
de que a parona lho tiraria, não pode explicá-lo, sabe e é quanto basta para
o esconder junto dos xailes e só o tirar de lá depois de Mimmina ter
adormecido. Tira o escravo cruci cado e fala dele à noite, mas a noite não
lhe responde, ressoa com o canto dos sapos, as disputas de bêbedos e os
relinchos dos cavalos no estábulo sob a sua janela. Os cavalos serão
vendidos em breve. Tal como a propriedade e todas as terras. Vai deixar
tudo aquilo. Aquela Itália tão pobre, onde os camponeses não vivem mais
de trinta e cinco anos e os jovens fogem em massa para países ainda mais
distantes do que o Sudão. Giuseppe, o lho mais velho de Stefano, explicou-
lho. E também desdobrou, como zera o cônsul, uma grande folha com as
terras e os mares. É assim que tenta ensiná-la a ler, com as letras dos países.
É muito difícil. E ela não xou o A de Austrália, o B de Brasil e o C de
Canadá, essas terras de exílio para os italianos sem trabalho. É negra como
a tinta, mas não sabe escrever. E todos à sua volta falam línguas novas, as
palavras são como os países no mapa, em mutação e longínquas, não pode
ligá-las a nenhum dos sentimentos que a habitam, e isola-se nessa incerteza.

Estamos em agosto, a parona anda com um humor execrável, Stefano


vem vê-la quase todos os dias para concluir com ela a venda da
propriedade. As negociações com o comprador não têm m e tudo é
regularmente posto em causa. Maria está desesperada e telegrafa a Augusto,
que se impacienta em Suakin. As malas e os baús estão prontos. Os móveis
cobertos com lençóis brancos. Os quadros e os serviços de louça mais
bonitos foram vendidos. As janelas já não têm cortinas. Os soalhos estão
nus e os tapetes enrolados ao fundo das divisões. Os meses passam. Chega o
outono. O comprador contesta sempre uma quantia ou um papel, exige
falar com o dono da casa e não com o seu intendente ou a sua mulher. É um
assunto sério, estão em jogo quantias avultadas, o clima ca tenso. O
inverno é precoce, desenrolam-se os tapetes, manda-se trazer a lenha, as
negociações estão em ponto morto. No nal do ano, em novembro de 1888,
Maria Michieli decide, aconselhada por Stefano, partir para Suakin de
forma a apresentar os papéis a Augusto e obter a sua assinatura nos
documentos mais urgentes. A viagem é cara, partirá sozinha com Mimmina
que, em breve, fará três anos e suportou bem a primeira viagem. Hesita
quanto a vender Bakhita a uma família rica de Mirano, a pequena cidade de
que depende Zianigo. Bakhita é bem conhecida lá e apreciada por todos,
que a viram tantas vezes com Mimmina, séria e trabalhadora, uma pérola a
quem não se paga qualquer salário, que nunca tem folgas, trabalha inclusive
de noite e que, falando pouco veneziano, é discreta como uma coruja
empalhada e robusta como são todas as negras. Todavia, é precisamente
perante o entusiasmo imediato das burguesas de Mirano que Maria desiste
de vender a Moretta. Mas que fazer dela durante a sua ausência?

Faz a pergunta a Stefano, que não quer acreditar no que ouve. É a


Providência que lhe bate à porta! Foram as suas orações que foram
atendidas! Bakhita vai ser libertada nalmente da dependência da Michieli.
Tem um espaço de ação e sente-se como um garoto prestes a apanhar uma
borboleta rara. São necessárias muita delicadeza e celeridade, muita calma e
con ança. Num primeiro momento, propõe a Maria acolher a Moretta em
sua casa. Clementina e as crianças alegram-se antecipadamente: dormirá
com as duas mais novas, Mélia e Chiara, que a conhecem tão bem. Não
pede dinheiro para a pensão e quando regressar para vender
de nitivamente a propriedade, Maria só terá de vir buscar a escrava a casa
dele e partir com ela. Maria acha a proposta honesta. Stefano tem toda a sua
con ança. Aceita.

Contudo, Stefano mentiu. Não tem a intenção de acolher Bakhita em


casa. Mentiu e nem sequer tem a impressão de cometer um pecado. É um
mal para um bem, porque o que aquele homem quer, sendo tão piedoso
como obstinado, é a salvação da irmãzinha Moretta.

O assunto é sério. Aquilo de que Bakhita precisa é de especialistas.


Pessoas feitas para isso. Giuseppe bem pode fazê-la repetir o A de Austrália
e o B de Brasil, que ela nunca escreveu uma única letra nem leu uma só
palavra. Quanto ao cruci xo, é impossível saber a sua in uência sobre ela.
Quando recitam o Benedicte antes da refeição e ela espera pacientemente, de
cabeça baixa, que tenham terminado, por mais que termine com um
enorme sinal da cruz, não vê a relação que tem com o cruci xo que lhe
ofereceu. Melhor, troçam dele! As suas lhas começaram a rir quando, no
outro domingo, após o «Ámen», fez um sinal da cruz tão grande e insistente
que Clementina foi atingida com o cotovelo dela num olho. Especialistas,
sim, são o que se precisa. Especialistas de ensino e, sobretudo, especialistas
do catecismo. Pensa imediatamente nas Irmãs da Caridade Canossianas,
que dirigem o Sagrado Instituto dos Catecúmenos de Veneza. Tal como
outras congregações de Itália, essas religiosas instruem e preparam adultos
para o batismo e recolhem crianças abandonadas. A Irmã Madalena de
Canossa, fundadora da ordem, nascida marquesa no início do século XIX,
abriu o instituto de Veneza à sua congregação em 1831. Quanto ao instituto,
é tão antigo como a Sereníssima e foi fundado para instruir e batizar na
Verdade católica os comerciantes e soldados estrangeiros que
desembarcavam nas suas costas.

E era aí, no instituto canossiano de Veneza, que Stefano desejava fazer


entrar Bakhita como pensionista, durante o tempo que Maria Michieli
levasse a viajar para Suakin e regressar. Assim, quando partisse de novo
para o Sudão, estaria catequizada e batizada, e ele poderia dormir em paz.
Tal com a da adoção, esta ideia do batismo nas canossianas obceca-o e
atormenta-o, tanto mais que conhece a aversão de Maria Michieli a tudo o
que se relacione com a religião. Decide mentir mais uma vez:
– Signora, pensei numa coisa… A propósito da Moretta…
– Já não ca com ela?
– Fico. Claro que co. Mas penso em si, sobretudo. A senhora que é
uma mulher tão merecedora.
– Sim.
– Uma mãe exemplar, tão corajosa…
– Aonde quer chegar?
– A Moretta… ajuda-a bem no hotel, lá em África?
– Já lhe disse que não me vou sobrecarregar com ela nesta viagem, é
demasiado caro, deixo-a aqui!
– O que quero dizer, signora, é que a Moretta, quando regressar a África,
ainda a vai ajudar no hotel, não é verdade?
– Pois, sim!
– A Mimmina vai crescer. A Moretta vai ser-lhe mais útil no bar.
– Evidentemente!
– Então, acredite, é mais do que necessário um pouco de educação.
– De educação? Mas que educação?
– Hum… saber ler. Escrever. Contar.
– Para que é que uma criada precisa de saber ler?
– Quando a senhora receber correio, encomendas, caixas, se a Moretta
souber ler, vai ajudá-la mais do que pensa.
– Ouça, Stefano, conheço-o há dez anos, então diga-me o que está por
detrás de tudo isso porque tenho muitas coisas para fazer. E muito mais
importantes do que saber se a Bakhita vai, um dia, saber decifrar um
sobrescrito ou uma caixa de whisky.
Então, Stefano fala do Instituto dos Catecúmenos, onde não só
instruirão a Moretta como também a vigiarão, ao contrário de em sua casa,
onde será cobiçada como criada. En m, ele e Clementina não poderão
vigiá-la durante todo o dia, ela tem dezanove anos, é um pouco arriscado,
apesar de tudo. Sabe Deus o que pode passar-lhe pela cabeça, ideias de
liberdade, quem sabe? O povo não é assim tão submisso e a Moretta
também não e pode ser alvo de todo o tipo de in uências. Arrepende-se um
pouco deste último argumento. Uma vez mais, deixou-se levar. En m, o
essencial é o tiro acertar no alvo… Mas Maria Michieli não é parva. Embora
os argumentos de Stefano sejam certos, também sabe que, no Instituto de
Veneza, as freiras vão falar de religião à Moretta, de manhã à noite. Também
sabe que, excetuando as coisas mais elementares do quotidiano, continua
sem compreender o veneziano, mal sabe fazer uma compra e recita as
orações como uma lista de legumes para cozinhar. Todavia, o facto de car
encerrada durante a sua ausência é tentador. Pede alguns dias de re exão.
Vai telegrafar a Augusto. Deseja re etir um pouco.
Contra todas as expectativas, aceita. Stefano, pela primeira vez, ca sem
palavras. Pede-lhe que repita. Ela repete. Concorda com a colocação de
Bakhita nas Canossianas de Veneza durante o tempo que demorar a viagem
a Suakin. Mas com uma condição: ele encarregar-se-á de todas as
diligências. E há bastantes a fazer. Bakhita é adulta, mas, enquanto escrava,
não tem nenhum estatuto, um único documento, nem sequer o de uma
compra, uma vez que foi oferecida a Maria Michieli. Para a administração,
nada prova a sua existência. É ao mais alto nível, junto das suas relações
in uentes, que Stefano vai defender esta causa. Fala na necessidade de
converter os in éis, da África salva pela África, um slogan muito em voga.
Fala no Filho Pródigo, na Virgem Negra, escreve aos ricos eclesiásticos e aos
altos funcionários da administração, retoma o contacto com uma prima
cuja irmã recebeu ordens e, por m, obtém a concordância do prior do
instituto e encontra-se com a madre superiora, Madre Luigia Bottissela.

A Bakhita não explicam nada. Mélia e Chiara repetem-lhe que vão


acompanhá-la ao Collegio, o Colégio, mas ela não sabe o que esse nome
signi ca. Sabe que não vai participar na viagem a Suakin, mas que em breve
será lá que viverá para sempre. Irá juntar-se aos Michieli. Também sabe que
Mimmina vai crescer e que então mudará, com toda a certeza, de senhor. O
tempo sem violência não é mais do que um pequeno descanso na sua vida
de escrava. Obedece, sem saber para onde a levam e, mesmo com as pessoas
que ama, está sempre um pouco perdida. Vive no tempo dilatado da
incerteza, que é simultaneamente muito lento e muito condensado, um
tempo que avança por saltos sucessivos, como um caminho que provoca
solavancos e depois se prolonga numa monotonia sem pontos de referência.
Percebe que Stefano está feliz, feliz por ela. Ama-a e protege-a. Mas não
sabe de quê.

Vão todos seis a Veneza: Maria Michieli, Stefano, as lhas Mélia e


Chiara, e Mimmina, nos braços de Bakhita. Veneza não ca longe de
Zianigo, três dezenas de quilómetros. Tomam um comboio ofegante que
para quando os passageiros pedem e faz tanto barulho que é inútil tentarem
conversar. Todos cam com aquele ar tenso, um pouco altivo, das grandes
saídas. Atravessam o campo como seis aperaltados que nunca tivessem
viajado. Mimmina adormeceu no colo de Bakhita que lhe protege a cabeça
dos solavancos do comboio, com a sua longa mão pousada sobre ela. Pensa
que em breve vai deixar a pequena que, dentro de alguns dias, partirá com a
mãe para Suakin. «Alguns dias é muito curto, já não estarão juntas no
domingo», foi o que lhe explicou Stefano. O domingo foi o ponto de
referência que ele encontrou. Mimmina respira contra o seu peito. A
respiração profunda, aquele abandono, são esses os verdadeiros ritmos da
vida de Bakhita. Esse amor simbiótico e con ante. Ensinou-lhe tudo o que
uma mãe ensina ao lho, e partilhou com ela a contemplação da beleza.
Olharam juntas o dia que vem e o dia que termina, contemplaram o céu
como um ser superior, assistiram do quarto às cóleras da tempestade que
transformava a paisagem, abriram a janela quando o sol voltava e os odores
eram tão vivos como os de um fruto aberto com a faca. Bakhita ensinou
Mimmina a chamar os animais com sons breves e estalidos da língua e,
quando os burros e os cavalos vêm ter com ela, pousa a mão nas cabeças
dos animais submissos diz «Grazie», como faz Bakhita, porque é preciso
agradecer sempre aos animais que trabalham para os homens.

No comboio para Veneza, nem uma nem outra compreenderam que vão
despedir-se. É uma saída juntas, a Veneza, onde Bakhita já veio há muito
tempo, quando Mimmina não tinha ainda seis meses e lembra-se do
comboio por cima do mar, das ruas tão pobres, das barcas dos pescadores e
das mulheres que tiravam água dos poços em pracetas onde se vendiam
ervas e pão. A pobreza é igual em todo o lado. Reconhece-a rapidamente. É
um olhar que nada pode surpreender, um grande cansaço. Crianças
descalças. Mulheres demasiado carregadas e homens com a cólera
reprimida. E em Veneza, tal como em Zianigo, tinham tido medo dela e,
nas ruelas nauseabundas onde o sol não entrava, ela apertava contra si a
pequena Mimmina, respirando o seu odor doce de bebé.

Stefano toca a sineta do instituto, um longo edifício amarelado de dois


andares, com janelas baixas, num dos extremos de Veneza, no 108 do
Dorsoduro, na margem esquerda do Grande Canal. Bakhita dá a mão a
Mimmina, que acordou mal o comboio chegou, e atravessou com ela as
pontes de madeira desta cidade pousada sobre o mar, como Suakin, com o
céu rasgado pelas cúpulas e os mastros dos barcos.

A porta do instituto abre-se, Stefano apresenta-se à portinaia, a irmã


porteira, que os convida a entrar. Bakhita não conhece estas freiras cujo
hábito não se parece com o das religiosas que vê pelas ruas, em grupo e
veladas como as mulheres do Oriente. Estas usam um xaile por cima do
vestido e a touca das mulheres do povo. Introduzem-nos numa longa
divisão fria com as paredes cobertas de madeira escura, a imensa lareira
está vazia, há uma grande sala, um canapé, algumas cadeiras alinhadas
contra a parede, mas todos cam de pé e em silêncio. Bakhita vê o cruci xo
dependurado da parede, um Cristo pálido com o rosto coberto de sangue.
Não sabe que está no parlatório. Não sabe que a própria vida acabou de
mudar de uma forma tão radical como quando os dois raptores a levaram
da sua aldeia.
Nesse parlatório, Maria Michieli fala longamente com a Madre Luigia
Bottissela, a madre superiora, a quem se juntam muito rapidamente outras
freiras, todas chamadas «Madre», atentas e escondendo o choque que lhes
causa Bakhita, aquela rapariga espantosa e totalmente negra. Falam baixo e
gravemente, com breves acenos de cabeça, cheias de compreensão. Stefano,
de chapéu na mão, mal intervém, deixa a Signora Michieli explicar,
apresentar os documentos, o pequeno enxoval de Bakhita. Tudo se passa
como previsto. Ela mantém-se um pouco afastada, com as crianças, como
deve fazer uma criada. Stefano compreende que ela não percebeu nada e
tem a sensação violenta da traição. Gostaria de se aproximar dela e falar-
lhe, mas sabe que não deve intervir, Clementina disse-lho na véspera:
«Deixas a Michieli dirigir as operações, precisamente como se a decisão
fosse dela. Por uma vez na vida, calas-te, Stefano!» Ele também se mantém
mudo e ansioso. O que vai ela compreender desta mudança? Irá pensar que
não a queria em sua casa? Se ao menos pudesse contar-lhe a batalha travada
para ela estar no instituto naquele dia. Por m, Maria aproxima-se de
Bakhita.
– Ficas aqui. É a tua casa.
Faz-se um silêncio. Então, Bakhita olha para Stefano, que não pensava
que a coisa fosse dita assim, de uma forma tão abrupta. Vê que não
compreende, que se sente apontada, isolada. O pânico invade o seu olhar.
Aperta Mimmina com um pouco mais de força contra si. Ele aproxima-se
sorrindo, lentamente mistura as palavras Suakin, partida e casa. Deve
compreender que é partir para o Sudão ou car aqui. Agora. Com as Madri,
que já se ocupam de outras raparigas como ela. É a palavra «Madre» que
Bakhita retém. Repete:
– Madre? Mamma?
A madre superiora aproxima-se dela, sorri-lhe, dando-lhe as boas-
vindas. Bakhita lê instantaneamente no seu olhar quem é esta idosa. É boa e
sabe muitas coisas. Sorri, por sua vez, e inclina o rosto. Todavia, não pousa
Mimmina no chão e Stefano vê o que a Michieli nge não ver. Com um
suspiro de alívio, ela agradece às freiras, compõe o chapéu e pede às três
meninas que se despeçam. Mimmina enterra suavemente o rosto no
pescoço de Bakhita. Maria aproxima-se, xa os olhos nos da ama. É uma
ordem.
Bakhita sabia que deixaria Mimmina durante o tempo da sua viagem a
Suakin, mas não sabia que seria agora. Tem a impressão de cair uma vez
mais, de reencontrar a solidão, como um fato gelado. Crava dentro de si a
dor que sente como um punhal no ventre e pousa a criança no chão,
suavemente. Empurra-a um pouco em direção à mãe, que a espera.
Mimmina avança para se refugiar de novo nos seus braços. Maria puxa-a
bruscamente para si. Desta vez, não se deixará amolecer por uma birra, aqui
não, diante de todas aquelas religiosas a quem vai mostrar o que é uma mãe.
Silva entre dentes: «Tu vens!» E puxa a pequena pela mão. A criança grita
que está a magoá-la, e então Maria toma-a nos braços com um gesto forte,
autoritário. «Cala-te, ouviste?!» A pequena grita e soluça. Bakhita recua sem
deixar de a olhar. Já não pode fazer nada por ela. Nem sequer consolá-la.

Stefano está petri cado, Mélia e Chiara começam a chorar também,


enquanto Mimmina estende os braços para Bakhita, berrando. Os gritos
ecoam no parlatório, Maria hesita entre a cólera e a humilhação. As freiras
entreolham-se com uma pequena estupefação e tentam intervir, alguém vai
buscar água e também uma guloseima para a criança, puxam-se as cadeiras,
sentam-se, mas Maria já não consegue segurar Mimmina, que se estica e lhe
martiriza os joelhos com os pezinhos furiosos, com todo o corpo esticado
para Bakhita, cujos olhos as irmãs veem iluminados pelas lágrimas. Estão
perante uma dor verdadeira e a Signora Michieli bem pode falar de birras e
de criancices, veem bem que se trata de algo diferente. Instala-se um
desconforto, como um desacordo silencioso. A madre superiora murmura
que, infelizmente, não vai poder car com a Moretta. Ela tem de ir-se
embora com a pequena patroa. Maria aquiesce a contragosto, é mais uma
derrota, mas sim, vai ter de levar para África a ama da lha, que corre o
risco de car doente por causa da separação. Sempre aquele medo da morte,
aquela chantagem e, para cúmulo, nunca está sozinha com a lha! Bakhita
ouve sem compreender, mas vê o medo e a dor de cada um. Será culpa sua?
Ela não disse nada. Não fez nada. Está disposta a obedecer. Se ao menos a
deixassem consolar a pequena… Stefano levanta-se de um salto, desta vez
vai intervir, está fora de questão a irmãzinha Moretta não ser batizada, está
fora de questão estar tão perto do objetivo e tudo se malograr agora, vai
salvá-la, custe o que custar!
– É impossível!
Viram-se para ele, o único homem do grupo que quase tinham
esquecido.
– Stefano, vês bem que a minha lha precisa da ama. Seria cruel separá-
las.
– Sim, signora, seria cruel separá-las, estou de acordo, seria cruel.
– Então, partamos e não falemos mais nisso, estou extenuada. Toda esta
movimentação para nada!
Tornam a apertar os casacos, a pôr os chapéus. Maria Michieli faz um
sinal com a cabeça a Bakhita que signi ca «Avante!», mas esta não se mexe.
Inerte e sem voz, ca ali, não sabe a que ordem deve obedecer, e eis que
Stefano se lança de novo:
– Há uma solução! Tão simples e tão… prática. Para todos!
Maria Michieli suspira olhando para as freiras, com ar de quem diz
«Não lhe liguem», e abrem-lhe a porta. Stefano barra-lhe a passagem:
– A pequena Alice pode car aqui durante o tempo da sua viagem a
Suakin, signora. Deixe-a aqui. Será instruída também, quando regressar ela
saberá muitas coisas, as crianças aprendem rapidamente.
– Partir para África sem a minha lha?
– Não lhe imponha o cansaço da viagem…
Maria está estupefacta. Humilham-na sempre. Comunicam-lhe sempre
que é impossível que a lha viva consigo. É uma mãe de mãos vazias. De
boa vontade vã. Durante o tempo que dura a sua estupefação, Mimmina
refugiou-se nos braços de Bakhita. Volta o silêncio. Só se ouvem as
fungadelas da criança que Bakhita acalma com palavras ternas, carícias no
pescoço. Mélia e Chiara aproximam-se delas e agarram-se à túnica da
irmãzinha, transtornadas pelo que se passa, os desentendimentos entre os
adultos e, sobretudo, a emoção do pai, que perde a autoridade habitual
quando se dirige à Michieli.
Bakhita não sabe, mas, nesse momento, parece-se com a mãe. Uma
árvore e os seus ramos. Com aquelas crianças agarradas a si, é bela, de uma
beleza aberta, de uma humanidade profunda. A madre superiora vê isso.
Pergunta:
– Como quer que a criança que aqui, signor Checchini? Não pode ir
para o edifício das crianças abandonadas. Nem para o dos adultos não
batizados.
Contudo, quando faz essa pergunta, já tem a resposta. Sabe que não é
ela que tem de a dar. Nem o signor Checchini. A resposta tem de vir da
Signora Michieli, aquela pobre mulher que não percebeu nada. Aquela mãe
impotente.
E Maria Michieli, com o seu medo terrível, subterrâneo e culpado, deixa
a lha com a ama. Aportará sozinha às margens de um país que, sem ela,
lhe parece já um sonho abortado.

A 29 de novembro de 1888, Bakhita e Mimmina entram juntas no


Sagrado Instituto dos Catecúmenos de Veneza. O próprio Stefano paga a
pensão de Alice Michieli, isto é, uma lira por dia e, tal como zera com a
sua irmãzinha Moretta, iniciou as diligências e obteve os documentos
necessários, o que não era tarefa fácil, porque seria realmente a primeira vez
que uma criança batizada iria viver com a ama negra nos catecúmenos.

Nesse dia, quando a portinaia fechou a porta atrás da Moretta e da


rapariguinha, nenhuma das três poderia imaginar que Bakhita chegara
nalmente a casa.
No primeiro dia, Bakhita aguarda as ordens. Imagina que aqui, como
nos outros lados, vai servir os senhores. Com Mimmina a seu lado, fará a
lida da casa, lavará a roupa, cozinhará, cuidará do jardim, fará trabalhos de
costura ou bordará, tudo o que quiserem. Porém, no primeiro dia, não lhe
pedem nada. Pergunta-se se a Parona Michieli explicou bem. Escrava. Abda.
Aquelas religiosas saberão o que é? Prosterna-se aos pés da superiora como
fazem as orientais, com parte superior do corpo para a frente, a fronte
contra o solo, as mãos bem esticadas. Porém, a madre superiora levanta-a,
sorrindo. É incompreensível.

De tarde, ca sentada no claustro em cujo centro Mimmina joga o jogo


das pedrinhas e da macaca, que Bakhita lhe pede para fazer em voz baixa,
porque reina aqui uma doçura estranha, que procura compreender. O
claustro é de uma limpeza e de uma calma fora do comum. Os pequenos
nichos nas paredes estão enfeitados com hera e estatuetas, oliveiras um
pouco delgadas crescem ao lado de loureiros rosados sem ores e de
limoeiros sem frutos nesta época do ano. Apanhadas pelo vento de Veneza,
folhas vermelhas rolam pelos pavimentos do claustro. Alguns regadores
estão pousados ao lado de uma tesoura de podar e uma vassoura, tudo é
limpo e preciso. O silêncio só é interrompido pelo sino que ritma as horas, é
um ruído frágil comparado com os sinos pesados das igrejas da cidade, que
Bakhita ouve bater para lá dos muros do instituto. A cidade, tão perto,
parece tão longe. Este local é um abrigo, sente-o, um refúgio. Demora
algum tempo a compreender que não há uma única voz masculina. Nem
um único grito. E, excetuando os gatos desatentos no telhado, também
nenhum animal.

Por cima do claustro, há uma varanda de pedra e, na fachada, em dois


andares, estão alinhadas janelinhas com portadas azuis, idênticas e
simétricas. A tarde continua a ser suave e deserta. De tempos a tempos,
uma irmã passa no claustro e inclina o rosto na direção dela. Bakhita vê que
cada uma esconde como pode o choque que lhe provoca. Então, sorri
timidamente, de mãos abertas, num gesto que signi ca, com fatalismo,
«Pois sim, sou negra. Muito negra. É assim. Perdão.» Vê o seu embaraço e as
faces muito pálidas enrubescerem. Só uma ousa um risinho gentil perante
esse gesto italiano vindo de uma negra mais escura do que o inferno.

Ao nal da tarde, o ar torna-se seco, o sol raro, Bakhita tem frio, imóvel
naquele banco, mas não sabe para onde ir. Continua à espera, com uma
paciência submissa, e então, de repente, ouve o cortejo. O sussurro.
Reconhece-o e o coração para. Levanta-se para ouvir melhor e quando vê
passar as raparigas em la, conduzidas por duas irmãs, agarra bruscamente
Mimmina contra si. A criança grita, mas Bakhita aperta-a e esconde-a tanto
quanto pode com os braços. Com o rosto virado contra o seu, obriga-a a
calar-se, quase a as xia tentando salvá-la. O cortejo passa, umas quinze
rapariguinhas de avental cinzento, tamancos nos pés, sem corrente, e
brancas como as escravas mais caras de África, as circassianas. Para onde as
levam? Porque é que as freiras as compraram? Aquelas rapariguinhas vêm
de algum lado, vê nos seus olhares que procuram um apoio, esperam uma
ajuda. Aquelas crianças estão aqui sem as famílias. Será que as irmãs as
compraram para as alforriar, como fazia o cônsul? Passaram. O ruído
arrasador dos tamancos afasta-se. Bakhita pousa de novo Mimmina no
chão, a criança bate-lhe e diz-lhe que ela é má e que já não gosta dela.
– Já não gostas de mim?
– Não.
– Eu ainda te amo.
– Não quero.
– Impossível. Ainda te amo.
Mimmina olha-a de esguelha com olhos de criança furiosa e ávida. E
depois volta, serena, às brincadeiras com terra e pedras, os seus jogos de
imaginação e devaneios, sob o olhar doce e lento daquela a quem se esforça
por não chamar mamma.

O dia passou e não zeram mais do que estar juntas. Ainda não jantam
no refeitório com as outras rapariguinhas catecúmenas, jantam na cozinha,
onde Bakhita não consegue engolir nada. Dão-lhe um prato de sopa e ela
sente muita vergonha por estar ali sentada sem fazer nada. Tem lágrimas
nos olhos de tal modo se sente constrangida. Quem poderia explicar-lhe ao
que a destinam? As irmãs pensarão que ela não vale nada? Que não sabe
fazer nada e que não se pode pedir-lhe nada? Onde estão as irmãs que viu
passar? E as meninas? É uma grande preocupação, gostaria de perceber por
que razão a cozinheira é tão doce e porque se sente tão sozinha neste
mundo utuante e incerto.

À noite, dorme com Mimmina num quarto só para elas, no segundo


andar. A janela dá para a parede do edifício fronteiro, do outro lado do
canal, e as traseiras da basílica de Santa Maria della Salute. Os pescadores
que passam de barco sob a janela gritam em veneziano, um veneziano
diferente do dos camponeses de Zianigo, mas ela reconhece pelo tom rude
as discussões ou os cumprimentos, as vozes dos homens que se encontram.
A noite de novembro é fria e precoce, as gaivotas passam no céu escuro
como sombras furtivas, e a bruma recorda a presença do mar. Com a testa
encostada à vidraça e a pequena Mimmina nos braços, Bakhita sente-se
protegida. Juntas, como é hábito, veem a noite cair. A primeira que vir
aparecer a Lua ou uma estrela ganha. Mas aqui, ao contrário do que
acontecia em Zianigo, há apenas um pedaço muito pequeno de céu. Bakhita
cantarola e Mimmina pousa a mão na garganta dela, pois gosta de senti-la
tremer na palma da mão. Ri e Bakhita desce mais nos graves, porque o que
quer, todos os dias, é ouvir o riso da criança. A sua vida está cheia de ritos e
desde há alguns meses há o das três orações latinas que recitam ajoelhadas
aos pés da cama e de mãos postas. Por vezes estão distraídas e noutras
particularmente aplicadas. Bakhita treina a pequena que raramente quer ir
até ao m e diz Ámen após as primeiras frases. «Ámen não», diz Bakhita.
«Ámen, sim», responde a criança. E Bakhita continua, de qualquer maneira.
Nessa noite, depois das orações, Mimmina mete-se na cama de Bakhita. É a
primeira noite longe de casa, está triste, os lençóis são ásperos, a almofada
cheira a naalina, aperta-se contra a ama e, para adormecer, acaricia com
uma mão a tatuagem do seu braço, como um pequeno caminho na areia e
chucha no polegar da outra mão. É assim que adormece, envolvida nessa
paisagem familiar que é o odor da sua ama e os cabelos que lhe fazem
cócegas no pescoço. Ali não pode acontecer-lhe nada.

À aurora, um sino desperta Bakhita. Deve ser muito cedo. O dia não
nasceu, mas ela ouve sempre os ruídos abafados e os movimentos mais
furtivos. Levanta-se devagar para não acordar a menina, entreabre a porta e
vê-as. Rosto baixo, mãos nas mangas, as irmãs caminham na noite, ao longo
do corredor, parecem deslizar na penumbra fria e eis que desaparecem atrás
de uma grande cortina de veludo preto. Bakhita entra no quarto e pergunta-
se o que irão procurar atrás daquela cortina. Não pode deixar de pensar nas
rapariguinhas de batas cinzentas e tamancos de madeira. Imagens de
zéribas e mercados, de caravanas e de haréns surgem como facas,
recordações que pensava já não ter, e a angústia regressa, intacta, como se
tivesse sete anos. Foi posta naquele quarto no meio do nada: quem
responderia se gritasse por socorro? Olha para Mimmina. Rosto familiar
que lhe lembra quem é: tem dezanove anos, chama-se Bakhita, é a ama
daquela rapariguinha que se chama Alice Michieli e vive em Zianigo.
Repete a si mesma essa realidade, mas as recordações estão ali deitadas aos
pés da cama, o passado é um cão el. Uma aldeia em chamas. Um pacote
atrás de uma bananeira. A solidão. E o medo, o medo que cresce dia após
dia como uma paisagem nua.

Depois ouve. É suave e misterioso. Lento e um pouco triste. Sai de novo


para o corredor, com os pés descalços. Apura o ouvido. É o canto das irmãs.
Uma litania aguda, quase tímida. Aquelas mulheres levantaram-se para
cantar durante a noite. Ouve-as e a sua angústia, lentamente, dilui-se no
canto. O seu corpo distende-se. A respiração desbloqueia-se. O canto das
irmãs é claro e a cortina de veludo, leve como uma parede de areia e de
vento. Por cima do claustro, há aquele quadrado de céu nos primeiríssimos
clarões do dia, que pertence àqueles que saem para o mar, trazem o gado
para a rua ou trabalham a terra. Aqueles que falam pouco e trabalham tanto
que morrem por causa disso sem sequer se espantarem. Contempla o céu,
será manhã em Olgossa? Uma idosa estará sentada no tronco de um
embondeiro derrubado, à espera do dia, das tarefas a realizar, e de tudo o
que nunca mais regressará?

As irmãs apercebem-se muito rapidamente de que a Moretta recita em


latim sem o compreender, que não conhece o nome de Deus nem o do
homem cruci cado, que não sabe ler nem escrever nem contar, e que a sua
linguagem, feita de os sólidos e díspares, exige antes de mais ser escutada.
«É como separar as lentilhas ou mondar a terra», diz a Madre Agostina, que
é uma mulher simples e sensata. «Uma questão de tempo e atenção»,
responde a madre superiora. O que vem a dar na mesma coisa.

Tudo começou na manhã em que a Madre Teresa se aproximou da


Moretta e de Mimmina, ajoelhadas ao pé da cama e que recitavam um
incompreensível Pater Noster interrompido pelos Ámen sim intempestivos
da pequena e os Ámen não da sua ama. Era a oração mais estranha alguma
vez ouvida, mais do que uma ofensa, um galimatias, a ignorância levada à
blasfémia. Docemente, a irmã aproximou-se e explicou à Moretta:
– Pater. Compreendes. Pater. Diz outra vez. Devagar.
– Paternosterqui.
– Não. Só Pater. É Padre. O Pai. Diz outra vez.
– Padre.
– Muito bem. O Pai. Falas ao Pai.
– Eu?
– Tu. Todas as manhãs e todas as noites, Bakhita, falas ao Pai.
– Ao Pai?
– Sim. Aquele que está in caelis. In cielo. No céu!
– No céu?
– É isso! No Céu e na Terra!
– A terra… sim…
– Bakhita, compreendes? O teu Pai está no Céu e na Terra. E tu também,
Mimmina, o teu Pai está no Céu e na Terra.
– Não! Está em Suakin!
– Não. Está no Céu e na Terra. E o meu também. E o da tua mamã
também. E o da Bakhita também. E o da minha mãe…
– Ámen siiiiim! – interrompe Mimmina.
Segue-se um silêncio desolado e um profundo sentimento de
impotência. Madre Teresa vai sair, tão dececionada. Falhou. Então, de
súbito, na soleira da porta, vira-se. O seu hábito faz um barulhinho de ave
que levanta voo e, com uma voz que desejaria que fosse menos desesperada,
exclama:
– Dio! Dio! Deus!
E espera uma reação que não vem. Dio é uma palavra que Bakhita
conhece, está em todas as frases em Itália, como Allah estava em África.
Deve ser a tradução. E para consolar essa freira que parece ter tanto
desgosto, diz-lhe, com uma voz grave que pretende que seja
tranquilizadora:
– Allah akbar.

A madre superiora pede à Madre Marietta Fabretti que se ocupe


pessoalmente da Moretta. Essa freira de cinquenta e quatro anos, assistente
superior das catecúmenas, é uma mulher de natureza alegre e dotada de
uma grande paciência. A primeira coisa que faz é não perguntar nada. Não
mandar recitar ou ensinar nada. Começa pelo início. Atrás da cortina de
veludo negro. Atrás da porta. A capela contígua ao instituto.

É uma capelinha românica de paredes altas de tijolos ocre, com uma


nave escura, iluminada por candelabros incrustados nas paredes. Há
turíbulos de latão suspensos no nal de longas correntes, ores pálidas
colocadas nos altares laterais e, por detrás do altar-mor, um quadro
representa Cristo no Monte das Oliveiras. Ao fundo, do lado esquerdo,
perto da porta que se abre para a praceta, um nicho alberga as pias
batismais numa simplicidade austera. Um odor de incenso e de ores
murchas enche o ar frio sem se notar inicialmente, o que se nota é o
silêncio. Um verdadeiro silêncio. Aquele que oculta todo e qualquer som
exterior, um silêncio envolvente, um acolhimento. A Madre Fabretti senta-
se e convida Bakhita a fazer o mesmo. Mimmina instala-se sobre os seus
joelhos. O banco ca diante do cruci xo. Na cruz de madeira escura, aquele
a quem Bakhita ainda chama o escravo tem os olhos fechados e o sangue
escorre do seu coração trespassado.
– Está morto – diz Bakhita.
A Madre Fabretti não responde. Deixa-a contemplar o corpo esticado,
as mãos pregadas, o rosto devastado.
– Conheço-o.
– Conhece-lo?
Bakhita tira do bolso o cruci xo que escondeu na sua pessoa quando a
Parona Michieli preparou o seu enxoval.
– Sim. É ele. Chama-se Jesus. Compreendes? Jesus Cristo. É ele.
– É um nome bonito.
– Se quiseres… Agora, saiamos. A Mimmina está su cientemente
agasalhada?
A Madre Fabretti abre o portão de madeira e a luz de um m de tarde
acolhe-as, frágil e sóbria. Mimmina solta a mão de Bakhita para correr na
pracinha. Avançam em silêncio até ao Grande Canal. O ar do mar
misturado com o vento traz algo de indomado, uma violência contida, por
detrás da beleza imediata.
– Jesus morreu há muito tempo. Muito, muito tempo… – diz a Madre
Fabretti, que agarra o braço de Bakhita.
Esta tem um movimento de recuo e depois aceita, embaraçada, como no
dia em que Stefano lhe oferecera o braço para atravessar Zianigo.
– É muito distante?
– Muito distante, sim, Jesus, é muito distante.
– O antepassado…
– Se quiseres. O antepassado. O seu pai é o Pai do Pater Noster. Chama-
se Deus, e não Allah, Allah, não.
– Não.
– Deus.
– Sim.
É a primeira vez que Bakhita não se apercebe dos olhares assustados que
provoca, a primeira vez que caminha de braço dado com uma mulher, com
aquele rapariguinha que corre à frente delas para assustar os pombos e as
gaivotas. Há algo de familiar naquele cais à beira do Grande Canal, uma
intimidade tranquila que se harmoniza com a noite que cai. Ainda não a
despreocupação, mas a con ança. Bakhita diz:
– Sou escrava.
– Eu sei.
– As rapariguinhas são escravas?
– Não. As rapariguinhas não são escravas. As rapariguinhas estão
sozinhas no mundo. Compreendes?
– Muito.
O frio chega subitamente, com nuvens azuis que cobrem o horizonte e
se unem ao canal. Mimmina, assustada por um cão, precipita-se para
Bakhita, que a toma nos braços. A criança é pesada e, agora, coxeia um
pouco quando a leva ao colo. Diante delas, a brancura da ilha de San
Giorgio Maggiore apaga-se lentamente na noite e as luzes dos pescadores
acendem-se na laguna. Quando uma coisa desaparece, surge outra.
– É belo – diz Bakhita.
A Madre Fabretti está surpreendida. Não sabia que a beleza tocava
aquela alma simples.
– A Lua! A Lua! Vi-a primeiro, Bakhita! Ganhei!
Mimmina aponta para uma Lua incerta, presa na bruma fria.
– Tu não vês nada esta noite.
– Achas?
– Claro!
E põe a mão sobre os seus olhos para brincar ao jogo do cego que elas
inventaram. Mas Bakhita volta a pôr a pequena no chão. Já não tem vontade
de brincar. E falou demasiado. A Madre Fabretti dá a mão a Mimmina,
afastando-se com ela. O rosto escuro da Moretta junta-se à noite e faz
aparecer o brilho do seu olhar.
Durante um ano, Bakhita vai aprender uma nova língua, novos ritos,
novas histórias, orações, palavras e cânticos, vai procurar unir-se àquelas
com quem vive e que falam a Deus e a Jesus como nos dirigimos aos nossos
pais, uns pais que nunca teríamos deixado, eternos e omnipresentes. É essa
omnipresença que a perturba. A Madre Fabretti diz-lhe que Deus a vê e a
ouve a toda a hora. Do primeiro ao seu último dia, Ele está ali. Sente
vergonha. Pensa de novo nas cenas mais violentas do seu rapto. Será que Ele
viu aquilo? Será que estava lá, na primeira noite com os raptores, e nas
outras noites no cativeiro e no martírio, nos dias de deserto, de torturas e de
humilhação, e com Samir, os senhores e os lhos dos senhores, será que Ele
estava lá?
– Sim, Bakhita. Ele estava lá.
– Vergonha… Madre… Vergonha.
– Ele estava lá para nunca te deixar sozinha.

É uma grande violência. Um combate entre o desejo de viver e o de


largar tudo. Não compreende essa palavra que a Madre Fabretti lhe repete
sem cessar: «Ele ama-te.» Pensa que a Madre Fabretti está enganada, Ele
não vê tudo. Ele não está sempre ali. E Ele não sabe. Ela é uma escrava e
ninguém, nenhum senhor, mesmo o melhor, ninguém, ama, alguma vez, o
seu escravo. Diz a si mesma que, um dia, a Madre, de uma forma ou de
outra, cará a saber o que é a escravatura e, nesse dia, castigá-la-á por ter
ocultado a monstruosa existência que teve. Uma vida inferior à de um
animal. Uma vida que se rouba, que se compra e se troca, que se abandona
no deserto, uma vida sem sequer sabermos como nos chamamos. A
angústia invade-a em todo o lado, a qualquer momento, nas cozinhas onde
aprende a cozinhar, nas aulas de alfabetização ou de catecismo, e foge sem
pedir autorização, sem levar Mimmina consigo. Não sabem em que pensa,
está debruçada sobre os seus lavores e depois, subitamente, já não está ali.
Sabem para onde corre. É sempre igual: corre como uma louca e vai ter com
a Madre Fabretti, sempre disponível para ela, paciente, calma, e também
inquieta com o rumo que as coisas tomam. Aquela alma simples é
demasiado sensível, o choque da revelação perturbou-a, e mais de uma vez
hesita quanto a pedir à madre superiora que mande chamar o médico. As
visitas de Stefano e da sua família fazem bem à Moretta, mas o
apaziguamento nunca dura muito. Levanta-se de noite, vítima de pesadelos;
de dia, tem momentos de exaltação e depois chora sem razão. Encontram-
na ajoelhada aos pés da cruz, pedindo perdão, prosternada à oriental. É
impossível fazê-la perder esse hábito, nem o de chamar a Deus El Paron. O
Patrão.

Todavia, Bakhita compreendeu bem: Jesus é o Filho de Deus. Que criou


a noite que ela contempla quotidianamente, com as estrelas e a Lua. Que
criou a terra, com todas as suas benesses. Que criou os homens e os
animais. Os rios e as ribeiras. Sabe desde sempre que o universo é vivo e é
necessário dar-lhe graças. Sempre o fez. Sabe que os mortos e os vivos
permanecem juntos. E sempre respeitou os antepassados. Deus é o senhor
do universo e de todos os homens. Compreendeu mais do que julgam, mas
tem vergonha. Vergonha de si própria, da sua esperança. E vergonha da sua
tristeza. Falam-lhe de batismo. Dizem-lhe que, com o batismo, será lha do
Paron. É o amor que espera há tanto tempo (elas dizem «treze anos, foste
raptada há treze anos», de acordo), aquele amor está ali. Muito próximo.
Dizem que, se receber o batismo, será amada para sempre. Faça o que zer
ou independentemente do que lhe zerem. Será possível? Por vezes a alegria
invade-a, desejaria cantar e agradecer. Deixar de ser aquela negra que
incomoda dez vezes por dia aquela a quem chama apenas «Madre», e que
um dia lhe pede que a acompanhe até à capelinha onde acende um círio e,
muito lentamente, quase escandindo as palavras, abre o livro e lê, com uma
voz doce:
– «Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos
Céus. Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra. Bem-
aventurados os que choram, porque serão consolados. Bem-aventurados os
que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Bem-aventurados os
puros de coração, porque verão Deus.»
E depois deixa viver o silêncio. Fecha o livro de novo e espera. Bakhita
desvia o olhar, a Madre Fabretti agarra-lhe o queixo com a mão e obriga-a a
olhá-la.
– Tanto me faz que chores, minha querida. Olha para mim.
Compreendeste as Bem-Aventuranças?
– Sim, Madre. Mas será verdade?
A Madre Fabretti bater-lhe-ia de bom grado com o Evangelho na cabeça
se o livro não fosse sagrado. Aquela Bakhita é teimosa, a sua prisão é ela
mesma. Diz, abrindo os braços:
– É claro que é verdade. E tu sabe-lo, hem? Diz-me que o sabes.
– Sim, sei.
– Ecco!

O batismo está previsto para o mês de janeiro, mas, dez dias depois, a 15
de novembro, um telegrama de Suakin anuncia a chegada próxima de Maria
Turina Michieli.

Mimmina vai fazer quatro anos e há um que não vê a mãe. Chama


mamma a Bakhita já sem o menor rebuço e aprende com ela a contar com o
ábaco e a ler nos abecedários e nas vidas dos santos. Santa Blandina, escrava
romana devorada pelos leões; São Marcos, que morreu perto de Suakin, no
Egito, com os membros quebrados e o corpo queimado, trazido para
Veneza; e Santa Alice, a mais bela, esposa do rei de Itália, uma imperatriz
que amava os pobres e que ela, quando brinca, imagina ser, tal como outras
brincam às princesas. É um universo de mulheres, preservado, ritualizado,
tranquilizador. Tem uma amiga, a pequena Giulia Della Fonte, que mora
em frente do instituto e com quem brinca todas as tardes na praceta,
vigiadas por Bakhita. Para ela, o mundo não é a Itália, nem África: o mundo
é Bakhita. Vive num presente eterno onde nada a ameaça. Anunciam-lhe
que a mãe vai regressar, ca feliz com isso sem saber verdadeiramente
porquê, é uma alegria que não espera nem prevê nada.

Numa tarde em que a chuva cai sobre a Virgem de braços abertos, no


alto da cúpula da basílica, Bakhita e Mimmina observam a noite a misturar-
se com a chuva. Bakhita embala a criança ao ritmo de uma melodia
monótona. Em breve terá terminado. Esse mundo do instituto. A Itália de
Stefano e da Madre Fabretti. A Itália da infância tranquila de Mimmina e do
seu encontro com Deus, aquele de quem quase foi lha. Todavia, no fundo
de si, sabia bem que aquele batismo não iria acontecer. Não é justo, abda,
nunca foi, mas é como é. E tem di culdade em imaginar que, com a idade
de Mimmina, ainda vivia na sua aldeia. Protegida e feliz como ela, uma
felicidade da qual não tem consciência. Muito ao longe torna a ver o pai,
uma voz, uma silhueta, o pescoço no qual encosta a cabeça e, diante de si,
aquela outra ela, a gémea. Não são eles que vai encontrar em África. Estarão
sempre do outro lado da ilha. Ela estará no bar do hotel, ao serviço dos
homens de todos os países e de todas as religiões, reunidos pelo álcool e o
vício, e os seus dias serão passados a servi-los e a dizer-lhes «não». A tentar
preservar Mimmina… «É impossível.», di-lo a si mesma. «É impossível.»
Não sabe porquê, mas é impossível. Contempla a Virgem no alto da cúpula,
dizem que salvou Veneza da peste. Com a testa colada à vidraça, recita a Ave
Maria em voz baixa. As suas palavras embaciam a vidraça e dir-se-ia que
também chove no interior.

No dia seguinte, Maria Michieli está no instituto. Encontra-se com


Mimmina e Bakhita no parlatório, na presença da madre superiora e da
Madre Fabretti. Mimmina está contente por reencontrar a mãe, que a acha
tão bela e se maravilha com os seus progressos. A pequena agora já fala
bem. Abraçam-se, cobrem-se de beijos. É um quadro encantador que
maravilha as freiras, uma mudança em relação às órfãs e às raparigas
perdidas. Esta cena de família é uma espécie de repouso bendito, e Maria,
que partira com uma derrota deixando a lha com a ama, retoma os seus
direitos. Bakhita mantém-se um pouco afastada, como uma criada bem
formada. A sua senhora aproxima-se dela e agarra-lhe as mãos.
– Tomaste muito bem conta da Mimmina. E as senhoras também,
minhas irmãs! O teu país, Moretta, é um esplendor! É verdade! Aquela
ilhota, completamente redonda… sabem, minhas irmãs? Uma pérola
pousada sobre o mar… em resumo! Moretta, tenho de te anunciar uma
coisa: zemos umas belas obras no hotel. O bar será todo teu e receberás,
pela primeira vez na vida, um pequeno salário. Nada me obriga a fazê-lo,
bem sei, mas faço questão.
Bakhita recua um pouco. No parlatório sombrio e triste já só se ouve a
pequena Alice que brinca com uma boneca, como se vivesse noutro mundo,
leve e pessoal. Então, de súbito, a voz grave de Bakhita diz:
– Não.
É como uma intrusão, qualquer coisa na sala que não tem nada que
fazer ali, é uma palavra deslocada. A Madre Fabretti repara no punho
fechado de Bakhita e, nele, adivinha o cruci xo.
– Perdão?
– Não.
Há um curto espaço de tempo, suspenso, que Maria expulsa agitando a
mão diante do rosto.
– Muito bem, não, ou sim, tanto me faz, venho buscar-vos dentro de
cinco dias.
Aproxima-se da lha para se despedir e explicar que voltará em breve,
mas torna a ressoar no parlatório:
– Não.
Pior do que uma punhalada nas costas. Uma afronta pública. Sem
sequer se voltar, Maria grita, com uma voz um pouco aguda de mais:
– Vai fazer as malas!
Mimmina começa a soluçar. Bakhita não se mexe. Os seus lábios
tremem e o seu olhar é, ao mesmo tempo, temeroso e de uma xidez
inquietante. Maria puxa a lha contra si, segura-a no ar, com o rosto contra
o seu e abana-a para a consolar.
– Moretta, vais obedecer-me o mais rapidamente possível!
– Impossível.
– O quê?
– Impossível, Parona.
– E porquê?
O rosto de Bakhita é abalado por um pequeno espasmo, a sua face treme
e inspira profundamente antes de dizer:
– Não saio. Fico.
Maria quase caria espantada se não estivesse tão violenta e
profundamente encolerizada.
– Mas estás louca ou o quê? Foi o ar de Veneza que te pôs doida?
Lembras-te de que és a minha escrava e eu sou a tua senhora? Isso diz-te
alguma coisa?
A sua vulgaridade explode embora ela gostasse que fosse diferente, com
mais rmeza e autoridade, mas não sabe fazê-lo. Tem vontade de esbofetear
aquela rapariga e compreende aqueles que batem nos escravos, que os
queimam, que os matam.
– És minha. Foi a mim que te deram. Onde é que se viu uma escrava
dizer não à sua senhora? E é assim: eu vou para Suakin e tu acompanhas-
me! Na vida, nem sempre fazemos o que queremos, não é, Madre Fabretti?
Vamos, despacha-te! Vai fazer as malas.
– Impossível…
A Madre Fabretti aproxima-se de Bakhita, vai sentar-se no canapé com
ela, tenta convencê-la. Tem de obedecer à sua senhora e partir com ela, foi o
que cou combinado e não se pode desobedecer à senhora. Bakhita
murmura:
– Lá, não sou sua lha.
– De Deus queres dizer? Filha de Deus?
– Sim.
– Não te preocupes com o batismo, não te preocupes, minha querida,
vamos antecipar a data. Claro que serás lha de Deus, prometo-te!
– Não. Impossível! Lá não sou sua lha! Impossível!
– Somos lhos de Deus em todo o lado, lembra-te, já te expliquei isso,
Ele está em todo o lado! Em África, em Itália, em todo o lado!
– Madre… Aiuto… Socorro…
Os soluços de Bakhita ressoam na sala e, de repente, tudo muda. Já não
se trata de desobediência ou de capricho. Trata-se de uma coisa grave que
nenhuma das irmãs compreende. Mimmina grita e chama Bakhita:
«Mamma! Mamma!», e a madre superiora faz sinal à Signora Michieli para
sair durante um instante. A Madre Fabretti pede-lhe que lhes diga tudo o
que tem vontade de dizer. Não precisa de ter medo, deve dizer o que se
passa. Estão preparadas para descobrir um mundo.

Todavia, nunca saberão o que a Moretta lhes con ou, porque nunca
falou tão depressa e com tantas palavras árabes e turcas, dialetos africanos,
gestos, súplicas e lágrimas. É como verem aproximar-se uma derrocada sem
poderem proteger-se dela, e ouvem, no estupor e na revelação, tudo o que
aquela jovem conhece, todas as palavras estranhas e dores profundas. Não
sabem que é a primeira vez que conta isso. Os homens de Suakin. Os
desconhecidos que serve e os outros, que tem medo de reencontrar, os
carrascos, que por vezes são antigos escravos, aqueles que perguntam a
Augusto Michieli se ela está à venda e a quem ele responde «Ainda não.»
Com Mimmina contra si como um escudo. E as crianças, raparigas ou
rapazes, que os homens mandam ir aos seus quartos. E a irmã, Kishmet,
que teme reconhecer em cada prostituta. Diz que é jovem e que é velha, que
tem vinte anos e que tudo lhe aconteceu. Diz que viu o diabo e que agora
quer ver Deus. Mas não em Suakin, não se pode ver Deus em Suakin, não se
pode ser lha de Deus em ali. Fala daquele homem que gritava todas as
noites no hotel, um único grito, apenas uma vez, mas todas as noites, e ela
não quer voltar a ter medo. É a criança roubada, a criança nos mercados,
sempre obedeceu a tudo, repete a tudo, e todos os dias agradece aos seus
senhores deixarem-na com vida. Obedeceu a monstros e agora quer
obedecer a Deus. Abda, não é culpa sua e não é justo. Não. Torna a dizer
não. É a primeira vez. Não. Só tem essa palavra. Não.

Fala com a sua mistura mais confusa do que nunca e, quando para,
esgotada, disposta a render-se ou a morrer, ouve:
– Vou defender-te.
Sabe que é verdade porque a madre superiora nunca a enganou. A
Madre Fabretti agarra-lhe na mão e cam assim, com aquela que viveu
aquilo que nunca imaginarão e que, por caminhos incompreensíveis,
chegou a casa delas com o seu medo e a sua força, a sua juventude e o seu
passado. O Senhor nunca lhes deu um sinal mais visível e mais pungente da
Sua presença. Estão impressionadas e secretamente entusiasmadas. Estão
muito longe de imaginar onde as levará a defesa da Moretta.

Durante três dias, Maria Michieli vem ao instituto e pede que chamem a
Moretta ao parlatório. Bem como, claro, a sua lha, peça principal da
estratégia que adota. Vem sozinha, depois acompanhada de uma princesa
russa e nalmente de um primo, o cial do exército. Bate-se, como explica,
«apoiada por pessoas altamente colocadas» que a aconselharam a processar
as irmãs do instituto que excedem os seus direitos e, assim, escreveu ao
presidente da Congregação da Caridade para as denunciar. Tirará a sua
escrava desse instituto ou conseguirá fazer com que o encerrem. Como em
todas as batalhas, os apoios a que recorre, em vez de a fazerem raciocinar,
atiçam o fogo e conduzem-na a uma batalha que nunca teria travado sem
eles. No entanto, perante tantos amigos entusiasmados com o caso e
curiosos de ver como se vai sair, já não é a escrava que quer recuperar, é a
dignidade perdida, e todos os golpes são permitidos, passado todos os
golpes pela criança. Conta a Mimmina que Bakhita vai abandoná-la e,
diante da criança, suplica a Moretta, com lágrimas de raiva que passam pelo
mais puro desespero. Brande a criança e berra:
– Ama-a. Suplico-te! Sabes que ela morre sem ti, porque fazes isso?
A criança mergulhou numa angústia abissal e, de escrava, Bakhita
transforma-se em carrasco, de ama em infanticida. Desejaria dizer que
Mimmina lhe deu muita força, deu-lhe a ternura e a con ança, que
Mimmina vai viver, mesmo sem ela, que cresceu, e agora nunca mais cará
doente. Mas não diz nada. Cala-se e aperta o cruci xo com tanta força na
mão que a palma sangra. À noite, quando ca de novo no quarto com a
criança, estão esgotadas, atordoadas pela dor e a incompreensão. Mimmina
diz-lhe que não quer morrer. Bakhita jura-lhe que não vai morrer.
«Nunca?» Bakhita hesita… «Nunca.» A pequena diz-lhe que agora vai
portar-se sempre bem, não fará mais birras e comerá tudo aquilo de que
não gosta, brincará com as crianças pobres que a assustam, ajudará as
freiras a lavar a louça, e pede perdão chorando:
– Asfa, mamma! Asfa!
– Conheces essa palavra?
– Asfa! Costumas dizê-la! De noite, costumas dizê-la!
Bakhita olha para aquela menina que a esquecerá, mas não a fúria
desses dias massacrados.
– Quero que ainda me ames.
– Ainda te amo, Mimmina.
– És completamente negra.
– Sim.
– Como o diabo.
Bakhita não pensava que as coisas se passassem tão depressa. Há
quantos dias voltou Maria Michieli? Uma senhorinha acaba sempre por
amar como um senhor? E choram as duas, porque não há mais nada a fazer
além de deixar correr essa dor inumana, essa separação que marca o m da
vida juntas, as brincadeiras, os ritos, os cantos, a linguagem só das duas, os
seus desejos na noite que cai, tudo o que deixam ao separar-se. Deram a
vida mutuamente: o bebé que Bakhita massajava e cujo muco aspirava e a
escrava que Mimmina pedia no barco, mas não voltarão a encontrar-se. A
dor não se apagará, será reavivada por outras dores, e também pelas
alegrias, que lhes recordarão o que deram uma à outra. A alegria, esse
clarão ardente, trocado de súbito pela solidão.
– Asfa… Mimmina… Asfa, minha querida…
É a primeira vez que Bakhita pode escolher e, seja qual for o preço a
pagar, decide car em Itália. Quer ser batizada e tornar-se lha de um pai
que nunca a abandonará.
Disseram-lhe simplesmente que haveria pessoas, muitas pessoas no
parlatório. Homens importantes que vão ouvi-la e ouvir a Signora Michieli
antes de decidirem se ca no instituto ou se acompanha a senhora. Não
pronunciaram a palavra «processo». Mas é um processo. A Madre Fabretti
fá-la repetir uma frase curta, fácil de xar e que exprime a sua vontade:
– «Amo a Signora, amo a Mimmina e amo Deus. Escolho Deus.»
Concordas com isto? Os homens que virão, muito simpáticos, vais ver que
são muito simpáticos, não falam árabe, nem os dialetos do Sudão, minha
querida. Sabes?
– Sim. A eles, obedeço?
– Compreendeste, a eles obedeces. Mas a Signora Michieli também lhes
obedece.
– Os homens. Conheço-os?
– Não.
– Ah… E tu, tu falas?
– Não. Eu rezo. Rezo com muita força por ti. Mas estarei lá, a teu lado.
– Sempre?
– Quando os homens lá estiverem, sempre.
– Quando?
– Amanhã. No parlatório.

A Madre Fabretti protege-a dos rumores de Veneza, onde o anúncio do


processo da escrava nas Canossianas ocupa todas as conversas, tanto nos
casebres como nos salões, tanto nos conventos como nas ruas. Há os que
exigem a libertação imediata daquela africana martirizada por uma patroa
tirânica e aqueles, menos numerosos, que falam numa ama desumana,
disposta a deixar morrer, sem remorsos, uma jovem criança. Já não a deixa
sair do convento. Acabaram-se os passeios ao nal da tarde à borda da
laguna, acabaram-se as tardes a vigiar as brincadeiras de Mimmina e Giulia,
acabaram-se as compras no mercado com a irmã cozinheira, proíbe
inclusive o acesso ao parlatório às outras raparigas catecúmenas desde que a
portinaia lhe explicou que a maior parte delas só vinha com o objetivo de
avistar a Moretta para depois irem contar por toda a Veneza. Dizem que a
criança está agonizante, falam de feiticeiros, de projetos de evasão, uma
mulher garante ter visto a Moretta de noite em Veneza, os seus grandes
braços agitavam-se no ar enquanto proferia fórmulas mágicas diante da
estátua da Virgem. Troçam dela, mas acreditam um pouco.

A madre superiora cumpre a sua promessa e defende-a. Recorre à


Autoridade da Obra Pia, que submete a questão à apreciação do patriarca
de Veneza, o cardeal Agostini, que, por sua vez, a remete ao procurador do
rei. Informa que a Signora Michieli mantém a Moretta em escravidão e que,
segundo as leis africanas, ninguém a pode obrigar a alforriá-la. No dia
seguinte, transmitem-lhe a resposta: «Eminência, pela graça de Deus, a lei
desumana da escravatura não existe em Itália. O escravo que põe um pé em
solo italiano quebra as suas cadeias.» A madre superiora e a Madre Fabretti
encontram-se com o presidente da Congregação da Caridade, encontros a
que assiste o seu prior. Também eles, tal como os simples párocos e o bispo,
tal como os homens do povo e os burgueses, tal como os homens de leis e os
seus subalternos, também eles se apaixonam pelo caso.

Os sinos não tocaram. É isso que começa por intrigar os habitantes do


bairro do Dorsoduro nessa manhã, quando a gôndola branca ornada de
vermelho e ouro do cardeal-patriarca acosta nas margens do Grande Canal.
Passa-se algo extraordinário e, no entanto, os sinos não tocaram, logo não
há qualquer celebração ou cerimónia o cial. O prelado atravessa o Campo,
seguido por uma multidão que vai engrossando. As mulheres do povo e as
burguesas, prosternando-se à sua frente, tentam aproximar-se para lhe
beijar o anel de ouro. Ele abençoa-as enquanto anda. O seu secretário,
excitado e febril, saltita atrás dele, mas muito em breve o povo já não saberá
em que sentido ir, porque eis que anunciam a chegada do procurador do
rei, em pessoa! O bairro é percorrido por um temor admirativo, o nome da
Moretta é repetido nas ruelas e nas pontes, nas praças e nos palácios, nas
lojas dos artesãos, nos armazéns; o nome da escrava associado às mais
elevadas guras de Itália, à Igreja e ao rei. Será tão poderosa como isso esta
pobre negra que encontrou Deus? Acendem-se círios na basílica e também
nas mais humildes capelas, aos pés das estátuas, nos oratórios. Veneza
ilumina-se em pleno dia e reza durante as horas de trabalho.
Quanto a ela, pedem-lhe que que na capela e não saia de lá enquanto a
Madre Fabretti não vier buscá-la. Já lhe tiraram Mimmina. Ignora que é
para sempre. Protege-se desse rompimento. Do outro lado da porta da
capela, instalam-se os poderosos que vão decidir se ela ca ou parte. Sabe
que é a eles que terá de dizer a frase: «Amo a signora, amo a Mimmina, amo
Deus. Escolho Deus.» Sobretudo, nada de palavras africanas, nada de
grandes gestos e atenção à voz, tão grave. E calma, é preciso car calma
sempre, a Madre Fabretti repetiu-o várias vezes, car calma sempre. Não
olhar para Mimmina. Não ir consolá-la se ela chorar. Deixá-la com a mãe
sempre.

O parlatório assume o aspeto de um tribunal penal. Sua Excelência o


cardeal patriarca está sentado no canapé sobre o qual o cruci xo expõe uma
nudez que contrasta com as vestes de veludo vermelho, e o seu secretário,
ao lado, instalou uma escrivaninha e um grande caderno. O procurador do
rei, alguns magistrados, o presidente e membros da Congregação da
Caridade, juristas, nobres, a Signora Michieli com os seus aliados, a madre
superiora, a Madre Fabretti, algumas irmãs. E sobre os joelhos de Maria
Michieli, Mimmina, que detesta este parlatório. Bakhita não está lá. A mãe
pede-lhe que pare de gesticular, mas ela procura-a. Quando entra alguém,
julga que é ela. Tem vontade de fazer chichi. «Já te levei três vezes. Para.»
Sim, já a levou três vezes, mas não viu Bakhita. Onde está ela, então? A mãe
beija-a, segredando-lhe que se cale, que terá um presente se se portar bem,
que veja como são bonitas aquelas grandes cruzes daqueles senhores muito
simpáticos, mas que serão muito maus se ela se levantar outra vez para ir
fazer chichi, entendido?

É sobretudo quando o cardeal patriarca toma a palavra que ela começa a


compreender. Reconhece as palavras, sempre as mesmas desde que a mãe
regressou: Moretta, escravatura, Mimmina, morrer, umas palavras que
falam dela. É comprido e não lhe interessa, mas a mãe retesa-se, segura-a
com força e Mimmina inquieta-se, quer ir-se embora, geralmente nunca a
deixam com os crescidos, nem sequer numa refeição de festa, uma
rapariguinha nunca tem o direito de estar com todos aqueles crescidos. E
porque é que Bakhita não está ali? Olha os homens vestidos de vermelho, de
violeta, de ouro, de cabeção, de manto, de capa, de sotaina, de chapéu, de
tricórnio, de solidéu, brilhos de veludo e de seda no parlatório
sobreaquecido, no qual zeram mal em acender uma lareira. A mãe diz
muito alto, com lágrimas na voz, que a Moretta é sua lha, ama-a como a
uma lha, deu-lhe um quarto, roupas, chapéus e brincos de ouro e,
sobretudo, con ou-lhe a sua lha. Mimmina já não quer ouvir a mãe dizer
a toda a gente que ela vai morrer e chorar depois porque, apesar de Bakhita
lhe ter prometido que não morrerá, isso fá-la chorar na mesma. A história
trágica que a mãe conta aniquila-a uma vez mais. Chama por Bakhita e a
mãe, em vez de ir à procura da sua ama, mostra-a aos homens mascarados e
a todas aquelas pessoas que esticam o pescoço para ver melhor, e exclama:
«E aí está! Eis o resultado! Já está a chorar!» Senta-se de novo, coloca
Mimmina outra vez sobre os joelhos e os seus amigos, o o cial e a princesa,
tomam a palavra, repetindo: Moretta, escravatura, Mimmina, morrer. A
criança acaba por confundir tudo: será que Bakhita está doente, será que vai
morrer, onde está? Aquilo parece muito grave. Aquelas pessoas fazem
grandes gestos, são feias e velhas. Onde está a mamma a quem não deve
chamar mamma? Onde está, então? E o seu pranto torna-se uma litania na
naquela sala a cheia.
– Ouçamos a interessada – diz o cardeal.
E é como se as pessoas já não esperassem por isso, como se os discursos
de uns e outros tivessem feito esquecer «a interessada». As pessoas sentam-
se melhor, empurram-se, pigarreiam, como na ópera antes de começar o
espetáculo. Está muito calor. Sufocante. E vai começar. A negra que não
sabe falar (preveniram-nos) vai chegar. Dizem que está na capela, que reza,
reza sem parar ao Senhor nosso Deus. Dizem que é muito negra, que é
preciso esconder a surpresa e ter muita paciência.

A Madre Fabretti entra na capelinha onde Bakhita está sentada, com o


rosto inclinado sobre a palma da mão, segurando o cruci xo. Bakhita vê-a e
compreende que a vem buscar. Vai levá-la até aos homens ricos a quem vai
dizer, lentamente, a frase aprendida. Perante o seu rosto grave, o sorriso
desolado e encorajador, sabe que vai ser tão difícil como pressente. O
coração incha dentro do seu peito, as mãos tremem-lhe e, quando se
levanta, a perna direita ca hirta. Com o passo hesitante, a sua turbação e
determinação, entra no parlatório que já não parece o mesmo. Agora há lá
tanta gente. É um mercado. Uma praça pública sob a bruma de calor. Ouve
Mimmina sem a ver. «Bakhita!» É a única coisa que reconhece, o
chamamento da criança. Até mesmo as freiras, nessa multidão, não as
reconhece. São maiores, mais numerosas, imóveis como estátuas. Os outros,
todos os outros, sente-o, têm calor e têm sede. E também têm medo. Sabe
de imediato onde estão os mais poderosos, reconhece-os logo, estão no
canapé. E a toda a volta, aquela selvajaria, aquela curiosidade que têm em
relação a si. Ouve os sussurros e vê a avaliação nos seus olhos. A Madre
Fabretti leva-a diante do cardeal e do procurador do rei e, em seguida,
afasta-se, recuando, e deixa-a sozinha. O cardeal sorri e dirige-se a todos
olhando para a escrava:
– Ah! Eis a nossa Moretta!
Um ar de contentamento e, em seguida, prossegue:
– Deus concedeu a todos o livre-arbítrio! Independentemente da nossa
raça ou da nossa religião.

Aquele homem vai falar durante muito tempo, está a ver-se. Não tem
um ar cruel. Tem um ar feliz, um pouco fatigado, comeu demasiado e
dorme mal. Também tem calor e a sua voz é um eco, fala a todos e a
ninguém. Fala a si mesmo. Bakhita aguarda o momento de dizer a sua frase,
mas o cardeal pleiteia. Longamente. Fala de amor absoluto e de futuro
incerto, que será dela depois de abandonar o instituto, tem consciência dos
perigos que espreitam as jovens nesta Itália onde é uma estrangeira, não
seria melhor, uma vez batizada, que acompanhasse na viagem para a bela
África a Signora Michieli, que promete velar sempre por ela, presa fácil e
indefesa, humilde entre os humildes, pobre entre os pobres…? Bakhita não
compreende uma palavra. Quando ele termina, vira-se e procura o olhar da
Madre Fabretti, que empurra a pequena multidão para chegar junto dela.
Segreda-lhe ao ouvido, tenta traduzir sucintamente, mas, sobretudo, diz-lhe
que agora tem de dizer a frase, lembra-se?
– Amo…
A Madre Fabretti aponta para a sua garganta, menos grave, a voz, mais
doce.
– Amo…
E, de súbito, não pode mais. Todos em seu redor estão desejosos de
saber. Custa-lhe respirar nesta impaciência, desejaria fugir e esconder-se,
mas não o faz, é doce e gentil, e eles esperam, paciente e poderosamente.
Então? Deve declarar o seu amor. Numa frase. Tudo o que vive dentro de si.
Uma única frase. Agora.
– Amo…
Quem pode compreender aquilo? Vai magoar a única pessoa que ama:
– Mimmina…
Aquela verdade não chega. É preciso cavar mais fundo. É preciso
continuar: um pouco mais e tudo acabará.
– E quero Deus.
Desmorona-se, cai no soalho escuro, enrola-se sobre si mesma e ouve a
estridência do grito inumano, o grito animal que anuncia a morte e não
serve de nada: «Mamma! Mamma! Aiuto! Mamma!» O parlatório está em
chamas e ela não salva Mimmina, deixa-a sozinha no meio do fogo e da
devastação, não lhe responde, nunca lhe responderá. «Nunca.» É a única
verdade. «Nunca mais.» Bate com a cabeça no chão, evacuam a sala, levam a
criança que grita, levam-na para longe daquela negra a quem Maria
Michieli grita «Ingrata! Ingrata!», como uma maldição. Bakhita já não ouve
mais nada. Nem o amor, nem o ódio. Nem o adeus, nem a sentença, essa
frase que espera há treze anos: «Declaro livre a Moretta.» Não a ouve.

O procurador do rei proferiu-a com uma emoção que não esperava.


Está um pouco desiludido por ela não lhe agradecer, não lhe beijar as mãos,
não se prostrar a seus pés. Pensa que ela chora de alegria. A Moretta está
devastada. Nunca se restabelecerá verdadeiramente. Abandonou a sua
menina. É sexta-feira, 29 de novembro de 1889. Bakhita é livre.
II

Da liberdade à santidade
Na manhã seguinte, quando vai procurá-la ao quarto, a Madre Fabretti
encontra Bakhita adormecida, enovelada na cama de Mimmina. Contempla
aquela adulta negra na cama da criança branca e vê a carga de tudo o que
ignora, o passado de antes da escravidão, a infância. E a solidão. A aliada
eterna. O seu rosto está dani cado, não apresenta nem libertação nem
exaltação, apenas a fadiga e as lágrimas. É uma mãe desapossada. Uma
criança esgotada e culpada.

Stefano não assistiu ao processo. Deixou a Signora Michieli bater-se e


reivindicar. Era o seu intendente e não queria vê-la como todos a viram:
uma mulher cruel que se julgava proprietária de outra. Ele conhece-a e sabe
que Maria Michieli é uma mãe que tem medo de car sozinha com a lha.
Tem medo de a fazer morrer. Medo de só carregar a morte dos lhos.
Depois do processo, a criança adoeceu e ela cou atormentada, sem sono
nem apetite. Certamente, também nunca se restabelecerá totalmente da
ferida. Esse rapto no parlatório. Ouviu a maldição da mãe «Ingrata!
Ingrata!» e os assobios da multidão que as aguardava diante do instituto e as
seguiu por Veneza, insultando a mãe, lamentando a criança, e o que
gritavam uns aos outros nas ruas estriadas de sombras e de luzes: «A
Moretta é livre! A Moretta é livre! Oh Deus! Jesus Maria José!», antes de
caírem de joelhos, de mãos postas e olhos virados para o céu. Mimmina
conservará o pânico da multidão e esse sentimento confuso pela mãe, um
amor manchado de inquietação. O amor da mãe como uma ameaça de
morte.

Dois dias depois do processo, Stefano, Clementina e os cinco lhos estão


no instituto. Perante o rosto de sofrimento da sua irmãzinha Moretta,
decidem sair com ela para dar um passeio ao longo da laguna, mas mal
deram volta à esquina do instituto quando decidem regressar. Sair com
Bakhita em Veneza tornou-se um pesadelo de que já deveriam ter
suspeitado: desde a véspera, os habitantes de Dorsoduro batem à porta do
instituto com ores, pequenos presentes, querem mostrar o seu amor à
escrava libertada, querem vê-la e, se possível, tocar-lhe.
Está muito frio nesse início de dezembro. Juntam-se em volta da lareira
acesa no parlatório sombrio, no qual é difícil imaginar que alguns dias antes
houve tantas celebridades. Chiara e Mélia, a um sinal do pai, não deixam a
Moretta, sobem-lhe para os joelhos, tentam ocupar o vazio deixado por
Mimmina, mas, pelo contrário, sublinham-no, porque não estão moldadas
desde a infância ao corpo de Bakhita, não sabem como aquelas duas se
ajustavam naturalmente, sem pensar e mesmo sem o saber, esquecendo que
estavam enlaçadas tal como nos esquecemos de que respiramos ou de que
pomos um pé diante do outro para andar. Stefano gostava tanto que Bakhita
reencontrasse a alegria. Toma-lhe as mãos nas suas:
– Agora, irmãzinha, és livre!
– Sim, babbo!
– Já não deves estar triste.
– Não.
– Vais ser lha de Deus e sempre, sempre, a tua alegria será imensa.
– Imensa, eu sei.
– E és minha lha, minha, também! Não sou Deus, mas bem…
– A nossa casa será sempre a tua casa – diz Clementina.
– Sim! Os nossos lhos são teus irmãos e irmãs e, quando eu morrer, a
minha herança será de todos vós, o que é meu é teu. Nunca terás
necessidades, nunca estarás só, não estejas triste. Hem? Compreendes o que
te digo?

Compreende e tem medo. Vai tornar-se realmente lha de Deus? Esse


amor «imenso», esse amor pelo dia que nasce e o dia que termina, esse
amor por tudo o que vive, por tudo o que existe, esse amor… Não é
suportável. Cavaram-lhe o peito até ao coração, arrancaram-lho e agora ela
sabe o que o enchia. O que protegia, o que guardava para não morrer dele.
A mãe. Não a Madonna, não, a sua mãe, essa mulher sentada no tronco de
um embondeiro derrubado. Sente a falta dela. É de uma simplicidade cruel.
Não conhece as palavras, mas sabe que essa falta não tem nome. Vai tornar-
se lha de Deus e pergunta-se se n’Ele, que contém tudo, haverá um pouco
da mãe. O que se reaviva, a violência desse sentimento brutal, prega-a ao
solo e sabe que eles têm razão, está por terra quando deveria estar alegre.
Vai tornar-se lha d’Aquele a quem chama «el Paron», e que não será apenas
o Patrão, mas também o Perdão. Perdão para a desobediência. Perdão para
a sua mãe. Perdão para Kishmet, para Binah, para todos os escravos. Perdão
pelo amor perdido. Sorri a Stefano porque não compreende tudo o que ele
lhe disse, mas é tão belo com aquela ternura carente, a presença desajeitada
e, para lhe agradar, diz:
– Compreendo tudo, babbo.
– Ah! Eu sabia que tinhas feito grandes progressos em veneziano. Dizia-
lhes: com as irmãs, vai fazer progressos fulgurantes, vai saber contar e ler e
escrever e…
– Vê-la?
– Mas quem?
– A Mimmina.
Stefano é apanhado desprevenido. Faz sinal a Chiara e Mélia para se
afastarem.
– Mas que estão a fazer? Sufocam-na com as vossas carícias e os vossos
beijos, ela já não consegue respirar, a pobre. E é claro que a vi. Está muito
bem.
– Triste?
– Não. Está muito bem, já te disse.
– Chora?
– Eh, não! Está feliz por ti! Alegra-se, como todos nós! Estamos todos
na alegria, não é?
– Stefano, para.
Clementina xa os olhos no fundo dos de Bakhita e fala-lhe
suavemente, como se o tom pudesse aliviar o peso da notícia:
– A Mimmina partiu. A Mimmina está em Suakin.
Bakhita compreende. Trocaram os seus países. Deram as terras uma à
outra. Vê tudo: o comboio, o barco, as escalas, o Mar Vermelho, a ilha de
Suakin, as costas de África na bruma, e o hotel. Os homens. As crianças ao
portão, enxotadas pelo jardineiro. E Mimmina que brinca perto da fonte
onde aprendeu a andar.
– Está bem.

Tem con ança em Mimmina, conhece-a. Não pensa que esteja sempre a
sorrir, sabe que chora e que chama por ela porque a ouve. Mas sabe também
que essa menina livre e branca, rica e curiosa em relação a tudo, divertida e
terna, vai lançar uma bela luz sobre a terra mártir do Sudão. E quem sabe?
Talvez um dia, sem descon ar, venha a encontrar a sua irmã. Ou Binah.
Não se sabe. Nunca se sabe onde a vida nos leva.
– Madre, recomeça. Por favor, recomeça.
A Madre Fabretti nunca preparou com tanta aplicação uma adulta para
o batismo. Todos os dias Bakhita pede-lhe que diga de novo as palavras que
deve pronunciar. Tem medo de se enganar, como no processo, e todos os
dias as repete para si própria: «A fé, a vida eterna, renuncio! Quero-o!
Credo! Credo! A fé, a vida eterna, quero, renuncio.» A Madre Fabretti tem
medo de que Bakhita misture as palavras e depois diz a si mesma que tem
de con ar nela. Aos vinte e um anos, tem essa mistura de vulnerabilidade e
de força, a sua energia é forte, a sua inteligência, profunda, e também é
divertida. Por vezes ousa um pouco de humor que as pessoas compreendem
mal, mas ela sorri e elas dizem que aquilo deve ser importante, o bom
humor, para esconder a sua a ição.

A Madre Fabretti mostrou a Bakhita por onde iria entrar na capela e


onde estaria o cardeal, os gestos que ele faria, as palavras que proferiria, por
que ordem e porquê. Desempenhou todos os papéis, de Bakhita, do cardeal,
do capelão, do padrinho e preveniu-a de que iria haver muita gente. Na
capela, no instituto e na pracinha. Sabe que o olhar dos outros sobre ela tem
a violência da cobiça. Gostaria que ela entrasse na igreja como entraria em
sua casa, com con ança e paz. Será possível?

No dia 9 de janeiro de 1890, em Veneza, a manhã é clara, o sol generoso.


É o dia do seu batismo. Bakhita sabe que será diferente do dia do processo.
Estarão lá os homens poderosos, as irmãs, a família Checchini, a multidão
curiosa, mas sabe também que não a amaldiçoarão («Ingrata! Ingrata!») e
que, pelo contrário, a vão acolher. Porém, terá realmente direito a isso?
Continua a ser uma escrava. A escravidão não se apaga. Não é uma
experiência. Não pertence ao passado. Mas se tem o direito de ser amada,
então esse dia que chega é a sua recompensa. Caminhou até esse dia.
Caminhou durante anos. Caminhou até el Paron. Para nunca mais obedecer
a outras ordens, nunca mais se prostrar diante de outros senhores.

A capelinha está decorada, orida, iluminada. Enche-se com grande


rapidez. O sino do instituto não para de tocar e a portinaia está
sobrecarregada, os convidados apressam-se. Há os próximos e também
desconhecidos, nobres, intelectuais e alguns artistas. Não são todos
italianos, fazem parte dessa intelligentsia europeia que vive nos velhos
palácios, nas mansões patrícias e nos hotéis sumptuosos. Os outros, simples
habitantes de Veneza, empurram-se na praceta e espalham-se por todo o
Dorsoduro, e aqueles que tiveram tanto medo da Moretta e riram dela
gabam-se agora de a conhecer. As mulheres do povo têm curiosidade em
ver aquela que vem de uma África distante e bestial, onde os homens
comem os homens, onde as crianças são vendidas e as aldeias incendiadas, e
cam sossegadas ao saber que ela será salva pelo seu Deus, aquele em cujo
nome aceitam tantos sofrimentos inaceitáveis. Hoje amam a Moretta com
um fervor cheio de esperança: é mais pobre do que elas e ei-la célebre. Os
sinos do instituto e os da basílica tocam e tudo começa. O cardeal-patriarca,
o respetivo séquito e as autoridades, todos voltam ao seu bairro, vão àquele
instituto cheio de crianças abandonadas e de jovens incultas, e a sua vida de
pobres é banhada pelo clarão deste acontecimento, como uma re exão de
luz.

Mas quem os vê? Quem os olha a eles que cam à porta? Uma mulher,
pequena, magra e ávida, empurrou-os a todos para se colocar na soleira da
capela, cujas portas de madeira foram abertas de par em par e, erguida em
bicos de pés, contempla como tudo está bonito, no interior. Depois vira-se
para a multidão que se comprime na praceta e grita o que vê. Conta a
história, o que se passa. Mamma mia, como é bonito. E como é bom crer.

A capelinha perdeu toda a humildade e torna-se rica e amejante,


ampliada pela magni cência dos círios, das ores, das vestes pesadas e
coloridas dos o ciantes e daqueles endomingados da assistência. Voltam-se
para Stefano para lhe perguntar como ela era antes, quando desembarcou
vinda do seu país. Como era ela, a Negra? E qual é a sensação de ter
conseguido salvá-la? Uma mulher ousa avançar até ao lado dos homens
para lhe perguntar se é verdade que foi torturada. Escaldaram-na como a
São Jorge ou queimaram-na como a Santa Joana? Ela vai fazer uma
peregrinação à Virgem para lhe agradecer? Stefano cala-se. Está sufocado
pela apreensão, tem medo pela Moretta, embora também esteja feliz. Há
cinco anos que se bate por este dia, e lembra-se dela, no dia seguinte ao da
chegada a Zianigo, quando a viu em casa de Augusto Michieli. Pergunta-se
se o choque que teve foi provocado pela cor da pele, esse negro tão escuro,
tão cheio, ou pela sua presença. Uma paixão lial. Será que isso é possível?
Olha para a pia batismal escavada simplesmente na parede de tijolo e pensa
que é justo que Bakhita seja batizada naquele local onde vivem os lhos do
povo, perdidos e mal-amados. Mantém-se muito direito para que ela só o
veja a ele quando entrar na igreja.

Encontra-se à espera no oratório. Está de joelhos e recolhida, medita


sobre a sua vida. Pensa na irmã gémea e diz-lhe: «Vê como estou vestida, é
tão belo como a tinta vermelha sobre o corpo nu da nossa mãe. Tão belo
com as nossas pérolas e as nossas pulseiras. Como a cinza branca. As
pálpebras tatuadas. Vê que aspeto terias se vivesses aqui, em Itália, muito
longe, para lá do Nilo. Tu vives aqui, em Itália, muito longe, para lá do Nilo.
Atravessaste os desertos e os mares comigo e agradeço-te teres estado,
também, ao lado da nossa mãe. Nunca a deixes.»
Ouve a Madre Fabretti aproximar-se e levanta-se. Dói-lhe a coxa, é uma
dor familiar, quase tranquilizadora.
– Vim buscar-te, minha querida.
Depois, murmura:
– Meu Deus, Bakhita… como tu és bela…
Bakhita ouve aquela palavra que já não é a da cobiça, mas do respeito. E
é verdade que está bela no seu manto púrpura, com o rosto coberto por um
longo véu negro. É grande, imponente, e a Madre Fabretti faz-lhe sinal para
erguer o rosto bem alto. É difícil, não está habituada. Atravessa o claustro,
em cujo centro as pequenas órfãs do instituto aguardam para a ver. Faz frio
e elas estão de pé, com os mantos cinzentos, grandes meias saem-lhes dos
tamancos. Desejaria dizer-lhes que as ama, mas não sabe dizê-lo no plural.
Desejaria dizer-lhes que as conhece. A sua espera temerosa e essa esperança
misturada com tanta apreensão sabe o que são. Uma criança, mais ousada
do que as outras, deseja-lhe sorte e as outras troçam porque ela ousou falar
à Moretta. Pousa a mão no rosto de cada uma dessas rapariguinhas que,
quando chegou, julgara serem escravas como ela.
Com a Madre Fabretti a seu lado, para à porta lateral da capela. Bate três
vezes. Abrem-lha. Fica muda, na soleira, e pensa em erguer a cabeça. O pai
espera-a, hoje vai encontrar o seu pai, el Paron. A capela está cheia. Não vê
Stefano, mas sabe que está ali com Clementina e os cinco lhos. Lembra-se
do que tem de fazer. Está nesse momento recolhido e poderoso em que
nada mais pode suceder além do esperado. Ouve a oração do cardeal-
patriarca de Veneza, Domenico Agostini, que depois avança pelo meio da
multidão para a vir buscar e acompanhá-la até junto do padrinho, o conde
Marco Soranzo. A sua madrinha está doente e ele representa-a. Mantém as
mãos postas e sente pelo tremor das pernas que o medo regressa. A
respiração faz tremer o longo véu. A voz do cardeal ecoa, alta e rme, nas
paredes de tijolo:
– Qual é o teu nome?
A pergunta magoa-a profundamente, não a esperava. É a maior
vergonha da sua vida, o esquecimento do próprio nome. Será que Deus não
aceita as crianças roubadas? A Madre Fabretti não a fez ensaiar essa
pergunta. Lança um olhar desvairado à freira. O silêncio parece eterno.
Como se chama. Como se chama… Não. Impossível. Asfa. Perdão a todos.
Baixa a cabeça. Acabou.

«Ela não tem nome!» A mulherzinha ávida voltou-se para a multidão e


o rumor cresce, desiludido e guloso. Na capela, murmura-se e tosse-se, a
assistência está estupefacta. Mas o cardeal faz a segunda pergunta:
– Que pedes tu à Igreja de Deus?
Então, continua? Precisa de se recompor. Tem de olhar para ele para lhe
responder, disse-lhe a Madre Fabretti. Ergue o rosto velado e esforça-se por
responder com con ança:
– A FÉ!
– O que te dá a fé?
Sabe a resposta. Já a disse. Disse e repetiu. Ergue os olhos ao céu para
mostrar o que a fé dá, está lá em cima: o amor e a cura do amor. O cardeal
suspira e responde:
– A vida eterna, sim, é isso.
A assembleia respira, a mulherzinha ávida que se encontra na soleira
vira-se para a praça e grita:
– Ela respondeu bem! A vida eterna!

E agora é o momento que todos esperam com apreensão e deleite. A


história aterradora que conhecem desde a infância. A história que faz medo
e apazigua. Por vezes.

– O exorcismo! O exorcismo! – grita a mulher ávida, da soleira.


E a pequena multidão prosterna-se e persigna-se. O sol de Veneza vela-
se. Algumas raparigas choram, beijam-se as medalhas e os rosários. Os
homens, as mulheres, as crianças, os idosos, estão todos unidos,
semelhantes e humildes e, na capela, a sombra do medo paira sobre a
assembleia. Quem sabe? O demónio poderia vencer. Não falaram de diabo
negro a propósito da Moretta? Quem é ela, realmente, esta estrangeira sem
nome e sem linguagem que as pessoas começaram a amar bruscamente?
Alguns acham este momento exótico, delicioso, e já têm vontade de o
contar, de o escrever ou até de o desenhar. É agora ou nunca que a verdade
vai rebentar. Vai saber-se de que lado estão as forças do mal. O cardeal
aproxima-se de Bakhita e sopra três vezes para o seu rosto. O véu freme e as
pálpebras estão fechadas. Espera. Sobre os ombros sente o peso, maior do
que o do seu manto, dessa atmosfera de curiosidade descon ada e de
repúdio pronta para aparecer.
– Eu te esconjuro, Satanás, inimigo da salvação dos homens. Reconhece
a justiça e bondade de Deus Pai, que, com o Seu justo juízo, condenou a tua
soberba e inveja. Afasta-te desta serva de Deus, que o Senhor formou à Sua
imagem, enriqueceu com os Seus dons e, por misericórdia, adotou como
lha. Eu te esconjuro, Satanás, príncipe deste mundo, reconhece o poder e a
força de Jesus Cristo, que te venceu no deserto, triunfou sobre ti no Horto
das Oliveiras, te destronou na cruz e, ressuscitando do sepulcro, transferiu
os teus troféus para o reino da luz. Retira-te desta criatura, Satanás!
O cardeal traça o sinal da cruz na fronte de Bakhita, nas suas orelhas,
nos olhos, na boca, no coração, nos ombros. Ela treme e expulsa as ideias
do passado, o olhar dos rapazinhos que o sacerdote levava à castração, os
gritos da mãe cujo bebé foi esmagado contra as pedras, o corpo da pequena
Yebit morta sob a tortura da tatuagem. Poderia berrar, soltar um grito
brutal que expulsasse esse demónio e desse a todos esses mártires a mercê
das suas vidas. Mas cala-se. Quer que o cardeal o faça por ela, que expulse o
mal com as fórmulas adequadas, só ele sabe como deve desenrolar-se o rito
e ela con a nele. Concentra-se nos que ali estão e a amam, os Checchini, as
irmãs, esquece a multidão insaciável, o poder daqueles que, desde sempre,
concentrados nas praças, olham a negra que é.

Agora que o demónio cedeu o lugar ao Espírito Santo, pode entrar no


Templo de Deus. O cardeal pergunta-lhe:
– Renuncias a Satanás?
– Renuncio!
– Renuncias às suas obras e às suas pompas?
– Renuncio!
O cardeal unge-lhe a fronte com os santos óleos.
– Crês em Deus Pai, no Seu lho único, Jesus Cristo, e no Espírito
Santo?
– Credo! Credo! Credo!
– Queres ser batizada?
– Quero!
Está perturbada e esgotada, como se tivesse corrido durante muito
tempo para chegar a esse momento. E ouve o seu nome de batismo, que
contém o nome próprio da madrinha de batismo, o da madrinha de
con rmação, o nome de escrava em italiano, o nome da Virgem e o nome
de escrava em árabe.
– Gioseffa Margherita Fortunata Maria Bakhita, eu te batizo em nome
do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
O cardeal derrama três vezes a água batismal sobre a sua fronte
inclinada, o manto púrpura cai ao chão, ela desfaz-se do longo véu e surge,
criatura nova, envergando a veste branca. O seu rosto aparece a todos como
uma verdade indelével por cima da veste de luz. Para sua grande vergonha,
alguns pensam no corpo que há debaixo dela, dizem que também é negro,
negro e marcado, é possível que deixe vestígios na veste do batismo? E
pressentem, não sem deleite, que a sua história poderia perturbar-lhes o
sono e petri car-lhes a alma.
Trazem-lhe um grande círio que ela acende no do padrinho. Vão ser
proferidas as últimas palavras. A ordem e a autorização:
– Vai em paz. Que o Senhor esteja contigo.
– Ámen.

«Ámen sim!» Mimmina está com ela. Ouve-a. «Ámen sim!» Mimmina
brincaria certamente com o véu tombado por terra, para ser Santa Alice, a
bela imperatriz. A menina e ela são iguais, agora, ambas lhas de Deus.
Ligadas no mesmo amor, pertencendo à mesma família. Mas quem dirá, à
pequena Mimmina, que ela agora tem um nome? Quem lhe dirá para nunca
mais lhe chamar mamma?
Chama-se o cialmente Gioseffa, mas sempre a tratarão por
«Giuseppina», o diminutivo. Di-lo-ão com di culdade, aplicando-se,
porque, para todos, continua a ser a Moretta. Na certidão de batismo
declara-se que nasceu de pais desconhecidos e é uma maometana vinda da
Núbia. Ninguém conhece a sua história, nem a sua geogra a. O país de
onde vem não tem nome e a sua mãe não existe. A sua infância não é a sua
infância: é uma imaginação coletiva, alguns anos que as pessoas resumem
na palavra «sofrimento» e que se diluem numa Itália que é «libertação». É
batizada desde há um ano, continuou a formação de catequese e desejariam
que estivesse radiante, testemunho vivo do amor de Cristo, porém está
devastada. Encontram-na sozinha na capelinha, prosternada aos pés da
Virgem, orando e chorando. Falam-lhe e não ouve, está perturbada e não
sabem porquê. Stefano convida-a muitas vezes para passar alguns dias em
Zianigo, com aquela família que agora é a sua. Conhece aí alguns
momentos de felicidade, momentos em que nalmente ri, se lança em
relatos incompreensíveis e agita as mãos em todos os sentidos. O riso que
partilham com ela é uma surpresa e uma graça. Stefano preza esses
momentos. Bakhita viu crescer os lhos dele, assistiu ao casamento do seu
lho Giuseppe. A alegria de Bakhita, a beleza da noiva, branca no seu
vestido branco, e a promessa dos lhos que hão de vir, que também serão
sobrinhos dela. Ele diz-lhe isso e ela sabe que é verdade.

Tudo o que dizem é verdade. E esse amor, desejaria tanto devolvê-lo a


eles, ser uma Giuseppina que trouxesse a todos a alegria e a gratidão. Não
consegue. Quer algo que não pode dizer. Sabe que o seu ano de
catecumenato vai terminar. Tem vinte e três anos e vai ter de escolher: viver
com os Checchini, como lhe propõe Stefano, ou entrar ao serviço de uma
patroa, ser criada. Quando saem, com um pequeno dote, as jovens do
instituto tornaram-se verdadeiras cristãs, boas donas de casa e excelentes
bordadeiras. Sabem ler e escrever. Trabalharão e casar-se-ão, porque sem
casamento não existiriam. Mas, é claro, no caso de Bakhita, o casamento
está fora de questão. A cor da sua pele é uma barreira natural e
intransponível. Nem casamento nem lhos.
Ao nal de uma tarde em que dão o seu passeio ao longo dos cais dos
Zattere, a Madre Fabretti pergunta-lhe que recordações guarda da sua
infância.
– Quero dizer… a infância anterior.
– Antes da escrava?
– Sim, antes de seres escrava.
Bakhita não esperava isso. Já lho perguntaram, claro, o cônsul italiano,
Stefano e os lhos… Porque é que eles querem saber o que ela sente e não
sabe dizer? Aquilo de que se lembra tão mal. E tão intimamente, todavia. É
como pedirem-lhe que compreenda a natureza do seu sangue, da sua
respiração, tudo o que ela é. A aragem é suave. O dia desaparece numa luz
mortiça e cor-de-rosa, projetada com ternura no céu. Abda… Que havia,
antes? Abda. Uma vida tão distante, plantada no mais fundo de si, onde as
palavras não existem. Contar esse lugar onde nunca mais soube voltar. Falar
dos seus, que nunca mais pôde reencontrar. Impossível. Contempla à sua
frente o mar e o céu, a paisagem vasta. Íntima, no entanto, na noite que cai.
Uma grande rede de pesca está presa à margem, as estacas estão cobertas de
espuma e parecem tão velhas e, todavia, seguram Veneza por cima dessa
água viva e forte. O céu ampliou-se, distendido em nos traços azuis e
cinzentos que se cruzam e desaparecem. É tão vasto que o horizonte se
afasta. É muito belo. Quase de mais. Bakhita contempla a beleza que a
perturba e diz, como se estivesse a falar consigo mesma:
– Não saio. Fico.
A Madre Fabretti não compreende. Está a falar da sua infância? Mas
Bakhita volta-se para ela, com o rosto roxo de emoção, espantada com a sua
própria audácia.
– Não saio do instituto, Madre. Fico.
A Madre Fabretti está estupefacta. Ainda assim, admira-a por isso, por
essa força. Essa maneira que tem de ir ao m da sua dor e voltar de lá
indefetível. Claro que gostaria de a conservar consigo por mais um ano…
Ainda lhe ensinaria o veneziano, uma língua para compreender mais do
que as palavras dos outros, compreender a sua maneira de viver e de pensar.
Protegê-la-ia mais um pouco de tudo o que a espera lá fora, e culpabiliza-se
por gostar tanto dela, pois uma religiosa não se prende a ninguém, só a
Deus. No entanto, ela é diferente. Bakhita é outra coisa.
Escreve aos responsáveis da Congregação, pedindo um ano suplementar
porque Giuseppina precisa de mais tempo do que as outras, é lenta, e ainda
não sabe escrever. O pedido é aceite muito rapidamente.

Assim se passa um ano, um ano de ensino paciente, de con dências


difíceis, de prorrogação, mas também de longa tristeza. Bakhita, desta vez,
não olhou os trezentos e sessenta e cinco sóis desenhados pela Madre
Fabretti para compreender o tempo que passa. Olhou o céu e os dias que
vão encolhendo, gelados e breves, o ano que se fecha sobre si mesmo e a põe
à porta. Desta vez tem de abandonar o instituto para sempre. Não há
exceção. Nenhuma carta, nenhum recurso. Não sabe escrever, ainda têm
di culdade em compreendê-la, mas é uma cozinheira sem par, tricota,
remenda como ninguém e fabrica, com as pérolas, o que nenhuma jovem
sabe fazer: bolsas, estranhos cintos, ramos de ores. Será uma excelente
criada. Ama, talvez não porque se afeiçoa de mais. Criada é a pro ssão ideal
para ela.

Uma vez mais, quer algo que não ousa dizer e o tempo que avança leva-
a à beira do abismo. A sua vida é feita de separações violentas, de raptos, de
fugas, sobreviveu a tudo, no entanto… no momento de confessar o seu
desejo mais profundo, ca siderada, muda e desamparada. A Madre
Fabretti tenta, uma vez mais, tranquilizá-la, compreendê-la e consolá-la.
Em vão. A angústia invade-a e encerra-a. Está separada dos outros por esse
desejo que não consegue confessar.
Então, uma manhã, pede para ver o seu confessor. Teve um sonho que a
levou de volta, uma vez mais, ao tempo da violência, quando não tinha mais
nada a perder, quando se atirava aos pés do cônsul para que a levasse para
Itália e se obstinava, apesar de todas as recusas reiteradas. No seu sonho, a
terra era vermelha e ouvia os risos dos camelos, os dentes que rangiam e as
patas peadas, esse barulho que ecoava na noite, esse ruído no seu sonho
despertou-a sobressaltada. E o medo estava ali, diante de si, sem outro
horizonte. O medo imenso e nu. E, de súbito, decidiu libertar-se dele.

O confessor ouve-a com atenção. Atrás da grade de madeira, vê apenas a


parte branca dos seus olhos e gosta muito dessas duas chamazinhas.
Também gosta muito da voz da Moretta, que ecoa no confessionário, baixa e
exótica, e do seu fervor de recém-convertida.
– Padre, quero uma coisa.
– Estou a ouvir-te, Giuseppina.
– É muito grande.
– Hum… Muito grande, sim.
– Eu sou pequena.
– Hum…
– Negra.
– Continua, continua…
– E aí está.
– Não. Continua. Não tenhas medo.
– Padre.
– Não tenhas medo, Giuseppina, continua.
– Não saio. Fico.
– Outra vez?
– Não. Não é outra vez.
– Mas é, Giuseppina, vai fazer dois anos que foste batizada, três anos
que vives aqui!
– Padre…
– Minha pobre Giuseppina…
– Padre, quero uma coisa.
– Diz-me. Diz lentamente e eu perceberei.
– Eu… quero… ser… como… as… outras.
– Branca?
Ouve o riso dela. O seu riso forte que não para e tem vontade de rir
também, de alívio. Durante um instante julgou-a pobre de espírito, mas o
simplório é ele, realmente.
– Mas é o quê, ser como as outras?
– Freira.
Chove em Veneza, gotas geladas que se abatem sobre os homens, crivam
os telhados e penetram nos pequenos canais. Aqui, a estação das chuvas é
curta. Uma hesitação. Lembra-se daqueles dias que se pareciam com as
noites, ambos tomados pela chuva. Lembra-se das provisões postas em
segurança, dos animais pacientes e assustados, da cólera dos rios e do seu
respeito temeroso pelo poder do céu. Lembra-se remotamente dessa chuva
na aldeia, do cheiro a lama e a milho grelhado. Estranhamente, é também
um cheiro de pele, talvez a da sua mãe que a apertava contra si, ou a da irmã
gémea, com quem dormia. Lembra-se dessa chuva em casa dos senhores e
da sua cólera, que a espantava de início, e depois deixava de a espantar
quando compreendia que eles odiavam tudo o que não lhes obedecia. A
chuva bate e engrossa em regatos nos passeios, ouve a sua força, a Veneza
resignada. Abrigou-se com outras mulheres e algumas crianças numa
cocheira aberta para a rua, onde um velho entrança cestos. O homem mal
se espanta com a intrusão dessas mulheres que não o olham e, não ousando
descobrir-se diante dele, mantêm na cabeça o lenço encharcado. Elas cam
de pé diante da chuva que recresce e, no chão de terra batida, os seus lhos
silenciosos sujam as mãos com a terra molhada. Na penumbra, Bakhita é
menos negra, sabe-o. Mantém a cabeça baixa e aperta contra si o pão
comprado no mercado. É bom estar naquele lusco-fusco e car em silêncio.
Não assustar. Não ser reconhecida, como lhe acontece ainda tão amiúde,
pelos rostos que se aproximam tanto dela que sente o hálito das bocas
esburacadas, sorrisos indiscretos a que responde timidamente, descobrindo
a brancura fora do comum dos seus dentes. Por vezes, são os transeuntes
ricos que a detêm. Outra vez, um pintor quis pintá-la, um desses inúmeros
pintores que abundam em Veneza. É raro sair sozinha e as irmãs afastam
por ela os importunos. Mas quando chove como hoje, os artistas, os nobres,
os ricos mercadores estão nas suas casas, voltaram mal o sirocco se levantou.
Fecha os olhos e ouve as moscas que a tempestade deixou furiosas, o ruído
da chuva, eterno e sem recurso. Sente-se bem. Na véspera, ousou falar ao
confessor. Ousou dizer a palavra. Como uma blasfémia. Ela, Bakhita,
Giuseppina, ela, freira! Oh, se esse padre tivesse conseguido compreender a
sua linguagem, ela ter-lhe-ia dito como isso a surpreendera de início. Quase
tanto como a ele. Não compreendia o que se passava. Sim, é um grande
espanto: ter fé. Ouvir o cântico de Deus e compreender que lhe é dirigido!
Muda, sente-se bem, muda no interior de um mundo que é parecido. O
Sudão, a Itália, é a mesma beleza e a mesma dor. Chorou porque Deus sabia
tudo, durante toda a sua vida Ele vira-a, e depois ela compreendeu que
Deus é um amor que se apresenta. Será que o seu confessor teria
reconhecido isso? Será que conseguiu fazer-se perceber? Agora tem força
para amar os outros. Agora que a sua vida está numas mãos mais elevadas.

As irmãs perdoar-lhe-ão. O pão é difícil de partir, mas ela esforça-se, as


suas mãos podem fazer tudo, desde sempre. Parte diversos bocados de pão e
dá-o às crianças que brincam na lama. São taciturnas e aplicadas. E, de
súbito, lembra-se. Tem a certeza, revê-se, revê a irmã e as crianças da sua
aldeia pisando a terra misturada para fazer uma lama espessa, uma lama
lisa e grossa, a mesma sim, a mesma que a das suas casas. Também era isso a
estação das chuvas. As casas novas feitas com a lama pisada pelas crianças.
Recebe essa recordação como um sopro. Essas memórias são cada vez mais
frequentes. Lembra-se de si própria, é longe na vida e é muito perto, um
vento violento que a empurra, aviva as brasas do que foi. A sua vida. A sua
infância algures. Quando não era diferente de ninguém. Quando ser negra
era apenas ser.

Depois da con ssão, o padre acalmou Giuseppina: «Jesus não presta


atenção à raça, nem à cor da pele.» E depois correu a dar a notícia à madre
superiora e à Madre Fabretti: a Moretta não só está convertida como, além
disso, pede para receber ordens! Na ordem delas! Pode dizer-se que o seu
instituto faz milagres. Ou, pelo menos, maravilhas. Apresentam o pedido à
superiora geral, Primaria Ana Previta, em Verona, que o analisa com o
sobrinho da fundadora da ordem, o cardeal Luigi dei Marchesi di Canossa.
Podem aceitar que uma antiga escrava entre para o noviciado? Desde o
século XVIII que a Itália tem uma longa tradição de remissão dos escravos.
Os seus missionários franciscanos regressavam do Egito, Sudão e Etiópia
com antigos escravos que educavam e convertiam. Ainda é muito comum,
no século XIX, os missionários italianos irem para o Sudão. O padre Daniel
Comboni elaborou assim o plano Pela Regeneração de África e abriu, no
Cairo, o Instituto dos Negros, onde forma antigos escravos que o ajudarão,
uma vez educados, a evangelizar o Sudão. É «a África pela África», esse
continente que é considerado «a parte do mundo mais rebelde à
civilização». A superiora e o cardeal pensam que a entrada para a ordem da
antiga escrava se insere nessa tradição e Bakhita é aceite no noviciado. Não
é uma conquista, nem um troféu, mas uma con rmação: a Itália católica
salva os escravos. E a 7 de dezembro de 1893, a Igreja abre as portas àquela
cujo espírito não tinha casa.

Esse tempo do noviciado, que dura quase dois anos, é vivido por
Bakhita ao contrário do que se espera que seja: uma prova. Para ela é,
nalmente, o tempo da libertação. A Madre Fabretti é nomeada mestra do
noviciado, ajuda as « lhas» a identi car e aprofundar a vocação. Mas testar
a resistência espiritual e física daquela que sobreviveu a tudo é supér uo.
Bakhita só pede uma coisa: a autorização para amar. Hoje em dia, tem
direito a esse sentimento durante tanto tempo proibido, perigoso e portador
de sofrimentos mais fortes do que o mau trato. Dá-se de corpo e alma a el
Paron, esse senhor cujo amor redime os pecados.

Tem vinte e quatro anos e por mais que siga o mesmo ensino, diga as
mesmas orações, comungue, se confesse e use o mesmo uniforme que as
outras, não é como elas. É diferente. E para sempre. Para ela, farão sempre
uma exceção. Pedirão uma derrogação. Hesitarão antes de a aceitar ou, pelo
contrário, regozijar-se-ão ruidosamente. É aquela que se mete num lugar,
mas não se instala nele. Aquela que quer dizer algo e não consegue.
Espanta, surpreende e, com frequência, incomoda. A maior parte das
noviças admira-a, admira-lhe a delicadeza, o ardor inesgotável no trabalho,
levantando-se antes de todas e sendo a última a deitar-se, voluntariosa e
dotada, mas outras sentem-se pouco à-vontade. Não ousam olhá-la de
frente. Não compreendem nada do que diz. Têm medo de se cruzar com ela,
de noite, nos corredores. Não gostam de dormir no mesmo dormitório.
Lavar-se na mesma água e comer diante dela. O modo como segura no
garfo, a sua voz gutural quando diz o Benedicte e as cicatrizes que lhe saem
da manga. Sentem-se constrangidas pela sua própria aversão, confessam-
no, mas nada resolve o problema: têm medo e prefeririam que essa prova,
viver ao lado da Negra, não lhes tivesse sido enviada. Bakhita continua
negra sob o uniforme, como uma falta imperdoável, um pecado sem
remissão.

A Madre Fabretti vê tudo isso, o medo de algumas das « lhas», e a


humilhação de Bakhita. Um dia, leva-a à igreja de Santa Maria della Salute.
Sobem os degraus de mármore que parecem nascer da água e é como entrar
num ventre enorme, branco e frio. A igreja orgulhosa, célebre e honrada,
com as colunas, as cúpulas, as múltiplas capelas, as inúmeras estátuas, as
pinturas de mestres. Bakhita inclina-se, persigna-se com a água da pia de
água benta, impressionada pela riqueza secular, a devoção imemorial. A
Madre Fabretti avança até ao altar-mor, diante do qual as duas se ajoelham
em silêncio. Bakhita fecha os olhos. Sente à sua volta as vozes dos visitantes
e as preces sussurradas daqueles que acendem os longos círios inclinados. O
ar traz uma humidade fria, correntes de ar minúsculas atravessam a
basílica. Ela abstrai-se disso e concentra-se na oração. Mas a Madre Fabretti
dá-lhe umas pancadinhas no braço.
– Olha, Giuseppina, ela é como tu.
Bakhita não compreende. O que deve olhar? «Como tu», pensa que é
«noviça», ou «recolhida», «ajoelhada». «Como tu.» As palavras que nunca
lhe dizem.
– Olha. Ali! O ícone!
Por cima do altar-mor, a Madonna está coberta de ouro, tem uma coroa
ornada de pedras preciosas e, nos braços, o Menino Jesus está tão ricamente
ornamentado como ela. Os rostos são rígidos, as expressões, impassíveis, os
olhares, distantes. Bakhita não sabia que esta Madonna existia. Não pensava
que fosse possível. Nunca a viu antes. Em nenhum livro de catequese,
nenhuma estampa religiosa nem em nenhum sonho. No entanto, a Madre
Fabretti tem razão: esta Virgem e o seu Filho são como ela. Têm ambos a
pele negra. Olha-os e não compreende. De onde vêm? São realmente a
Virgem e o Filho, Jesus Cristo?
– São adorados pelos Venezianos há séculos, Giuseppina. Estás a ver?
Compreendes agora que és como as outras?
– É a Madre?
– Claro, é a Madre. A Madonna Negra.
– E os anjos também.
A Madre Fabretti nunca tinha reparado neles, mas é verdade, em
segundo plano, os dois anjinhos têm o rosto negro.
– Estás a ver, Giuseppina, vocês são cinco negros: um, dois, três, quatro,
cinco. E eu… estou completamente só. A única branca.
Bakhita sorri.
– Então, eu protejo-te!
E tentam não rir muito alto na imponente basílica que alberga aquele
alívio inesperado.
Vieram, apressados e curiosos, ao convento de Santo Giuseppe de
Verona para a verem. Ela fecha os olhos e esse rumor vibra contra as suas
orelhas, preciso e rápido, e, ao mesmo tempo que a tesoura se fecha e os
seus cabelos caem, sente um profundo alívio, bem como um grande pesar.
Perde um pouco de si mesma, dos gestos e da grande paciência da mãe
quando lhe entrançava os cabelos com as pérolas de que tanto se orgulhava.
Ela achava-a bela e era. Quando movia a cabeça, as pequenas pérolas
batiam-lhe no rosto, gostava disso. Lembra-se, essa recordação é nítida,
precisa, e é apenas sua.

Fica imóvel, direita, de olhos fechados, não vê o que os outros


contemplam: os cabelos crespos que utuam um pouco antes de cair,
indecisos, leves como uma pluma. Eles contemplam e não sabem. A cave, o
buraco de terra no alto da parede que ela tentava aumentar esfregando nele
os cabelos, ela tinha sete anos e era o início do cativeiro, o grande pesadelo
imperecível. Lembra-se de uma esperança louca e também de que aquilo
apenas começara. Olham-na, gostariam de tocar nessas madeixas, de
apanhar uma, guardá-la num medalhão que mostrariam aos amigos com
uma superstição fanfarrona e diriam, rindo: «Toca no amuleto!»

Pensa em Mimmina, que não conseguia adormecer sem lhe tocar nos
cabelos, e ela não dizia nada quando a criança, ao virar-se, os puxava com
força, porque era bom ser amada àquele ponto. Ao ponto de acompanhar a
pessoa que se ama até ao nal da noite. Sente agora a lâmina da tesoura
contra a cabeça. Pensa nela batida contra o chão, na violência de Samir, na
sua impureza. Mas hoje, celebra os seus esponsais. Hoje, 21 de junho de
1895, é o primeiro dia do verão, é a festa do Sagrado Coração. Vai desposar
Aquele que nunca a deixará e a amará tanto que uma única vida não
bastará, e haverá uma outra depois, eterna e sem falhas. Hoje vai vestir o
hábito das Irmãs Canossianas, semelhante ao traje das mulheres do povo,
vestido castanho, xaile e touca pretos, porque é junto do povo que essas
irmãs vivem para «consolar, instruir e tratar» os mais pobres. Passa a mão
pela cabeça sem cabelos, não tem espelho e não se vê. Mas, na assistência,
todos a veem e reconhecem. Com os cabelos rapados, é semelhante às
escravas fotografadas no jornal, desenhadas nos livros dos exploradores,
botânicos, missionários, médicos. Imaginam-na com a forquilha no
pescoço, a corrente no pé, choram de piedade e, alguns, também, devido a
um pouco de vergonha inexplicada. Todos sentem o mesmo alívio por não
fazerem parte «dessa raça».

Depois, será vestida e cobrirá a cabeça como as outras religiosas,


proferirá os primeiros votos, o seu hábito será o hábito de penitência. Isso
acontecerá na casa mãe, a grande igreja de ouro e de mármore. Teria
preferido a capelinha do Dorsoduro, mas obedece com o fervor daquela que
está pronta para todos os sacrifícios, que os espera até em segredo, prova do
seu empenhamento indefetível. Depois dos votos de pobreza, de obediência
e de castidade, chama-se «irmã Giuseppina Bakhita» e recebe a medalha da
Ordem das Filhas da Caridade Canossianas, marcada com as iniciais M. D.,
Mater Dolorosa. É aceite na comunidade daquelas que recolhem as crianças
enjeitadas e perdidas.

Quando regressa a Veneza, os habitantes precipitam-se para o instituto,


prosternam-se a seus pés, beijam a medalha e pedem-lhe que reze por eles.
Já não lhe chamam «a Moretta». A Negra. Também não lhe chamam «irmã
Giuseppina». Para as pessoas do povo, é e cará até à sua morte la Madre
Moretta. Mãe e Negra. Semelhante e diferente. Aceite e isolada.

Três anos depois de ter tomado o hábito, já com mais de trinta anos,
continua a não saber escrever. Aplica-se na leitura. Fala um pouco melhor o
veneziano. Borda. Reza. Obedece às ordens e gosta daquele enquadramento
tranquilizador, aqueles dias que se assemelham, ritmados pelas orações,
vigílias, laudes, sexta, vésperas e completas. Entre todos os laudes, gosta das
orações da aurora. Nunca transpõe a cortina de veludo negro sem pensar
novamente nessa primeira manhã em que, descalça na soleira do quarto,
vira passar as freiras e se assustara com elas. No entanto, era feliz. Mimmina
dormia na sua cama. Nunca mais voltará a conhecer a felicidade dessa vida
partilhada com uma criança que descobre a vida e nos impele a descobri-la
também. Acabou. Segurar a criança contra si, cantar para ela pousar a mão
na garganta que vibra, espreitar a primeira estrela e o aparecimento da Lua,
partilhar uma linguagem, uma cumplicidade e uma intimidade únicas.
Acabou. O odor quente da pele, a mão dela na sua e o olhar que diz «Espero
tudo de ti». Acabou. Está ali onde desejava estar e lutou para tornar-se a
religiosa que veio a ser. Ninguém voltará a ser alguma vez a sua lha, e
ninguém a substituirá.

É ela que se torna, ao longo dos anos, a lha da Madre Fabretti. Esta é
uma freira idosa, cada vez mais alegre, como se a divertisse esse movimento
do mundo, vaidoso e desorientado. Mantiveram o hábito da passeggiata, o
seu passeio nos cais, ao nal da tarde. Caminham mais devagar, a Madre
Fabretti apoia-se no braço de Bakhita e pensa que a irmã gémea talvez
caminhe assim com a sua mãe, que envelheceu. Falam pouco, contemplam a
luz do poente, as ilhotas submersas, o movimento das marés, dão as mãos
com uma ternura rápida. Por vezes, a Madre Fabretti pede a Bakhita que
recorde. Agora que tem mais vocabulário e que a sua vida acalmou, faz-lhe
perguntas. E as coisas voltam. Recordações tão violentas que parecem não
lhe pertencer e outras que reconhece e não ousa dizer. Por pudor e com
medo, também, de chocar a Madre, essa velha senhora italiana que vem de
uma família abastada. Àquela religiosa que ofereceu a vida aos outros hesita
quanto a dizer o que faziam aos escravos, mas, apesar do sofrimento que aí
há, recorda as imagens do calvário. É bom dizer àquela que a ama o que
viveu. A Madre Fabretti deixa vir os silêncios e as lágrimas, desenreda as
frases incompreensíveis, ouve com um amor perturbado. E quando ela diz
«Minha querida…», Bakhita sabe que acabou. É a hora de regressar. Vai
regressar, rezar e deitar-se, levantar-se-á para rezar de novo, não se
levantará para gritar na noite as recordações da inumanidade.

É um vínculo lial e é um tempo feliz. As autoridades eclesiásticas


acham que, nestas condições, é demasiado fácil. A fé da irmã Giuseppina
surge de um modo simples e natural, tudo lhe é dado. Chegou a hora de
saber o que tem realmente no coração. Chegou a hora de a pôr à prova.
Uma noite, depois das vésperas, comunicam-lhe que acabou. Esta casa onde
viveu treze anos, sete deles enquanto religiosa, já não é a sua casa. Para
dizer adeus à Madre Fabretti, no dia seguinte, nem sequer tem tempo para
uma passeggiata. Será de manhã, no parlatório, no meio de toda a
comunidade, sem favoritismo nem enternecimento. As duas estão
estupefactas, como que atordoadas, e deixam-se sem manifestação de
fraqueza nem de apego. Essa dor sem lágrimas e sem revolta oferecê-la-ão a
Deus, o Senhor que exige um amor sem partilha.
É quase meio-dia quando a irmã Giuseppina sobe para a gôndola que a
conduz à estação ferroviária, rumo a uma cidade cujo nome não conhece.
Encontra vida anterior, os antepassados e todos os párias da sua espécie,
os escravos eternos, os negros para sempre. Carrega dentro de si essa
maldição e o fascínio por tudo o que imaginam dela e que não é. Causa
medo às crianças, desagrada aos idosos e atrai os homens, como um animal
que desejariam domar para testar o próprio poder e revelar a sua
supremacia. Está sentada e cala-se, disseram-lhe para se calar, a sua voz
descobri-la-ão mais tarde, haverão de temê-la e de imitá-la entre eles, agora
e por todos os séculos dos séculos. Está sentada há horas e a dor puxa-lhe
pela coxa ferida, a perna tem a corrente fantasma, ela própria não é mais do
que um espetro e a sua imagem é roubada. Não os olha: com os olhos no
chão ouve-os, um veneziano com um sotaque diferente, mais pesado, breve
e fechado, que dá à palavra o peso da condenação. Está sentada, eles estão
de pé e até as crianças a dominam. As velhas quebradas têm o rosto ao nível
do seu e persignam-se fazendo esgares. Quando regressarem a casa, farão
rituais que expulsam os espíritos malignos, farão sacrifícios discretamente
para que a nova geração não troce e não inter ra com as suas súplicas. Está
sentada e carrega o medo e a ignorância delas, dá-lhes a alegria da reunião e
da partilha chocada. Por uma vez, todos, desde os oprimidos, que
começaram a trabalhar na infância, os doentes e raquíticos, os explorados
por patrões que nunca verão, as grávidas de crianças que vão morrer na
primeira infância ou que as trocarão pelas Américas, analfabetos na sua
maioria, os bastardos enviados em breve para o seminário, os revoltados
rapidamente domados pelo serviço militar, a pequena burguesia receosa, os
lojistas endividados, os pastores mais selvagens do que os próprios
rebanhos, os camponeses mais esfomeados do que os seus cães: todos a
olham e a lamentam. É melhor do que a festa das colheitas, o São João ou as
procissões, melhor do que o teatro, melhor do que os pífaros e as danças,
melhor do que a Virgem levada pelas ruas entre gritos e choros sonoros. É
um remédio comum, uma prece sem palavras e um riso que une. Sufocam
esse riso que toma conta deles, esta negra está vestida como uma religiosa,
esta negra é uma religiosa. Sentem a blasfémia que seria rirem-se ao vê-la e,
quem sabe, se ela iria maldizê-los em seguida, se atrairia sobre eles a cólera
do demónio? Mas, então, de que é feita? Vem do ventre de uma mulher e
com que se parecia essa mulher, era totalmente humana, tinha os pés na
cabeça, ou então…? Há pensamentos que é melhor expulsar, visões que é
mau ter e alguns ajoelham-se e caem em oração diante de tudo o que de
perigoso e violento suscita neles esta mulher negra sentada no pátio do
convento. Há dois dias que está exposta, alguns vieram duas vezes para se
habituarem e terem menos medo, como lhes explicaram as irmãs do
instituto. «Habituarem-se e terem menos medo», mas mesmo assim não se
lhe veem os olhos e distingue-se mal o seu rosto. Por vezes, a madre
superiora aproxima-se e fala-lhe ao ouvido, e então a negra levanta a cabeça
lentamente. A assistência solta um grande grito de horror suave. Os seus
olhos negros estão banhados de um branco tão puro que se diria que foi
roubado do véu da Madonna. Uma criança atira-lhe um pouco de água e
leva uma bofetada, começa a chorar ruidosamente: queria ver apenas se a
sua cor desaparecia com a água. Castigam-na, mas compreendem-na. Será
que aquilo desaparece? Ela não sabe falar, mas saberá chorar? E se chove?
Oh doce Jesus, aquela mulher, as irmãs poderiam expô-la uma e outra vez
que eles não compreenderiam nada! E em breve querem-lhe mal por causa
do incómodo que a sua visão provoca neles. Estavam mais tranquilos antes,
será que precisavam disto aqui? Vão-se embora, desiludidos e amargos,
sentindo mesmo assim, ao longo da espinha, um arrepio de horror cuja
doce sensação haviam esquecido até.

Quando aquilo acaba, com o corpo dorido e a alma siderada, corre


tanto quanto pode, coxeando mais do que é costume, até ao quartinho
onde, passado o tempo da estupefação, chora. Chora tanto que o seu corpo
é agitado por um pesar furioso, solta soluços roucos como o animal que é,
arrepelaria os cabelos se os tivesse, arranharia o rosto se não se contivesse,
está à beira da loucura porque sabe que essas pessoas, todas essas pessoas,
vai ter de as encontrar diariamente, de aprender a conhecê-las e, sobretudo,
vai ter de as amar. Está ali para isso. Para esquecer a Madre Fabretti e abrir-
se àquelas pessoas, habitantes de uma cidade cujo nome não consegue,
decididamente, reter, um nome breve como uma serpente que passa, um
nome como uma ordem rápida e impiedosa.

A porta da sua cela abre-se, a madre superiora pousa-lhe a mão sobre o


ombro. Pede-lhe que seja razoável. Era obrigada a expô-la para pôr termo
ao pesadelo. Desde que chegou ao instituto, está tudo subvertido, a vida tão
ordenada do convento está virada do avesso, já não se pode trabalhar, nem
rezar, e as alunas não queriam ir às aulas. Mostrou-se de uma vez por todas.
Isso não é melhor do que ouvir um berro sempre que se cruzar com
alguém? Pode compreender que assustava as irmãzinhas que nunca tinham
visto uma negra; que não ousavam tocar numa porta depois de ela lhe ter
tocado, com o medo de se sujarem; que já não ousavam levantar-se de noite
com o medo de chocarem com ela. E a irmã roupeira, não é normal que se
tenha recusado a ocupar-se dos seus lençóis? Como é que poderia adivinhar
que não desbotava?

Está esgotada e desejaria dormir, sonhar que está algures, num lugar
onde não esperam nada dela, a escrava perdida entre as escravas, a negra
misturada com as caravanas do deserto, a rapariguinha que se rouba e
depois se deita fora, a invisível, a que pode ser esquecida, a que não vale
nada, nem sequer um saco de milho. Depois tem vergonha, tanta, desse
sentimento que se parece com a morte. Pensa no escravo Jesus Cristo, não
suportou também as cuspidelas e os risos da multidão? Não quer comparar
a sua vida à d’Ele. Não é nada, Ele é tudo. Quer apenas deitar-se um pouco e
que Ele a guarde, depois rezar-lhe-á, honrá-lo-á, mas esta noite não ser
amada: levaria demasiado tempo.

Sonha com o fogo. Sonha com Binah que tem dores de dentes terríveis.
Tem o rosto en ado na terra e já não quer sair de lá. Bakhita chama-a, diz-
lhe que têm de partir, o fogo está a chegar, tem de vir com ela, mas Binah
diz que não virá, que lhe doem muito os dentes. Bakhita chama-a de novo e
Binah transforma-se, estranhamente, na pequena Yebit, morta sob a tortura
da tatuagem. É prisioneira da tatuadora, cuidada por uma escrava, e
Bakhita está ajoelhada perto dela, dando-lhe de comer com uma enorme
colher. O corpo da criança convulsiona-se e sangra, no entanto come
calmamente, abre a boca a cada colherada. Em breve a cabeça separa-se do
corpo mas continua a comer. Bakhita grita, acorda a suar e, de imediato,
tenta ver se não manchou os lençóis. Espera que aquele grito não tenha
acordado ninguém: já têm todos tanto medo dela, o que vão pensar?
Levanta-se e abre a janela. É uma noite de outono, profunda e fresca. Schio
está protegida pelas montanhas, orlada pelo rio e as ribeiras. Há esse frio
que vem das águas, claro e rápido. Ouve os chocalhos dos animais nas
pastagens alpinas e, de longe em longe, um latido curto. Em seguida, o
silêncio que cobre tudo. Procura as estrelas e a Lua, mas é uma noite
enevoada, coberta de nuvens lentas. Desejaria ver uma estrela, apenas uma.
O vento sopra suavemente nas árvores do pátio, nos ciprestes imóveis, e o
castanheiro faz um ruído de tecidos agitados. Gosta desse ruído que se
parece com o das palmeiras nos ventos tépidos do Sudão. Uma nuvem
descorada abandona o céu e puri ca a noite. As estrelas são como cabeças
de al nete. Bakhita pensa que el Paron criou a noite para o repouso dos
homens e dos animais e também para nada. Para a beleza. Arregaça a
manga, estica o braço pela janela, move-o devagar e obriga-se a olhá-lo. E
talvez seja a primeira vez. O seu corpo está escondido de si mesma, já não é
o seu, carrega as cicatrizes profundas do chicote e as tatuagens escolhidas
pelas senhoras turcas, umas intumescências feias como serpentes cruzadas,
tem tanto medo das serpentes, e sente-as esticarem-se e rasgarem-se
quando se mexe a dormir, ou quando se prosterna, umas garras que tentam
retê-la. O seu braço parece-se com a noite, uma estrela poderia pousar no
punho, como uma ave. Quer esquecer o pesadelo que viveu, esquecer Binah
e a pequena Yebit, esquecer o fogo, mas enquanto expõe a palma da mão ao
ar da noite, compreende que se engana. Não tem de fugir dos sonhos, tem
de os ouvir. Binah está longe e ela é livre. Porquê?

É durante os laudes, essas orações da aurora de que tanto gosta, que


compreende a mensagem do seu pesadelo com Binah e a pequena Yebit
faminta. Entoa o cântico de Zacarias: «O juramento que zera a Abraão,
nosso pai, que nos havia de conceder esta graça: de o servirmos um dia,
sem temor, livres das mãos dos nossos inimigos…» Fica tão perturbada por
estas palavras que não pode continuar a cantar. Mantém-se de pé, tomada
pela revelação. Se quer servir el Paron, nunca mais deve sentir medo. Ele
colocou-a aqui, no meio de todos aqueles que a olharam com uma
curiosidade descon ada. «A isto, chama-se escravos», dissera Binah. Em
nome de todos aqueles com quem cresceu, todos os que viu nascer, sofrer e
desaparecer, chegou o momento de ir nalmente, sem medo, para junto do
povo.
Pede para acender o lume antes da chegada das alunas. Diz que gosta
disso, de ir buscar a lenha quando o dia se levanta e gostaria de preparar as
salamandras nas salas de aula. Pensa que, assim, verá chegar de manhã, por
vezes após horas de caminho a pé, as alunas, as do jardim de infância e da
primária. Ajudá-las-á a pôr a secar as suas roupas geladas à volta da
salamandra e a instalarem-se antes da chegada da professora. Mas dizem-
lhe que esse não é o seu lugar. Está adstrita às cozinhas, que cam na cave, e
se quer acender o lume, tem muito que fazer: a cozinha tem três fornos a
lenha e uma lareira principal. Todos os dias é preciso preparar mais de
duzentas refeições para as órfãs, as alunas do jardim de infância e da escola
primária, as educadoras e as irmãs. Trabalha sob a direção da irmã
cozinheira, com duas órfãs de cerca de quinze anos. É um trabalho que
nunca para, começa à aurora e só termina quando todos estão deitados. Põe
tanto ardor na preparação das refeições, investe tanto empenho e cuidado,
que em breve escarnecem: «A Madre Moretta tem sempre o ar de estar na
igreja!» Troçam. E invejam-na um pouco. A escurinha sorri ao acender os
fornos, ao descascar as batatas, ao arear os tachos, ao esfregar o chão e ao
transportar as marmitas. Trabalha como se a vida dependesse disso. Deve
ser a alegria negra de que falam nos jornais, são pessoas que estão
habituadas a trabalhar e a obedecer. Um povo sem revolta.

Não sabem que ela compreende o que dizem e que tem a paciência dos
seres salvos. Não se apercebem da alegria que tem em preparar as malgas
para as órfãs do instituto e as lhas dos camponeses que vêm de longe, e
não todos os dias, apenas naqueles em que não ajudam nos campos. E, se
pudesse, até trabalharia de noite, daria o seu repouso, todas as horas de
sono, por uma única fome saciada. A primeira cozinheira, que a vê aquecer
as malgas das crianças para que comam sempre a comida quente, preparar
pratos especiais para os doentes e dobrar por vezes as rações, previne-a: «É
demasiado, Madre Moretta! As crianças não precisam de comer tanto.»

É falso. As crianças precisam de comer muito mais, só que não o dizem.


As crianças têm fome e ninguém se apercebe. Ela sabe. Sabe quando se
perde o hábito de comer e o de pedir. Sabe que é preciso tempo para cativar
uma criança infeliz. Vai encontrar uma forma de chegar junto delas.
Trabalha depressa, bem e ganha sempre alguns minutos para subir da cave
ao refeitório, à enfermaria por vezes. En a pão e um pedaço de queijo nos
bolsos das crianças, baixa-se até ao nível delas para lhes falar, as mais
pequenas chamam-lhe «Mare Moretta», «Madle Moletta» ou então «Moetta
Bella», e em breve esperam-na, exigem a presença dela batendo com os
punhos na mesa e entoando o seu nome. Ela vem ralhar-lhes por esse
barulho que zeram. É doce, tem uma autoridade calma e muito
rapidamente se torna mais do que uma ajudante de cozinha: torna-se
alguém de quem se precisa. Gostam dela pelos mesmos motivos por que a
tinham rejeitado. A sua diferença dá segurança porque, no fundo, quem é
que, entre essas crianças e essas adolescentes do instituto, se sente no seu
lugar? Quem não é ameaçado? Schio é uma cidade próspera para quem
trabalha na ação Cazzola e sobretudo na Alta Fabbrica, que é assim que
chamam ao enorme edifício que domina e faz viver a cidade, a fábrica de
ação Lanerossi. Mas os outros? Ser operário na Lanerossi é estar salvo. É
ter um trabalho, viver no bairro operário, pôr os lhos na escola da fábrica,
receber cuidados médicos, ir à escola dos adultos, ao teatro e ter acesso ao
clube de leitura. Mas os outros? Ser «um Lanerossi» é ter o orgulho de
pertencer à fábrica modelo, participar no esplendor da cidade, do Véneto e
da Itália reuni cada. Ser «um Lanerossi» ser o exemplo vivo do que a Itália
pós-unitária dá ao povo doente e embrutecido: a educação e a cultura. Os
operários da Lanerossi, homens, mulheres, crianças, são alfabetizados,
educados e o seu trabalho exporta-se para toda a Europa. Ser «um
Lanerossi» é uma oportunidade. Evidentemente que é preciso vergarem-se
aos horários, ao regulamento, não contestar o salário, mas é preciso,
sobretudo, não adoecer nem se ferir. Porque sair da Lanerossi é sair do país,
enviar o salário e as mentiras a uma família que nunca mais voltarão a ver,
para um país que os esquecerá. No alto de Schio há a cidade concebida pela
Alta Fabbrica, próspera e orgulhosa, e mais abaixo há a outra, a antiga, a
cidade dos camponeses, dos criados, dos pequenos lojistas, dos
funcionários municipais, das mulheres sós, dos velhos e dos doentes.

As crianças reconhecem-se na Madre Moretta. Tal como ela, fazem-se


compreender através de uma linguagem com poucas palavras e, como ela,
procuram o seu lugar. Observam o mundo, o local onde as metem: o
instituto ou os campos, as pastagens alpinas ou a escola, a família ou a
ausência desta. Ao longo dos meses, a Moetta Bella sobe cada vez mais
frequentemente da cave, sai da cozinha para vir ter com elas ao pátio.
Conta-lhes histórias da rapariguinha que dorme nas árvores, do animal
selvagem que queria comê-la, conta histórias que terminam bem, histórias
verdadeiras, representa-as com gestos, tem aquela forma de olhar, com
silêncios imensos, os seus olhos nos das crianças, e então os olhares
misturam-se como beijos. As meninas fazem um círculo em seu redor, no
pátio do recreio, sentam-se no chão e ela também se senta, nunca quer estar
no banco. É engraçado ver uma freira que suja o hábito sentando-se no
chão. Antes de as deixar, pede-lhes sempre que deem as mãos e digam
baixinho: «Não largo a tua mão.» Em seguida, levanta-se com um esgar
porque lhe dói a coxa, bate as palmas e as crianças dispersam-se, um pouco
atordoadas, um pouco sonhadoras. Algumas voltam subitamente para ela,
atiram-se contra as suas pernas e depois vão-se de novo embora. Pousou-
lhes a mão na cabeça, era tudo o que queriam. Ela sabe o que elas não
sabem dizer. Conhece as doenças, a pobreza e a vergonha da pobreza. Tem
sempre linha e uma agulha no bolso e cose, à socapa, os rasgões e os bolsos
furados, vê as nódoas negras que escondem, apercebe-se de que têm dores
pelo modo como se mantêm de pé, como andam e se recusam a brincar.
Não é uma adulta como as outras, não ensina nada, nem as regras de
higiene, nem o catecismo, nem a leitura ou o cálculo. Mas é ela que vêm
procurar para alimentar uma criança doente que não quer engolir mais
nada, para consolar uma menina que se magoou e chama por ela, é ela que
as crianças chamam quando atravessa o pátio, faz-lhes pequenos sinais com
as mãos e afasta-se com o seu passo rápido, um pouco cambado. Gritam e
atiram-lhe beijos que ela recebe sem os ver. As crianças amam-na como se
ama aquela que nunca as trairá. Cheira a calor e a sua voz é lenta e grave. É
negra como uma noite suave, é aquela que encontramos de imediato no
meio das outras, a que não tem igual, uma criança gigante e aquelas que
regressam a casa ao m do dia não falam nisso, guardam para si a
descoberta da Moetta Bella e fecham os lábios quando os pais lhes
perguntam se a negra tem mau-olhado.
Sabe que não pode afeiçoar-se a nenhuma dessas alunas, admitidas a
partir dos cinco anos de idade. Sabe que não deve afeiçoar-se a nenhuma
das órfãs que crescem no instituto, até arranjarem um emprego ou casarem.
Sabe que não deve afeiçoar-se a ninguém, a não ser a Deus. É o que dizem,
mas não acredita nisso. Aquilo em que acredita é que é preciso amar além
das próprias forças, e não teme as separações: deixou tanta gente, encheu-se
de ausências e solidões. É o que faz agora, ajudar nas cozinhas e contar
histórias às crianças, foi precisamente para isso que veio ao mundo. Mal
deixa a cozinha ou as meninas, vai rezar para a sacristia, esse refúgio atrás
da igreja que dá para o pátio do recreio. De lá, ouve os gritos das pequenas e
recolhe-se nessa onda de voz absorvida pelo silêncio da sacristia, como o
sol numa água clara. Fala a el Paron e Ele nunca a rejeita, esse amor é para
sempre, é o grande campo onde repousa e tem a sensação de que o seu
coração vai explodir de alegria e dor. Está como que tolhida de
reconhecimento e aplica-se a dar o melhor de si mesma, tudo o que pode.
As histórias que conta às crianças são as de uma infância dulci cada, as
provações vividas transformam-se em aventuras, o seu desespero, num
grande susto. À força de des ar o rosário das próprias recordações, as
imagens a uem, brutais e verdadeiras. Por vezes, falta-lhe o fôlego e a
angústia sobe nela como um calor, envolve-a, mantém-na apertada, tem de
se levantar de noite para não sucumbir ao pânico. Essas recordações são
reais? Do que o espírito escondeu, o corpo é testemunha e, pouco a pouco,
harmoniza os dois, aceita o que lhe aconteceu e não pode ser de mais
ninguém, de mais nenhuma vida além da sua. Reconstitui lentamente a
família, a aldeia onde nasceu, o tempo de antes, mas o seu nome próprio,
não o encontra. Ficou lá, um nome que em Itália seria difícil pronunciar,
seria apenas uma deformação daquele que só a mãe pode dizer. Então, até
mesmo este esquecimento imperdoável ela aceita, e a vergonha que sente
torna-se o segredo da sua mãe.
Em 1907, cinco anos depois da chegada a Schio, aquela que esteve
exposta durante dois dias como um animal selvagem que foi domado é
nomeada primeira cozinheira do instituto. Bakhita tem trinta e oito anos. A
madre superiora entrega-lhe as chaves da cozinha e destaca três órfãs,
Anna, Elena e Elvira, para o seu serviço. Chaves da cozinha, dos armários,
da despensa, da cave, do armazém, é um molho pesado e é um gesto de
reconhecimento. Anna e Elena contam histórias que são ouvidas com uma
curiosidade divertida:
– Ontem, a Moretta escondeu a farinha de milho! Não pudemos fazer a
polenta, ela queria que improvisássemos outra refeição. Disse-nos:
«Meninas, depressa, uma ideia!» Corremos para o jardim e apanhámos e
descascámos tantas curgetes que ainda temos as mãos verdes!
– No outro dia, quando estava a chover muito, mandou-nos juntar
cravo-da-índia e cebola a todos os pratos. Dizia: «As crianças têm frio.» Ela
trata antes da doença! O Dio! E eu, com todas aquelas cebolas, chorei a
manhã inteira!
– Oh Jesus Maria José, sejam caridosas, não trocem!
Não troçam muito, as freiras e as órfãs estão contentes por saber que vão
comer bem, que não haverá desperdício nem imprevidência, e que os
visitantes, eclesiásticos e famílias, expressarão admiração pelo modo como
é gerida a cozinha do instituto de Schio.

Elvira não conta o que se passa na cozinha. Pediu para trabalhar lá para
estar com a Moretta. Não é dotada para cozinhar e não tenciona, ao sair do
orfanato, arranjar um emprego de criada. Gosta de desenhar e pintar, mas
nas cozinhas está com a Moretta, que conhece desde os dez anos e de quem
gosta tanto. Trabalha nessa cave escura com as paredes cobertas de vestígios
de fuligem, nesse ambiente atarefado e generoso, e cada um dos seus dias é
protegido. Elvira é uma adolescente grande e robusta, cujo corpo se conjuga
mal com a nura do rosto liso e anguloso, os olhos castanhos e vivos, os
lábios pálidos. Dir-se-ia que aquele rosto se enganou no corpo ou, pelo
contrário, é protegido por ele, como uma jovem frágil transportada por
uma atleta. No jardim de infância, Elvira era enfezada, um busto cavado,
pernas nas como canas e caía tanto que os joelhos magoados não tinham
tempo de cicatrizar. Ao longo do tempo, concentrou-se em si mesma para
se fortalecer, atravessou a infância como um terreno minado e venceu.
Desde os dez anos que conhece as histórias da menina negra que foi criada,
a ouvir «Se gritas, mato-te», e que não grita, a menina que dorme na árvore
e não é devorada pelos animais selvagens, a escrava que caminha pelo
deserto e sobe para o barco gigante depois de ter suplicado ao atencioso
cônsul italiano que a levasse consigo para o país que salva os africanos. Tal
como a Madre Moretta, Elvira não tem família, a infância é um campo
inculto onde lhe é difícil desemaranhar as recordações reais da história que
inventa, a infância está atolada num tempo distante que treme como uma
paisagem entre as pestanas, vacila e desaparece. Sabe que a mãe ainda é
viva, não muito longe, do outro lado dos Alpes. Espera-a sem acreditar,
talvez sem o querer. A mãe escreve a dizer que virá e nunca vem, cada carta
é um acontecimento que desilude. Porque é que não vem? Porque é que
escreve? Lembra-se realmente da lha?
– E tu – pergunta-lhe Bakhita –, lembras-te?
– Lembro-me do que me contaram. Pouco tempo depois de ter
emigrado para Genebra, viu que estava grávida, mas, na Suíça, as
imigrantes não tinham o direito de ter lhos. Então, alguns dias depois do
parto, ela deu-me aos meus avós que tinham cado na aldeia. Foi o meu avô
que me trouxe para Posina. Eu não pesava mais do que um bácoro, dizia ele,
e era branca como o leite. Lembro-me de que ele dizia isso, o bácoro e o
leite, e imaginei sempre que eu era um leitãozinho de fraldas. Tinha cinco
anos quando eles morreram, ele e a minha avó. Tive muita sorte.
– Sorte?
– Tive uma boa mãe. Alimentou-me. Não pôs óleo nos seios, como
faziam as outras.
– Que óleo?
– Óleo de cânfora, para que o bebé não mame. Muitas mulheres
emigradas esfaimavam os lhos, paravam pouco antes de eles morrerem.
Então, traziam-nos para o orfanato.
– Ela ama-te.
– Madre, vou ensinar-te as conjugações.
– O quê?
– Vou ensinar-te os tempos. Não podes falar sempre no presente,
porque então o que dizes não está certo.
– Não. O que eu digo está certo. Penso-o.
– Não. Tu dizes que a minha mãe me ama. É tão falso como se dissesses:
«A tua mãe vem.» É preciso dizer: «A tua mãe amava-te» e «A tua mãe
virá».
– A tua mãe virá. E amar-te-á sempre. Bom, agora, é preciso trabalhar.
Bakhita dita as encomendas a Elvira, calcula as quantidades, prevê, e a
sua vida encontra novos pontos de referência. O ponto de referência mais
tangível é Clementina, com os lhos a que Bakhita chama os seus
«sobrinhos». Stefano morreu de repente no ano anterior. Chorou muito esse
homem providencial e bom, mas ele cumpriu a promessa e agora ela tem,
como as outras freiras, uma família. Tem visitas, encomendas postais e
fotogra as na mesa de cabeceira, colocadas ao lado das estampas sagradas e
da estatueta da Virgem. Com Elvira, aprende a falar no futuro e no passado,
e isso modi ca os acontecimentos, ordena-os e classi ca-os. Um dia, Elvira
mostra-lhe os desenhos que fez da pequena escrava que dorme nas árvores.
Fica sem voz. Naqueles desenhos, é ela. É tão pequena, tem um ar astuto e
expedito, mas, sobretudo, parece «doce e boa».
– Como sabes? Como sou.
– Como era, Madre! No passado!
– Não. É como sou. Agora. No desenho, reconheço-me, agora.
Elvira agarra-lhe no pescoço e beija-lhe as faces que cheiram à barrela.
Gostaria de a apertar contra si, mas isso não se faz. Nem efusões, nem
favoritismos. No entanto, parece-lhe que quando ela diz «Madre», a palavra
não é a mesma que para as outras irmãs.
– Amanhã, trago-te outros desenhos. Desenharei a menina que guarda
as ovelhas.
– Não são as ovelhas. As vacas.
– As ovelhas, as vacas, não importa. O que me interessa és tu.
– Mas são as vacas. É mais difícil. E as ovelhas… Não gosto delas.
Conto-te um dia porquê.
E repetem-se, e espalham-se as histórias da Moretta e, aos olhos da
comunidade, é como se ela crescesse, lhes escapasse um pouco, tomasse a
forma de uma pessoa complexa. Humana da mesma maneira que eles.

A cozinha é o seu reino e o seu orgulho. Levantar-se todos os dias para


alimentar as crianças acalma o sentimento de culpa que existe em estar
salva e tão longe dos outros. Mas, uma manhã, a madre superiora, Madre
Margherita Bonotto, comunica-lhe que acabou. Já não vai trabalhar nas
cozinhas. É como uma rasteira, uma queda lenta e ela pergunta-se em que
irá investir agora o amor e a alegria.
– Madre Giuseppina, afeto-te à sacristia. Compreendes o que isto
signi ca?
– Sim, Madre. Agradeço-lhe.
– Ser sacristã é mais importante do que ser cozinheira. Ocupaste-te dos
alimentos dos homens, agora serás tu que prepararás a refeição na Casa do
Senhor, as hóstias e o vinho da eucaristia.
– Obrigada, Madre.
– Não tens um ar muito feliz.
– Mas estou.
– Claro que teremos de nos habituar a comer menos bem, deveremos
todas oferecer ao Senhor esse… pequeno sacrifício. Entregas-me as chaves,
Madre Giuseppina?
As suas mãos tremem e as chaves fazem aquele barulhinho de metal de
que não gosta. Culpabiliza-se por viver essa mudança de cargo como uma
separação. Ser sacristã é uma honra e uma grande responsabilidade, sabe-o.
Entrega as chaves da cozinha, está desorientada e magoada.
– Vou dá-las à primeira cozinheira, volto dentro de uma hora e dar-te-ei
as outras chaves, as novas. Uma hora, compreendes quanto tempo é?
Ela olha pela janela a sombra do grande castanheiro do pátio.
– Sim. Dentro de uma hora, estou… estarei aqui, Madre.
Inclina-se e vai embora com o passo lento. Conserva esse hábito de se
manter encostada às paredes para que a vejam menos, para não assustar.
Senta-se num banco no corredor e ouve as crianças recitar o catecismo
antes de a aula começar. Aprendem em italiano, a língua de todos os livros.
Também elas têm de esquecer o seu dialeto, e ela sabe como é difícil pensar
calmamente quando temos de falar uma língua que é mais fugidia do que a
água corrente. Repete para si própria que cumpre a vontade de el Paron.
Repete a si mesma que está salva e é a bem-aventurada lha de Deus, que é
uma honra que lhe fazem. E não sabe onde meter aquela mágoa
desarrazoada. Dizem que vai fazer quarenta anos e eis que chora diante da
sala de aulas, olha as suas mãos nodosas e sente-se sozinha como não tem o
direito de se sentir. Então levanta-se e vai para a sua cela. Tenta caminhar o
mais direita possível, de cabeça erguida, morde os lábios, a respiração é
ruidosa, sente-se aliviada por não se cruzar com ninguém, nem nos
corredores nem na escada. Vai viver longe das outras este desgosto pesado
que, sabe, só se apaziguará com uns prantos de uma violência tão
surpreendente como habitual. «Julgamos sempre, quando estamos infelizes,
que o seremos sempre, não achas, Madre?» Tivera di culdade em
compreender o signi cado desta frase de Elvira. Pensara nela durante muito
tempo e dissera que não concordava. Quando está infeliz, sente que regressa
de algum lado, um lugar onde deixou alguém que quereria trazer consigo.
Mas que não vem. Teria desejado acrescentar que, quando está feliz, sente
que sempre o estará. Mas atrapalhou-se e disse apenas: «Quando estamos
infelizes temos de fazer uma coisa, nada mais. Temos de con ar.»
Vai ser difícil deixar de alimentar as crianças. Deixar de ir ter com elas
ao pátio. Deixar de as tratar, de as consolar, de contar-lhes a sua história. O
seu nome mal pronunciado por elas, os beijos e os risos, e essa
familiaridade que faz tão bem nessa vida religiosa vivida na contenção e no
respeito prudente. O trabalho que a espera na sacristia parece-lhe irreal, tão
imenso. Vai preparar a Casa do Senhor. Será ela que, todos os dias, abrirá as
portas da igreja. Preparará os ofícios, as vestes eclesiásticas, os livros, os
objetos litúrgicos, vasos sagrados, cálices, cibórios, ostensórios, estantes,
pias de água benta, bandejas, será ela que se encarregará de fazer com que
haja sempre hóstias, vinho, mas também carvão, incenso, círios, proteções
de chama, fósforos, buxo, terá de saber de cor os ritos e a sua ordem, será a
guardiã do Templo de el Paron. A serva.
Gosta de andar a pé pela cidade. Gosta de ir só, o que é excecional para
uma canossiana, mas sozinha pode caminhar lentamente, as pernas fazem-
na sofrer, e lentamente vê melhor, observa, com a sua longa silhueta
apoiada num guarda-chuva fechado, passeia-se por Schio como num
jardim. Dos sofrimentos físicos nunca fala. O seu trabalho é meticuloso,
sem falhas, é sacristã com paixão. Ninguém duvida de que os joelhos são
duas fogueiras colocadas nas suas pernas, de que tem dores ao andar, ao
ajoelhar-se, ao levantar-se, que todas as noites acorda porque a dor lhe corre
sob a pele e lhe rói os ossos. Caminha sobre os passeios desconjuntados de
Schio, com o rosto baixo, e o mundo chega-lhe cheio do seu furor
desordenado e ruidoso de crianças que brincam no meio das mulas e dos
cães, das carroças, das bicicletas, dos vendedores, da água suja e dos
detritos, inúmeras crianças que, tal como na sua aldeia, são responsáveis, a
partir do momento em que sabem andar, pelas que nascem depois delas.
Contempla as paredes amarelas e rosadas das casas fechadas, sente a
humidade dos pátios atravancados, a vida aparece numa urgência acelerada
e depois acalma-se por vezes, uma grande fadiga dócil. Caminha com
precaução no mundo que vive. Ainda há, haverá sempre, aqueles que terão
medo dela, que lhe chamarão a negra, o diabo, a macaca. Ela apercebe-se
disso e protege-se antecipadamente, com o seu sorriso um pouco cansado
do eterno combate. Há alguns dias, a madre superiora perguntou-lhe o que
eram aquelas histórias que ela contava às crianças no tempo em que estava
nas cozinhas. Não soube o que responder. «São histórias verdadeiras? – Um
pouco. – São histórias que te aconteceram? É a tua vida?» Começou por
dizer não. Depois apagou a mentira, disse que sim, arrependendo-se de
imediato. Teria preferido que a Madre Bonotto não lhe zesse a pergunta.
Lembra-se do processo em Veneza, lembra-se da festinha que se seguiu ao
seu batismo, lembra-se de todos os curiosos que vinham ao Instituto dos
Catecúmenos, lembra-se dos que lhe perguntavam porque não se revoltara,
porque não se vingara, e a pobre! Oh a pobre! Como lhes fazia pena. E ela
estava, aos olhos deles, como numa jaula, observada e condenada. Mas a
madre superiora quer saber e tem de obedecer. Preferiria fundir-se com as
paredes do convento, desaparecer na luz oblíqua da igreja, oferecer o seu
trabalho a el Paron e que Ele a guarde sempre, contudo a Madre Bonotto
pediu-lhe para ir ao escritório da Madre Teresa Fabris e ela foi. Sentou-se à
diante dela e obedeceu quando lhe pediu que contasse clara e calmamente
essas histórias da sua vida que contava às crianças.

Não sabia que o que iria dizer seria escrito. Falava e via o que dizia
transformar-se em palavras, umas sequências de manchas pretas, e pediu à
Madre Fabris que lhas lesse:
– «A minha mãe tem muitos lhos. A minha mãe é muito bonita. A
minha mãe contempla a manhã, sempre, quero dizer de manhã ela
contempla o Sol quando nasce. E lembro-me disso.»
Teve vergonha. Fala realmente assim? Como uma criança? Tem
quarenta e um anos e, escrita, aquela vida parece uma cantilena. Uma
cantilena ingénua e banal. A sua vida é banal, a sua vida de escrava é
parecida com a de milhares de outras, há séculos, mas ela está naquele
escritório e escrevem as palavras que diz aquela que «não se revoltou nem
se vingou». Queria fazer-se esquecer. Está prestes a chorar.
– Perdão, Madre Giuseppina, por remexer nestas recordações.
No entanto, a Madre não remexia em nada. Pelo contrário. Escrevia a
sua incapacidade para lhes dizer, para lhes contar. O que era preciso fazer?
Arregaçar a manga, a túnica, e mostrar as cicatrizes? Representar o rapto, o
trabalho, a violência e o medo? É Elvira que sabe, com os seus desenhos
conta melhor do que ela com as palavras. Apontou para a folha escrita e
perguntou:
– Madre, é para fazer o quê?
– Para saber. A tua vida. A África.
– A África?
– Sim, claro.
– Madre, perdão, mas… conheço o mapa. O cônsul mostra-me o mapa e
Giuseppe Checchini mostra-me o mapa. E a África… é grande. E eu… que
posso dizer?
– É preciso contar, Madre Giuseppina, as tradições, a alimentação, a
religião.
– A religião?
– Claro que sim. Antes de encontrar o verdadeiro Deus, que ídolos
adoravas?
– Pre ro passear no jardim.
– Giuseppina, compreendes o que te perguntei?
– Pre ro passear no jardim.
Passearam no jardim por detrás da igreja. Nesse início de outono, a luz
era clara e hesitante, o perfume acre das batatas e das roseiras bravas
lembrava a intimidade das casas, algo dessa divisões atravancadas e antigas;
estava um pouco frio para Bakhita e a Madre Fabris pusera-lhe um xaile
sobre os ombros. Tinha tanta ternura como ignorância e a sua boa vontade
desajeitada traía a falta de experiência. Bakhita perguntava-se como lho
dizer, em poucas palavras. Já conhecia algumas perguntas de antemão,
sobre os seus carrascos, o perdão, a conversão, e o que tinha para responder
parecia-lhe sempre diferente do que esperavam. Era diferente e também
mais simples. Os seus carrascos? Havia muito que os con ara a el Paron,
não se preocupava com eles, a não ser, é claro, quando decidiam fazer-lhe
uma visita nas longas noites de pesadelos. Todavia, está aliviada deles
porque Deus perdoa por ela. É Sua lha e Ele faz isso por ela. As suas
histórias são verdadeiras? Aquelas recordações são as suas? Mas nada é
verdadeiro, além da maneira como fazemos o percurso. Como dizer-lhe
isto? Em veneziano? Em italiano? Em latim? Não tem nenhuma língua para
isso, nem sequer uma mistura de dialetos africanos e árabe. Porque isso não
está nas palavras. Há o que vivemos e o que somos. No interior de nós. É
tudo. Perguntam-lhe se sente a falta da mãe, se sente a falta do pai e das
irmãs, da aldeia, e sente vontade de lhes dizer: como vós. Sim, como vós,
porque toda a gente ama alguém de quem sente falta. Mas não é isso que
querem ouvir. Querem ouvir a diferença, querem amar com esforço,
avançar para ela como se descobre uma paisagem perigosa, a África arcaica.
São sinceros, tão sinceros. Mas só poderia desiludi-los, porque a sua vida é
simples e os sofrimentos passados não têm palavras.
Todas as manhãs, as portas do instituto abrem-se para as alunas e as
professoras e o mundo entra com elas. Nesse dia 3 de novembro de 1911, as
irmãzinhas rodeiam Anna, a mais novas das professoras. O jornal que tem
nas mãos louva um herói nacional, Giulio Gavotti. Olham para a fotogra a.
Não compreendem o que representa, sobre o que está sentado esse jovem.
Há barras metálicas, dois anteparos e ele está sentado no meio, com as suas
botas e o seu chapéu. A madre superiora diz que há dois anos, em França,
um homem atravessou o mar sem lhe tocar, foi a sua sobrinha, que emigrou
para Paris, quem lho disse. Anna a rma que esse francês, Bleriot, voara
sobre o mar.
– Sobre o mar?
– Sim. No céu.
– No céu?
Ninguém ousa ir mais longe. É incompreensível, quase uma basfémia.
Mas há a fotogra a, este homem também voa como as aves no reino celeste.
Anna explica:
– É com essa máquina que voa: «Etrich Taube», chama-se assim, está
escrito: «Monoplano Etrich Taube».
Dito assim ainda é mais agressivo. Não sabem como pronunciar essas
palavras. Mas o nome do homem, do herói, Giulio Gavotti, é tão bonito e
tão italiano que Gabriele d’Annunzio escreveu sobre ele um poema. Não
podem demorar-se mais, as aulas têm de começar e todos se dispersam. O
jornal ca na portaria, em breve esquecido num canto. Nesse dia, as
professoras falarão um pouco disso entre elas. As irmãs, nunca. As suas
refeições são silenciosas, os dias laboriosos, as suas recreações alegres, quase
infantis, e as noites entrecortadas por orações. As palavras no jornal dão
conta do que se passou a 1 de novembro de 1911. O primeiro
bombardeamento aéreo da história. Quatro granadas de fragmentação
lançadas com uma mão pelo piloto Gavotti sobre a Líbia. Ninguém
descon a então de que essa guerra, curta e de vitória fácil, vai despertar o
nacionalismo nos Balcãs porque nunca ninguém vê aproximarem-se as
catástrofes humanas que, uma a seguir à outra, ocorrem no mundo,
sucedendo-se para perpetuar o regresso à selvajaria e o desastre comum. Os
primeiros anos do século XX preparam a Grande Guerra, mas os con itos
são distantes e os mortos têm pouca importância. Trata-se de desertos e de
colónias, trata-se de impérios desmantelados e sonha-se com a expansão e
compensações territoriais. As irmãs canossianas ensinam pacientemente às
crianças as orações e o alfabeto, o cálculo e os bordados. E tudo ruge,
avança na direção delas como uma avalancha na montanha atrás das suas
costas. Aquele mundo vai desmoronar-se, vivem um presente efémero
porque algures uns homens sonham por elas e o heroísmo deles será o seu
martírio.

Bakhita ca a saber por acaso, num dia em que leva à rouparia a casula e
a alva do padre, que caíram granadas em África. A irmã roupeira nunca
gostou da Madre Giuseppina e, embora ela não desbote como temera
quando da sua chegada, deixa às suas auxiliares o cuidado de lavar aqueles
lençóis que a repugnam.
– Lançaram granadas na tua terra, Madre Giuseppina, sabes o que quer
dizer?
– Na minha terra?
– África! Bum!
– Que África?
– A tua. Bum!
Bakhita não dirá o que sabe à irmã roupeira. Nem da África nem das
granadas. Há muito compreendeu que, para sossegar, tem de continuar a ser
a que não sabe e ca impassível quando alguns berram para lhe falar ou
falam uma linguagem entrecortada, palavras privadas de ligações. Cala-se e
sorri. Espera. Sabe esperar muito bem. Teve tantos senhores, recebeu tantas
ordens loucas, sabe que calar-se é, muitas vezes, a mais prudente das
atitudes. Nesse dia, não responde à irmã roupeira, entrega a roupa suja e
levanta a que está lavada, faz como de costume. Mas quando se vai embora,
o seu coração bate em pânico e a respiração silva, fervilha-lhe na garganta,
como os ruídos de água nas gargantas das mulheres, das escravas com o
pescoço entravado. Sente o suor correr-lhe pelas faces e vai como pode até à
sacristia guardar a roupa no armário dos paramentos. As suas mãos fazem
gestos minuciosos, dobram lentamente, alisam e acariciam, separam as
roupas. Tem a visão enevoada, mas veri ca com uma aplicação concentrada
que não há o mais leve vestígio de vermes, de traças ou de ratos nas gavetas,
que as roupas não tocam na madeira, que não há pó nem nenhum rasgão
nas vestes sagradas e depois recomeça, tira as alvas, tira as casulas, as
estolas, desdobra-as, empilha-as, mistura-as. E senta-se. Agora, toda a
roupa está em desordem e já não sabe o que deve fazer com ela. «África!
Bum!» Não faz esse ruído. A África que explode. A ameaça é silenciosa e as
explosões assemelham-se a um grito da terra, profundo e confuso, o seu eco
nas montanhas tem o tempo de um coração que estoura. Pensa novamente
nas investidas do Mahdi. Revê, pela primeira vez, nitidamente, a noite em
que o seu senhor turco reuniu os escravos antes de os dispersar para
abandonar o mais rapidamente possível o Sudão. Ouve os gritos dos que são
separados e o pânico dos seres no limite das dores.

Nasceu na guerra. Viu tantos homens e crianças armados, tantos


mortos, feridos e mulheres violentadas, que viveu com toda a certeza várias
vidas. Pensa na sua aldeia. Será que aqui ninguém lhe teria dito se tivessem
lançado lá granadas? Mas para isso teria sido necessário que fornecesse os
nomes, percebesse os mapas, falasse corretamente. Olha para as vestes dos
padres, misturadas e amarrotadas, uma aglomeração de cores vivas e de os
de ouro, dir-se-ia uma colina desenhada por crianças. Que desastre. Deixa
vir as lágrimas. Deveria arrumar a roupa e limpar os candelabros, em breve
será a hora do ofício da nona, vê pela luz que vem do pátio. Porém, chora e
não pode fazer mais nada. Ergue os olhos para o escravo cruci cado que
conhece a guerra. «Bem-aventurados os que choram, porque serão
consolados.» Sente a falta da Madre Fabretti. Chora e diz para consigo que é
preciso muito tempo e muitas lágrimas para compreender a vida do
convento. Ajoelha-se, inclina-se como não deve fazer, à oriental, porque é
assim, com as palmas das mãos e a fronte nua contra as lajes, com o busto
inclinado e os braços esticados, que pensa melhor em África.
Deram-lhe autorização para acompanhar Elvira à estação ferroviária.
Tem coragem para duas. Guarda o desgosto para mais tarde, não mostra a
tristeza, apenas con ança e orgulho. Gostaria de levar a mala, mas não tem
força para tal: o seu corpo está em sofrimento, já não tem nem a resistência
nem a tenacidade que tão frequentemente a salvaram. Caminha como
respira, com aplicação e prudência, e isso vê-se cada vez mais, esse
sofrimento encarniçado. Elvira é robusta, leva a bagagem esforçando-se por
acertar o passo com o de Bakhita, quando, na realidade, gostaria de correr,
de deixar tudo muito rapidamente, sem pensar nem sofrer.

É uma manhã seca e faz um frio de rachar. Vê-se a neve nos picos das
montanhas e os caminhos áridos em breve abandonados pelos rebanhos
anunciam o inverno que vai devorar o dia, gelar a terra e desesperar os
camponeses. O sol é branco, as sombras, pálidas, dir-se-ia que nada se
mantém, que tudo está prestes a apagar-se e desaparecer. Estamos no
outono de 1913, um tempo de que ninguém se recordará e que, todavia,
todos deveriam acarinhar. A estação ferroviária ainda é o local das partidas
escolhidas e da viagem individual, as pessoas deixam-se sem sofrimento
intenso. Bakhita detém-se para recuperar o fôlego. Apesar da frescura do
dia, tem as pálpebras e a fronte molhadas de suor. Olha para Elvira, parece-
lhe tão jovem, mas já podia ser mãe. É estranha essa precipitação do tempo,
como se todos crescessem subitamente.
– Tens razão em partir, Elvira. Há que partir quando se deseja muito.
– Vou escrever-te com frequência, Madre. Vou enviar-te bilhetes-postais
todas as semanas, sempre.
– Desenhos. Pre ro.
– Não vou desenhar nas ruas, vou desenhar nos ateliers. Já te expliquei.
Vou desenhar rapazes bonitos, modelos magní cos! Queres que te envie
desenhos de rapazes bonitos? Perdão… sou parva quando estou
emocionada.
– Tens de ter cuidado, muito. Os homens não compreendem a alegria
das raparigas.
– Os parisienses são muito românticos.
– O que é «romântico»?
– É… delicado… gentil… amoroso.
– Oh! Vou rezar por ti! És tão inocente…
Retomam a marcha e já se ouve apenas a respiração voluntária de
Bakhita. Sofre nos seus sapatos, caminharia tão melhor sem eles, os pés
estão deformados e cada vez mais inchados. Elvira desejaria correr e gritar.
E chorar também, de impaciência e felicidade. Deixa Itália, foge da espera
pela mãe, da sua necessidade dela, não quer passar a vida a aguardar as suas
cartas e não quer estar ao serviço das burguesas de Schio. Não diz que
emigra para França, diz que vai estudar pintura em Paris, como tantos
outros artistas italianos. Dá a si mesma uma identidade e um pouco de
altivez. Chegam à estação e já não têm nada a dizer uma à outra. Estão
nesse tempo que já não lhes pertence, nesse local ruidoso e confuso onde
tudo é inútil. Onde tudo é importante.
– Também tens o bilhete de Milão? Tens tudo?
Elvira não responde, contempla a sua Madre. Há onze anos que se
conhecem e Elvira desenhou tantas vezes aquele rosto profundo, sabe de cor
todas as suas expressões, a concentração no trabalho, os sobressaltos aos
simples ruídos, às chamadas do exterior, aos passos, aos assobios, a surpresa
feliz ao menor sinal de afeto, a mão diante da boca antes de um verdadeiro
riso, os olhos erguidos ao céu e os lábios que morde quando procura as
palavras. Conhece-a e gosta de a abanar um pouco, de a fazer sair das
conveniências, esquecer a religiosa, e que apareça a mulher estranha e
apaixonante que é. No entanto, Bakhita não quer que Elvira faça os seus
retratos quando ri demasiado alto, quando canta fechando os olhos, quando
contempla as mãos em silêncio. Queria uma vida sem olhar. Pede-lhe que
rasgue os desenhos. Elvira nem sempre o faz. Guarda esses retratos como
um privilégio. Agora, a Moretta é conhecida em Schio, antigas alunas do
instituto cruzam-se com ela na rua e aproximam-se com um entusiasmo
contido pela timidez dos que cresceram, já não ousariam chamar-lhe
Moetta Bella, já não ousariam dizer-lhe «Vem!», e lembram-se com
confusão que lhe lamberam as mãos para sentir o gosto do chocolate, que
lhe esfregaram lenços nas faces e como ela as deixava pousar as palmas das
mãos no rosto e sentir a sua pele, dizendo «Não tenhas medo.» E também,
«Tens fome? Dizes-me se tens fome, dizes-me sempre.» Elvira pensa que
talvez tenha sido a sua preferida e também que muitas das alunas internas
teriam gostado disso tanto como ela, de serem aquela que a Madre Moretta
amou mais do que as outras. Agora, vai deixar-lha, será toda delas, das
alunas, das órfãs, e pergunta-se se haverá mulheres negras em Paris, se as
olharão como olham para a sua Madre, como aqui no cais, com este
constrangimento chocado.
Bakhita vê antes dela a nuvem cinzenta que atravessa as árvores ao
longe, incha, escurece, e a força ruidosa da locomotiva, esse silvo que
rebenta os tímpanos, é feito deliberadamente para que se possa nalmente
gritar tudo o que se retém, esse medo de partir e essa eterna sensação de
solidão. Uma pequena madeixa saiu da touca da Madre. Elvira torna a pô-la
no lugar, sorrindo.
– Não me havias dito que tinhas o cabelo grisalho.
– Em breve estou branca.
– Estarei.
– Sim. Estarei branca.
– Nunca faças isso, Madre! Não quero que te pareças com as outras.
Nunca.
Aperta-a violentamente contra si e sente o coração de Bakhita contra o
seu, o corpo tão magro e o suor que lhe escorre pelo pescoço. Não acredita
em Deus, mas é sincera quando lhe diz:
– Reza por mim, Madre. Não sou tão inocente como tu crês, mas
mesmo assim reza por mim.
Bakhita fecha os olhos. É um sim, muito doce, muito verdadeiro. Elvira
afasta-se, deixa-lhe apenas a multidão e o fumo, o pânico habitual dos
viajantes que já se mistura com as saudades e os remorsos, com os beijos
que se atiram e as lágrimas que se levam até casa, com tanta coragem que
nos perguntamos por que razão a vida é esta montanha de renúncias e de
mágoas.
O tempo passa e não se inscreve em mais nenhum lugar além dos
corpos que envelhecem e das crianças que nascem. A guerra começou em
França, do outro lado da montanha, e na Áustria-Hungria, do outro lado do
rio. Os jornais falam de países aliados e de países inimigos, de países
distantes ou cobiçados. Rússia, África, disputam-se desa am-se: é preciso
bater-se, quebrar o pacto de neutralidade, travar a guerra ou não a travar, e
em que campo, com a Alemanha e a Áustria, aliadas de Itália, ou com a
França e a Inglaterra? Os homens instruídos leem os jornais, berra-se nos
cafés, nas famílias e nas praças, fala-se em revolução, em república, império,
democracia e despotismo. Os socialistas, entre os quais o popular
Mussolini, exortam os operários e os camponeses ao paci smo; os
sindicalistas e os intelectuais desejam que o proletariado se bata nalmente;
os patrões sonham com produção em grande escala; os nacionalistas
querem apagar a humilhação da emigração e reconstruir a nação; os
emigrados abandonam a França, a Bélgica e a Alemanha para regressar ao
seu país; nas ruas, o pregoeiro já não anuncia apenas a hora de um funeral
ou a passagem de um vendedor, passa também a convocar comícios diante
da câmara municipal onde o podestà vai falar, mais alto e mais forte do que
os outros; os homens ganham vida tomando partido, falam sem nunca se
calarem, colados aos acontecimentos excitam-se, manifestam-se e batem-se
por uma guerra de que, no fundo, não sabem nada. Então, mudam de
campo e de opinião. Mussolini, expulso do Partido Socialista, faz campanha
pela entrada na guerra, anarquistas e nacionalistas juntam-se a ele, criam os
Grupos de Ação Revolucionária, a Itália divide-se, já se bate no seu seio, é
um frenesi que ninguém pode conter, uma exasperação e uma embriaguez
que extravasam.

Na enfermaria do convento, Bakhita reza todo o dia sem repouso, e


também de noite. O mundo vem ter com ela, reconhece-o, é como um
mercado, o bazar do comércio dos homens, sempre igual, a agitação
desorientada. Está-se no inverno de 1915, Bakhita, há várias semanas na
enfermaria, encontra-se sentada na cama, apoiada em pilhas de almofadas.
Tosse sem parar, a pele torna-se violeta, um violeta escuro e rasgado, sufoca
sob as queimaduras de uma tosse que crepita e parece que a arranham por
dentro, que lhe cortam em pedaços os pulmões, o fundo do seu peito. Está
esgotada como depois de uma corrida sob o sol. O corpo transpira e, para
sua grande vergonha, mudam-lhe os lençóis todos os dias. Podia partir
agora, na calma do convento, com o cruci xo por cima do leito e a
passagem do padre todas as manhãs, mas quer car no caos humano e luta
contra a broncopneumonia. Sabe que os homens querem a guerra e que a
terão, os pais de família e os rapazes, irão para lá, para o massacre, para
aquilo a que chamam «a grande experiência coletiva», e as mulheres e as
mães deles carão inconsoláveis, irreparáveis, como a sua cou. Lembra-se,
depois das pancadas de Samir, depois da tortura da tatuagem, desses meses
a repelir a morte, deitada na esteira, por terra, a terra que guardava os rastos
de todos esses mártires, e sente como isso gira e se mantém, todas as dores
humanas no ruído das batalhas. Respira mal, tem febre, no entanto o seu
espírito nunca foi tão lúcido. O tempo da doença parece um tempo irreal,
mas ouve o que se passa, sente os aromas e vê o dia nascer e desaparecer por
detrás da janela, está numa realidade que mistura os seres e as épocas, as
vidas com que se cruzou, os seres com que viveu, ouve as arengas dos
poderosos, as lengalengas das crianças, os cânticos das irmãs, os slogans dos
manifestantes, a canção dos jornaleiros, «Polenta de milho, água do fosso,
trabalha, tu, patrão, porque eu não posso…», pensa nas alunas que
cresceram, nas crianças que viu nascer, nessas gerações de soldados. Os
homens vão esconder-se nas colinas ou sair das casas, sair das grutas e das
cabanas, dos recantos mais remotos, Eutichio, o encantador de lobos que
vive na montanha, Angelo, o carvoeiro que vive com os seus na oresta,
Tano, o guardador de cabras analfabeto, os camponeses sem terra e aqueles
que, escondidos nos campos, sobrevivem graças ao contrabando do tabaco?
Todos esses homens que já não sabem onde viver nem como viver vão
juntar-se ao grande movimento dos exércitos? É preciso rezar pelos que
querem bater-se e não querem morrer, que querem ser únicos e vestir
uniformes. Gostaria de lhes dizer que a vida é rápida, não é mais do que
uma echa, ardente e na, a vida é um único ajuntamento, furioso e
miraculoso, vivemos, amamos e perdemos aqueles que amamos, então
amamos de novo e é sempre a mesma pessoa que procuramos através de
todas as outras. Há apenas um único amor. Uma única hóstia partilhada.
Um único pão multiplicado. Ela gostaria de lho dizer, mas com a sua
mistura e a sua timidez, quem a compreenderia?
A noite chegou, o céu é profundo, a lua ardente está cortada ao meio, ela
pergunta-se em que parte do mundo vive a outra metade, invisível num céu
claro. Esta meia-lua tal como a vê agora, deitada neste quarto que cheira a
cânfora, éter e madeira queimada, partilha-a com os soldados do outro lado
da montanha, e do outro lado do rio, esses países em guerra cujos nomes
não retém. Está abrigada, uma vez mais. Está doente e tratam-na. Dão-lhe
de beber e alimentam-na. Faz parte daqueles a quem tudo é dado. Atira
para trás os lençóis, os cobertores, faz rodar as pernas inchadas, sentada na
beira da cama demasiado alta para ela recupera o fôlego e depois ergue-se,
aproxima-se lentamente da janela, abre-a, como costuma fazer à noite, e
recebe o frio de metal da noite e a luminosidade crua da Lua. As mãos
agarram-se ao rebordo da janela, pouco a pouco a respiração acalma-se,
escuta, mas não ouve nada, nem um animal, nem um sopro de vento, dir-
se-ia que a noite pousou sobre o convento e sobre a cidade, sobre a
montanha e as ruas, as fábricas, os estábulos, o seu desdém ardente. Nem
piedade nem ajuda. Gostaria de recitar um Pater Noster, mas o seu espírito
baralha-se. Gostaria de se ajoelhar, todavia as pernas estão hirtas. Procura o
seu cruci xo, ao pescoço, no bolso, mas não encontra nada. Nada mais do
que o velho corpo de escrava, negro sob a camisa branca e, diante dele, um
mundo que se cala. Escrava, sim, é. Bakhita. A Afortunada. Aquela a quem
um padre chamou, troçando, «a mosca de Jesus», porque estava na sacristia,
negra e atarefada, negra e zumbindo, como uma mosca. É um inseto e
talvez menos do que isso. E vai proteger a sua vida, por minúscula que seja.
Vai curar-se para continuar a viver, entre os homens, aqueles que todos os
dias se juntam para gritar, brandindo bandeiras, essas duas palavras que
não conjugam, essas palavras encarniçadas, eternas e loucas: «Viva a
guerra!»
Gosta de estar com as crianças e as rapariguinhas porque gosta de estar
com aqueles que começam, que entram na vida, atentas, crédulas e
resplandecentes. Compreendem a sua linguagem mestiçada, procuram nela
a força e a proteção e riem com ela porque, para elas, Bakhita não é mais do
que ela própria. Disso tem necessidade. Desse reconhecimento sem
hierarquia, dessa ternura imediata, cumplicidade feliz. Mas hoje as salas do
instituto já não têm alunas e as órfãs partiram para Bérgamo. A 23 de maio
de 1915, a Itália entrou em guerra ao lado da França, da Inglaterra e da
Rússia. Os exércitos colocaram-se ao longo do Friul-Veneza Júlia e nos
Alpes. Schio acolheu os italianos do norte. Mulheres, crianças, idosos.
Quanto aos homens, pareciam ter-se desmultiplicado, uma multidão de
homens atarefados, inventivos, estrategos, aos quais nada resistia, que
construíam pontes de madeira sobre precipícios de montanha, tanques que
devoravam as casas e as árvores, barcos que viviam sob as águas, aviões
insaciáveis, a guerra era um incêndio permanente e sob a sua força delirante
os civis fugiam, tornavam-se de súbito seres errantes à mercê dos outros.

Em junho de 1916, as tropas austríacas marchavam sobre o Véneto,


como para recuperar um bem injustamente perdido, e os habitantes de
Schio tinham abandonado a cidade, de an triões haviam passado a ser, por
sua vez, refugiados. Bakhita viu-os partir a pé, de bicicleta, com os animais,
os burrinhos carregados e os cães que seguiam as carroças puxadas por bois
famélicos, sobre as quais os colchões cobriam uma máquina de costura ou
um espelho, uma selha, uma galinha ou o retrato de um defunto, esse
bricabraque que não resume uma vida, mas confessa a impossibilidade de
saber de que é feita uma vida. As crianças estavam pouco espantadas, já
tinham fome, e os seus olhos eram maiores do que os seus rostos, não
faziam perguntas, seguiam pura e simplesmente o curso da vida, partiam
com as mães, os avós e todos os outros espantados e con antes como elas,
uma caterva de bebés, de irmãos e irmãs, de primos. Afastaram-se da
fronteira austríaca, esse império ao qual os habitantes do Véneto haviam
pertencido durante tanto tempo, para se refugiarem em Milão, Turim,
Ferrara ou Cuneo, instalados nos asilos e nas escolas, sendo os doentes
enviados para o hospital civil de Vicenza e, por ordem do bispo, os objetos
de culto, dos mais preciosos aos mais sagrados, das santas relíquias aos
registos paroquiais, foram postos a salvo em Veneza. Era como um
desaparecimento da vida, uma transparência e um recuo. Alguns meses
depois, os obuses caíam sobre as casas abandonadas e as ruas
transformavam-se em ruínas poeirentas onde jaziam cruci xos quebrados,
marmitas de cobre e algumas cartas de amor mal ortografadas e
lancinantes. Bakhita caminhou pela Schio metamorfoseada: o que avançava
ali era a morte, levada em triunfo por todos aqueles que aí sobreviveriam,
os mercadores de escravos a quem os italianos chamavam «reis»,
«imperadores», «ministros», «presidentes» e que enviavam caravanas
inteiras de homens para o combate. Contemplou o dia a empalidecer sobre
as paredes dilaceradas, os quartos das casas abertas, as lojas esventradas, os
regatos envenenados e depois as ruas de Schio esvaziaram-se inclusive das
ruínas, abriram-se aos camiões cheios de soldados, às viaturas da Cruz
Vermelha e às dos o ciais, às mulas que transportavam as caixas de
munições, aos tratores que puxavam canhões e, trazidos em macas, os
feridos foram deitados nos dormitórios do convento e nas salas de aula do
instituto. E, para desespero dos que caram na região, o exército requisitou,
na via Rovereto, uma casa para os soldados, um local de que as pessoas se
desviavam e cujo nome não ousavam pronunciar. Uma casa para esquecer a
morte. Schio transformou-se em caserna.

Já não está com as crianças. Já não está com os que começam. Trata dos
que têm mais idade e que, amputados, mutilados, des gurados, querem
viver e na sua obstinação reconhece a força terrível e ameaçadora daqueles
que, como ela, numa vida tão distante e tão próxima, decidem não ceder
uma polegada às trevas.

Quando temos dores, quando temos fome, já não amamos. Já não temos
força para o fazer, sabe-o. Então, alimenta os feridos para que reencontrem
simultaneamente com o gosto do pão o da vida. Traz-lhes o que conseguiu
cozinhar substituindo a farinha pelas batatas, as compotas sem açúcar pelas
uvadas de peras, conserva os ovos no leite de cal, a carne no fundo dos
poços no gelo e na palha, inventa, improvisa e ninguém sonha contradizê-
la, trabalha em silêncio e, quando sobe da cave, ajuda as irmãs a alimentar
os soldados. E sabe. O que vai acontecer com os que a veem pela primeira
vez. Vai assustá-los. Como uma violência, vai aterrá-los, porque tudo o que
o homem vê pela primeira vez o aterroriza, toda a novidade é uma ameaça.
Espera os olhares apavorados, os rostos que se desviam, as recusas, as
estupefações mudas e paralisantes. Os dormitórios estão cheios disso, o
medo e a necessidade do outro. Vê as irmãs mais experientes tratarem sem
falhas e aquelas, mais novas, que contêm a vontade de vomitar, de fugir,
uma vontade de estar noutro lugar, de se refugiarem na igreja para rezar,
rezar de olhos fechados, longe do que a vida propõe de desumanidade, tudo
o que nunca deveria acontecer, mas acontece e simplesmente se impõe, se
instala e ca. Aproxima-se dos soldados com o rosto baixo, docemente, para
que os olhares se habituem a ela.

Pouco a pouco, passa tanto tempo nas cozinhas como na enfermaria,


quase não dormindo ou dormitando num cadeirão colocado no dormitório
onde vela por eles, e uma noite, na brevidade fulgurante de um sonho, vem
até ela a criança que tratara, o lho de uma escrava morta durante o parto
na casa serpente do primeiro senhor. Depois a criança fora vendida, ou
dada, já não se lembra, mas de súbito a saudade dessa criança dilacera-a,
deixou-a partir, não a reteve tal como Binah, a opressão instala-se no seu
peito, Kishmet é uma velha nas ruas de Cartum, Mimmina deixou África, a
sua mãe deixou o tronco do embondeiro derrubado, onde estais, para onde
partistes todos? Acorda como se estivesse a afogar-se, sufocando e sem
fôlego, com as mãos enclavinhadas no cadeirão e o odor do dormitório,
pesado e pútrido, remete-a para o seu sonho, é o odor das noites nas casas
dos escravos, levanta-se e ajoelha-se, ali, no meio dos feridos. Fala ao seu
pai, o africano, o homem que nunca a voltou a encontrar, e pede a el Paron
que lhe perdoe. Acabou de compreender a culpa e o pavor daquele que a
engendrou e perdeu. Ao Pai supremo e infalível, con a a alma desolada
desse homem, morto ou vivo, o seu amor e a sua derrota. E acalma-se.
Levanta-se, caminha lentamente, com passos pesados, irregulares e
gingados, no meio dos soldados adormecidos. Compreende que tudo o que
aprendeu como abda lhe serve hoje em dia. Avança na penumbra pelo meio
das camas alinhadas e sabe que em cada um desses homens há algo muito
elevado e algo errante. Alguns morrerão antes da alvorada, sem
compreender; outros sobreviverão a ferimentos que se julgavam incuráveis,
desiguais perante a dor e perante a morte, sente a sua respiração de crianças
atónitas. Volta docemente, quase mau grado seu, a melodia daquela canção
que já não pensava conhecer sequer e que depois canta aos soldados
adormecidos, que cheiram mal e que sofrem, canta esquecendo as palavras,
enganando-se por vezes: «Um arzinho passava… As rosas… o seu perfume
e eu, eu sonhava e a minha alma sonhava também… Mas os os… os
os…», e um soldado continua por ela, do fundo do dormitório ela ouve-o,
uma voz rouca e entrecortada: «A minha alma também sonhava. Mas
enquanto os os corriam sobre o tear, oiço, como um tiro de espingarda em
pleno coração, ressoar o sino. Senti uma queimadura na alma, e gritei com
os punhos cerrados: maldita seja a fábrica que fumega, malditos sejam os
teares e as lançadeiras, há vinte anos que consomem a minha vida, estas
máquinas, estes monstros malditos.»
Está ao lado desse homem, espantada com a violência do cântico de que
apenas conhecia o início, a alma e o perfume das rosas.
– É um Lanerossi?
– Não, irmãzinha, sou da outra ação, a Cazzola.
– E agora, aqui…
– Sim. Regresso a casa. A vida é estranha…
– Sim.
– Nunca voltarei à fábrica… Agora sou metade de um homem.
Aponta para a sua única perna, ela pensa que em Itália não se
abandonam os homens inúteis, e que aquele irá buscar a sua força algures, a
um lugar que ainda não conhece.
– Não há nada para fazer aqui na terra amarga. E também não tenho
nada para fazer de mim. Nada…
Ela olha-o, a sua cólera e, sobretudo, a aversão pelo que lhe acontece. O
desprezo por si mesmo.
– Protege a tua vida.
– A minha vida? Que vida? Uma semivida, sim!
– Por favor. Sempre, protege-a.
Sorri e ousa pousar-lhe a mão na testa. É uma mão gretada, longa e
muito quente, que acalma, sabe-o, e o soldado fecha os olhos, as suas
lágrimas são tão nas que se diria serem antigas, como o nal esgotado de
um soluço, e ele pergunta:
– Porquê?
– O quê?
– Porque é assim gentil, irmãzinha tão negra?
A respiração do soldado solta-se por meio de suspiros profundos, ela
mantém a mão na testa que agora transpira, ardente sob a sua palma, a
febre vai-se, o braço está dorido, o ombro hirto, mas ainda não acabou,
aquilo tem de continuar, continua, até ao momento em que o soldado
inclina a cabeça, com os lábios entreabertos, o rosto sereno e se abandona
ao sono. Com o seu passo desajeitado, ela regressa ao cadeirão. Desejaria
não fazer barulho, mas faz, claudicando e ofegando. Naquele cadeirão
adormece durante uma ou duas horas e quando, por vezes, um soldado
acorda, a presença daquela mulher sentada e adormecida lembra-lhe que ele
não era mais do que uma criança, uma criancinha, antes de esta guerra ter
começado.
Um minúsculo sol negro gira e a voz do homem está ao seu lado. Ela
não o vê, nem a ele nem ao piano, não compreende o que ele canta, porém,
o canto é tão belo que ouve sentada, atenta. Gostaria de juntar as mãos
nodosas para rezar, mas não ousa porque não é um cântico sagrado. No
entanto, é a oração mais pura que alguma vez ouviu. Não compreende o que
diz essa canção que se chama «Os Pescadores de Pérolas», pescadores são
eles todos e pérolas também, mas ninguém lhes diz, ninguém diz aos
homens que são divinos. Regressaram da guerra, amargos e taciturnos,
envelhecidos e cheios de rancor. Bakhita viu os seus olhares descon ados
que olhavam tudo com aquele ar de dizer: «Ah! Agora é assim, não é? É
assim que querem que sejam as coisas?» E ela sabe que mal começou. Ouve
o canto de Caruso que sai da campânula por cima da caixinha e que é o que
o progresso fez nascer de mais belo. Caruso canta para toda a Itália e para
cada italiano em particular, aquela voz fala na dilaceração e na dor
oferecida, o seu canto tem o ritmo da vida, voluntária e frágil, mas
considerada uma vitória do coração. Se Bakhita ousasse, pediria a Elvira
que colocasse o gramofone na igreja para que o escravo cruci cado e a
Madonna recebessem a mágoa dos homens contida no canto do tenor.
Contudo, nunca tomaria uma decisão dessas, está ali para obedecer e
obedece, na humildade e na pobreza, mas esses homens, como os ajudar?
Como fazer para curar tanta dor? O que vai seguir-se já o pressente. A
humilhação sofrida é como um enxerto na árvore, um dia surge um fruto
novo e é impossível ignorar a sua presença, porque a revolta, uma vez
nascida, não desaparece. Os soldados que regressaram não falam, mas ela
conhece esses rostos de animais prontos a investir, sabe que não é preciso
esperar muito para que, ao primeiro grito, se reúnam e invistam de cabeça
baixa contra os poderosos, para os verem à sua frente e para que vejam
bem, eles, os exércitos que regressaram.

Durante a guerra, prisioneiros dos alemães e dos austríacos, milhares de


soldados italianos morreram de frio e de fome. Bakhita conhece a morte, a
fome, as cãibras, os soluços, as vertigens, o frio que gela o coração, o enche
de lodo e o as xia, os olhos cegos, a boca em sangue, as convulsões e os
delírios, lembra-se, viu-o tantas vezes nas caravanas, nas zéribas e nos
mercados de escravos, a fome destruía-lhes o cérebro muito antes de o
corpo cair. Acontece-lhe por vezes, no silêncio da noite, perguntar-se para
que servem as suas orações, e as dúvidas são mais violentas do que o
sofrimento. Parece-lhe que tudo oscila entre a incerteza e a crença, entre a
beleza e a profanação da beleza. Hoje ouve cantar Caruso e a sua emoção é
tão viva como quando encontra os soldados ou as famílias deles. Aprende
coisas novas, que no fundo não o são, desumanidades imutáveis, e o
armistício não é a amnésia. A guerra conta-se sem palavras, através das
recusas, das greves, de uma pobreza acrescida e de tantas injustiças. O
sobrinho da Madre Battiseli voltou de Caporetto, onde o exército italiano,
encurralado nas montanhas, foi derrotado. Contou como os soldados
retiraram perto do rio Piave, abandonando ao inimigo milhares de
homens… e a maior parte do Véneto. Foi no outono de 1917, o outono do
desastre. Em Schio, todos sabiam que os austro-húngaros estavam a
quarenta quilómetros de Veneza e no céu, nas montanhas e nas margens
dos rios, ecoava a cavalgada da morte em marcha, razia mais poderosa do
que os mais poderosos negreiros. Regressado dos campos, Luigi, o sobrinho
da irmãzinha, contou, em voz baixa, secretamente, como a morte dos
prisioneiros italianos fora planeada pelo seu estado-maior: ordem para
serem mantidos à fome, ordem para serem obrigados a trabalhar, ordem
para não lhes serem enviados, nos campos austro-húngaros, nem
encomendas privadas nem auxílio da Cruz Vermelha. Então, estavam
descalços na neve e morriam de pneumonia. Comiam a erva do campo e
morriam de disenteria. Revolviam o lixo e morriam de fome. Mas porquê
falar tão baixo? Porquê contar isso num tom de con dência? Porque é que
Luigi carregava a vergonha em vez do estado-maior italiano que nunca
escondera esta realidade, que zera campanha para que fosse conhecida,
para que «o horror do cativeiro seja inspirado aos prisioneiros», esses
insubordinados e esses traidores? Luigi conta o seu calvário, mas não ensina
nada a ninguém. A Itália fez a guerra. A guerra desfez o país, empobreceu o
povo e desuniu os homens. Caruso talvez cante isso também, uma língua
única para um país que se desejava uni cado, mas está dilacerado. Elvira
fugiu de França, esse país aliado durante a guerra e traidor no armistício,
esse país que roubou a paz aos italianos, que não receberam nada dos
territórios e da expansão sonhados. A França é o novo inimigo. Tudo muda
tão rapidamente de campo.
Em Paris, Elvira não desenhou, sobreviveu sendo modelo, a rapariga
nua no estrado, mas não o dirá a Bakhita, ela não compreenderia. A
rapariga nua no estrado não é o que ela teme, ela não era apenas djamila,
não era apenas cobiçada. Ser contemplada por artistas já é arte. É o que diz
a si mesma para conservar intacto o desejo de outra vida além da fábrica e
do serviço doméstico, mas hoje sabe que não será su ciente, a pintura, o
canto, a beleza não serão su cientes para reconstruir um mundo. Entrou
para o serviço dos Caresini, a grande casa à saída da cidade. Uma residência
escondida, protegida, onde está de passagem. Não pertence àqueles que
foram feitos para se resignar e servir, regressou para partir de novo e não
reconheceu a sua cidade. Não só as casas esventradas e os campos
abandonados (a destruição é semelhante em toda a parte). Mais do que as
casas saqueadas, são as casas de pé, as casas vigiadas que lhe contaram a
violência nova da sua cidade. Os carabineiros colocados permanentemente
diante das portas das famílias dos soldados acusados de deserção e
fuzilados, essa sentinela que impede quem quer que seja de vir ver os pais
do condenado, mas não impede ninguém de se apoderar do que possuem, e
a família não é mais do que uma presa exposta, enjaulada na sua casa e na
sua vergonha.

Neste nal de tarde sereno, no odor dos gos e da glicínia, Elvira


contempla a sua Madre Moretta, que mal se espanta com a invenção do
gramofone, mas ca tocada por um canto que não compreende. Se hoje
tivesse de desenhar as suas mãos, seria como sarmentos de videira, a lenha
que se torce.
– Vou parar o Caruso, deixa-te demasiado triste. E, ainda por cima, já
não falas comigo.
Ergue o braço de leitura, o cântico interrompe-se e o silêncio súbito
parece uma afronta.
– É belo – diz Bakhita.
– Põe-te demasiado triste, olha para ti, Madre, até as tuas mãos estão
tristes.
– As minhas mãos?
– Sim. És um modelo de mãos tristes.
Bakhita ri. Olha para as mãos e agita-as como marionetas.
– Estou contente, as crianças vão regressar, a escola abre.
– Formidável! A escola abre, a terra é prometida aos camponeses e os
patrões vão dar-nos a jornada de oito horas!
– As crianças voltam, Elvira.
– Os camponeses ocupam as terras, Madre.
– «Ocupam»?
– Estão na terra e não a trabalham. As coisas mudaram. Já nada será
como antes. Ah, não! Não contorças as mãos! Vá! Dancemos! Dancemos!
Elvira gira a manivela do gramofone, poisa a cabeça de leitura na
segunda faixa do disco:
– «Tarantela Napolitana»! Concede-me esta dança, Moetta Bella?
Bakhita lança um breve olhar à sua volta. Neste pátio sombrio, perto do
pomar, não há ninguém. Agarra a mão que Elvira lhe estende e, sobre a
terra seca, dão alguns passos de dança, desajeitados e alegres. Bakhita fecha
os olhos e, no seu sorriso, Elvira lê o amor pela vida, um amor profundo
como a esperança. Uma resistência.
As terras. As indústrias. As fábricas. As tecelagens são ocupadas. Greves.
Manifestações. Motins. O proletariado prepara a revolução, como na
Rússia. Os operários socialistas enfrentam a polícia. Atiram os o ciais, esses
lacaios do capitalismo, pelas janelas dos comboios e dos elétricos.
Enfrentam os patrões. Os proprietários agrícolas. Os burgueses e os
nanceiros. Acabaram a submissão, a miséria, o desemprego e o exílio. A
ordem inverte-se. Após a guerra, que nunca quiseram, o país vai renascer,
orgulhoso, indignado e poderoso. Perante eles, antigos combatentes, sem
trabalho, sem lugar na sociedade civil, combatem o paci smo e enfrentam o
seu desdém. São nacionalistas, futuristas, sindicalistas, republicanos,
católicos, anarquistas, soldados de elite, e criam um movimento, os Grupos
Italianos de Combate. Acolhem todos aqueles que acreditaram na guerra e
hoje estão cheios de azedume. De deceção. De desespero. De cólera. De
ódio. A paz foi truncada. Não tem nada a oferecer-lhes. Os Aliados
troçaram da sua pátria, partilharam o mundo entre eles deixando-lhes
migalhas. Esses antigos combatentes não voltaram do inferno para
baixarem novamente a cabeça. O homem que seguem é jornalista, lho de
um simples ferreiro e de uma professora primária, Benito Mussolini. Vai
restaurar a honra perdida desses veteranos. Vai restituir a grandeza a Itália.
Prometeu-lhes.

Foi assim que começou. Com homens que tinham necessidade de se


reagrupar. De se bater. De ser italianos. De ter orgulho, também. Viris. E,
no caso de muitos, violentos. Com o gosto da guerra sob a pele. E o da
vingança. Para reinarem, nalmente. No seu grupo, no acampamento, na
aldeia, no país. E para se libertarem. Na pancadaria. No saque. No
assassínio. No álcool. Na cocaína e no sexo. Era o tempo deles. O tempo de
uma nova Itália. Cantavam «Giovinezza», e o cântico tornou-se um hino.
Vestiam-se de negro, e a cor tornou-se uma bandeira. Avançavam pelas
ruas, e era o terror. Chamavam-se «Desespero», «Sem Medo», «Raio»,
«Satanás». Tinham mocas, soqueiras, punhais, revólveres e granadas. O seu
sangue fervia, andavam depressa, como cães raivosos, e a vontade de viver
confundia-se com a de matar. Queriam superar todos os outros, os que não
estavam com eles, que atolavam o país, entravavam o seu reinado. Os
vermelhos, as associações de camponeses, as cooperativas católicas, os
sindicatos: todos uns insigni cantes. Uns miseráveis. Uns parasitas. Eles
eram um fogo que devorava o país. Um movimento que se espalha, lança a
sua sombra e impõe a sua lei. E depois, um dia, o seu movimento já não é
um movimento. É um partido. O Partido Nacional Fascista, criado por
Mussolini. Com deputados. Vozes no Parlamento. A legalidade e a força. A
revolução bolchevique morreu. A revolução fascista está em marcha.
Mussolini entra em Roma. Mussolini é nomeado primeiro-ministro.
Mussolini cria a milícia. Restabelece a ordem, a disciplina e o respeito. A
guerra criou o martírio e o sacrifício, mas chegou o momento de dominar o
Mediterrâneo, de obter nalmente um lugar ao sol. A reuni cação fez a
Itália. Chegou a hora de fazer os italianos.

No instituto, as órfãs regressam. Mais numerosas e mais jovens do que


nunca. Rapariguinhas muito pequenas, tão magras que as doenças as levam
ainda antes de se ter tido tempo para as tratar. Os caixões de madeira
branca são leves, cobertos com uma or branca colhida no jardim,
acompanhados por irmãs estupefactas com a sua impotência. As alunas
chegam atrasadas, têm di culdade em concentrar-se, têm fome, também,
tal como as professoras, como toda a gente. Como se alimentar, ou
encontrar alimentos, como pagar, com quê? O custo de vida aumentou
450%, as fábricas de armamento esvaziam-se, o desemprego ateia os
homens, desespera as famílias, põe o país de joelhos. Mas o Duce aponta
para o Sol.
A madre superiora manda chamar Bakhita ao seu gabinete. Para ela é
uma emoção obedecer àquilo que sente sempre como uma ordem. Obriga-
se a acalmar enquanto sobe as escadas que conduzem ao gabinete, agarra-se
com força ao corrimão sem o qual lhe seria impossível avançar e, quando
chega junto da madre superiora, esta última preparou o lenço com que ela
deverá, infalivelmente, secar o suor da testa. Aponta para o cadeirão à sua
frente e faz-lhe sinal para recuperar o fôlego. Bakhita sorri, com uma mão
sobre o coração, incomodada por demorar tanto tempo até a respiração se
acalmar.
– Faço barulho, sempre. Perdão.
– Madre Giuseppina, desde a guerra, como sabe, muitas coisas
mudaram…
– Não co?
– Perdão?
– Madre, sou enviada para outro lado?
– Claro que não.
– Fico?
– Madre Giuseppina, não fale sempre como se fôssemos expulsá-la. É o
contrário que quero anunciar-lhe.
– O contrário?
– Trabalhou nas cozinhas, na sacristia, e até na enfermaria. Agora,
gostaria que casse à porta do instituto. Compreende?
Bakhita sente o seu coração acelerar, como se todas as notícias fossem
brutais e todas as mudanças, dolorosas.
– Madre, quer dizer que sou… perdão: que serei portinaia?
– Porteira, sim, é isso.
– Aqui? Na via Fusinato?
– Claro que é aqui, no instituto! Onde quer que seja?
– Mas… Perdão. Obrigado, Madre. Mas… uma pergunta, posso?
– Pode.
– Eu sou…
– Muito negra, sim. Habituar-se-ão a isso. É paciente. Amável. Explicar-
lhes-á. Já trabalhou um pouco no acolhimento, sabe o que é preciso fazer.
– Um pouco…
– As coisas correram sempre bem, eu sei.
Bakhita morde os lábios, a madre superiora começa a rir.
– O que eu quero dizer é que tudo terminou sempre bem. As pessoas
veem-na, cam assustadas, mas passados alguns dias tudo se resolve!
– Pois sim…
– Receberá as alunas, as órfãs, as professoras, as famílias das irmãs, os
eclesiásticos, os inspetores escolares e até os canalizadores, os pintores, os
distribuidores de mercadoria e o jardineiro! É uma grande
responsabilidade.
Bakhita baixa o rosto em sinal de aceitação. Deveria agradecer e
obedecer. Mas ser a porteira do instituto é como estar permanentemente
exposta à porta a que podem bater todos os que vêm da rua. A porta das
religiosas deve sempre estar aberta a todos. Sabe isso. E culpabiliza-se por
sentir mais medo do que gratidão.
– Obrigada, Madre.
E acrescenta, porque é o único pensamento que a sossega:
– É a vontade de el Paron…
– Claro que é o que quer o Senhor, o seu Patrão, Madre Moretta!
É estranho como lhe lembram sempre que é la Moretta, a partir do
momento em que evoca el Paron. No entanto, a Igreja utiliza as palavras
senhor e serva sem que isso seja uma referência à escravatura ou à cor da
pele.
– Começo quando?
– Na próxima semana. Sete dias.
– Bem.
Apoia-se no braço do cadeirão para se levantar, mas a madre superiora
retém-na.
– Lembra-se de quando a Madre Fabris começou a escrever a sua
história?
– A minha história?
– As suas recordações de África.
– Oh… claro.
– E no ano passado, quando a Madre Maria Turco continuou consigo,
isso ajudou-a a reencontrar a memória, não é verdade?
– … Sim…
– Gostaríamos de recomeçar.
– Oh, obrigada, Madre, mas… a memória, tenho-a. Obrigada.
– Ainda melhor, mas a Madre Maria Cipolla, a nossa madre superiora,
tem um grande interesse pelo seu… percurso. Pelo que a Madre é. Pediu
que enviássemos os escritos da Madre Fabris para Veneza, a Ida Zanolini,
que escreve para a nossa revista A Vida Canossiana. Compreende?
– Sim.
– A senhora Zanolini achou as suas recordações… verdadeiramente
tocantes, mas pensa que poderia ir mais longe. Muito mais longe.
– Longe?
– Nas suas recordações. Sobretudo da escravidão.
Essa palavra é como uma bofetada. Essa palavra continua a de ni-la,
mas não compreende o que poderia contar mais, o que precisam de ouvir.
Talvez a sua história seja demasiado pobre para essa dama que escreve
numa revista.
– Porquê, Madre? Porquê contar mais?
– Porque a senhora Zanolini, que é uma mulher muito culta, uma
professora de renome e uma boa cristã, vai escrever a sua história em
folhetim. Sabe o que é um folhetim?
– Uma história. Várias vezes uma história.
– Exatamente. É uma honra, Madre Giuseppina. Mas não deverá car
orgulhosa com isso. Parte amanhã para Veneza. No seu regresso, assume o
lugar na portaria.
– Veneza?
– Ficará com as canossianas do Instituto de Sant’Alvise. É aí que a
senhora Zanolini estará à sua espera. Madre Giuseppina… o Instituto do
Dorsoduro pertence agora às salesianas. Já não há nenhuma canossiana no
Instituto dos Catecúmenos, sabe? Não espere encontrar quem quer que seja
em Veneza.
– Mas onde estão elas? As irmãs, onde estão agora?
– Não se preocupe com isso. Vá, agora.

A quem mais se ordenaria que contasse a sua vida de imediato? A quem


se imporia que as suas recordações fossem imediatamente transcritas e
tornadas públicas? A quem além de uma antiga escrava salva pela Itália?
Uma negra convertida ao catolicismo? Estamos em 1930. As operações
militares intensi caram-se na Líbia. Encerraram-se as mulheres, as crianças
e os velhos em campos em redor de Bengasi, onde morreram de doenças e
malnutrição. O exército de Mussolini lançou sobre o país o gás-mostarda. É
o «lugar ao sol», «a conquista do Mediterrâneo». É a África que faz sonhar o
Duce e o povo ajoelhado, a África dos bárbaros e dos mendigos piolhosos,
cuja conquista devolverá aos Italianos a honra e poderio perdidos. A África
com que fazem bilhetes-postais, lmes, romances, cantigas e até anúncios
publicitários para o café, os seguros ou a cerveja. Então, porque não um
folhetim da história terrível da Madre Giuseppina, outrora Bakhita? Porquê
esconder este testemunho vivo do que a Itália pode produzir de melhor?
Reencontra Veneza e é de Mimmina que tem saudades.
Instantaneamente. Do bebé apertado contra si nas ruas ventosas retalhadas
pelo sol, surpreendidas pela beleza súbita de um palácio, de um terraço
orido, de uma árvore centenária numa pracinha. Regressar a Veneza é
como estar lá pela primeira vez. Tem mais de sessenta anos, mas é como se
tivesse vinte, com essa criança que lhe dava tanta alegria e vontade de viver
aninhada contra ela. Era o lugar de ambas. Era sólido e feliz. De então para
cá, não houve um só dia em que não tivesse rezado por Mimmina, para que
el Paron a protegesse e, sobretudo, lhe dissesse que ela a amava e que ainda
ama, um amor imperecível, unido à sua vida. Chega à praceta diante do
convento no coração do bairro do Canareggio, e a igreja de tijolos
vermelhos parece tão imponente e pesada como um palácio sem janelas. O
seu passo desigual ecoa nas lajes e choca com as casas banhadas pelo sol.
Reencontra o odor salgado e pegajoso da cidade e essa sensação de
proteção, de estar na palma de uma mão, con ante, porque a luz é tão bela,
e os homens vão nas suas gôndolas como vão nas pirogas, solitários e
orgulhosos. Diante da laguna tão próxima, reencontra essa vida aberta sob
o sol, o horizonte que nada detém, e sorri por encontrar em Veneza um
pouco dos espaços sem limite da África. Rezou muito na véspera, não
dormiu, e sabe que el Paron lhe pede que fale de todos aqueles que não
ajudou, que deixou morrer numa terra saqueada.

É no claustro do convento de Sant’Alvise que encontra Ida Zanolini. A


surpresa da jovem… Bakhita é a primeira negra que ela conhece e ca tão
perturbada que não sabe como a cumprimentar. Inclina-se, beija a Mater
Dolorosa da sua medalha de canossiana e sorri-lhe com um embaraço
emocionado. É uma mulher empenhada, alegre, uma professora leiga
dedicada à sua pro ssão e à ação católica. Vai sentar-se com Bakhita no
pequeno parlatório do convento e esta compreende muito rapidamente que
com aquela mulher pode falar ao seu ritmo, falar como ela o entende e
pensa que vai dizer-lhe o que é. Ter regressado de lá. Sem os outros. Pensa
que já falou su cientemente da aldeia incendiada, da irmã raptada e do
punhal dos raptores contra o pescoço. Todavia, Ida ouve sem escrever, sem
a obrigar a repetir ou precisar uma palavra, sem lhe pedir que recomece ou
ordene melhor o relato. Porque não é a Madre Giuseppina que ela ouve. É a
mulher que já não se recorda do nome, mas que lhe relata o passado como
nunca o contou. A dor. As derrotas e a vergonha. E a saudade, que nenhum
fervor conseguiu colmatar.

À noite, quando regressa ao quarto, Ida anota tudo o que ouviu a uma
velocidade tal que tem di culdade em reler-se, escreve como uma torrente,
e é a voz gutural, pudica e aos arrancos da pequena Dajou que guia a sua
escrita. Nunca viveu aquilo. Nunca encontrou ninguém como ela. Vacilante
e com uma força mais do que humana. Incandescente. Inclassi cável.
Inteligente e contida. Ainda não sabe onde esse escrito as levará às duas e, se
houvesse sabido, talvez não tivesse ousado. Se tivesse consciência da
projeção, do entusiasmo, da quase loucura que esse folhetim iria provocar
na revista canossiana, talvez tivesse pedido perdão à mulher que, durante
três dias, se lhe con ou, as xiada por vezes pelos soluços, e que voltava
atrás como as pessoas se agarram ao último rochedo da última montanha,
para contar o martírio, das crianças sobretudo das crianças, «compreende:
as crianças, as crianças escravas, as crianças-soldados, compreende, eu não
z nada e a senhora também não e quem poderá, diga-me, quem poderá
um dia?» Era isso que ela dizia, na sua mistura, que por instantes
compreendia tão facilmente.

No último dia, Ida leva Bakhita ao número 108 do Dorsoduro, o antigo


Instituto dos Catecúmenos. Vinte e oito anos depois de o ter deixado,
reencontra o local. As irmãs salesianas foram prevenidas e escondem como
podem a surpresa perante a Moretta mais negra que todas as fotogra as ou
desenhos que conhecem das africanas e abrem a porta de par em par. Vê o
pequeno claustro, esse jardim recolhido, um quadrado de silêncio sob o céu
calmo e tem a impressão violenta de estar em casa. Este instituto, o primeiro
local onde disse «não». Entra no parlatório, amplo e vazio, onde ainda
ecoam, todavia, os prantos de Mimmina e a maldição da mãe, «Ingrata!
Ingrata!». O local, tão escuro, só é habitado pelas sombras e os ecos que
guarda, e Bakhita reencontra, nesse resplendor de tempos confundidos, a
proximidade violenta do passado. Revê Stefano, a sua impaciência e
empenho, e compreendeu muito mais tarde a insistência com que lutara por
ela. Tudo isso, agora, está escrito. Foi-lhe feita justiça. Os seus netos talvez
leiam o folhetim. E Mimmina? Não dá quaisquer notícias. Poderia tão
facilmente saber onde vive a sua antiga ama, talvez saiba, mas não vem.
Bakhita entra na capela, pobre, quase despida. Aproxima-se das pias
batismais, aponta-as a Ida.
– Tornei-me lha de Deus. Aqui.
E Ida revolta-se contra si mesma por saber que também escreverá
aquelas palavras tão íntimas. Bakhita senta-se diante do escravo cruci cado,
que conhecia antes de saber quem era. Ouve a Madre Fabretti: «Bem-
aventurados os que choram porque serão consolados», e tem a impressão de
regressar às origens de si mesma, como se este local também guardasse a
infância entre os seus, guardasse a confusão e o amor que lhe tem.
Compreende que Veneza a salvou porque Veneza pertence ao mar, é uma
terra de uxo e re uxo, de refugiados e de mercadores, de «misturados» e
de sonhadores, uma cidade onde se sentiu em casa, atraída e intrigada por
esses cânticos da alvorada que as irmãs salmodiavam atrás de uma cortina
de veludo.

Um pouco afastada, Ida não pode impedir-se de a olhar: em que língua


fala consigo mesma? Há uma língua para África e outra para Itália? Uma
língua para el Paron e outra para as estrelas que lhe diz contemplar desde a
infância? Será que esqueceu realmente o nome próprio ou será esse o seu
derradeiro segredo? Tem medo de a trair. Medo de a magoar escrevendo
essa infância de outro século e, no entanto, inalterável nos estragos.
Contempla Bakhita com a sensação do roubo. Apanha tudo. Apanha
mesmo a sua solidão na capela. Há o que não vê, o que adivinha, e todas as
perguntas que não lhe fez. A violência dos senhores. O seu poder eterno
sobre as rapariguinhas e as mulheres. Tem dúvidas. Não dirá nada. Uma vez
que isso foi calado. A desonra. A morte interior. A parte queimada. Observa
Bakhita que se curva um pouco na fadiga, e sente-se incomodada por saber
das suas costas marcadas pelo chicote, da pele tatuada, e incomodada
sobretudo porque em breve os leitores do folhetim o lerão, também. Vê as
palavras, as frases alinhadas como cordas tão sólidas quanto as correntes
que prendem e con scam as con dências. Não lhe disse. Tem de lhe dizer.
Sem falta! «As pessoas lerão, Madre Giuseppina, compreende? Vão saber.
Não são muitas. São das nossas. Mas vão saber tudo.» A Vita Canossiana
não é para o grande público. Porém, no fundo de si, ela conhece a torpeza
do escrito, a con ssão oral inscrita, difundida e multiplicada. Diz a si
mesma: «Pode cair em todas as mãos.» É uma intuição que afasta de
imediato e mascara com uma surpresa, hoje vai fazer uma surpresa à Madre
Giuseppina, reabilitar-se antecipadamente do que pode passar-se uma vez
publicado o folhetim, e de que se sabe responsável.

Tomam juntas o vaporetto e o vento envolve-as com um vigor que faz rir
Bakhita. Gosta desta viagem tão curta e da impaciência do balanço, do
gesto largo da Virgem na cúpula da basílica, como se lhes oferecesse o céu.
É uma jornada feliz deixar Veneza e vê-la aumentar ao afastar-se. «É
lindo!», grita Bakhita e Ida faz um sinal a rmativo, segurando o lenço sobre
os cabelos que se levantam.

Chegam à ilha da Giudecca, ao novo instituto da infância abandonada.


É uma surpresa para Bakhita. E sê-lo-á também para aquela que veio rever,
a Madre Fabretti. A irmã portinaia que lhes abre a porta é jovem, parece
uma criança a Bakhita, mas diz que já lá está há quinze anos. Como se fosse
um testemunho de honestidade, cora quando Bakhita lhe fala, e no seu
olhar há o orgulho de ver com os próprios olhos a antiga escrava cuja
conversão é contada a todas as noviças. Diz que a Madre Fabretti já não se
desloca e manda chamar uma irmã que as acompanhará ao seu quarto.
Bakhita senta-se a aguardar. Será que uma madre tão idosa ainda
reconhecerá a lha? Será que as pessoas podem reconhecer-se após «quase
trinta anos de ausência. Dez. Mais dez. E ainda mais dez», explicou Ida com
as mãos abertas. Não sabe. Nunca reencontrou ninguém.

Acompanha, com Ida, a irmã que as guia pelos longos corredores


encerados, de onde se ouvem os gritos das crianças que brincam, esses
gritos que chocam com as inúmeras janelas. Ida toma o braço de Bakhita,
ajuda-a a andar, surpreendida com o peso desse corpo que avança como se
se arrancasse à terra, sabe – pensa nisso, inevitavelmente – os quilómetros
que esse corpo percorreu nos desertos e nas colinas e, perante os olhares
assustados daqueles que se cruzam com Bakhita, pergunta-se se algum dia
se pode ser livre quando o corpo é negro.
Bakhita dirige-se ao cadeirão onde a Madre Fabretti está sentada,
encolhida sobre si mesma, curvada como se orasse, com o queixo sobre o
peito, o pescoço frágil. Ajoelha-se para car à sua altura e, na dor desse
gesto, parece unir-se à velhice daquela que reencontra. Os seus rostos estão
tão perto, frente a frente, respiração contra respiração. Não se falam.
Olham-se. Longamente. E depois é um movimento lento e suave, a fronte de
Bakhita que se inclina e o seu rosto que se pousa nos joelhos de Madre
Fabretti. A mão deformada da idosa acaricia a sua touca. E aquilo sobe
lentamente, primeiro numa respiração que arranha, difícil, e depois numa
tosse, algo encerrado na garganta, e do rosto escondido de Bakhita sai um
soluço vigoroso e sem m.

Ida sai em bicos de pés, deixa a anciã e a sua protegida voltarem a estar
dependentes uma da outra, num sentimento proibido, um afeto que, sabe,
não tira nada a Deus, mas dá aos humanos um pouco desse amor escolhido,
consentido e subjetivo que faz, de cada um, um ser único.

– É preciso pôr uma fotogra a, Madre Giuseppina, uma fotogra a sua


na capa do livro.
– Mas que livro?
– Depois do folhetim, sairá o livro, já lhe tínhamos dito. Não lhe
disseram?
– O meu rosto horrível? Num livro?
– Não! Os Italianos estão cada vez mais habituados aos rostos negros.
Ida há de mostrar-lhe os bilhetes-postais, agora há alguns tão bonitos.
Conhece aquele dos jovens italianos de joelhos diante da negrinha? Sim,
com o martelo. O menino italiano está de joelhos e quebra as correntes da
jovem escrava. Os meus sobrinhos mostraram-me: é tão tocante!
Uma irmã leva Ida e Bakhita da ilha da Giudecca a Veneza e a sua voz
aguda cobre o ruído do vaporetto. Bakhita observa-a, franzindo os olhos.
– Mas a Madre também vai aparecer no livro.
– Eu? E porquê?
– As Canossianas andam sempre aos pares. Então, não posso car
sozinha na fotogra a.
O riso da irmã exprime a recusa jovial. Falaram-lhe do humor da Madre
Moretta. Deixa-a, com Ida, no cais do Canareggio e regressa de imediato ao
instituto, feliz por ter conhecido aquela Madre negra cuja história, até onde
lhe é dado saber, é tão romanesca. Afasta-se e, com as mãos a fazer de
megafone, grita a Ida Zanolini:
– E escreva-nos um belo folhetim!

Bakhita tira as fotogra as. Sozinha. De pé. Ajoelhada. Segurando um


livro ou de mãos postas. Oração. Sorriso contido. Olhar perdido ao longe.
Mantém aquele porte direito, uma vez que há que erguer a cabeça e não se
mexer, tem essa dignidade e essa elegância naturais que perturbam aqueles
que têm de escolher entre os retratos, e sussurram que talvez seja porque o
seu pai era o chefe da aldeia, tal como disse a Ida Zanolini. Quem sabe? E se
fosse uma princesa africana? Oh… a sua vida não tem nada de divertido…
A sua vida! Como dizer? Ela é… é isso! Como o título do folhetim:
maravilhosa. A sua vida é maravilhosa, sim, uma verdadeira storia
meravigliosa. Todos os meninos italianos deveriam conhecê-la, veriam o
que sofrem as crianças em África, e sentir-se-iam duplamente felizes por
servir o Duce.

Em janeiro de 1931, o primeiro episódio da História Maravilhosa da


Madre Giuseppina Bakhita sai na revista canossiana. Em dezembro, o livro
está nas livrarias. Conta o inferno da escravatura, o encontro salvador com
o cônsul italiano, a vida em Itália até ao noviciado. A capa não assusta
ninguém: o desenho do rosto liso e sábio de Bakhita, com a sua touca de
canossiana, destaca-se sobre um grande mapa de África. É um rosto claro,
quase mestiço. No interior do livro, a fotogra a deixa ver o negro profundo
da sua pele, como se o leitor italiano precisasse de um tempo para se
adaptar. No prefácio, depois de Ida Zanolini ter falado da comoção do seu
encontro, o editor acrescenta algumas linhas sobre as sendas admiráveis de
Deus, que quis, na Sua bondade, «conduzir Bakhita do longínquo deserto
escurecido por superstições e barbáries à luz de Cristo e aos esplendores da
graça, na perfeição religiosa». Estas últimas palavras são para a ação
missionária.
O livro não é um êxito. É um fenómeno. É disputado. Reeditam-no. Ao
longo de vários anos, até 1937, quando termina a guerra na Etiópia,
reeditam-no. De início, ela não compreende nada. Não compreende por que
razão batem à porta do instituto durante todo o dia, e por vezes de noite,
mas ela abre, é a portinaia. Vêm de todo o lado. Não só das aldeias dos
arredores, não só das cidadezinhas do Véneto, vêm de Trieste, Fiume,
Veneza, Turim, vêm para a ver, para lhe tocarem e serem tocados por ela,
ser abençoados, tratados, consolados. Alguns atiram-se aos seus pés
soluçando. Outros olham-na com pasmo, tocam-lhe na medalha, beijam a
fímbria do seu hábito, pedem-lhe que reze por eles. Há os errantes. Os
supersticiosos. Os feridos na alma. Os curiosos. Os humilhados e os
exaltados. E perto da Madre, tão negra, tão moretta, as irmãs colocaram
uma caixa de esmolas. É aconselhado, depois de se terem encontrado com a
Madre Giuseppina, que deem dinheiro para as missões canossianas, cada
dádiva serve para remir uma escrava, então o mais pobre de entre eles sente
que participa na grandeza da pátria: os Italianos já não são os exilados
tocadores de bandolim, já não são aquele povo de camponeses analfabetos e
alcoólicos, são seres generosos que trabalham para salvar os povos que
ainda não conhecem a civilização.

«É o que quer el Paron…» Quando a noite chega e está sozinha na sua


cela, com a janela aberta para a escuridão, repete-o para si mesma. Deus
quer isso. E reza-lhe para que lhe explique: o que procuram todos? A madre
superiora riu quando lhe perguntou porque é que tanta gente queria vê-la,
quando têm a sua fotogra a no livro. Riu e não respondeu nada. Desde a
saída do folhetim, muito antes do livro, foi no seio do convento que as
coisas mudaram. Um dia, no recreio, as irmãs pediram-lhe que cantasse
uma canção africana. Não se lembrava de nenhuma. Insistiram, podia
apesar de tudo fazer um esforço, recordar uma canção africana, apenas
uma. Fechou os olhos, era uma manhã de abril com uma luz pálida, uma
manhã clara que não guardava nada, não conseguia lembrar-se e isso
desiludiu todas as irmãs, deixando-a também desolada e envergonhada,
como se lhes tivesse mentido, como se não viesse realmente de «lá». Como
se, excetuando a sua pele de diabo, não tivesse trazido nada de África. Viu a
dúvida e a descon ança nos olhos de algumas: contara a sua vida e não se
lembrava de uma canção sequer? Foi atormentada por isso durante vários
dias e caminhava, com a testa franzida, cantarolando por vezes o início de
uma melodia que não dava em nada, tentando assobiar, lembrar a si mesma
um som da sua infância, uma música da mãe, que já não a visitava nos
sonhos desde que fora descrita no livro. Bakhita já não a encontrava, como
se tivesse deixado para sempre o tronco do embondeiro derrubado (uma
particularidade que guardara para si) e esfumara-se num lugar inacessível.
Talvez as almas da mãe e do pai lhe levassem a mal ter contado a sua
derrota. A lhinha escrava. A lhinha que não reencontraram. Também
reza por isso, para que os seus lhe perdoem. Quando ouve cair o dinheiro
na caixa das esmolas da missão canossiana, não pode impedir-se de pensar
em Binah, em Kishmet e em todas as outras. Então aceita ser «aquele
animal raro», como diz, mas por vezes a fadiga é demasiado grande, o
desconforto e a angústia paralisam-na. Pergunta: «Duas liras para comprar
o livro. E para me ver, quanto?» Quanto vale, quanto custou alguma vez?
Com mais de sessenta anos, no Sudão, em casa dos seus senhores, não
serviria de muito, e imagina-se nas ruas poeirentas e abrasadoras de
Cartum, sentada contra uma parede nua, uma mendiga como as outras,
como vê em Itália, perseguidas e espancadas pelos fascistas, que são
encontradas semimortas com o seu sorriso louco e o desconforto de ainda
estarem neste mundo. É dessas que se sente perto. Mas el Paron quer algo
diferente. E no dia em que reencontra a sua canção «Quando as crianças
nasciam da leoa», anuncia-o às irmãs com um alívio de rapariguinha
conscienciosa. Elas cam felizes com isso e tão curiosas que lhe pedem que
a cante ali, agora, apesar de não ser a hora do recreio, ali, no refeitório onde
afastaram as mesas para se sentarem e ouvir. E olhar também: «Tem de
bater palmas, Madre Giuseppina! E dançar também!» Viram os lmes,
sabem como são as coisas. Bakhita canta a sua canção de menina. Ela que se
sente tão velha. Essa canção para as crianças sentadas à sua volta,
despreocupadas e crédulas. É uma mistura de dialetos, de árabe e de turco,
faz o que pode, há já muito que não conhece a sua língua materna. De
início, as irmãs cam incomodadas, aquela voz tão grave, aquelas palavras
pesadas, aquelas mãos que batem, aquele corpo que se mexe, não ousam
entreolhar-se, culpabilizam-se por estremecer, e quando Bakhita fecha os
olhos para terminar o canto, com os braços ao longo do corpo, imóvel e
grave, têm medo de que alguém entre e veja aquilo, essa dor de que não
percebem nada.

Em seguida, para resolver esse desconforto, decidem rir e torna-se um


hábito, no recreio, pedir à Madre Moretta que cante a sua canção. Mas sem
fechar os olhos. «À africana», até ao m: batendo palmas e dançando. A
alegria. Sempre a alegria! Depois, Bakhita tem realmente tantas dores nas
pernas, nas costas e até nos braços, que diz a si mesma que hoje, em
Cartum, seria apenas uma mendiga. Já não serviria em nenhuma casa.
Nenhuma senhorinha lhe pediria que cantasse ou zesse de macaca para
distrair os convidados.
Claro que, hoje, todas aquelas pessoas que vêm vê-la sabem o que as
espera. Leram o livro, estão curiosas, intrigadas, mas não assustadas. Hoje
em dia, é melhor do que nos primeiros tempos como portinaia, quando
metia medo às crianças. Os primeiros dias de escola eram os piores. As
meninas não queriam que lhes tocasse, algumas rompiam em soluços
quando a viam e cavam à sua frente, imóveis e desesperadas. Ela era com
toda a certeza a mulher de l’Uomo nero, o Papão dos contos, esse terrível
fantasma negro com que os pais as ameaçavam à primeira asneira. Tem
pernas debaixo do hábito? A parte inferior do seu corpo fumega? À noite,
deita-se debaixo da cama? E sempre aquele medo de que as suje, as
contamine, as roube para as comer. A paciência que era necessária para as
acalmar, àquelas crianças que cresciam no medo e cujos pais trocavam o
vestuário pelos uniformes do partido fascista, vestidos, saias e camisas
negras, com essa vontade de agir corretamente, de serem como os outros,
aceitáveis e idênticos. Ela só queria uma coisa: recebê-las o melhor que
podia, ser a melhor porteira possível, é importante, sabe-o, começar um dia.
Então, manda sentar as pequenas antes de o sino de entrada tocar e conta-
lhes a vida de Jesus. Quanto à sua própria vida, gostaria de nunca mais falar
dela, nunca mais responder, prefere falar do escravo cruci cado, de como as
pessoas tinham vontade de O seguir, de O ouvir, explicar como Ele amava
os mendigos, os doentes e as criancinhas. Ainda assim, muitas preferem o
livro de Mussolini contado às crianças ou esses poemas que recitam a toda a
velocidade, batendo palmas: «Rosa era o seu nome, um nome que signi ca
espinhos, mas ele era a sua or, Benito, o seu lho. Beijando-lhe a testa, ela
diz-lhe: És meu! Mas sabia que ele pertencia à Itália. E a Deus.» É um jogo.
Uma nova maneira de viver. Agrupados. Reunidos. Em volta do chefe que
reergue a Itália depois de a Grande Guerra ter feito dela um país «pior do
que um manicómio ou uma tribo africana».

Até 1933, vai fazer isso: acolher as crianças do instituto, os visitantes e


responder às chamadas incessantes dos leitores da História Maravilhosa.
Onde quer que esteja no convento, na escola ou na igreja, quando tocam,
ela vai. Talvez por ter confessado os maus tratos, as pancadas, a tortura da
tatuagem, talvez por ter falado das marchas, da fome, da sede, o seu corpo
já não aguenta. Vai-se abaixo. No momento em que tanto precisam dela, em
que deve acorrer quando a chamam, o seu corpo desejaria parar. No
entanto, tem sempre esse re exo: chamam-na, ela obedece. Nem sempre
compreende o que querem dela. Porquê essa necessidade de a abordarem?
Porque é que leem a sua história com tanta paixão? Não veem o que se
passa aqui, na sua terra? As pequenas camponesas, não as olham? Crianças
que não conhecem a própria data de nascimento, saberão eles que há tantas
no instituto? Porque é que não pedem às órfãs que contem a sua
maravilhosa história, às que chegam sem roupa interior, sujas e mudas, já
maltratadas e envergonhadas? Não compreende e depois aceita não
compreender. Ela é aquela religiosa que traz a sua história sobre a pele,
como um estigma, e esconde como pode as dores nas pernas que se lançam
até ao fundo das costas. Nunca pede que um médico a ausculte, e nunca
mostrará na enfermaria as pequenas ampolas que aparecem nas cicatrizes e
lhe in amam a pele.

Um dia, anunciam-lhe que tem de partir. Tem sessenta e quatro anos e


vai deixar Schio. A madre superiora apresenta-lhe a Madre Leopolda
Benetti, que regressa da China, onde foi missionária durante mais de trinta
anos.
– Sabe onde ca a China, Madre Giuseppina?
Bakhita faz um sinal negativo, não conhece a China, e sorri o melhor
que pode à Madre Benetti, que a olha com tanta curiosidade.
– É muito longe, a China. Mais longe do que a África.
A Madre Benetti abana a cabeça, com o ar de quem diz: «Pois sim! É
possível! Um país mais distante do que a África!»
A Madre Benetti diz a Bakhita que leu o livro e esta abana a cabeça. O
livro, claro, por que outro motivo pediriam para falar com ela, de que mais
lhe falam desde que saiu, o livro, sim, e ouve falar de si mesma, da sua
infância e da sua conversão, e depois das missões que, como sabe, estão
cada vez mais presentes em África, no Sudão, na Líbia. Ouve e espera o
pedido que vai seguir-se, porque há sempre um pedido no nal destas
frases.
– Todos esses escravos a remir. Todas essas vidas a salvar.
– Sim…
– E a Madre… Os Italianos gostam tanto de si.
– Eu?
A madre superiora justi ca a inocência de Bakhita:
– A nossa Madre Moretta é a humildade em pessoa. Madre Giuseppina,
pode ajudar os nossos missionários.
– Mas como?
– As pessoas vêm de toda a Itália para a ver, não é? Pois bem, agora é a
Madre que vai partir ao seu encontro.
– Vou partir?
– Sim. Vai partir.
– Não co? Saio?
É expulsa, uma vez mais. A culpa é sua, falou de mais. É sufocante
aquele lugar que ocupou, sabe-o. Por vezes tem a impressão de ser uma
imensa bandeira colocada diante do instituto. Esconde tudo o resto, o
trabalho humilde, paciente, que as outras fazem, e lembra-se da felicidade
que sentia quando trabalhava nas cozinhas, na sacristia, da alegria desse
tempo antes da guerra, quando as crianças a chamavam no pátio: «Moetta
Bella! Vem!» Nunca deveria tê-las reunido e falado da pequena escrava
evadida que dorme nas árvores e não é comida pela fera. Foi assim que tudo
começou.
– Está a ouvir-me, Madre Moretta? Quer ajudar-nos a remir escravos? A
salvar os seus irmãos africanos?
– Em África?
A Madre Benetti abre sobre a secretária um mapa de Itália. Desde a
guerra, Bakhita já o viu, a esse longo país de montanhas e mares.
– A Madre e eu vamos partir para anunciar a boa nova. A Madre, eu… e
o livro. Vamos percorrer Itália, todos os institutos canossianos do país, e
vamos arrecadar dinheiro para os nossos missionários.
– Tenho de o dizer, Madre. Perdão, mas… ando com di culdade.
Realmente.
Não compreenderam de imediato. Partir, para Bakhita, signi ca andar a
pé. Quando perceberam, tiveram, ao mesmo tempo, vontade de rir e de a
apertar contra elas, num movimento de proteção e de gratidão, porque a
ideia que Madre Maria Cipolla, a madre geral, tivera era realmente boa:
«reerguer o prestígio do instituto» passeando a Madre Giuseppina por toda
a Itália, e aquilo, aquela simplicidade de espírito, aquela inocência, era tão
representativa do povo africano!
Vão apanhar comboios! Dezenas e dezenas de comboios através de todo
o país durante três anos. Antes de partir, Bakhita con ou-se a Elvira. Estava
angustiada com a ideia de falar de um livro que não escrevera e tinha
di culdade de ler. Elvira acalmara-a: a Madre Benetti («a Chinesa», como
lhe chamava) traduziria o seu dialeto veneziano, ia correr tudo bem, as
pessoas gostavam tanto dela, gostavam dela sem a conhecer. Tentara
acalmá-la, quando teria querido dizer-lhe que não fosse. Tinha o direito de
descansar. Tinha o direito de ser como as outras, uma velha religiosa
cansada, amada pelas antigas alunas, as professoras leigas, as órfãs, todos o
que tinham crescido e envelhecido com ela.
– Irei ter contigo, Madre, virei visitar-te, prometo-te.
– A tua patroa não quer.
– Não te preocupes com a minha patroa!
– Parto durante quanto tempo, que achas?
– Não sei.
– Uma bengala para andar, posso tê-la?
– Vou pedir-lhes.
E depois tinham cado um instante sem falar. Elvira via o seu per l
distendido, tão diferente dos desenhos que os outros faziam agora dela, essa
imagem que circulava, recatada, lábios fechados, coração silencioso e todos
os tormentos contidos. Como se lhe tivesse adivinhado os pensamentos,
Bakhita zera-lhe esta con dência:
– Sabes, Elvira, a minha mãe voltou. Ela perdoa o livro.
– Viste-a? Num sonho.
– Não num sonho. Ela beijou-me.
Elvira gostava tanto de quando ela parecia ter cinco anos, quando torcia
a boca e erguia as sobrancelhas, com a estrelinha azul xa no seu olhar
espantado.
– Como é que te beijou?
– É muito frio, mas quando durmo ela beija-me na face. Ela perdoa.
– Sim, minha Madrezinha querida, ela perdoou-te e agora nunca mais te
deixará.
– Achas?
– Quem quereria deixar-te?
Puxara-a contra si, murmurando:
– E deixa a chinesa levar a tua mala, hem?
Ao sentir o riso de Bakhita estremecer contra o seu peito, soube que
estava longe de se aperceber do que esperavam dela. Vinha de uma África
real e iam pedir-lhe que falasse de um país inventado; a mãe beijava-a
durante a noite e iam pedir-lhe que falasse de uma Abissínia de selvagens. O
discurso o cial. Era o que se fazia melhor em Itália, a tranquilidade e a
esperança eram transmitidas por vozes simplistas que se dirigiam
diretamente aos medos dos povos, ao medo dos outros. Esses bárbaros.
Vêm aos milhares durante anos. Por grupos. Por escolas. Por
universidades. Crianças doentes. Peregrinos. Vêm ouvi-la e, sobretudo, vê-
la. Em igrejas, teatros, escolas. No convento de Castenedolo, homens que
nunca entraram numa igreja beijam-lhe as mãos e dão meia-volta em
pranto. Em Florença, em Bolonha, em Ancona, encontra-se com o cardeal;
em Lodi, o bispo recebe-a numa audiência especial; em Trento, fazem novas
fotogra as o ciais; em Milão, encontra-se com as crianças da Casa
Canossiana onde ensinam jovens surdos-mudos. Ao vê-la, as crianças
fogem. Uma pequena aproxima-se, pousa um dedo nela. Não cou suja. Faz
sinal aos outros para que venham e todos se precipitam para os seus braços,
pedem beijos e ela ca toda a tarde com eles, que lhe mostram a linguagem
gestual. Ela responde-lhes com gestos desordenados e na sua companhia
sente-se compreendida. Em Veneza, convidam-na para o centenário da
fundação do instituto. No noviciado de Vimercate, pedem-lhe que assuma
durante alguns dias o lugar de portinaia. Os pais das noviças recusam-se a
entrar enquanto não aparecer uma irmã branca. Numa cidade, a multidão é
tal para a ver que os elétricos cam bloqueados, há quatro mil pessoas nas
ruas. Noutro local, sobem para cadeiras para a verem melhor e gritam-lhe
que venha pregar. Esperam-na nas estações de caminho-de-ferro, à chegada
do comboio alguns entoam cânticos e outros, mais empenhados
politicamente, cantam «Faccetta Nera»: «Rostinho negro, pequena
Abissínia, levar-te-emos para a Roma libertada, serás beijada pelo nosso sol,
e carás pura em camisa negra.» Perguntam-lhe se conhece Josephine
Baker, cujo amante é siciliano e cuja digressão triunfal passou por Itália.
Perguntam-lhe se leu esse livro escandaloso, Sambadù, amore negro, cuja
apreensão acabou de ser ordenada por Mussolini porque é uma ofensa à
dignidade da raça. (A capa mostra uma mulher branca abraçando um
homem negro, mas no nal do romance a mulher italiana reconhece a
barbárie do amante e este regressa à tribo.) Ela é a África. Dizem inclusive
que é «a cor da África». Quanto a ela, confessará simplesmente, mais tarde,
muito mais tarde: «Tinha a impressão de cair no nada.»

O que lhe pedem é, no fundo, bastante simples e o modo como os


encontros se desenrolam, sempre idêntico. A irmã missionária, a Madre
Benetti, fala das missões canossianas, da falta de dinheiro, das conversões e
dos escravos remidos, da vida dos missionários e sobretudo das suas mortes
(doenças, violência, pobreza), e depois pede a Bakhita que se junte a ela. É o
momento que todos aguardam. O momento para que vieram, emocionados
mesmo antes de começar. Avança pelo estrado. Entra na luz. E depois deixa
sempre que a olhem um pouco. Porque é isso que querem, sabe. Passada a
estupefação, a deliciosa estupefação, procuram reconhecer nela a
rapariguinha do livro, a escrava seminua nos mercados de Cartum, calam-
se e ela revê por vezes a ave branca que planava sobre El Obeid quando um
comprador pedia para ver a mercadoria. O que era preciso fazer então,
apanhar o pau, correr, baixar-se, mostrar os dentes, não poderia fazê-lo
hoje, que se apoia numa bengala para andar, mas não aqui, não em público,
a bengala ca no vestiário e é coxeando pesadamente que avança até diante
deles. Depois, a Madre Benetti pede-lhe para «dizer as palavras do
coração». Ela vai falar e sabe que a sua voz irá assustá-los. E que eles vão
gostar desse susto, que ela também diz tão bem «a África». Saúda-os e, no
seu mau veneziano, agradece a todos, diz-lhes: «Lembrar-me-ei de vós nas
minhas orações.» Por vezes acrescenta: «Quero ver-vos a todos no paraíso.»
E depois desce do estrado. Não quer, mas é uma ordem e obedece. («Madre
Giuseppina, três coisas: em primeiro lugar, nada de bengala nos encontros;
em segundo, não hesites em utilizar o teu dialeto africano e, por m, não
hesites em descer até ao meio deles e fazer o que te pedem.») Assina o livro,
concede graças, senta-se no meio daqueles que querem «precisões», e
mostra inclusive as cicatrizes do braço, quando insistem muito. Com a
medalha da Virgem, abençoa as crianças doentes e, ao abençoá-las, reza por
todas aquelas que viu morrer, no Sudão e em Itália, e a sua ternura por essas
crianças que não pedem nada é imensa. As crianças olham para as mães,
esperando que também elas, sobretudo elas, sejam consoladas pela Madre
Giuseppina e são estas mães que Bakhita gostaria de tomar nos braços. Mas
isso não se faz.

É assim, misturando-se com a multidão, falando com os estudantes, os


jornalistas locais, os curiosos e os sinceros, que ca a saber o que se passa
na Etiópia.
A 2 de outubro de 1935, na praça de Bérgamo, assistiu ao comício onde
todos deviam ouvir o discurso do Duce, transmitido em direto pela rádio. A
Madre Benetti havia-lhe mostrado de onde sairia a voz, os altifalantes
presos às árvores.
– O Duce está em Roma, no seu palácio, no entanto, vai falar e, aqui,
vamos ouvi-lo. E por toda a Itália, em todas as praças, será igual. Toda a
gente vai ouvi-lo.
– Sim.
– Não deverá mostrar-se qualquer sinal de incompreensão nem de
desacordo.
– Eu sei.
– Não deverá mostrar-se nada de nada. O que não compreenderes,
explicar-te-ei depois.
– Sim.
– Coloquemo-nos um pouco afastadas.
Compreendeu mais tarde por que razão a Madre Benetti a protegera da
curiosidade da multidão. Para ouvir aquele discurso e aquilo que
anunciaria, mais valia não ser negra no meio de todas aquelas pessoas
jubilosas, mais valia estar sentada mais longe, num banco, à sombra de uma
tília que a ocultasse um pouco.
Ouvira a orquestra antes do discurso, os clamores, o anúncio da chegada
do Duce, e nunca esquecerá a música de Mussolini. Ouvia com a atenção de
quem procura compreender as palavras e recebe o sentido da palavra.
Ouvia «Rivoluzione!», «Tutta l’Italia!», «Unità della Patria!», «Destino!»,
«Determinazione!», «Tutti unitti!», o tempo lento, entrecortado de início,
como se a história que ia chegar viesse em crescendo, carregada primeiro
com uma lentidão pesada, com frases curtas e interrompidas pelos clamores
da multidão, a da rádio e a de Bérgamo, e ouvia a cólera da voz do Duce que
levava a cólera de todos os Italianos a todo lado. Depois o discurso mudara
de ritmo, a história contada embalava, a voz profunda descia muito baixo,
como um canto de Caruso, e depois, de súbito, empolava-se, subia nos
agudos e depois caía de novo, rouca, pesada pela revolta, os fortes r rolados
como o rufar de um tambor, as frases amplas e furiosas, parecia por vezes
que o Duce ia chorar, mas enchia-se de novo de uma raiva implacável que
lhe dava essa energia assustadora. E depois Bakhita ouvira umas datas, uns
números gritados que alimentavam a revolta da multidão esgotada e
exaltada, números que os in amavam e contra os quais pareciam partir
para a guerra. E era precisamente disso que se tratava. «La guerrra!!!» «Italia
proletaria e fascista!!!» Os homens, na praça, haviam-se reconhecido nessas
palavras como se elas fossem o que lhes faltara durante toda a vida. No nal
do discurso, os seus gritos confundiam-se com a crepitação da rádio,
Mussolini estava neles: o seu sangue corria-lhes pelas veias, a sua voz
ressoava-lhes nos ouvidos muito tempo depois de terem desligado os
altifalantes. Bakhita não sabia o que fazia o Duce depois de ter acabado de
falar a toda a Itália ao mesmo tempo, mas na praça, do banco afastado, vira
explodir a alegria, em cânticos, gritos, choros e abraços entre pessoas de
todas as idades e dos dois sexos, e as crianças de camisa negra, que tinham
percebido ainda menos do que ela, estavam felizes, porque todos os outros
também estavam. A Itália fascista avançava em uníssono para reivindicar o
espaço vital que lhe pertencia por direito e vingar as injustiças de que era
vítima havia demasiado tempo. Já não se contentaria com as migalhas do
banquete colonial. Era esse o anúncio. E quando o Duce gritara «Ó Etiópia!
Fomos pacientes durante quarenta anos, agora, chega!», a alegria dos
italianos fora tão violenta como se fossem reencontrar alguém que lhes
tivesse feito falta e sem o qual lhes era impossível viver. Mas tinham sentido
a falta de si próprios. Pensavam reencontrar-se batendo-se contra «esses
cães abissínios», porque a colonização faria deles seres ricos e respeitados.

É falando com todos esses que vinham em tão grande número para a
ouvir (e vê-la, mais do que ouvi-la, e tocá-la mais do que simplesmente
olhá-la), é em contacto com italianos que Bakhita ca a saber que a Etiópia,
esse país tão próximo do seu, é um país imoral, mas com riquezas
inexploradas, petróleo, ouro e prata, platina, nitratos, enxofre, ferro, há lá
tudo e vão devorar, invadir, explorar, cavar tudo. Conhecem esse país
exótico e bárbaro, assistiram às reportagens assustadoras que falam de
in bulação e sacrifícios de crianças, passam uns aos outros, às escondidas,
fotogra as pornográ cas proibidas, as africanas que tentam como o diabo
com a sua pele de diabo. A Etiópia não traz apenas inúmeras riquezas,
também traz fantasmas e desejos reprimidos durante demasiado tempo. Os
vapores que os levam até lá estão carregados de soldados, agricultores,
operários, religiosas e missionários, mas também de italianas prometidas
aos bordéis italianos para que a raça branca não se misture e toda aquela
virilidade se liberte, sem falhas, no local certo.

Andrea Fabiani escreve para um simples jornal paroquial e pede, como


tantos outros, uma entrevista com Bakhita. Fá-la repetir o que já está no
livro e dizer de novo o que acabou de dizer à multidão. Ela fala como se
recitasse, quase poderia contar tudo em italiano, tantas foram as vezes que
ouviu a Madre Benetti contar a sua história na língua o cial, a do livro.
Esforça-se, no entanto, por estar presente no que faz, por contar como se
fosse a primeira vez, mas sem a dor da primeira vez. Andrea Fabiani
aproveita um momento em que a Madre Benetti se afasta para fazer uma
pergunta a Bakhita, mas tão baixo e tão depressa que ela compreende mal e
responde apenas com um sorriso desolado que o jornalista toma como uma
dor pudica.

Ela xou as palavras. O seu instinto diz-lhe que são perigosas. É preciso
abordá-las com prudência. E é com prudência que pergunta à Madre
Benetti, no comboio que as leva de um instituto para outro, o que quer
dizer «arsénico».
– Arsénico? É um veneno. Porque é que falas em arsénico?
Bakhita fecha os olhos. Sente um calor terrível, as mãos tremem-lhe
apertando o seu rosário. A Madre Benetti pensa que está imersa na oração.
Caminha pelos campos etíopes. Perto dos lagos com os peixes mortos, dos
rios envenenados e dos cadáveres de corpos vítimas de convulsões. As
palavras de Andrea Fabiani cobrem essa paisagem assassinada: «Gazearam
a população. Gazearam, compreende? Os obuses, com arsina e gás-
mostarda. A arsina, conhece, certamente? É verdade. Ouvi numa rádio
estrangeira».
Tenta conter a dor. Dirige-a. Condu-la. Segura-a. E à noite, na cela do
instituto que a acolhe, chora. Vive no caos furioso do mundo. E não sabe
onde pousar a sua revolta.

Ouviu-o na rádio. Conhece as fotogra as e os desenhos, os jornais, os


cartazes, os bilhetes-postais, viu-o a domar um leão, galopando num cavalo,
em cima dos canhões, manejando a enxada, semeando cereais, de tronco nu
a malhar o trigo ou a fazer esqui, a beijar as crianças, a inspecionar os
exércitos, e também viu o rosto dele destacando-se sobre o mapa de África,
como o seu na capa da Storia Meravigliosa. Hoje, a Etiópia é italiana. E ela
vai encontrar-se com o Duce na sua residência particular, esse Palazzo
Veneziano donde fala a toda a Itália. Está frio nesse dia 11 de dezembro de
1936, Roma está cheia de praças imensas e de correntes de ar, de ruínas e de
ruas escuras. A sua bengala escorrega nos passeios gelados onde lhe custa
caminhar. Avança, curvada, apoiada por duas irmãs que a sustêm com
emoção, como se fossem íntimas, mas é verdade que, agora, os
desconhecidos a conhecem. Falam-lhe do pai, da noite da evasão, do redil, e
quanto mais lhe falam da sua vida, mais esta se afasta. Quando se con ara a
Ida Zanolini, ignorava que iriam fazer um livro e que lhe pediriam que
oferecesse esse livro a um chefe de guerra. Se tivesse sabido, quando
sussurrava no minúsculo parlatório de Sant’Alvise, que o que lhe era
arrancado seria vendido a duas liras por todo o país, por certo teria
guardado a intimidade para si. Teria falado das crianças. Dos escravos. Dos
inúmeros mártires. Mas não dos outros. Não do seu irmão. Não da irmã
gémea. De Kishmet. Não dos pequenos a que contava histórias e cantava
canções. Às crianças da aldeia, tê-las-ia protegido daquilo, do palácio de
Mussolini. Avança, fustigada pelo vento gelado que sopra e a empurra e,
curvada, vê apenas os seus pés e a bengala. Tem três pernas idiotas que se
mexem tão mal, e não consegue acompanhar a passada enérgica das irmãs
missionárias de partida para Adis Abeba, curiosas e assustadas com a ideia
de descobrirem em breve esse país salvo pelo Duce, mas, de súbito, para.
Recupera o fôlego. Ergue o rosto. Está ali à sua frente, tão minúscula. A
varanda de onde ele fala. Berra. Está disposto a chorar e a matá-los a todos,
ela sabe-o, aquele homem da voz do terror, conhece-a, oh, conhece-a tão
bem. Quase se vai abaixo, as irmãzinhas detêm-na: «Não se prosterne agora,
Madre, espere até estar diante dele.» A sua vista turva-se. O vento mete-se
sob o seu hábito, pica-lhe as pernas dani cadas. Está escondida com Binah
atrás de um maciço de acácias, fugiram e ouvem a voz do guarda trazida
pelo vento, a voz que se aproxima e vem procurá-las. E depois, lentamente,
o ruído das correntes. A respiração dos escravos. Contempla a varanda
demasiado pequena onde utuam duas bandeiras italianas. Volta-se para a
irmã missionária e diz-lhe:
– A primeira coisa a fazer com as crianças…
Mas a irmã não ouve, há demasiado vento e Bakhita fala demasiado
baixo. Ela grita-lhe separando as palavras:
– NÃO-PER-CE-BO-DES-PA-CHE-MO-NOS!
Bakhita agarra a bengala, abana a cabeça e diz de novo, baixinho, a si
mesma:
– A primeira coisa a fazer com as crianças é dar-lhes de beber.
E entra, com as missionárias, na imensa casa serpente.

Alguns dias depois, com as mesmas missionárias, encontrar-se-á com


Pio XI. Será o apogeu da sua digressão. Pensa que depois disso irá regressar
a Schio, mas colocam-na como portinaia no Instituto das Irmãs da Caridade
Canossianas de Vimercate, perto de Milão, onde já foi e onde as noviças se
preparam para partir para as missões. Está colocada como uma ponte entre
dois continentes, acalma os pais que se inquietam ao verem partir as lhas,
tão jovens, tão exaltadas e ignorantes em relação a tantas coisas. Têm medo
de as perder e não deixam de ter razão. A Etiópia bem pode ser italiana,
mas os Etíopes ainda são africanos, e as suas revoltas são alvo de represálias
sangrentas, uma potência militar contra a qual não são nada. Disso, é claro,
a Itália não deve saber nada. Mas não podem silenciar-se durante muito
tempo os assassínios, as deportações e os campos de concentração. Os
homens circulam, como o dinheiro e as espingardas. Há falhas nas paredes,
para quem as quiser ver, grandes sombras pousadas no resplendor do Duce.
E aqueles que regressam, que falam ou se recusam a contar, esses, e talvez
mau grado seu, confessam a ofensa. Perante a boa vontade dos
missionários, há o trá co de homens e de crianças, as rapariguinhas que se
compram, que se oferecem e que se abandonam na rua quando se regressa a
Itália. De um lado o empenhamento sincero, do outro a pilhagem.
Mussolini embriaga-se com o seu próprio poder, põe os exércitos a apoiar
os nacionalistas do general Franco, «para a defesa da civilização cristã», tem
fome e o mundo é dele, quer tudo, é indestrutível, exaltado e demente. Em
breve faz uma viagem o cial à Alemanha, outra varanda, outro discurso, a
mesma exaltação do trabalho e da juventude, a mesma hostilidade em
relação ao comunismo, sublinha com orgulho as semelhanças entre
nazismo e fascismo.
Em maio de 1938, Hitler está em Roma. Pouco tempo depois, o tema da
raça aparece na imprensa italiana, ligado à questão judaica.
Bakhita ca dois anos em Vimercate. De 1937 a 1939. Sabe que a guerra
nunca morre. A guerra é eterna. Agora, é uma anciã e é assim que se lhe
dirigem, como àquela que sabe. Em Vimercate já não é aquele objeto de
medo e de curiosidade que pôde ser. É do país para onde eles vão. As
noviças e os seus pais pedem-lhe que reze por elas, mas, sobretudo, que as
prepare. Fala do país da infância, que é o mesmo para todos, diz-lhes que lá
o dia é abençoado, a noite respeitada, a natureza alvo de gratidão. «É o
mesmo para vós, não é?» Com o pai. A mãe. Os que os geraram. E aqueles
que esperam para vir ao mundo. «É o mesmo para vós, não é?» E é
precisamente isso que as perturba. Têm medo de se reconhecer na vida dos
africanos e de se confundirem com ela. De se perder nas esperanças e
a ições dos outros, tão semelhantes às suas. Recebeu um presente
inestimável. No mosteiro de Cremona, algum tempo antes, reencontrou a
sua irmã. Foi o que decidiram ser uma para a outra, essa possibilidade de
isso ser verdade. A Irmã Maria Agostina tem a idade de Kishmet e a mesma
pele negra do mesmo Sudão, o rapto e os anos de escravatura, a mesma
conversão que Bakhita, depois de ter sido remida pelo padre Don Biagio
Verri, «o apóstolo das raparigas escravas», «o apóstolo das morette». Havia
cinquenta e três anos que Bakhita não via uma mulher ou um homem da
sua cor. Cinquenta e três anos que era a assustadora estranheza, a única no
mundo. Quando se aproximou de Maria, compreendeu, ao ver a sua pele, as
mãos, o modo como o seu corpo se mexia, como os olhos observavam, que
eram das mesmas crenças e das mesmas paisagens, das mesmas caravanas,
dos mesmos negreiros e dos mesmos senhores. Compreendeu que eram
irmãs. Tinham perdido tudo. Tinham-lhes arrancado tudo. Tinham visto
tudo. E os seus corações, estranhamente, continuavam a bater. Abraçaram-
se, longamente, sem uma única palavra, com um reconhecimento tal que,
ao apertar a outra contra si, era a si mesma que cada uma delas apertava,
um corpo negro infalível, legítimo e sem vergonha. Falaram uma com a
outra numa língua que voltava, uma língua inebriada, desarmónica e
dani cada, riram e choraram, com um alívio violento como o amor, e a falta
que sentiam dele. Tinham tantas coisas a dizer uma à outra e por detrás de
cada palavra, de cada situação, havia a mesma ternura perdida, a mesma
barbárie, o início e o m, o que a vida poderia ter sido e o que as levara a
encontrarem-se num mosteiro italiano, com a cruz de Cristo no peito e a
medalha da Madonna que protege as crianças roubadas. Após dois anos de
digressão, o encontro com a escrava sudanesa tornada irmã Maria Agostina
foi o sinal para Bakhita de que trabalhara bem e de que el Paron lhe
agradecia por isso. Então, a sua vida nunca mais foi exatamente igual.
Sentiu-se, talvez pela primeira vez, digna d’Ele, e soube que daí em diante já
nada lhe provocaria medo, já nada de mau ou de desconhecido poderia
acontecer-lhe. Estava protegida de tudo.

É em julho de 1938 que aparecem as leis raciais que estabelecem as bases


do regime fascista. Pouco tempo depois, Giulia, uma amiga de Elvira, veio a
Vimercate trazer uma carta a Bakhita, uma carta que deveria queimar
depois de lida.
– Lê-a para mim.
– Mas, Madre… acabou de o fazer.
– Não a compreendo.
– Sim. Compreendeu-a bem, infelizmente.
Estava-se no começo de uma tarde seca e quente, as portadas estavam
fechadas e a cela tinha aquela penumbra das horas da sesta em que o sol
reina. Com os dedos deformados, Bakhita segurava e lia uma e outra vez a
carta de Elvira, como se quisesse alisar um tecido. Ou apagar as palavras.
– É preciso queimá-la, Madre, prometi-lhe.
– Como é que ela sabe?
– Que é judia?
– Sim.
– Foi um amigo da sua avó que veio preveni-la. Disse-lhe que a sua avó
materna, a que a criou, como sabe, era judia. Foi o que ele disse.
– Mas ela cresceu na nossa casa, em Schio. Cresceu entre os católicos.
Giulia disse que tinha de partir, mas que voltaria para lhe dar notícias
mal as tivesse, logo que Elvira estivesse em segurança na Suíça onde,
segundo dizia, a mãe a esperava.
– Reze por ela, Madre.
– Sim. E por todos os outros.
Giulia levantou-se para se ir embora, Bakhita pegou na bengala.
– Não me acompanhe, Madre.
Bakhita abriu a porta e deu o braço a Giulia. O convento estava
silencioso, avançaram lentamente pelo corredor de cortinas desbotadas pelo
sol, contra as quais se ouviam zumbir moscas e vespas presas na armadilha
das suas pregas. Bakhita parou para recuperar o fôlego, pediu a Giulia para
abrir a janela. O ar queimava e era como se, em vez de terem o rosto lá fora,
tivessem entrado numa divisão sobreaquecida.
– Olha, é Milão. É bonito.
– Sim, Madre.
– No entanto, os homens escondem-se. Estás a ver.
Giulia olhou durante muito tempo, mas estava demasiado longe de
Milão para poder distinguir, dali, mais do que as echas da catedral, os
telhados emaranhados e os terraços da cidade.
– Perdão, Madre, não vejo nada.
Bakhita virou-se para ela.
– É porque estão bem escondidos.
Sorriu como se tivesse acabado de dizer uma piada, mas não era piada
nenhuma. Pousou a mão sobre o coração de Giulia.
– É aí que os homens se escondem. Na força. Di-lo a Elvira. A força.
Depois regressou à cela e a respiração misturava-se com os zumbidos
das moscas e das vespas. Sabia. Aqui, em Vimercate, o mundo entrava. A
rádio, os jornais, as discussões de uns e outros. Sabia-se tudo. Era um
tempo incendiado. Il Giornale d’Italia publicara um artigo, «O fascismo e o
problema da raça», em que dez cientistas haviam demonstrado que os
italianos eram maioritariamente de origem ariana e formavam uma
civilização ariana. O manifesto incentiva-os a «declararem-se, com toda a
honestidade, racistas» e a rmava que os judeus eram a única população que
nunca fora assimilada em Itália. Então, reapareceu o grande medo. Medo da
«raça superior» por oposição às «raças inferiores»: os judeus e os negros. Os
primeiros eram depravados, os segundos, infantis, e ambos ameaçavam a
pureza do país. Era preciso ensinar às crianças que eram superiores aos
negros e racialmente diferentes dos judeus, e o ministro da Educação
Nacional a rmava o carácter «eminentemente espiritual» do antissemitismo
fascista. Jornais e revistas transmitiam a mensagem publicando caricaturas
e artigos satíricos, as capas da revista La Difesa della Razza mostravam-nos
juntos, judeus e negros, coligados contra a Itália, fotogra as de negras de
seios nus, de judeus de nariz adunco emboscados atrás de um bebé branco
que fazia a saudação romana, uma estátua romana manchada por uma
impressão digital negra sobre a qual estava aposta a estrela de David, e
muitas outras mais. A mulher negra e o homem judeu sempre conluiados e,
enquanto se enviavam missionários para a Etiópia, expulsavam-se os judeus
das universidades, das escolas, da maior parte das pro ssões e do espaço
público.

Nesse dia, Bakhita não queimou a carta de Elvira. Trouxe-a contra si,
entre a pele e o hábito de freira. Ali, onde o coração batia com a força que
lhe restava. A sua oração dirigia-se tanto a el Paron como aos seus lhos,
essa família dilacerada, cruel e perdida, que avançava para o desastre e o
ódio.
Tem setenta anos, o comboio que toma é o último, sabe-o. Levam-na
«para casa», para Schio, e dizem-lhe que agora vai descansar. Não pensa que
seja verdade. Ninguém descansa em tempo de guerra. A Itália bate-se ao
lado da Alemanha, uma guerra que os governantes anunciam uma vez mais
como rápida e fácil. Os homens veem as horas nos relógios e calendários,
veem o mundo no atlas ou dos aviões. Pensa que os homens observam tudo
de demasiado longe. Sabe que vai levar muito tempo. Ainda mais tempo do
que a guerra em si. Vai chegar e vai gravar-se, o massacre dos vivos
transmitirá a mágoa à sua descendência, e quem os consolará, a esses lhos
da paz que carregarão a dor invisível dos seus pais? Há uma recordação e
uma marca no universo, que não se apagam. Nada se inventa. E nada se
apaga. Pensa em Elvira, de quem não teve mais notícias, pensa nas jovens
missionárias perdidas entre o amor de Cristo e o medo dos povos
«bárbaros». Atravessou inúmeros anos e inúmeros países e nunca viu senão
a mesma paisagem: a dos homens perdidos, das mães desapossadas e das
crianças sem inocência. O comboio trava com força, guincha longamente e
para de súbito. A mala cai aos seus pés, a irmã que a acompanha precipita-
se, inquieta-se, está bem?
– Sim, estou bem.
O comboio não arranca. Abrem-se as janelas. Está calor. Um calor
muito pesado. O tempo vai mudar. Era bom que chovesse, que o céu
explodisse. Abriram-se as portas e alguns viajantes desceram para os
campos. Bakhita ouve as chamadas, os rumores…
– É uma corça…
– Sim. Levam muito tempo para a retirar.
– Mas que esperam eles?
Toda a gente fala e se mete. Bakhita ca sentada. Tem zumbidos nos
ouvidos, que lançam apitos contínuos. Isso acontece-lhe cada vez mais
frequentemente, uma crepitação entre o mundo e ela. Nada a fazer. E, de
repente, chove. Grossas gotas quentes que fazem subir os odores da terra.
As crianças estendem os braços para o exterior. Ralham-lhes e fecham as
janelas. O ar é sufocante. E o comboio ainda não parte.
– Tirem daí o animal!
– Que estão a fazer?
O tiro é seco. Anula os zumbidos de Bakhita e subitamente reina um
silêncio espantado, seguido de imediato por uma grande excitação.
– Mas então?
– Diga, que se passa?
Depois, lentamente, o comboio arranca. Os viajantes subiram
apressadamente, ensopados pela chuva, riem e sacodem as roupas, tiram os
chapéus. Tiveram medo, mas não era nada. Era impossível retirar a corça
sem a terem abatido. Tinha as patas esmigalhadas. Uma criança começa a
chorar de a ição, a mãe dá-lhe um beijo e um naco de pão. Sentado nos
seus joelhos, observa Bakhita. A anciã de rosto queimado, que sorri a essa
criança acabada de entrar na guerra.

Quanto a ela, vai entrar na velhice. Em Schio, já não tem função nem
horários xos. Está na miséria que a doença dá. Tem os dedos deformados
pela artrite e a sinovite, os punhos estão vermelhos, inchados pelos edemas,
os seus joelhos, ancas, ombros, tudo ca perro e se retrai, está dominada
pela dor e, pouco a pouco, por efeito das cataratas, vai perder a visão. Perde-
se nos corredores, agarra-se às paredes, dirige-se para os ruídos, mas os
seus ouvidos apitam e tudo se mistura, os pontos de referência baralham-se.
O seu corpo retira-se, o espírito vela. Vive no convento o que vivem todas as
irmãs velhas e doentes, rezando e preparando-se para o que vem. A noite.
Ou o dia. Caminha lentamente no instituto, de um local para outro. Aplica-
se a pentear e lavar as mãos das alunas que chegam sujas e negligenciadas,
oferece o seu quinhão de pão e fruta àquelas que têm fome e o escondem,
essas crianças cansadas que se mantêm à parte para verem as outras brincar,
com o ar sonhador daqueles que estão à deriva. Lava todos os dias, à mão,
as toalhas e a roupa da sacristia. Arruma o refeitório. Tricota, cose, remenda
e borda, e ninguém ousa falar-lhe na fealdade nova dos seus lavores, porque
vê mal e tem os dedos tão deformados que se pensaria poderem quebrar-se,
estilhaçar-se como lenha miúda. Visitam-na, na tranquilidade do parlatório
ou no seu quarto, e pouco a pouco dão-se conta de que, quase cega, é de
uma espantosa clarividência, anunciando a cura de um próximo,
predizendo a colocação de uma religiosa e, mais simplesmente, o lugar onde
se encontra uma carta perdida. Tem setenta e três anos quando cai pela
primeira vez. E depois outra. E mais outra. O padre perante o qual se
desmorona pede-lhe que não volte a fazer isso, que nunca mais se prosterne
à oriental diante dele. Ela pede-lhe que a ajude a levantar-se. Em breve
empurram-na numa cadeira de rodas, uma grande cadeira de madeira que é
parecida com ela, escura e sem leveza. Acontece levarem-na à igreja e
depois não a trazerem de volta: ca curvada na cadeira, esquecida na igreja.
Em breve, falta-lhe a respiração. Sofre de bronquite asmática e reconhecem-
na pelo ruído que faz: a cadeira de rodas estala, a respiração apita, ela tosse,
e escarra num lenço que treme nas suas mãos. As estadas na enfermaria são
cada vez mais frequentes. Já não sabe em que posição car. Estar deitada é
impossível. Estar sentada comprime-lhe a caixa torácica, o busto desliza
lentamente e cai. Estendem-lhe as pernas para fora da cama, sobre uma
cadeira, porque sofre de elefantíase. As irmãs vêm fazer-lhe companhia,
mas manda-as embora, pois tem muito medo de que a enfermeira pense
que não trata bem dela e que pesarosa com isso.

A 8 de dezembro de 1943, festejam as suas bodas de ouro, os cinquenta


anos de vida religiosa, as pessoas concedem-se uma hora de paz no tumulto
da guerra. Depois da missa, ca sentada, em silêncio, num canto do
refeitório, contemplando a assistência. Vieram em grande número celebrar
o seu jubileu, e não é só o instituto, mas toda a cidade que está em festa.
Passou cinquenta anos entre as irmãs, a maioria das quais, hoje em dia, lhe
parece tão jovem; o que as levou, a elas, a a rmar um dia «Não saio. Fico.»?
Nunca terão lhos. Não deverão afeiçoar-se a ninguém. Nem possuir nada.
Deverão obedecer a tudo. «Não saio. Fico.» A prisão é lá fora. Estar no
convento é ser livre. Há regras, difíceis, duras e injustas por vezes. Mas essas
regras dão tranquilidade e caminha-se amparado por elas, Bakhita sabe-o: o
convento está no interior. Está dentro. Não se compreende de imediato. São
necessários anos para encontrar o seu lugar. Vê-as, às noviças e às jovens
religiosas, as que lamentam um pouco e as que já estão cansadas, as que
resplandecem de tal modo que a pele está invadida pela luz. Vivem juntas
dia e noite e por vezes têm di culdade em suportar-se, há irritações,
rivalidades e amizades que não têm o direito de nascer. O afeto passa por
atenções ín mas, algumas con dências por vezes, como as que Bakhita
recebe. As irmãs falam-lhe, há coisas que se confessam mais facilmente a
uma mulher do que ao seu confessor, e a Moretta, que viu tudo, pode ouvir
tudo. Bakhita olha aquelas pessoas que vieram por sua causa, está
simultaneamente presente e retirada, imponente e apagada. Teria gostado
que Elvira partilhasse esse momento. Não tem notícias, mas sabe que os
judeus já escorregaram na beira do mundo e pressente o que vai acontecer.
Não é vidente, como eles julgam. Conhece apenas um pouco o mundo. Sabe
que o que nos vai acontecer está marcado em nós. E o que vai acontecer ao
mundo está inscrito. Nunca voltará a ver Mimmina, nem Elvira. Fazem
parte daquela parte de si mesma arrancada como a pele in amada, dolorosa
e perdida.
As razias começam e já não são os negros que são apanhados, mas sim
os judeus. Antes de se juntar aos Aliados, na Sicília, o rei mandou prender
Mussolini. Hitler libertou-o e, sob o seu controlo, o Duce dirige a república
nazi-fascista de Saló, no norte do país. Em setembro, o primeiro comboio
de deportados partiu para Auschwitz.
As bombas caíram sobre o mundo, em Itália e em Schio. Bakhita nunca
quis que a levassem para os abrigos. Dizia que nenhuma bomba cairia no
instituto, mas que era necessário proteger as crianças. Quanto a ela, cava
na casa, como uma guardiã, uma velha alquebrada que ouvia o fragor dos
ataques. Houve mortos, feridos e destruições terríveis perto da Alta
Fabbrica. O céu aterrorizava as crianças. A quem poderia mostrar, agora, a
beleza do mundo através da janela aberta? A noite invadira o dia. Rezava
para que as pequenas não tivessem demasiado medo lá em baixo, nas caves,
não se tornassem frágeis nem amargas perante a vida que vinha. Suplicava:
«Senhor, dá-lhes a força.» E perguntava-se quem decidia que podiam
deixar-se morrer as crianças. Às crianças que gritavam quando ouviam os
aviões, dizia: «Minha querida, esse barulho, é o da carroça, estás a ouvir?» É
verdade que, no ronco dos aviões, se reconhecia o passo dos cavalos nas
calçadas. «Não se deve ter medo das carroças, porque elas vão-se sempre
embora, sabes, minha querida?» E as crianças olhavam, sem responder,
aquela anciã enrugada, torta e negra, que tinha um ar tão pobre e tão
poderoso. Acreditavam nela e desciam até aos abrigos, «até a carroça
passar». Depois dos bombardeamentos, Bakhita perguntava: «Como é que
se passaram as coisas com as pequenas? Alguém lhes contou histórias?
Alguém lhes cantou cantigas?»

E, depois, voltou a paz. Com um mundo apagado. Cinquenta milhões de


mortos. E tantos desaparecidos. Bakhita sonhava por vezes com Elvira,
confundia-a com outras, a irmã gémea, ou escravas que julgava ter
esquecido e surgiam nos seus sonhos com nomes precisos e rostos que
reconhecia. Sabia que vinham buscá-la. Que terminara. Desta vez, era o m
da sua vida. Já vivia mais intensamente nos sonhos do que no quarto da
enfermaria onde era velada dia e noite. A língua inchara, a respiração
diminuía, os membros inchados pela água esticavam-lhe as cicatrizes, dir-
se-ia que o seu corpo estava prestes a rasgar-se. Uma apoteose do
sofrimento após toda uma vida a lutar. Ouviria as orações murmuradas e as
palavras de compaixão? Saberia que não estava só?
Uma noite, deitada na cama, sentiu os pés na areia. Era quente, fugidia e
suave. Reencontrava as suas pernas nas, as pernas de criança que marcha.
Reencontrava a angústia e o peso da angústia. Gritou:
– As correntes! As correntes!
Mas o grito era tão fraco que a irmã que a velava se aproximou:
– Que diz, Madre? Que correntes, Madre?
– São pesadas de mais…
A irmã agarrou-lhe a mão, tinha um pouco de medo dessas palavras.
Que podia fazer? Que podia dizer? «Tem febre…», «Está a deixar-nos…»,
«Meu Deus!» …

As orações começaram, dois dias e duas noites, à cabeceira da cama de


Bakhita. As irmãs molhavam-lhe os lábios com um pouco de água,
agarravam-lhe a mão, como se dessem à anciã aquilo de que a rapariguinha
tanto necessitara. Bakhita recebeu a extrema-unção, o convento velava, as
aulas estavam suspensas, jejuava-se, os da Lanerossi suspendiam o trabalho
para rezar e, na igreja, os habitantes de Schio revezavam-se, noite e dia, para
rezar. Toda a cidade estava à sua volta, unida na espera do que ia acontecer.
Haviam prevenido as irmãs de Veneza, Ida Zanolini e os lhos de Stefano.
Todos os institutos onde se deslocara. Os orfanatos, as missões e os
conventos. A aproximação da sua morte dava a todos vontade de se
calarem, de se porem pela primeira vez ao seu ritmo, um ritmo interior
ligado ao mundo. Compreendiam que Bakhita trouxera consigo mais do
que uma vida.

– Mamma! Oh! Mamma…


As irmãs aproximaram-se, a Madre Giuseppina gritara, mas o que
dissera? A voz distorcida parecia vir de outra pessoa e não se podia dizer se
expressava alegria ou terror. A agonia era a sua última batalha.
– Acho que ela chamou pela Madonna.
– O quê?
– Digo que a Madre chamou pela Santa Virgem.

Tal acontecimento foi divulgado no convento, no instituto, na cidade e


ainda noutras cidades: no momento da agonia, a Madre Giuseppina viu
Nossa Senhora. Estaria feliz agora. Então, todos se inclinaram. Acenderam-
se círios aos pés da Virgem e o órgão tocou a Ave Maria.
Não a ouvia. Já não ouvia nem via mais nada. A não ser a mãe, que
estava atrás de si. Com a mão leve nos cabelos entrançados, acrescentava-
lhes pequeníssimas pérolas coloridas que vinham da sua própria mãe e de
mais longe ainda, de todas as mulheres daquela família Dajou que vivia nas
margens do rio havia tanto tempo. Sentiu os lábios da mãe na sua nuca, uns
lábios frescos, molhados, que antes de a beijar morderam a pele tão nova e
lhe murmuraram ao ouvido, de uma forma única, alegre e infalível, o seu
nome de nascimento.
No sábado, 8 de fevereiro de 1947, aos setenta e oito anos de idade, a
Madre Gioseffa Margherita Fortunata Maria Bakhita morre, em Schio. No
dia seguinte, os seus restos mortais são colocados em câmara-ardente.
Durante dois dias, foi interminável a procissão para a ver.
Na terça-feira, 11 de fevereiro, após uma missa na capela do instituto, é
enterrada no cemitério de Schio, no túmulo da rica família Gasparella, em
sinal de reconhecimento.

Em 1955, a Igreja abre o processo ordinário de informação tendo em


vista a sua beati cação.

Em 1969, o seu corpo é exumado e transferido para a capela do Instituto


das Filhas da Caridade Canossianas, de Schio.

A 1 de dezembro de 1978, João Paulo II assina o decreto que proclama a


heroicidade das suas virtudes. Após o inquérito, Bakhita foi considerada
venerável em virtude dos esforços heroicos que realizou para conformar a
sua vida com o Evangelho e ser el à Igreja.

A 6 de julho de 1991, João Paulo II assina o decreto de beati cação.

A 17 de maio de 1992, João Paulo II declara beata aquela que deixou


«uma mensagem de reconciliação e de perdão evangélico num mundo tão
dividido e ferido pelo ódio e a violência».

Em 1995, João Paulo II declarou-a padroeira do Sudão.

A 1 de outubro de 2000, João Paulo II declara-a santa. Bakhita torna-se


assim a primeira santa sudanesa e a primeira mulher africana a ser elevada
à glória dos altares sem ser mártir. João Paulo II dirá no seu discurso: «Só
Deus pode dar esperança aos homens vítimas das antigas ou novas formas
de escravidão.»
Para proclamar uma pessoa beata ou santa, a Igreja exige às pessoas não
mártires um milagre para a beati cação e outro para a canonização. O
primeiro milagre considerado no caso de Bakhita está relacionado com
Angela Silla, irmã canossiana de Pavia que, em 1947, na véspera da sua
operação (em que estava prevista a amputação da perna), é curada de uma
tuberculose no joelho depois de ter orado à defunta Madre Giuseppina
Bakhita. O segundo está relacionado com Eva da Costa, uma brasileira que,
em 1992, sofrendo de uma diabetes que se agravou, iria ter a perna direita
amputada. Foi curada pelas suas preces à beata Madre Giuseppina Bakhita.
Agradecimentos

Obrigada a Odile Blandino, que acompanhou e incentivou o meu


trabalho com uma amizade vigilante, alegre e sem falhas.
Obrigada a Elena Vezzadini, que respondeu com tanta paciência às
minhas perguntas sobre a escravatura no Sudão, no nal do século XIX.
Obrigada às irmãs canossianas de Schio e de Veneza pelo seu
acolhimento e por escutarem.
Obrigada às irmãs salesianas de Veneza por me terem aberto as portas
do convento do Dorsoduro.
Obrigada a Claire Delannoy, a Richard Ducousset e a Francis Esménard
pela sua con ança e a sua presença.

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