A herança grega é uma inspiração de partida muito interessante para a reflexão sobre as
profissões da saúde nos tempos atuais. Para os helenos, o deus olímpico Apolo teve um filho
com a ninfa Corônis, uma criança que já nasceu vencendo a morte, ao ser retirada do ventre da
mãe morta. Ensinado nas artes da cura pelo centauro Quíron, Asclépio (que os romanos
chamavam Esculápio) ultrapassou o mestre, e vale a pena você saber mais sobre ele, se quiser
explorar este conteúdo opcional aqui.
Os mitos atribuem diversos filhos a Asclépio, mas vamos centrar nossa discussão sobre Higeia e
Panaceia. Esta última tem seu nome citado ainda hoje, como vemos em artigos científicos e
leigos, com o significado de cura universal ou solução para tudo. Higeia também está “na boca
do povo”, mas não com o nome original, e sim pela palavra derivada higiene.
Em que essas duas irmãs se diferenciam? Conforme o mapa conceitual acima, Panaceia se
dedicava à terapêutica, ao cuidado individual a alguém que já estivesse enfermo, prestação de
assistência individualizada, daí resultando a atividade humana da Clínica (do grego kliné,
inclinar-se sobre o leito para examinar minuciosamente o enfermo). Higeia, por outro lado, tinha
como mote a prevenção, abordando o processo saúde-doença por uma perspectiva coletiva ou
comunitária, desenvolvendo a ciência chamada Epidemiologia.
James Lind demonstrou que garantir um suprimento de cítricos nas despensas dos navios
protegia a tripulação de escorbuto, uma doença que atemorizava viajantes por longos períodos,
sobretudo pela perda dos dentes e sangramentos gengivais. Perceba, ele resolveu o problema
recorrendo à Epidemiologia, sem precisar saber o que é vitamina C (ácido ascórbico) nem seu
papel como coenzima nas reações bioquímicas de hidroxilação, síntese do colágeno ou
antioxidação!
John Snow (1813-1858) foi um caso à parte. Ele mapeou as mortes por cólera em Londres como
barrinhas pretas e reparou que havia uma concentração ao redor de uma bomba de captação
de água do rio Tâmisa. Conseguiu que a bomba da Broad Street fosse lacrada, e a mortalidade
reduziu prontamente! Confira abaixo como a bomba da Little Marlborough Street tinha bem
menos mortos pela doença diarreica por perto. Novamente: Snow não sabia nada sobre
microorganismos, o Vibrio cholerae não tinha sido descrito nem catalogado, e nada se sabia
sobre sua interação com os enterócitos. Vidas foram salvas pela Epidemiologia, sem aguardar
pelos avanços da Microbiologia, que chegaram depois.
Este preâmbulo histórico vai terminar com um mártir da Epidemiologia, o húngaro Ignaz
Semmelweis, internado num hospício pela defesa contundente de suas ideias sobre lavagem das
mãos como método para reduzir a mortalidade puerperal. O insight veio da morte de seu colega
que se machucara com um bisturi usado em cadáveres, e desenvolvera um quadro (que hoje
chamamos de choque séptico) em tudo semelhante ao das mulheres com febre puerperal. A
hipótese de Semmelweis para explicar por que uma clínica obstétrica tinha até quatro vezes
mais mortas do que a outra era a inserção de estudantes de medicina em uma, que vinham
partejar diretamente das dissecações no necrotério, enquanto a outra clínica tinha parteiras que
não frequentavam aquele ambiente nem manipulavam restos mortais.