Parte Especial
Crimes contra a pessoa
(continuação)
Michelle Tonon
@michelle.tonon
Violência psicológica contra a mulher
Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e
perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a
controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante
ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento,
chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer
outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e
autodeterminação:
Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta
não constitui crime mais grave.
Trata-se de inovação trazida pela Lei nº 14.188/2021, que igualmente prevê o
programa “Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica" como uma das
medidas de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher
(CNJ, 2020); nova qualificadora para a lesão corporal simples cometida contra a
mulher por razões da condição do sexo feminino (art. 129, § 13, do CP); inserção
da integridade psicológica no art. 12-C da Lei Maria da Penha.
Desde 2006 a violência psicológica já constava dos artigos 5º e 7º da Lei Maria
da Penha como uma das formas de manifestação da violência doméstica e
familiar contra a mulher, mas não havia figura penal correspondente para punir
os indivíduos que assim agissem.
Dessa forma, não necessariamente haveria um crime nas situações de violência
psicológica, como nos casos de vigilância, humilhações, isolamento. Havia, por
consequência, dificuldades no deferimento de medidas protetivas de urgência.
Passa a ser crime causar dano emocional à mulher. As situações descritas
são um rol exemplificativo (ameaça, constrangimento, humilhação,
isolamento, chantagem, manipulação, ridicularização, limitação do direito
de ir e vir). Há possibilidade de analogia intra legem, isto é, o legislador
apresenta exemplos casuísticos seguidos de uma fórmula genérica
(“qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e
autodeterminação”).
Exemplo de violência psicológica é o GASLIGHTING, isto é, distorcer e
omitir fatos para deixar a mulher em dúvida sobre a sua memória e
sanidade. Também são exemplos as diferentes formas de isolamento:
proibir de viajar, proibir de encontrar amigos ou familiares, proibir de
estudar, proibir de frequentar cursos ou academia.
O sujeito ativo do crime pode ser homem ou mulher. O crime é comum. Já o sujeito passivo é a mulher
ou pessoa identificada ao gênero feminino.
Trata-se de tipo misto alternativo, de conduta múltipla ou variado: a prática de mais de um
comportamento no mesmo contexto fático, contra a mesma vítima, enseja crime único.
O crime é praticado apenas a título doloso. Não há previsão de forma culposa. Ademais, trata-se de
crime material, pois exige o resultado naturalístico, ou seja, requer seja causado o dano emocional à
mulher, por meio de uma das condutas listadas. Em tese, seria possível a tentativa.
Embora seja frequente a repetição desses atos nos casos concretos, pois muitas mulheres encontram-se
inseridas no ciclo de violência, o tipo não exige reiteração ou habitualidade.
E se da violência psicológica resultar lesão à saúde mental da vítima? As lesões corporais se tipificam
quando a lesão é à saúde mental. Exemplos: quadros de depressão devidamente diagnosticados por
médico.
A conduta poderá ser enquadrada no art. 129, § 13 ou lesão de natureza grave, se a doença psicológica
gerar pensamentos suicidas, diante do risco à vida, por exemplo.
Seria necessária perícia para a constatação do dano emocional? O professor Márcio Cavalcante
(Dizer o Direito) defende que não. Outros meios de prova poderiam ser utilizados, além do
depoimento da vítima, como prova testemunhal, relatórios médicos e psicológicos.
A ação penal é pública incondicionada. Não é possível o ANPP (vedação expressa do art. 28, §
2º, inc. IV, do CPP).
Atente-se também para a subsidiariedade expressa revelada na expressão “se a conduta não
constitui crime mais grave”, no preceito secundário. Logo, deve ser observado o dolo do agente
e as circunstâncias fáticas.
Outras condutas menos graves serão absorvidas pelo art. 147-B, como a injúria ou o crime de
dano (objetos domésticos quebrados, por exemplo, como forma de demonstração de poder e
autoridade).
A vigência da lei ocorreu em 29 de julho de 2021. Por se tratar de novatio legis in pejus não
retroage.
O crime de perseguição (stalking) possui a pena mais grave, em razão da incidência da causa de
aumento de metade quando o crime é praticado por razões e condições do gênero feminino.
Dos Crimes Contra a Inviolabilidade dos Segredos
Artigo 154-A: Invasão de Dispositivo Informático
Trata-se do tipo penal criado pela Lei nº 12.737/2012, conhecida como Lei Carolina
Dieckmann, atriz que teve seu computador pessoal invadido em maio de 2012 e vários
fotos íntimas subtraídas. Também é chamado de crime de intrusão informática.
A Lei n.º 14.155/2021 deu nova redação ao art. 154-A, passando a prever o seguinte:
Invadir dispositivo informático de uso alheio, conectado ou não à rede de
computadores, com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem
autorização expressa ou tácita do usuário do dispositivo ou de instalar vulnerabilidades
para obter vantagem ilícita:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
• Importa lembrar que a Lei n.º 12.965/2014 constitui o marco civil da
internet, definindo princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da
rede mundial de computadores no Brasil.
• O bem jurídico tutelado pela norma é a liberdade individual
(inviolabilidade dos segredos). O crime é bicomum, não se exigindo
características especiais do agente ou da vítima.
• O objeto material é dispositivo informático de uso alheio, conectado ou
não à rede computadores. Assim, incluem-se no conceito notebooks,
tablets, placas de vídeo, processadores de computadores, smartphones,
teclados, webcam, impressoras, monitores, pen drives, HDs e CDs.
Antes da Lei n.º 14.155/2021, o tipo penal fazia referência a invadir
dispositivo informático alheio. A partir da vigência da nova redação, em 28
de maio de 2021, o crime é invadir dispositivo informático de uso alheio.
Ademais, antes da mudança o tipo previa ser crime invadir sem
autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo. Com as alterações,
passa a ser crime invadir sem autorização expressa ou tácita do usuário do
dispositivo.
O elemento subjetivo é o dolo, acrescido de especial fim de agir (“com o
fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização
expressa ou tácita do titular do dispositivo, instalar vulnerabilidades para
obter vantagem ilícita”). Não basta, portanto, devassar dispositivo
informático de uso alheio. Ausente as finalidades especiais, a conduta é
atípica.
O crime é formal, pois se consuma independentemente de se
alcançar a finalidade pretendida.
A pena também foi alterada pela Lei n.º 14.155/2021, passando a
ser de reclusão, de 1 a 4 anos. Verifica-se, assim, uma novatio
legis in pejus, já que a pena anterior era de detenção, de 3 meses
a 1 ano. O crime deixa de ser de menor potencial ofensivo.
Continua sendo possível a suspensão condicional do processo e o
acordo de não-persecução penal (ANPP).
A competência, em regra, é da Justiça Estadual. É irrelevante o fato de ter
sido cometido o crime pela internet. O crime praticado pela rede mundial
de computadores não atrai, por si só, a competência da Justiça Federal.
Nos crimes definidos no art. 154-A, somente se procede mediante
representação, salvo se o crime é cometido contra a administração pública
direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, Estados, Distrito
Federal ou Municípios ou contra empresas concessionárias de serviços
públicos. É o que dispõe o art. 154-B.
Crimes contra o patrimônio
Furto
Art. 155. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel.
Tutela da propriedade e da posse legítima.
Patrimônio é bem jurídico disponível. Consentimento do ofendido, antes
ou durante a subtração, torna o fato atípico. Depois da subtração o
consentimento é ineficaz.
Ser humano não é coisa. Logo, não poderá ser furtado. O crime será de
sequestro (art. 148), extorsão mediante sequestro (art. 159) ou subtração
de incapaz (art. 249)
Subtração de cadáver: tipo do art. 211 do Código Penal (coisa fora
do comércio), salvo se ostentar valor econômico e estiver na posse
legítima de pessoa física ou jurídica (cadáver pertencente a uma
Faculdade de Medicina, por exemplo)
Não há furto nos casos de res nullius (coisas que nunca tiveram
dono) ou res derelicta (coisas abandonadas). Art. 1263 do CC
Furto de gado: abigeato
Elemento subjetivo: dolo. Animus furandi
Especial fim de agir: assenhoramento definitivo da coisa. Animus rem sibi
habendi. Agente se apossa da coisa e passa a se comportar como se fosse
seu proprietário.
Credor que subtrai bens do devedor para se ressarcir de dívida não paga:
exercício arbitrário das próprias razões (art. 345 CP)
Furto de uso: agente quer usar a coisa, sem dela se apropriar. Não há o
animus rem sibi habendi. Requisitos: subtração de coisa alheia móvel
infungível, intenção de utilizar momentaneamente, restituição íntegra
depois do uso momentâneo ao possuidor originário. Conduta atípica,
limitando-se à esfera cível
Princípio da insignificância
• Terminologia cunhada por Claus Roxin.
• Klaus Tiedemann chama de princípio de bagatela
• A conduta, formalmente, amolda-se a um tipo penal. Porém, não apresenta
relevância concreta, material.
• Afasta-se a tipicidade, pois o bem jurídico tutelado não chegou a ser lesado.
• Causa supralegal de exclusão da tipicidade material. Não tem previsão legal no
Brasil.
• A tipicidade penal é composta pela tipicidade formal e tipicidade material
• Tipicidade formal: juízo de subsunção do fato da vida à norma jurídica
• Tipicidade material: lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado pela
norma
Requisitos
• Periculosidade ausente
• Reprovabilidade reduzida
• Ofensividade mínima
• Lesão inexpressiva
• São conceitos abertos, que permitem ampla margem de
interpretação.
• Fator de política criminal. Peculiaridades do caso concreto.
Aplicação da insignificância
O valor do objeto material não é o único parâmetro
Condições pessoais do agente devem ser analisadas:
Em regra, não se aplica ao reincidente, portador de maus antecedentes e ao
criminoso habitual. Análise casuística. Críticas: adoção do direito penal do autor.
Desconsidera-se o fato em si, analisando-se a vida pregressa de seu autor.
Condição da vítima (condições econômicas, valor sentimental do bem,
consequências do crime)
Não há valor máximo (teto) a ser considerado. Análise casuística
Pode ser aplicado a atos infracionais, crimes ambientais, descaminho e crimes
tributários
Não se aplica a insignificância:
Crimes hediondos e equiparados
Crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa
Uso de entorpecentes (posse de drogas para consumo pessoal)
Crimes contra a fé pública (moeda falsa)
Crimes contra a Administração Pública (Súmula 599- STJ)
Contrabando (natureza ilícita da mercadoria importada ou exportada)
Violência doméstica ou familiar contra a mulher (Lei Maria da Penha)
O objetivo da norma leva em conta a maior vulnerabilidade dos bens, sendo maiores as
possibilidades de êxito do agente.
É indiferente se a casa é habitada ou não, comércio ou via pública. A majorante irá incidir.