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QUAIS ESPAGOS PUBLICOS PARA PRATICAS DE ARTE CRITICA? Chantal Mouffe politica conflito democracia radical CO texto trata do sentido e dos propésitos que deveriam caracterizar os espacos piiblicos contempordneos, com base em principios filoséficos e da teoria politica ~ hegemonia, agonismo, relacéo antagénica, entre outros. A autora confere destaque as prticas artisticas ao tracar uma relagéo direta entre a poltica progressista e a possibilidade de criagao de espacos piblicos. Existem dos sigifcados muito diferentes de ‘0 WHICH PUBLIC SPACES FOR CRITICAL ART plibico’ que se pode distingur, basicamente, PRACTICES? | The text addresses the meaning and cea péblico no sentido 20 qual se refere, em Purposes that should characterise the contemporary eee eee Dublicspaces, based on philosophical principles and alemio, a pale Otfentichkeit'epibico como PUimestancory hegemony, agonim antagonism, audiéncia, Publikum. Ambos 380 interessantes and soon. The author highights ar practices when para o tipo de rellexdo que ite desenvolver aqui, outlining a direct relationship between progressive politics and the possibilty of rating public spaces. Como veremos adiante, eles devem ser compre “ is Gove pre || polities conflict radical democracy endides como dois lados de um processo de construgao discursiva. caro, por exemplo, que 2 patir do estabelecento de certos tipos de espacos piblicos, as prticas artitcas contribuem para a ctiagdo de um determinado piblic, uma audiénda especfica. Ate piblca néo é, segundo meu ponto de vista, arte em espagos pilblicos, mas, uma arte que institul um espago pubblico — um espaco de acdo comum entre pessoas, Ua des questdes que gostaia de abordar é, por exempl, qué tipo de pablo as insttigbes de arte progressstas* devem tentar formar e que tipo de espacos pablicos & necessério para esse efeto? © pablico como Gffentlichkeit ‘Vamos comecar por escrutinar 0 piblice como Offentichkeit. Como sou filbsofa politica, esse &0 tema sobre 0 qual tenho mais a contribuir; contudo, no final, apresentarei também algumas reflexées sobre an Groh, Slo tringyar com netges cures, 1989. Clio Cen’ ate contamparnes de Aone a TEMATICAS | CHANTAL MOUFFE con Radon Agorne, Cheapo 978-1981 © piiblico como audiéncia, Em Offentichkeit, ppablico’ é geralmente oposta ao ‘privado; po- fe de acordo com dlfe rém seu significado ontextos em que essa oposic#o piblica/ privado estejainscrita. Podemos, de modo geral, distinguir trés contextos principais aue podem er speci icados com hase nessa aposiglo: 1 = piblico ~ como 0 que & comum, geral posto ao privado como o que é particular e individual 2 - piblico no sentido de publicidade, como 20 privado o.que é vsivel e manifesto, opost como o que & secreto; 3 piiblico 20 privado como fechado. como acessivel ¢ aberto, opasto Esses diferentes significados estdo de fato relacio- nados, mas no coincidem; uma coisa pode ser ppablica em um desses sentidos sem ser nos de- mais. Os contests 30 especificos e precisarn ser dlscemidos. Alem disso, as formas de artculagio entre os tés sontidos 18m variado historicamente desde 0 tempo da polis grega, em que o comum, Arte & Ensalos | revista do ppgav/ebalut Co vshel e 0 aberto estavam unidos na constituigho do significado de ‘o pilblco’ para 0 estabeleci- mento, por meio da construgaa do Estado, de um nove tipo de separ 0 entre 0 piblico €o priva- do ~ uma separagéo cada vez mais prejudicada pela invasdo do mercado na esfera publica. O que me interessa nesses diferentes usos de ‘o piiblca’ 6 a referéncia & politica democratica no sentido do comum, da publicidade ou da acessibilidade, E, esse 6 0 aspecto que gostaria de enfatizar nas reflexes que ire! desenvolver, com 0 foco na ideia de ‘espaco publi jogo nesse debate é 0 tipo dee: aqueles que di radical deveriam tentar estabelecer, um espaco de pponderacéo © consenso ou um espago de con ico’. A meu ver, 0 que esté em aco pblico que jam ctiar 0 projeto democrat frontacio agonistca © espaco publico Para comecar, preciso delinear © quadro tebrico {que sustentaré minha abordagem, Seus preceitos mais importantes foram elabarados em indmeros derembro 2013 | | 182 Dan Gian, eho! Ectrs pare gare, 19781981 © publica como audisneia. Em Ofentichkert, ppablico’ é geralmente oposto a0 ‘privado'; po: 6m seu significado difere de acordo com dife- fentes contextos em que essa oposicéo publica/ privado estejainscrita, Podlemos, de modo geral distinguir trés contextos principals que podem ser especificados com base nessa oposigao: pliblica ~ como 0 que € comum, gera, ‘posto ao privado camo © que € particular & individual; 2-- piblica ~no sentido de publcidade, como ©.que évisivel e manifesto, oposto a0 privado 3 - piblico ~ como acessvel e aberto, oposto a0 privado como fechade Essos diferentes signifcados estdo de fato relacio- nados, mas nao coincide; uma coisa pode ser piiblica ern um desses sentidas sem ser nos de mais, Os contexts s40 especificos ¢ precisam ser discemnidos. Além disso, as formas de articulagso centre os tés sentidos 18m variado historicamente desde 0 tempo da polis grega, em que o comum, wios | reveta do ppgaviebavutr) | 9.27 | vislel eo aberto estavam unidos na constituigéo do significado de ‘o piblico' para o estabelec ‘mento, por meio da construsso do Estado, de urn ‘novo tipo de separacio entre o pablico e o prva do ~ uma separacio cada vez mais prejudicada pela invasdo do mercado na esfera publica. O que me interessa nesses diferentes usos de ‘o pibico’ 6 a referéncia & politica democratica no sentido sum, da publicidade ou da acessibiidade. E, esse 6 0 aspecta que gostaria de enfatizar nas es que irei desenvolver, com 0 fo de ‘espaco publica’. A meu ver, o que ests em jogo nesse debate é 0 tipo de espaco puilico que aqueles que desejam criar © projeto democratico radical deveriam tentar estabelecer, um espago de ponderacio © consenso ou um espaco de con: frontagéo agonistic 0 espaco publico Para comecar, preciso delinear 0 quadro teético que sustentard minha abordagem, Seus preceitos ‘mais importantes foram elaborados em indmeros tipo poll ‘eo dee ttabalhos anteriores e, aqui, me lmitarei 30s as- pectos mais relevantes para meu argumento so- bre ‘0 piblico’. Vamos comecar pela distingso as! e ‘a politica’? que propus fazer entre ‘pol Em linguagem coloquial, no é muito comum falar ‘a politica’, mas penso que tal disingSo ex pe pists im esto considerando. Todavia, a dificuldade € iantes,€ varios te6ricos politicos ‘que no existe acordo entre os significado atribuido a esses termos, e isso pode ‘ausar uma certa confuséo. Enistem, entretanto, éricas sobre 0 semelhancas que podem fornecer alguns pontos de orientagio, Por exemplo, para assinalar essa distingdo, considera-se uma diferenca entre dois tipos de abordagam. A ciéncia politica, que lida com 0 campo emplrico das ‘palticas’, ¢ a teoria politica, que esté no dominio de filésofos que nao investigam os fatos polices, mas a esséncia da politica’. Se queremos expressar tal distingso de uma maneirafilofica, podemos dizer, tomando de empréstima do vocabulirio de Heidegger, que ‘poiticas’ se refere ao aspecto ‘éntico’, enquanto “a politica’ em a ver com o ‘entol6gica’. Isso sig- rifiea que 0 Gntica referee as miitiplas priticas a politica convencional, a0 passo que 0 ontol6- ico compreende a prépria maneira pela qual a saciedade esté simbolicamente organizada Essa distinc, porém, admite ainda a possibilida de de iniimetos desacordos sobre o que constitul ‘a politica’, tendo consequéncias importantes na forma como 0 piiblica € concebido. Alguns teé- Ficos, como Hannah Arendt, concebem a politica como um espaco de liberdade © de decisoes pi- blicas, enquanto outros a perceber como espago de poder, conflito ¢ antagonismo. Meu entendi- mento de ‘politica’ pertence claramente 8 segun- da perspectiva, Mais precisamente, essa distingso € como diferencio ‘a politica’ de ‘poliicas: por ‘a politica’, designo a dimenséo antag6nica que tomo como parte constitutive das sociedades hu rmanas, a0 passo que, por ‘politicas’,referencio © conjunto de préticas e instituigbes através das Dn Gator, stage aw ~Pavin de Vio pe Schloe ‘ehourg, 108s 1980 ee TEMATICAS | CHANTAL MOUFFE 183 quais uma ordem fornecida pela ‘politica’ cria- da, organizando a coexisténcis humana em con texto de conflts. A politica como antagonismo Quera tomar como ponto de partida de minha reflexdo sobre 0 espaco pablico nossa incapaci- dade atual de encarar os problemas enfrentados pela nossa sociedade de uma forma poltcs. Ques- +6e5 polticas ndo sio apenas problemas técnicos a ser resolvidos por especialstas. Precisamente, questées polticas sempre envolvem decisbes que ‘demandam uma escolha entre altemativas cont: ‘antes. Essa incapacidade de pensar ‘politicamente’ 4, em grande medida, decorrente da incontesté- vel hegemonia da liberalismo, © ‘liberalsmo’, da forma que uso esse termo no presente conterto, se refere @ um discurso filoséfico com muitas va~ siantes, unidas néo por uma esséncia comum, mas por uma muitiplicidade, chamada por Wittgenstein de "semethancas de familia" Existem, com certeza, muitos liberalismos, alguns mais progressistas do que outros, No entanto, salvo algumas excecbes (isaiah Bern, Joseph Raz, John Gray e Michael Walzer, entre outros), 2 tendéncia dominante do pensamento liberal & caracterizada por uma abor- dagem racionalista ¢ individualist, incapaz de compreender adequadamente a natureza plurals- ta do mundo socal, com os conflitos que © plu alsmo implica; confltos para os quais nenhuma solugio racional podera jamais exist, em conse ‘quéncia da dimensio antagOnica que catacteriza fas sociedades humanas, © tipo entendimento liberal do pluralsmo € que vivenos no mundo em que hd, de fato, muitas perspectivas © valores, e, ddevido a limitagdes empricas, nunca seremos ca- pazes de adotar todos eles. Quando reunids, no fentanto, eles compéem um conjunto harmonioso fe sem confltos. For isso, esse tipo de liberalismo Ante Ensaios | cevista da ppgaviebafutt) | 9.27 | sezembro 2013 deve negar a dimensio antagénica da politica. Na verdade, um dos preceitos mais importantes desse liperalismo & a crenga racionaista na vabiidade de ‘consenso universal, com base na raz0. Nao € toa ‘que a politica constitu seu ponto cego. 0 liberalis- mo tem que negar © antagonismo, uma vez aue, 20 trazer & tona o inevitavel momento de decis8o no sentido forte de ter que decidir em um terreno indeterminado -, 0 que o antagonismo revela é 0 propria limite de qualquer consenso racional Quando examinamos as diferentes perspectvas ‘existentes no pensamento liberal contemporaneo, podemos destacer dois paradigmas principais, O primeiro, chamado as vezes de ‘agregativo’, pen- sa a politica como o estabelecimento de um com- promisso entre forcas competitvas na sociedade. Individues so retratados como seres racionais, conduzides pela maximizagéo de seus préprios interesses e agindo no mundo politico, basica- mente, de forma instrumental. £ a ideia do mer ‘ado aplicada a0 dominio da politica, percebida por meio de conceitos emprestados da economia, © outro paradigma, chamado de ‘deliberative’, labora uma reagio contra o modelo instrumen- tal no intuito de criar uma ligagio entre moral e pollica, Seus defensores querem substituir a racionalidade instrumental pela racionalidade ‘comunicatva, Eles apresentam 0 debate politico ‘como um campo espectfico de aplicagée da mo: ral eacreditam na possiilidade de crar, na estera politica, consenso moral e racional por meio da dscussdo live. Nesse cas0, a politica ndo & apre- endida pela economia, mas pela ética ou pela moral, Em ambos os paradigms, 0 que ¢ deixa- do de lado por essa abordagem racionalista, seja ‘no madelo da racionalidade instrumental ou no da racionaidade comunicativa, & 0 papel crucial desempenhado, no campo da politica, pelo que chamo de ‘paixées’ ~ a dimensao afetiva, que fo poltica. Na us proprios co, asia ee do mer , percebida eiberativo’, instrumen- rire moral ‘substtuir a queé deixa- alist, Sela ental ou NO papel crucial pelo que afetva, que 6 central para a constituigdo de formas coletivas de identificagso, identificagbes sem as quais seria impossivel compreender @ construgio de identi- dades politicas. identidades politicas s80 sempre identidades coletivas, sendo essa outra razao pele ‘qual o liberalism, com seu individualismo meté- dico, & incapaz de entender 2 especifcidade da politica, Estamos sempre lidando, na politica, com Lum ‘nés' em oposigdo a um ‘eles’ e, como explic tarei a seguir, € por esse motivo que 0 antagonis- mo nio pode ser eliminado. ‘Afirmo que € apenas quando reconhecemos ‘a pplitca’ em sua dimensio antagénica que po- ‘demos colocar a questdo central para a politica democrética, A questo, divergindo dos teéricos liberais, nfo & como negociar um compromisso entre interesses competitivas nem como aleangar uma ‘racionalidade’, ou seja, um consenso total- mente inclusivo—sem nenhuma exclusio. Embora muitos Hberais nos queiram fazer acresitar, a es pecificidade da politica democrética no ¢ superar ‘a oposicgo ‘nés/eles’, mas a maneira diferente na qual ela se organiza. © que a democracia reclama 6 0 desenho discriminado de ‘nés/eles’ de uma forma compativel cam o reconhecimento do plu- ralismo, caracterstco da democracia moderna. No desenvolvimento desse argumento, encon- ‘ei a nogdo de “exterior constitutive, particu: lanmente titi, porque revela 0 que esté em joao na constituigio de identidade, Essa expresso foi proposta por Henry Staten para se referir a uma série de temas desenvolvides por Jacques Derrida fem torno de nocées coma “suplemento”, “ras- ‘0" e “diferenca”, © objetivo € destacar o fato de que a ctiagio de identidade implica sempre ‘9 demarcagso de uma diferenca. Diferenca essa que & normalmente construida na base de uma hierarquia, por exemplo, entre forma e matéria, preto e branco, homem e mulher, ete. Poderemos entender por que a politica ests interessade pola foxmacdo de um “nds! que existe apenas pela de marcagso de um ‘eles’, uma ver que tenhamos percebido que toda identidade é relacional e que 2 afirmagéo da diferenca € precondigdo para a cexistancia de qualquer identidade, ou seja, ¢ na percepcio de um ‘outro’ qualquer que seu “ex terior’ se constitu, Isso néo significa, na verdade, ‘que tal relagio seja necessariamente aquela de amigavinimigo, um tipo antagonistic, portanto, ‘Mas devernos perceter que, em certas condigoes, ha sempre a possibilidade de essa relacéo ‘nds! cles’ se tomar antagonistica. Isso acontece quan- do 0 ‘eles’, 20 colocar em questao a identidade ‘de um ‘nés', 6 percebido como ameaca & exis- téncia. A partir daquele momento, como no caso dda desintegracio testemunhada na lugoslévia, qualquer forma de relacdo entre “nésieles', soja religiosa,ética, ecandmica ou de outra naturez2, ‘ransforma-se no lugar de um antagonismo, ‘Vamos tragar uma primeira condlusso teérica a partir das reflexSes anteriores. O que podemos ‘afitmar nesta etapa & que a distingdo entre 0 ‘nés/ cles’, condigéo de possibilidade para a formagso de identidades pollicas, pode sempre tomar-se 0 lugar de um antagonismo. Uma vez que todas as formas de identidades polticas implicam a istin- do ‘néveles’, a possiblidade de uma emergén-

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