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1.

A cibercultura e a polêmica sobre a técnica


na era das massas: populistas, conservadores
e criticistas

A Time Magazine publicou em sua edição de


25/7/1994 extensa matéria sobre a irrupção da internet na
vida cotidiana, notando que se chegara, à época, numa si-
tuação em que o círculo esotérico dos pioneiros da infor-
mática estava dando lugar a um movimento popular de
apropriação dessa tecnologia, com base na crença de que,
por meio da net, com "um simples computador pode se ter
um enorme poder". Para seus redatores, estava por tornar
se fato o princípio de que as pessoas podem intervir em
seu mundo de baixo para cima e de que, daquele tempo
em diante, o futuro passaria a depender da exploração do
espaço eletrônico virtual, mas comum, que elas estavam
criando ao serem atraídas para a internet. Porém, conclu-
íam eles, o processo não deveria ser ponto pacífico, pois
seria, para todos, um desafio "conquistar lugares seguros
e agradáveis para trabalhar, divertir-se e criar seus filhos,
sem perder contato com o espírito aberto e indomável que
inicialmente os atraiu para net, agora que as batalhas para
controlá-la foram lançadas e estão sendo jogadas" (Time,
op. cit., p. 56).
Cremos que coube aos vários intérpretes da ciber-
cultura estruturar conceitualmente o terreno e explicar as
condições mais genéricas dessas batalhas, seguindo, ti-

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pologicamente, pelo menos n·ês tendências ou linhas de
fundamentos, estrutura e sentido no contexto do mundo
abordagem da matéria.
contemporâneo.
I. Os populistas tecnocráticos representam a tendência tec-
nófila : reunindo os advogados de defesa das suas virtudes 1.1 O populismo tecnófilo
morais.,W2_olíticas e econômica!!, formam um coletimom:-
postÔ, sobretudo, por profissionais e pesquisadores ligados
Marshall McLuhan anunciou nos anos 1960 uma
aos negócios de informática e comunicação, como, por
exemplo, Dan Gilmor c Hcnry Jenkins. revolução nas comunicações que, em seguida, conta-
giaria os vári os profetas e porla-vozes das supostas so-
2. Os conservadores midiáticos, em contraponto, formam ciedade da inf01mação e tecnocu ltura que o mundo es-
grupo reunindo os promotores de acusação política e mo- taria vendo nascerem. Embalado pelo espírito tecnoló-
ral do fenômeno, tendo representantes, sobretudo, entre os
gico que então passava a soprar mais forte, o pensador
ãc;dê~cos literários ou militantes e os intelectuais de for-
mação re lativamente mais tradicional, como, por exemplo, anunciou naquela época o surg imento de uma aldeia
Evgeny Morozov c Andrew Keen. g lobal, interligada através da comunicação e letrônica
via computadores. O progresso dos meios informáticos
3. Os cibercriticistas constituiriam uma terceira tendên- cria, segundo ele, um novo ambiente o u cenári o bistóri- ·
cia, caracterizada pelo interesse e m refletir sobre as ~o -.
co, em que passamos a pensar, agir e interagir de modo ,'
nexões entre cibercultura e poder .ú?..olíti~o •. s~cia~ ec~­
nôm1cõ);-íevaí1dÕemco;tã osprobl'emas e desafios que totalmente novo, mais livre, igualitário e expressivo.
isso acarreta para o sujeito social, em especial a figura Desde então, porém, a futurol ogia começou ~ ,
do indivíduo, como é o caso, por exemplo, em Kevin tomar ares de disciplina respeitável intelectualmente.
Robins ou Lce Siegel. "No passado, as pessoas não falavam de ficção cien-
tífica, mas de utopias. " Agora, continua o autor, ante-
Lembrando que não se considera aqui os estudos riormente filósofo sóbrio e marxista, " vivemos em um
que pretendem superar essas vertentes desenvolvendo período em que a utopia torna-se realídadc e podemos
a pesquisa acadêmica especia lizada (cf. , po r exemplo, considerar a iminente sociedade informática como uma
Benedikt, 1991 ; Schõreder, 1994; Jones, 1997, 1998; utopia realizada" (Schaff, 1990, p. 154).
Smith & Kollock, 1999; Wellman, 2002; Woolgar, Zbig niew Brzezinski, Alvin Tofler, Kevin Kelly e
2003; Silvcr & Massanari, 2006; Antoun, 2008; Jordan, Esther Dyson, para não falar de Bill Gates (cf. Kumar,
2008), e que o esquema acima é essencialmente analíti- 1997; May, 2002), são arautos dessa boa nova; ape-
co, visto que os casos singulares podem misturar mais nas alguns, entre vários, dos porta-vozes das mudanças
de uma abordagem, trata-se no que segue de esmiuçar trazidas ao mundo com o desenvolvimento científico e
um pouco mais estas linhas de reflexão sobre a ciber- tecnológico do final do século XX e em meio ao qual
cultura através da análise das idcias mais centrais de surgiria a chamada c ibercu ltura. Fundador do labora-
'
alguns de seus principais porta-vozes a respeito de seus tório de mídia do MIT, Nicholas Negroponte situa-se
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deres estabelecidos para os criadores e consumidores. As
nessa tradição como repórter dos avanços verifi cados novas tecnologias mudam drasticamente a balança cultural
no campo da pesquisa c desenvolvimento das novas do poder. Alterando o principal alvo da arte comercial do
tecnologias de informação. Para o autor, estamos atra- gosto vulgar c do sensacionalismo. para os. interesse~ es~e­
ciais. hobbies. ambições e aspirações artíst1cas, as maquma
vessando de uma soc iedade baseada nos átomos para
de multimídia digital transformarão os mercados e elevarão
outra, baseada nos bits c que isso acarreta o surg imento
0 nível de cultura. porque só se agarrando a estas novas
de uma nova forma de vida, muito mais do que uma oportunidades é que as companhias poderão prevalecer c
mera revolução tecnológica. Resumindo, entramos em prosperar (Forbes, 23/2/ 1994. internet).
uma era digital que, como as forças da natureza, não
pode ser detida e que, como processo, possuiria "qua- Conforme o autor, a revolução da microinformática
tro qualidades poderosas, que resultarão em seu triunfo liquidou com o problema da falta de informação, criando
final: a descentralização, a g lobalização, a harmoniza- uma nova abundância. Facultou-se com ela o acesso das
ção e a capacitação [da humanidade]" (1995, p. 231 ). massas aos meios para elas mesmas a processarem. As re-
Georgcs Gildcr segue essa linha de entendimen- des de fibra ótica, que a exponencíam, criam um tclccos-
to, procurando todavia elaborar uma visão de conj un- mo, um espaço ilimitado que transf01mará o mundo por
to sobre o impacto coletivo das novas tecnologias de meio da comunicação (c f. Gi Ider, 200 I).
informação. Para ele, a informática de comunicação
tem um sentido libertador para o ind ivíduo. Em Life
ajier television ( 1990/1994), com efeito, ele anuncia
a chegada de uma nova era, em que não haverá mais
lugar para a tirania da comunicação de cima para bai-
xo, conforme ilustrada pelo império da televisão. Cada
meio estimula uma fonna de re lação social: a mutação
oriunda dos meios digitais nos conduz para uma época
menos padronizada e mais democráti ca, porque, com
base neles, cada um poderá se desenvolver em função
das suas necessidades de informação, de seus hábitos
de lazer c de suas próprias iniciativas individuais.
O escritor assume o discurso que era das esquer- /lmmrd Rileingolcl
das em chave libertária pró-capitalista, esclarecendo
que seu livro: lloward Rheíngold, a exemplo do autor citado,
é outro jornalista independente que foi, com Theodor
[...) prevê não apenas uma revolução técnica, mas uma re- Roszak ( 1986), um dos primeiros a falar em revolução
belião cultural: a mudança de autoridade, das elites c po-

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inform~-lt"' ac a -::spcLular sobre seus efeitos e alcance, de compartilhar conhecimento, projeta um futuro mais
em Toolsfor loughts ( l985). Em 1993, ele publicou um esperançoso não apenas para a vida de cada um, mas
dos primeiros livros sobre a internet que não era uma também para a participação democrática e intervenção
individual na vida pública.

Il
obra técnica ou manual prático. Em A comunidade vir-
tual, com efeito, sustenta o autor que chegou a hora de Dan Gilmor retoma e explora essa perspectiva em
restaurar o espírito com unitário e recolocar a coopera- Nós, a mídia (2005). Para esse jornalista e palestrante
ção no centro da vida social. "As redes de computa- profissional, ocorre agora que, pela primeira vez na his-
dores são necessárias para recapturar o espírito coope- tória, qualquer pessoa que possua uma ligação à internet
rativo que tantas pessoas pareciam ter perdido quando pode ser proprietária de seu próprio órgão de comunica-
adquiriram sua tecnologia" (1993, p. li 0). ção. Doravante, qualquer um pode elaborar e publicar
Os computadores pessoais ligados em rede e ca- notícias, o que ele comemora (p. 41 ). O resultado disso
pazes de permitir a comunicação podem promover uma é a ruptura do monopólio que, neste assunto, exerciam
mudança de consciência num sentido igualitário, coope- as empresas jornalísticas e de comunicação. As pesso-
rativo e emancipatório, se estes avan_ç_o~ forem devida- as não apenas estão se tornando capazes de produzirem
mente apropriados c colocados a serviço do desenvohJ- suas próprias informações, mas estão se redirecionando
mento de novas formas de sociabilidade. A perspectiva para essas novas fontes de recreação e conhecimento,
aponta para as 1eomunidadcs vi~, estes '~~~~gad?._~ em que elas mesmas se transformam, com o desenvolvi-
sociais que su rg~m na rede quando pessoas em número mento das novas tecnologias de comunicação.
.. ---=---- - - - -
suficiente se engajam em discüssões Iongãsoõasfante e·
Os comunicadores profissionais continuam a ser uma par-
conúentimento hum~no o sufi"Giente ~!·ª-_founar:teias.âe:. te importante, c, espero que continuemos assim, mas está a
relacíona':le~to pesso~l no ciberespa,ço':_{.P. 5). emergir um círculo mais alargado de interessados lem ela-
Rheingold sinaliza, assim, que a comunicação borar e difundir material de tipo informativo] (p. 80).
por meio de redes telemáticas estava deixando de ser
um projeto técnico com objetivos corporativos e go- Recorrendo a exemplos que oscilam do simpló-
vernamentais ou um meio de interação de um pequeno rio ao caricato, como a revelação pelos blogueiros da
grupo de especialistas e iniciados. A obra relata com senha cifrada em garrafas de Pcpsi-Cola com que se
detalhes uma série de experimentos comunitários com podia baixar música de um si te (p. 5 1), o autor comenta
as novas tecnologias que nos sugeriria a possibilidade o novo cenário publicístico surgido com a internet, me-
de transformar os processos ele comunicação e recriar diante o elogio do que seriam seus sujeitos: os leitores,
muitos fundamentos de nossa sociedade. O engajamen- antigos receptores passivos da informação, segundo
to na construção de novas comunidades fomentado pe- Gilmor. Evidentemente, nota, a atividade jornalística
los novos meios de comunicação, com as possibi lidades consiste bem mais do que em dispor de meios técnicos,
que abre de processar mais e melhores informações e por mais que seja importante sua popularização, mas

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mesmo ela será melhorada com a crescente intervenção formar grupos de expressão autônomos, desde o ponto
desses sujeitos, porque "os leitores fazem de mim um de vista da ação comunicativa. A perspectiva surgida
melhor j ornalista, visto que descobrem os meus erros, com a expansão dos computadores pessoais ligados em
dizem-me o que não vi e ajudam-me a captar as sutile- rede e outros equipamentos é, em vários sentidos, a de
zas [de um acontecimento]" (p. 140). uma cu ltura da convergência.
Fazendo breves menções aos controles econô-
micos por parte das empresas (p. 219), o autor resume Conforme a entendemos, a convergência é um processo ao
mesmo tempo corporativo, de cima para baixo, e de consu-
sua tese afirmando qu e está em curso um processo de midores, de baixo para cima. A convergência corporativa
democratização da informação e que, desenvolvendo coexiste com a convergência oriunda do cotidiano. As em-
uma ética adequada, os si tes pessoais podem serve- presas de comunicação estão aprendendo a como acelerar
ículos para a formação de uma sociedade portadora o Auxo de conteúdos através de canais de entrega, a fim de
de mais consciênci a cívica. Nos blogues, mora o pe- expandir suas oportunidades de receita, ampliar mercados
e reforçar a fidelidade dos consumidores. Os consumido-
rigo dos princípios jornalísticos serem perdidos, mas
res estão aprendendo a usar as tecnologias de comunicação
o principal está a lhures, no surgimento concreto da para pôr os fluxos de comunicação sob maior controle e
utopia segundo a qual o conhecimento público pode interagir com outros consumidores (2006, p. 18).
nascer de repórteres cidadãos se informando e corri-
gindo mutuamente (p. 185). Conferindo ao conceito levysiano de ecologia
Henry Jenkins, consultor empresaria l e acadêmi- cognitiva um claro acento mercadológico, o pesquisa-
co prestigiado, não faz senão explorar as consequências dor vê na cibercultura o cenário para o surgimento de
espirituais desse processo, incluindo em sua análise o uma economia moral da informação, em cujo âmbito
ponto de v ista dos novos criadores de conteúdo que há boas razões para crer em um fluxo de ideias mais
estão surgindo em escala de massas no âmbito da ci- livre, j usto e democrático. A cibercultura, noutros ter-
bercultura. A ênfase toda do autor é posta nas práticas mos, pode ser veículo formador de um processo que,
que a nova mídia promove e no sentido que suas tec- lastreado na iniciativa das massas, pode influenc iar no
nologias ensejam, pelo uso, na vida cotidiana. Herdeiro impacto cotidiano de nossas grandes instituições políti-
direto das ideias que, no passado, :fizeram a fama de cas e econômicas, visto que o importante não é tanto o
autores como John Fiske (1 987) e, como este, um pre- conteúdo por ela agenciado, mas a participação de onde
tendido "otimista crítico", ele crê que passou a era da ela se origina e extrai seu movimento.
dúvida em relação aos meios e do confronto entre seus Para Jenkins, a falta de conteúdo político das
suje itos históricos. práticas em que esse fenômeno todo importa não é re-
As empresas de comunicação precisam colaborar levante, porque, ao se tornarem foco de conversação,
com seus clientes, porque, via net e redes sociais, es- elas "sinalizam a mudança de grau com que as pessoas
tes estão se tornando criadores de conteúdo, passando a comuns se tomam aptas a inserir suas imagens e ideias

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no processo político" (p. 222). Através da internet, está O resultado disso, segundo o autor, é que, dora-
surgindo um novo sentimento de obrigação mútua e ex- vante, "a cultura de massa será menos massiva e a cul-
pectativas compartilhadas sobre o que constitui "uma tura de nichos, menos oculta [e mais exuberante]" (p.
boa cidadania dentro de uma comunidade de conheci- 182). Os processos formadores da primeira passarão,
mento" (p. 255). democraticamente, a ter a companhia daqueles forma-
Como diz o editor da revista Wired, Chris Anderson, dores de milhares de microculturas, "com as quais o
"estamos [com a nova midia] entrando em uma era sem que deles sobrar terá de coexistir e interagir das mais
precedentes, baseada na escolha individual - e isto.é uma diversas maneiras" (p. 183). A redução dos custos de
boa coisa". Em A. cauda longa (2006) e Grátis! '(2ô08), produção e de distribuição, sobretudo a viabilizada pela
observa ele que os recursos 'informáticos e as platafom1as internet, está permitindo a multiplicação dos produtos
de comunicação por eles projetadas abalam os fundamen- e serviços oferecidos c, assim, não apenas a expansão,
tos da cultura de massas e promovem ao proscênio uma mas a diversificação dos hábitos de consumo e formas
cultura de pequenos nichos economicamente sustentável de expressão cultural, conforme dariam prova o iTunes
c emancipatória, em que pese a tendência da cibercultura e a Amazon.
oferecer gratuitamente "tudo o que é feito de idcias" : li-
vros, músicas, filmes, programas de televisão. Em vez de nos conectarmos frouxamente uns aos outros,
através da cobertura distante que fornece a cultura de mas-
Durante várias décadas, predominou o sistema
sas, numa cultura de nichos (como a que projeta a mídia
dos blockbusters consumidos em massa. Entramos, digital) estamos adquirindo a capacidade de nos ligarmos
agora, na era dos produtos destinados aos ni chos de mais fortemente a um número igual, senão mesmo maior de
mercado e, portanto, à sua apropriação mais individu- pessoas com que temos muitas afinidades (p. 191 ).
alizada. Através da internet, os hits estão dando lugar
aos bits consumidos em menor volume, mas com maior Seglmdo esses tecnófi los todos, estamos, portanto,
variedade e num espaço muito maior. Os mecanismos em meio a uma revolução cultural, embasada na expan-
de pressão publicitária massiva cedem terreno di'ante são das mídias digitais interativas, que tende a reduzir o
dos circuitos de informação alternativos, acionados pe- P_9qe:! _da§_~m.QI~_mul.timidia....dtHna-iGr:-por.te..$Qhte o.
Jas redes sociais, em vez das corporações midiáticas. A púb~ico!? an~ncia o fim qu o declínio da autori9ade dos
cultura e a economia estão mudando cada vez mais seu o
especia listas em cultura e comunicação. princípio so:.: -
- '---'-- - -
foco, passando do "número relativamente pequeno de cial mais importante instituído com a cibercu ltura é o de
grandes sucessos (dos principais produtos e mercados), queOj)Ubfí?o ~etermma a forma e conteúdo. do meío: ele
no cume da curva de demanda, para o vasto número de estrutura e controla a comun1cação. A internet cnou uma
nichos que surge na cauda longa [dos negócios oferta- rede mundial de computadores, e a popularização dos
dos num mercado agenciado pela internet]" (Anderson, equipamentos de informática está permitindo a milhões
2006, p. 62). I de pessoas interagirem livremente e se tomarem sujeitos

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engajados ativamente no processo de comunicação. O mativo necessariamente favoráveis para a humanidade
conhecimento passou a se disseminar horizontalmente, (cf. Maniez, 2008; Lanier, 2010; ver adiante, cap. 14.2).
conferindo maior poder ao indivíduo, relativamente às Partindo da premissa de que a internet não tem
organizações verticais e centralizadas dos tempos da ve- poder próprio, Evgeny Morozov estende as cautelas
lha mídia e das indústrias da cultura. dessa linha de análise para o plano político, a fim de
mostrar que seu.s usos e efeitos não são intrin. secamente j
1.2 O conservadorismo midiático democratizantes. "A internet está fadada a produzir di s-
tintos efeitos políticos, conforme forem diferentes seus '
Erik Neveu assinala bem que o passo em fal- ambientes de inserção [mais amplos]" (Morozov, 20 li ,
so das mitologias intelectuais a respeito do mundo da p. 320). Para o autor, a convicção de que as tecnologias
mídia muitas vezes não é estranho ao dado por seus de infom1ação são ruinosas para os regimes autoritá-'
pretensos antípodas desmistificadores. As pretendidas rios e promovem uma democratização das instituições
contramitologias, via de regra, se contentam com uma é uma crença que precisa ser revista e criticada. O prin-
inversão de polaridade axiológica ao tratar dos fenô- cípio do determinismo tecnológico que lhe é subjacente
menos de comunicação. Afinal, explica, os promotores deve dar lugar a uma "cuidadosa análise das forças não
dessas últimas, em geral, comparti lham com os articu- tecnológicas que constituem os ambientes que deseja-
ladores das primeiras pressupostos comuns, como, por mos compreender ou transformar" (p. 288-289).
exemplo, a crença "na onipotência dos determinismos O progresso trazido pela mídia digital interativa
tecnológicos", uma "cegueira em relação às evoluções no tocante aos meios de participação pública no proces-
da morfologia social que toma possível as mudanças so político não pode ser visto de modo linear ou unila-
nos grandes referentes imaginários [comunicacionais]" teral, porque aquela não é menos usada com objetivos
(Neveu, 2006, p. 77). policiais de controle da opinião e, mesmo, de coerção
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Na esfera da cibercultura, o caso tem sido bem ideológica dos cidadãos, dependendo do contexto ins-
esse, quando se pensa em sua discussão intelectual. Em titucional existente. A internet não é neutra, porque seu ;
resposta ao ufanismo de inspiração tecnocrática e po- uso, se não seu desenho, depende de condições sociais '
pulista com o fenômeno, surgiram também várias vo- determinadas. Os cuidados que devemos ter com ela I
I
zes de contestação cultural ao que tem sido chamado não podem ser separados da consideração das contin-
de Wcb 2.0. Para elas, também, o problema intelectual gências políticas a que está submetida e dos seus usos
em foco com relação ao assunto não está na rede mes- sociais predominantes.
ma, mas nos conteúdos e processos espirituais que dela
i (Para mim] o ethos da colagem que move a web 2.0 c atra-
emergem. A colonização do ciberespaço e a apropria-
ção da palavra pelo público, contrariamente ao preten-
dido pelos seus antípodas, não têm sinal cultural e for- I
l.

t.
vés do qual um novo aplicativo pode ser facilmente cons-
truído a partir de outro é apenas uma prova a mais de que
a internet é excelente na criação de provimentos [de co-

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j
municação] mas não há nada sugerindo que todos eles A revolução social das tecnologias de informação e
serão demoerati:lantcs. Cada um detes·õeve ser-avaliadoem comunicação, para o autor, está promovendo a massifica-
seus próprios termos,-cm vez de ser reduzido a caso de sua
mítica neutralidade instrumental. Os provimentos que vão
ção das atividades culturais com base em práticas e medidas
sendo criados devem ser examinados de perto, para saber- muito medíocres, como dá prova em especial a blogosfera,
mos quais provavelmente terão qualidades estimul adoras plincipal expressão de uma era em que o conteúdo passa a
da democracia c quais provavelmente terão qualidades su- ser gerado pelo usuário. A estrutura moral de nossa socieda-
prcssivas da democracia (Morozov, p. 298). de estaria sendo corroída, porque a web "sugere que pode-
mos vivenciar nossos mais degenerados instintos e nos per-
A cibcrcultura pode minar mas também fortalecer mite sucumbir aos nossos mais destl1ltivos vícios" (p. 163).
1os mecanismos em que se assentam os regimes políticos Através das redes sociais, argumenta, as pessoas
autoritários, tanto quanto os democráticos. A crença no se convertem em produtos. A subjetividade é objeto d_e_
poder cmancipatório da mídia digital é fruto de uma ma- um cercamento digital. O exibicionismo nar~isista tende
neira muito pobre de entender a prática política e de uma a suf0câracnat1vldade~Õ coletivismo impessoal inibe?
fonna muito ingênua de promover a democracia. O ciber- cutrtvoâa mdlvldualldaae.. A exposição generalizada su-
-realismo é, portanto, preferível ao ciberutopismo: os pro- prune-a privacidade necessária ao nosso dcsetivolvimen- ·
cessos políticos estão sujeitos à influência dos fenômenos to. A crença no cunho social da nova mídia esconde a
de comun icação c mobilização onJine, mas, em última ins- realidade dócrescerlie-ísolan1ento do indivfduo. Apropa--
tância, seu curso e eventuais mudanças apenas secunda- gânda pr~-;;;õ-;i(ta.pelo-s gÚrus da cibcrcultw·a sobre isso
riamente dependem desse elemento (cf. Hindman, 2009). não serve, portanto, senão às_erl:ll(resas que exploram o
Andrew Kccn desponta, neste contexto, como o compartilhamento do._r~XoZtiitural , 1ia platafonnas como
conservador cultw·al de última geração, para quem seria de o Google, YouTube e Facebook (cf. Kcen, 20 12).
nossa "responsabilidade moral mais central proteger a mídia Na Web 2.0, argumenta, "a multidão se tomou a
tradicional do culto do amador'' (2009, p. 204). Para ele, "a autoridade SQbrc_Q_que_§_v~d_ade e o que oão.é" (p. 92),
democratização da inf01mação pode, rapidamente, dege- passando, como se não fosse o caso antes, a sennos guia-
nerar em igualitarismo radical corruptor da inteligência" dos por critérios de valor baseados na popularidade. O
(p. 186). A Wcb 2.0 nos oferece uma "cultura infinitamen- pior disso, porém, é que, assim, as práticas de cibercul-
te fragmentada", na qual "poderemos nos perder comple- tura não apenas roubam anunciantes dos veículos tradi-
tamente" (p. 60). O problema com a cibercultura, resume, cionais, acabando com o profissionalismo ético c respon-
sclia o fato de fomentár:-uma gratuidadê -que- está dizi- sável, mas "estão criando uma geração de salteadores
mando o profissionalismo, as nonnas que, relativamentê infotmáticos segundo os quais todo conteúdo da net é
à produção literária, artístiéa c intelectual, "não apenas lhe propriedade comum" (p. 143).
conferem padrões éticos mas também asseguram um nível I Vendo bem, crê o autor, o ciberespaço se tornou
de qualidade para o público" (p. 77). I um cenário dominado por jovens mu ito sexualizados,
I
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}
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l
ladrões de identidades, jogadores compulsivos e outras e opiniões, via de regra,_@Q..represcnta um avanço co_g-
criaturas viciosas, e isso está não apenas corroendo os nitivo, mas a perda do contato com outras, mais neu-::-
valores que defendemos em nossa consciência reflexi- tra~, objetivas e Õíferentes, as .@~as cjit_iJ!!.YQ.f~Cem a
va, mas acabando com a cu ltura do profissionalismo da conversa esclarecida õú o-debate fundi!mentado i ~for­
qual eles passaram a depender com o triunfo da moder- mado sobre qualquer ass-unto (p. 83). -
nidade. As empresas especializadas e o conhecimento · ·· Por tudo isso, o texto afirn1a conservadoramente,
profissional, continua, "são necessários para nos ajudar em sua conclusão, que: "nosso desafio é proteger o le-
a separar o que é importante do que não é, o que é acre- gado de nossa mídia dominante e de duzentos anos de
ditável do que é fiável, aquilo com que vale a pena gas- direitos de propriedade intelectual, dentro do contexto
tar tempo do ruído sem sentido, que pode ser ignorado da tecnologia digital do século XXI" (p. 185).
sem maiores problemas" (p. 45).
Afinal, enquanto um jornal ou gravadora, por 1.3 Ocibercriticismo
exemplo, obedece a critérios e normas profissionais que
zelam pela ou regulam a qualidade de seus produtos, A inda nos anos 1940, Herbert Marcuse esclare-
os blogues e sites de serviço amadores se baseiam em ceu os fundamentos da teoria social crítica da tecnolo-
opiniões sem controle. O desejo de promoção pessoal e gia escrevendo que:
obtenção de popularidade que neles impera leva ao~
baix~~nto dos gadrões morais ~ulturajs, mas, sobre- (Nesta ótica,] a_tecnologia é considerada .<:o mo u,g~ p.r,Qce~so
tudo, ao enfraquecimento dos meios tradicionais, como social no qual a técnica em si mesma é apenas um fator par-
cial. Q-qucstíõiíãmcnTollãõ pergu-;;tà pela iõflucnCiãõu-eTerto
jornais, editoras c gravadoras e, até mesmo, das lojas (ta tecnologia sobre os indivíduos. A raz.'ío é que eles são em
especializadas e agências de publicidade (p. 62-63). O si mesmos parte integrante e fatores da tecnologia, não apenas
fechamento de livrarias e o fim das casas de disco, por como homens que as inventam ou se servem de máquinas,
exemplo, não representam progresso diante do surgi- mns também como g111pos sociais que direcionam sua aplica-
mento da venda avulsa de música ou "a emergência de ção e utilização (Marcuse, [I 941 ] 1998, p. 41 )-:-- --
~ -·-
um varejo digital oligárquico, dominado pela Amazon.
com, o iTunes e o MySpace" (p. 104). Confonne sabemos agora, ~c nolog i a encontra-
) A Web 2.0, em suma, estimula uma democratiza- -se em rcla_çã_? .dialética com ajg9 n~9 téçn ico. A co-
1ção que solapa a verdade, esvazia o discurso cívico e municação por n1eTod ocomputador e a cibercultu ra a
/yebaixa os talentos, pondo em xeque "o futuro de nos- que isso deu lugar não se desenvol veram apenas em
s as instituições culturais" (p. 15). 9 fato ~aye seria termos funcionais e científicos. Desde o início, os ele-
que, por meio da nova mídia, estimula-se um circuito mentos dessa natureza foram carregados com outros,
narcisista, em q':!e a.~ -p~~so~~se__es~§~~ae _gu~ a pr;=- de cunho mítico, simbólico, imaginário e metafísico,
cura das informações que apenas refletem §Uas. crenças- por diferentes grupos sociais. O planejamento de seu

40 41
con,trução dos seu~ respectivos sistemas; para
ll''l ... d é ri e de procedtmcntos objetivantes [que caracterizam as
nao talar da pesquisa que os originou, continham sem suas práticas]" (Stallabrass, 1996, p. 109).
dúvida uma base racional. b embasamento tecnológico De acordo com o autor, os processos de comwli-
da mesma não pode ser bem entendido, contudo, sem cação on-line estimulam um nivelamento da consciên-
levar em conta as projeções fantasiosas com que os vá- cia, ao facilitar o acesso e colocar num mesmo plano
rios grupos sociais envolvidos na situação não apenas c ritmo experiências muito di stintas em relevância ou
a cercaram, mas destilaram suas ideias para dentro do significado. Colocando-nos em situação de abundância
próprio desenvolvimento tecnológico. de informações e falta de tempo para aprofundar seu
A comunicação por meio do computador e a ci- conhecimento, eles nos incitam a "celebrar o potencial
bercultura que ela enscj a pertencem ao campo da ati- cmancipatório do pensamento fragmentado, das expe-
vidade tecnológica tanto quanto da ação política e da riências hipertextuais e do emprego meramente tático
criação cu ltural, posto que as fantasias e sonhos com da mídia em meio a si tuações puramente transitórias"
que esses grupos as cercaram definiram os limites da (Stall abrass, 1996, p. 56).
sua inventividadc. A hi stória das mesmas foi determi- O pesquisador polemiza contra as visões otimis-
nada tanto pelo estágio do saber quanto pelas fantasias tas, sem cair numa negação abstrata do potencial con-
a seu respeito, criadas a partir de vários pontos de vi~ta tido nas novas mídias para uma formação libertária do
c difundidas pelos meios de comunicação. ser social, salientando suas contradições. Em geral , os
Julian Stallabrass conta-se entre os primeiros a em- sujeitos da cibercultura procuram explorar sua identi-
pregar esse enfoque para pensar, ainda em sua alvorada, dade de forma livre, fluída c idealizada, tanto quanto
a problemática em jogo na cibercultura. Fugindo do re- se inserir em comunidades de interesse e compartilha-
ducionismo econômico-político, o autor descobre em seu mento de compromissos, sem se darem conta de que
movimento uma variedade da dialética do iluminismo. não se pode ter ambos ao mesmo tempo.
Para ele, as expressões do fenômeno, em vez de serem o
recw·so com que a tecnologia nos capacitaria para nos in- A extrema mutabilidade c multiplicação da identidade pos-
sibilitada pelo cibercspaço colide com o desejo de construir
serim1os no mundo de maneira esclarecida, nos reunirmos
comunidades baseado na comunicação aberta com pessoas
sem riscos de soft-er violência e nos engajarmos responsa- de outros interesses e background (p. 57).
velmente na condução da vida pública, tendem antes a ser
o complemento às vezes utópico, às vezes apocalíptico do Afirma-se que estamos entrando numa era radical-
que ocotTc no cotidiano reificado da sociedade capitalista. mente nova, em que enfim conse!,JUiremos realizar todos
A cibercultura não é con~rolada pe_ill._ç!.a~ 12Q.Ü.tica. os nossos projetos, criando um novo mundo, via tecno-
ou pclas-elitcscmprcsru.i.ais.,.JTlas pelas forças do m~aôo logia futurista. De fato, porém, arremata outro crítico, "o
c suà diriâmLêâ;~ão sendo surpt:e;iC poriss·o:-~ sejam que temos diante de nós é a reciclagem das velhas fanta-
suas marcas "o emprego consciente de mitos e de toda a sias de transcendência e dominação tecnológica, servin-

42 43
do para inibir e ocultar agendas alternativas de mudança dades políticas e culturais do mundo em que a maioria
social e cultural mais significativas" (Robins, 1996, p. 4). de nós habüa" (Robins e Webster, J 999, p. 225).
, O ciberespaço tende a ser muito mais uma forma ideal As experiências com esses equipamentos promo-
\ de mercado do que um espaço de cultivo da subjetividade e vem um imaginário tecnológico articulado pe.l a fanta-
1 aprimoramento das relações com nossos semelhantes, quan- sia de controle raciona l humano sobre a tot:p lidade da
' do não enseja a fantasia de que estamos nos tomando agentes ex istência, mascarando a presença imperial e os efei-
virais de um espaço anônimo e coletivo cujo poder se exer- tos destrutivos de um sistema econômico que se tornou
ce em escala mundial, mas "apenas as últimas mercadorias onipresente, fora e dentro do ciberespaço. A reali zação
tecnológicas das companhias mais inteligentes podem fixar de nossos desejos de liberdade e fantasias de plenitude
[positivamente]" (Stallabrass, 1996, p. 68). se encontra nelas com "o projeto de dominação racio-
Capacidade racional de domínio e imaginação irracio- nal c de sen horio soberano sobre a natureza em geral e,
nal criadora, como real e virtual, para não falar de outros pa- em especial, sobre a natureza humana" (p. 152).
res, fom'UUTI uma unidade, que se movimenta de fo1ma com- Mark Andrejevic (2007) não chega, noutra con-
binada, desigual c explosiva. Afinal, as fantasias associadas juntura, a afirmar tanto, mas tem isso bem claro, notan-
com a exploração e desenvolvimento da tecnologia, ao mes- do que "a interatividade não é necessariamente uma via
mo tempo em que lançam mão de um racionalismo calculis- de mão dupla". As companhias e organismos que reco-
ta, esotérico e altamente abstrato, reatualizam nosso imaginá- lhem, processam e exploram informaticamenle nossos
rio social-histórico e ativam nossos sentimentos regressivos dados, vittualmente liquidando com nossa privacidade,
de ilusão onipotente. Detrás do heroísmo contorcionista dos são cada vez mais opacas em sua estrutura e intenção
jogos on-line, por exemplo, repousa um tipo de sonho, este aos cidadãos e consumidores.
que considera o bombardeio em massa como espetáculo e a A capacidade tecnológica em foco, como quase
matança como coragem e bravura, o sonho do apocalipse, da todas as demais, é agenciada socialmente por empre-
instnm1entalização, do esquecimento e da estupidez mecani- sas e instituições, que a oferecem "em troca de nossa
zada (p. 109). submissão voluntária ou involuntária às suas fonnas de
Segue por essa via o exame sobre a cultura digital colher informações de maneira cada vez mais detalhada
em seguida proposto por Kevin Robins. Para o autor, o e passível de exploração" (p. 4).
c_ib~r~sp aço_é ,obje_to d~..!J_f!l~ ~Q!._üQriaçã<?._erivada e uma
explora_ção mercadológica, cujo sentido é nos -(â'zer fe-
lÍzes,-passandÕÕ te~pÕbrincando com todo o tipo de
engenhoca. "A questão mais fundamental que ele colo-
Il O resultado pode ser descrito como uma perda assimétrica
de privacidade: as pessoas estão se tornando cada vez mais
transparentes para as agências de monitoramento públicas
e privadas, enquanto suas ações continuam firmemente
ca [portanto] é a lógica econômica da política global,
que está mobilizando a nova mídia, a fim de criar um
f opacas diante das tecnologias que estão tornando a coleta,
compartilhamento e análise de grandes quantidades de in-
espaço extraterritorial de negócios, ao desafiar as real i- fonnação mais fáceis do que nunca o foram (p. 7).

44 45
Atualmente, continua o autor, pode ser que o acesso aos que amamos, mas também de maximizannos nossas
ao trabalho, aos serviços, ao consumo, ao lazer e relações chances de sucesso social e econômico" (p. 239).
sociais es~ja se tornando objeto de um vasto sistema de As pessoas que imaginam o surgimento de wna
monitoramento e eventual exploração, levando em conta reação em ampla escala contra essa tendência, ou seus
que todos os seus processos e protoclos estão se submeten- abusos, nota bem o autor, deveriam lembrar o quanto
do à tecnologia digital. Voluntariamente ou não, as pesso- temos nos acostumado a ela e o quanto parece ser bem
as estão se tornando prisioneiras de redes telemáticas que recebida, entre nós, a possibilidade de monitorarmos
, pe1mitem saber, por quem conduz o processo e ou paga por conta própria e auxílio de todo tipo de equipamento
pela informação, cada vez mais a respeito de sua identi- os assuntos e pessoas de nosso interesse e curiosidade.
1 dade, relações, desejos e movimentos. Queiramos ou não, A legitimação popular desses procedimentos e condutas
estamos nos tornando fornecedores de informações que não deveria ser vista como o oposto mas, sim, como o
podem ser coletadas, reunidas, analisadas, vendidas e ex- complemento de uma "democratização do modelo de
ploradas como propriedade de organizações e indivíduos vigilância perpétua e perfectível abraçado pelas agên-
sobre as quais temos muito pouco conhecin1ento e pratica- cias de inteligência governamentais e pelos serviços de
mente nenhuma autmidade. marketing das grandes empresas: isto é, de uma estraté-
gia permanente para rastrear um ao outro" (p. 40).
Conforme vamos nos equipando com aparatos interativos
l
e passamos a confiar cada vez mais neles para tudo, desde ~

conversar com os outros até ouvir música e comprar passa-


gens de avião, vamos sendo apanhados em redes de contro-
le privadas, cujos donos estabelecem os termos de ingresso,
comunicação e transação [sem sabermos ou desconhecendo
a f01111a d~; ter acesso às mesmasJ (p. 4).

O movimento de cercamento digital que se verifi-


ca em meio à cibercultura não para, porém, na explora-
ção mercantil e policiamento burocrático da sociedade, a
respeito do qual somos todavia avisados pelos meios de
comunicação. A habituação assim promovida também é
responsável ou ajuda a criar o processo pelo qual estamos
passando a considerar nonnaJ e se espera que " monitore-
mos uns aos outros, que desenvolvamos táticas de vigi-
Senwrama, protótipo de máquina geradora de realidade virtual.
lância, com meios que, ao menos em parte, nos fornecem concebido por Morton Heilig. 1962.
as tecnologias interativas, a fim de protegermos a nós e

46 47
Lee Siegel (2008) continua esse projeto analí- e apontar criticamente as categorias em que aquele se
tico, levando-o para plano mais imediato, ao se pro- expressa, através da análise do que nos dizem seus por-
por a examinar as práticas ensejadas pela cibercultura. ta-vozes ou ela mesma manifesta, nos parece o mérito
Aparentemente, o autor segue as pegadas do conser- maior de Against the machine (2008).
vadorismo, ao sugerir que "a democratização da infor- Segundo seu autor, os profetas da cibercultura de-
mação pode degenerar rapidamente em igualitarismo fendem que, graças a ela, entramos em era de desmassi-
radical corruptor da inteligência", para usar as palavras ficação, porque estaríamos passando a poder fazer nossas
de Kcen (2006, p. 186). De fato, porém, ele avança bem próprias escolhas e construir livremente nossas perso-
mais em sua análise da cibercultura, ressaltando a de- nalidades. No entanto, "o que ela está criando realmen-
pendência desse processo à dinâmica do capitalismo te é uma forma ainda mais potente de homogeneiza-
em termos que se conectam com o programa da crítica ção" (p. 67). Trata-se de abuso ideológico afirmar que ~~
à indústria cultural proposta pioneiramente por Adorno. estamos transitando da condição de receptores passivos
Os equipamentos telemáticos são uma resposta à para a de produtores de conteúdo independentes, só
fragmentação da experiência do homem moderno, um porque, agora, podemos compartilhar nossas ideias e
processo que não começou ou se origina deles, antes imagens através dos novos meios de comunicação. De /
provém da sociedade capitalista avançada. Os compu- fato, verifica-se assim apenas que nosso " tempo de la- {
tadores c a internet são próteses que permitem ao indi- zer adquire a qualidade de trabalho racional , ca lculável ,
• 1

víduo reunir e ordenar suas impressões, dispor de um e consciente num mercado. [Vendo bem,] você [assim] I
meio para gerenciar o ritmo cada vez mais acelerado e es_tá [apenas] adaptando seus momentos de privacidade 1
caótico, ao menos para a consciência imediata, da vida aos eventuais compradores'' (p.69-70f - - -- -- .../
contemporânea (p. 5-6). - Dêstarte, a cfberculfura-p-ode ser entendida como
Siegel critica a cibercultura como ideologia, vi- expressão de uma cultura de massas cujamarca é a pro-
sando mostrar os problemas contidos em suas catego- cura de popularidade estruturada s~gun.2.o_ o~ padrões
rias mais centrais (como interatividade e participação). mer_cado_lógicos de con~sta de audiência. "A cultura
Contrariamente aos populistas tecnocratas, mas tam- pop se fundiu integralmente com ac omercial. o en-
bém aos conservadores midiáticos, o autor percebe que cantament.o da imaginação cedeu lugar à gratificação
a cibercultura, seja em que plano for, consiste essen- do ego. A transposição vicária do seu eu deu lugar a ... ··
cialmente em um estágio mais avançado coletivamen- você mesmo" (p. 122). As pessoas não q·uerem mais ser
te de um processo de colonização da consciência pelo público mas antes estrelas ou cristais de massas, abrin-
mercado que já opera no profissionalismo da mídia tra- do blogues, escrevendo para sites ou então entrando
dicional. O espírito que, nesse novo cenário, move a em redes sociais para serem lidas, vi stas e comentadas
sabedoria das massas é o mesmo que anima o poder pelos demais, para fazerem sucesso como sujeitos nar-
econômico das grandes empresas desde muito tempo, císicos c egotistas.

48 49
\

A popularidade que esses sujeitos buscam não é·a ,.e::''


I 2. ,L'
c
'
que resulta de méritós individuais ou a do compartilha-
Fáusticos, prometeicos e neomarxistas:
mento de uma qualidade com os demais, processos que
sempre dependem de comparação e provas concretas: cartografia da consciência tecnológica
tem a ver apenas com "a transfonnação do próprio eu" na cibercultura
num produto que cada um talhou de modo a se encaixar
nas necessidades dos demais, porque para esse tipo de
pessoa não há outras com que seja o caso de se rela-
cionar - há apenas uma audiência que se tenta agradar
(para em troca obter gratificação psicológica) (p. 88). Conforme reza a tradição acadêm ica e publicís-
Segundo Jent<Tns, ·-a cio.ercultura ifuporta em tica, os pensadores da técnica podem, em geral, ser
progresso porque, qualquer que seja o valor do que divididos em prometeicos e fáusticos, para valermos
seus sujeitos criam e veiculam pela nova mídia, as- nos de duas figuras exemplares da tradição mitológico-
segura nosso ingresso em uma era de participação literária do Ocidente (Martins, 1996; Lecourt, 1998). A
cultural e, eventualmente, política revolu cionár.ias proposta tem fundamento histórico. A consciência do
no âmbito do mundo democrático. Keen , em contra·- homem moderno se caracteriza pela tensão entre, por
ponto, afirma qu e, com ela, o coletivismo anônimo um lado, uma tendência - minoritária - ao pessimismo.
se tornou a autoridade sobre o que é verdade e o que c_uJl!J_ral, e, por outro, uma tendência - majo;itáJ1a---;
não é, o princípio que comanda os processos de inte- o~ismo societário.! cujo eixo ou referência comum é
ração e de socialização. o processo de desenvolvimento tecnológico próprio à
Siegel tem o mérito de não cair nesses enganos, nossa civilização. .
mostrando, ainda que de fonna pouco elaborada, a ma-
I. Seguidores de uma linhagem de pensamento que se arti-
neira como o fenômeno se insere no processo de expan-
cula pela prime ira vez em Francis Bacon (t 1626) e que se
são da racionalidade mercantil pelo campo da ação co- contextualiza materialmente com a ascensão do capitalis-
tidiana orientada para a expressão da individualidade. mo e a eclosão da Revolução Industrial, os rometeicos ou
Depois de ler suas ideias, fica claro por que o conser- tecnófi los são estes que procedem ao elogio da t cnica mo-
vadorismo cultural tanto quanto o popu lismo tecnófilo ~e_m~-~-om base na identificação de ~~.ô.iãn:­
c~pat?na e beneficente_0 tecnolog ia merece, segundo eles,
nos impedem de ver que a conversão da participação
ser vista como um fator de progresso, uma força de caráter
e da popularidade em critério de valor pennanece na positivo, que nos promete o melhor mundo possível. Os
abstração, se estas forem desvinculadas do contexto obstáculos que ela encontra não são menos solucionáveis
histórico mais amplo em que se inserem , se estruturam que seus próprios efeitos perversos, visto que ambos serão
c adquirem sua devida signifi cação. resolvidos com a pesquisa e o desenvolvimento de novos
artefatos tecnológicos. O processo teria um sentido em úl-
tima instância benevolente, de modo que todo o esforço no

50 51
sentido de brecá-lo, mais do que equivocado, está destina-
do ao fracasso. A perspectiva é, pratica e teoricamente, he-
I experiências do mundo que fizeram a riqueza das civiliza-
1 ções (Rodrigues, 1994, p. 196).
gemônica em nossa civilizaç&o.

2. Aparentemente oriunda de Georg Simmel (t 1918), seu Dito isso, cumpre notar que o assunto não fica aí,
mais notável antepassado intelectual, e tendo nos movi- apenas no registro teórico: se ele se apresenta e estru-
mentos de quebra de máquinas ocorridos ainda durante tura no campo intelectual, é porque antes está presente
a Revolução Industrial seu solo arqueológico, a corrente
e é vivido em várias esferas da cultura popular na con-
fáustica ou tecnófoba, ao invés, cresceu em meio à rever-
s~ expectativas históricas q~e começa a cercai es-pi- temporaneidade. Também nela há controvérsia sobre o
ritualmente o dcsen~volvimento tecnológico na virada para sentido e como se interpreta (ainda que para o homem
o século XX . A mecanização acelerada da vida social e o comum) a entrada da human idade na era da tecnologia
caráter de massas que esta foi adquirindo levaram muitos maquinística.
pensadores burgueses a revisar seu juízo inicial sobre a
tecnologia e sua civilização. A máquina pouco a pouco foi Por um lado, na ficção de massas, sobretudo, ocorre
passando a ser vista - às vezes inclusive misticamente - que "o desejo de ampliação de poder que as tecnologias
como uma armadilha montada para si mesma pela huma- ensejam é, em geral, acompanhado de um concomitante
nidade progressista, um elemento nocivo, que não apenas medo em perder poder humano, de ver nosso contro-
tende a agredir sua vida como, no limite, ameaça a sua so- le [sobre o mundo] enfraquecido na era das máquinas"
brevivência. Apesar de não ser hegemônica, a resistência
(Bukatman, 1993, p. 5; cf. Dinello, 2005). De outro, no
ao prometeísmo que se expressa nesta atitude, é, corno o
ativismo da outra tendência, um fenômeno prático e teóri- jornalismo e na publicidade, por exemplo, verifica-se o
co, vale notar, em síntese. culto e a promoção do poderio a nós proporcionado pela
criação de novos meios técnicos. Em ambos os eixos
Adriano Rodrigues resume o contencioso entre salienta-se uma mídia muito forte "a respeito dos estilos'
as perspectivas fáustica e prometeica,referindo-se dire- de vida high-tech, que transmite idcias sobre que con-
tamente às tecnologias de comunicação e informação dutas c identidades se compatibilizam com um futuro
aparecidas no final do século XX: ciberentendido e sobre quem é elegível para ser usuário,
ator e consumidor na próxima geração da economia in-
Alguns autores, com um otimismo talvez exagerado, veem, formacional" (Matrix, 2006, p. 9).
no acesso generalizado às novas tecnologias, uma oportu- Resumindo a problemática de acordo com um
nidade acrescida para o desenvolvimento, para o avanço
da participação das populações nas decisões políticas, para
de seus sustentadores, verifica-se, de todo modo, que,
o desabrochar da economia e a promoção de seus valores em meio a nosso tempo, " toda tecnologia tanto é um
1
cu lturais, enquanto outros autores, mais reservados, con- fardo como uma benção; não uma coisa ou outra, mas
, sideram as mutações tecnológicas do nosso tempo como sim isto c aquilo". Nesse sentido, tecnófilos são os " que
a morte das culturas tradicionais, da diversidade de seus veem apenas o que as tecnologias podem tàzer e são
modos de vida, c a perda da espontaneidade das diversas
incapazes de imaginar o que elas irão desfazer". Em

52
53
IJ
·~
contrapartida, tecnófobos "são estes profetas de um e focal, para outro, superficial, disjuntivo e veloz (Carr,
olho só, como eu (ou pelo menos é do que me acusam),
que estão inclinados a fa lar apenas dos fardos [quando
2011, p. 10), cujo sentido tende a ser danoso para a hu-
manidade, em virtude do surgimento e expansão da in-
I
tratam da tecnologia]" (Postman, 1994, p. 15). ternet.
No que segue, trata-se, em primeiro, de exempli- Carr postula que, em vez de meio para veicular
ficar como os pensadores da cibercultura têm elaborado ideias, "a internet seria melhor entendida corno o últi-
esse ponto, chamando a atenção para a maneira muito mo utensílio de uma série que tem ajudado a moldar a
discrepante como têm visto seu impacto sobre nossa mente humana" (p. 115). O fenômeno afeta a maneira· - -
,: .;:_::..:..:;..:.=-;;:...;.::.:;.·-
condição antropológica. Em seguida, o texto detalha a como usamo~ no~sas ~~!esLà revelia dos conteúdos e
dependência de fundo destas duas abordagens ao que informações que por meio del a processamos. Quando
podemos chamar de pensamento tecnológico. De acor- empregamos Ul1]_ a_p_arato de t~dia__qigita l int~rativá,
do com Heidegger, esta forma de pensar é a expressão inserimo-nos em um ambiente que, independente do
rnctafisica do movimento que, em última análise, tal- êoõteúdo, promove a le itura feita às pre~sas, o aprendi~­
vez defina a modernidade em sua fase de acabamento. zado süperficial -e a d istr?ção i!lt~lçc!!.lai. De certo que,"
Depois, no fina l do capítulo, será o caso de mostrar que, em princípio, o meio não nos impede de pensar profun-

l
procurando fugir a essas perspectivas, apareceu urna damente, da mesma forma que é possível pensar super-
reflexão sobre a tecnologia originária do marxismo que ficia lmente lendo um livro, mas, está convicto o autor,
pode e, de fato, começa a servir de fundamento para a "aquele primeiro não é o tipo de pensamento que a tec-
critica da c ibercul tura que, vimos, encontra-se em au- !I nologia digital encoraja e recompensa [geralmente]":
tores como Sicgel. ~

A Net fornece estímulos sensoriais e cognitivos, repetiti-


2.1 Vozes do contraponto vos, intensos, interativos e viciantes, que têm sido mostra-
dos como os mais propensos a provocar rápidas e fortes
alterações nos circuitos e funções cerebrais. Por isso, com
Segundo Nicbolas Carr, por exemplo, a cibcrcul- exceção dos sistemas numérico e alfabético, a net pode
tura nos coloca no sentido da perda do pensamento crí- bem ser a tecnologia alteradora da mente maís poderosa
tico, racional e emancipatório. A mídia digital interatj- individualmente que já foi Usada (p:- 116).
va não iJ!lpmta pelos conteúdos-que -veliu ta,_mas ~os
processos materiais qu~ agenci_a. Para ele, McLuhan O publicista argumenta que, com o uso cada vez
está certo ao afinnar que o meio é a mensagem, mas mais intenso dos recursos informáticos, surge uma ci-
essa não é uma máxima para se ver com bons olhos. bercultura que não apenas nos absorve muito mais do
Apesar de viciado confesso em engenhocas de comuni- que a cultura de massas promovida pelos meios de co-
cação, ou talvez por isso mesmo, ele nos adverte sobre municação anteriores, mas promove a fusão dos nossos
a transição de um modo de pensar concentrado, linear sistemas nervosos com as redes informáticas de uma

54 55
mídia digital ubíqua e onipotente (p. 213). O resulta- maquinísticos da cibercultura, é pura e simplesmente
do, pensa, seria o paulatino abandono das competências ignorado. O foco está nos supostos efeitos disso sobre
que nos permitem progredir moral e intelectualmente e o pensamento, deduzidos mecanicamente de uma refle-
uma crescente alienação em relação à vida rea l, porque xão de tipo fis icalista.
esta só pode retroceder quando, em vez daquela, passa-
mos a ter mais preocupação com o processamento do A cacofonia de estímulos digitais [proveniente da net] provo-
ca um curto-circuito nos pensamentos conscientes e incons-
flu xo de símbolos e estímulos proveniente de nossos
cientes, prevenindo nossas mentes de pensar mais profunda e
1 aparatos. O pior, porém, seria o avanço silencioso de
criativamente. Nossos cérebros convertem-se em simples uni-
uma ampla e profunda servidão espiritual a um poderio dades processadoras de sinais, fazendo a informação passar
tecnológico enganosamente iluminado. muito rapidamente pela nossa consciência [e assim perder seu
sentido formativo e emancipatório] (p. 119).
Quando procuramos informações via Google ou outros me-
canismos de busca, estamos seguindo um roteiro [escrito O balanço do seu movimento como um todo é,
pelo seu software]. Quando olhamos para um produto re- portanto, negativo, já que, em função do mesmo, a re-
comendado para nós pela Amazon ou pela Netflix, estamos
flexão está retrocedendo diante da sensação de estar-
seguindo um roteiro. Quando escolhemos algo para descre-
ver nossos relacionamentos ou nós mesmos por meio de mos, virtualmente, nos convertendo em "ratos de labo-
uma üsta de indicações fornecida pelo Facebook, estamos ratório", cada vez mais acostumados a, mecanicamen-
seguindo outro roteiro. Por mais engenhosos e extraordina- te, viver teclando "para obter nossas pequenas doses de
riamente úteis que eles sejam, estes scripts também meca- nutrTeiltêSSOCíãíSelntelcctuais .-(p. lT8)." - -· --
nizam-os ·complicãdos processos de exploração in_telecroal
Gente como Ray kurzweil , por exemplo, confinna
e, mesmo, de vinculação social (p. 2 I8).
esse tipo de temor, afinnando, na condição de engenheiro,
informata e pensador de última hora, que, no futuro:
Carr observa bem, parece-nos, que, na cibercul-
tura, a consciência é direcionada para a man!pul açã~
As máquinas nos convencerão de que são conscientes e
do eq-uipa;.;entô, em vez-derõêâr'llõs1gn1ficado "éven-- de que têm uma agenda própria, digna de nosso respeito.
tualmen~e _ex1~eii!~ _n~_g_u_e~~~~~o -õferecido Muito mais do que com nossos animais de estimação, sere-
(p. 128). Porém, não se fi xa no ponto. Os experimentos mos levados a simpatizar com seus sentimentos e esforços,
reveladores do fato de que, quanto mais links possui porque suas mentes se basearão nos moldes do pensamento
humano: elas encarnarão qualidades humanas e reclama-
uma página ou percurso on-line, menos compreensão
rão esta condição - e nós acabaremos acreditando nisso
do conteúdo ou elaboração do conhecimento há entre (Kurzweil, 1999, p. 69).
os usuários da net, não são devidamente comentados.

l
Deseja-se pôr a culpa no meio técnico. O contexto so- Diferentemente de Carr, para esse profeta do pós-
cial mais amplo que explicaria essa conduta, mas tam- -humanismo (cf. adiante, cap. 11 ), isso, porém, não é
bém as características assumidas pelos agenciamentos

56
i
b
57
mau, e não deveria ser visto em termos fáusticos, em- uma força autÔ!}.Q.ITIª1. que não somente difunde novos fins
bora também não seja algo propriamente prometeico. A à-partir da invenção de seus meios, mas tende a se estabe-
cibercultura, ele crê, terá coroamento quando ocorrer lecer como fim em si mesma, como finalidade transcen-
a fusão do homem com a máquina virtualmente conti- dente e autônoma com relação à própria humanidade de
da em nosso padrão de desenvolvimento tecnológico. onde se origina. Primeiro, elevando o homo faber à condi-
A distinção entre ambas será paulatinamente apagada, ção de nosso núcleo essencial; depois, colocando o poder
quando a si nergia intelectual que agora vincula as ca- sobre tudo, nós incluídos, na condição de meta dominante
tegorias as tomar indissociáveis, via o progresso dos e inesgotável de nossa existência; enfim, conduzindo-nos
mecanismos de comunicação. para uma situação que às vezes é paradisíaca e eudemô-

Interromper o avanço da tecnologia de computação, como


de qualquer outra que produza frutos, significaria repelir
I
'
nica, em que encontramos a utopia realizada, mas noutras
é apocalíptica e niilista, visto impor condições capazes de
justificar o suicídio da espécie (cf. Winncr, 1977).
as realidades mais básicas da competição econômica, para
não mencionar nossa procura por conhecimentos. [...] Em
Em termos muito amplos, o pano de fundo para o
última análise, nossas capacidades naturais de pensamento aparecimento dessas correntes é o fato de que se, por um
não ~>crão páreo para a avassaladora tecnologia que estamos lado, esperamos que, "seja lá o que for que esteja faltan-
criando (... J. Os resultado serão: contínuo crescimento da do em nossas vidas, a falta será preenchida por um maior
prosperidade econômica, mais saúde, melhor comunicação, acesso aos bancos de dados e novos recursos tecnológi-
educação mais eficiente, mais entretenimento engajador e
sexo de mais qualidade (p. 130). cos", por outro, muitas pessoas rcsislem a essa forma de
vida, através da "sabotagem dos sistemas de computação,
Apesar das resistências com que se terá de lidar, a da refuncionalização dos equipamentos de diversão para
simbiose entre homem e máquina será conduzida no sen- finalidade políticas e criativas, da organização de usos mais
tido de se tomar cotidiana e ubíqua, através da criação de democráticos para a tecnologia, da defesa das instituições
um ambiente totalmente virtual e maquinístico em que, socialmente úteis que sofrem quando a expansão da tecno-
como anjos cibeméticos, transcenderemos as limitações logia as deforma ou substitui e, enfim, até mesmo do sim-
do corpo físico e viveremos etemamente todas as experi- ples virar as costas para ela" (Brook & Boa!, 1995, p. 7).
ências desejadas por nossa capacidade de imaginação (p. Isto é, a razão para a referiqa bipartição está no fato
142-153; c f. Rüdiger, 2007, p. 202-237). de que, ao menos aparentemente, "a época da máquina
é, para a consciência humana, uma época de esperança e
2.2 A crença na máquina: o pensamento tecnológico horror, ambígua e confusa. Enquanto num momento a tec-
nologia é igualada ao progresso e à promessa de um mun-
Langdon Winner nos ajuda a esclarecer mais o pon- do de abundância, livre de labuta, noutro ela evoca a visão
to, fazendo notar que, em ambas as atitudes, está presente de um mundo enlouquecido, fora de controle, a visão de
um dcte1minismo tccnológicp,~a c~_!!ça d~~ a técnica é Frankenstein" (Ewen, 1982, p. 13).

58 59
Por outro lado, convém notar, como já foi dito em um modo que só se distingue daquele que já a celebram
relação às tendências de reflexão sobre a cibercultura estu- tal acontecimento pelo sinal negativo. As possibilida-
dadas no capítulo anterior, que as correntes assim caracte- des tecnológicas e as condições de fato para isso ocor-
rizadas se comunicam e, não raro, se confundem. Herbert rer, se não as pretensões deste suposto projeto, não são
Marcuse, por exemplo, procedeu a uma crítica dialética da questionadas.
técnica tanto quanto do humanismo que a ela se opõe, mas Passando de uma visão à outra, varia pois o jufzo va-
em que há também, e ao mesmo tempo, motivos fáusticos lorativo, a proposição do seu sentido histórico, mas não a
e prometeicos (cf. Marcuse, [ 1955] 1978). forma de equacionamento da problemática. O pensamen-
Dominique Lecourt sugere bem, portanto, que tq_é tecnológico sem(?re que, gondo ou não sinal positJVQ
Prometeu e Fausto são, antes de tudo, variantes ilus- n.a ati_~de,_supõe, ~_9_l:!_E_C:.S convence de que nossos
trativas de uma mesma mitologia; seriam, ambas, "fi- J?ro~_!e!ll~2..~1.!!1?~- _9u sol_ll~nte co_ll)QQrta!ll soluções em
guras míticas maiores do imaginário ocidental [que termo~- t~cuj~2_~,_ S.llg~..ri.!!Q.Q-n<?s,yortanto, um entendirrum:.
se relaciona problematicamente com a tecnologia]". to detenninis~_ Qa_mud(!lJ_Ç_ª ç_i~Wzató.ri~,_
A Prometeu, cujo mito patrocina os tecnófilos, não ·· -·· Quer..fs~o dizer que é o caso de se endossar a tese
é estranho o eventual pagamento de algum tributo pouco meditada, ainda corrente no senso comum, e de
fáustico. A Fausto, cuj a figura assombra os tecnófo- acordo com a qual "a tecnologia é apenas um meio. não
bos, não é estranha, pelo menos, a admissão das pre- sendo em si mesma 6o!l ou_má", como disse Karl Jaspers '
tensões de Prometeu. (apud Van Dijk, 2000, p. I 06)? Segundo essa ideia, recor-
demos, a técnica seria sempre neutra, porque, em si mes- I
[Ambos são, cada um a seu modo) encarnações de um mos, seus meios não dariam preferência a um uso em vez
mesmo mito, cujas versões sucessivas se superpõem com o de outro, porque, em si, ela é um fator puramente instru- I
propósito de flagrar e denunciar a desmedida humana (com
mental na existência, porque, supostamente objetiva, ela J
relação à técnica] - essa famosa hybris, que a ética grega
condenava (Lecourt, 1998, p. 17-18). está livre de compromissos valorativos e ideológicos. A '
técnica, por isso, não deveria ser rotulada de boa ou má:
Como disse Winner (1977), a concepção da tec- seria o uso a que submetemos os novos inventos científi-
nologia como um poder autônomo, possuidor de dinâ- cos que fomepta .ou degrada o bem-estar e a prosperidade
mica própria, está presente tanto entre os pensadores individual (cf Landes, 1966, p. 207).
prometeicos quanto entre os chamados fáusticos. Quer Aceita de forma irrefletida, esclarecemos, esse
uns, quer outros conferem poderes extraordinários à entendimento é o próprio núcleo do pensamento tec-
técnica; uns e outros não negam que ela nos exige es- nológico. Porém, a verdade é que ~_Eenas ignorada em
forços e sacriflcios. Em Digital Soul (Georges, 2003), sua propriedade, como saber, e vista de forma descã"r:
por exemplo, o autor nos alerta para a eventual tomada nada, sem relação com um contexto histórico e huma-
de poder do nosso mundo pela inteligência artificial de nó êoriêreto, é que ela pode ser reduzida ao utensílio e

60 61
definida da forJ:!:Il,l_'Y~~ia_e _a~strata qu_~---~ug_~~e a_s:_i:!_ação o individuo e os grupos se originam da vontade [en-
OeJãspers_ carnada na técnica] ou se eles ainda podem negociar
--e:õ-mo nota Donald Brinkmann, em obra mais an- e comerciar com ou até contra essa vontade". A possi-
tiga, que todavia passou despercebida, o fato é que: bilidade de eles estarem sempre além de poderem dar
apropriadamente uma resposta à pergunta, a hipótese
Nos últimos 400 anos, a técnica foi_tudo menos um sistema · de essa liberdade ter sido suplantada pelo eu pertencen-
neutro de meios aplicá~el a qtÍalquedGn."-PÕe:-se--démani- te a um mundo tecnológico, poucas vezes foi colocada,
t'esfõ iielãlim<fêterriiina-dõ tTj)õ(Tê'h~manidade. Passando como observou Martin Heidegger ([1954] 200 l , p. 78).
por cima dos limites das disciplinas técnicas profissio-
nais, foi a esse tipo que tocou encaminhar os destinos do
Ocidente. [...) Somente levando em conta essa humanidade 2_3 Feenberg, Kellner e o neomarxismo: visãode Athena?
técnica, que em nenhum momento se restringe a fazer uso
de meios com uma finalidade arbitrária, é que poderemos Diante dessas perspectivas de abordagem do
investigar e detem1inar as consequências, objetivos, e es-
que foi chamado, por um de seus intérpretes, de
colhas de meios de pensamento, os anseios e a vontade da
técnica ( 1955, p. 82). fenômeno técnico (E lllul, [ 1953] 1968), prospera-
ram em anos recentes vários enfoques alternativos,
Vendo bem, a técr::i_~a é, _antes de tudo, uma forma oriundos tanto da filosofia analítica quanto dos
de ~_abcr qt)~, CO.!JlQ. ~-ª1, e_xisj:~- ~empre_en_çru:-l.l~d~:U1J22T estudos que procuram operar com ela em termos
isso, não pode ser separada de seu uso concreto, mes- empíricos ou historiográficos, como os da escola
mo no momento de sua orig~m, vi~to q~eJ~ssa oog.em___,_ construtivista (c f. M acKenzie & Wejcman, 1999).
segundo a tradição, é sempre o homem em condições "Contra as abordagens unilaterais dos tecnófobos
hístóricas e sociais deter~ü1adas. o h.ôm~m ~es;Tiõé e tecnófilos", todavia, apareceu também uma abor-
originari~;,ent~.. ~;;; ·-art~f;to té;ico, falando em ter- dagem neomarxista da cibercultura, cujo objetivo é
mos científico-sociológicos. O primeiro objeto técnico "des~nvol~er uma teoria críti~~ da tecnologia capaz I'
aparecido no mundo é, neste iiíarcõ, 0- corpo;-s~ não de d1scermr os aspectos pos1ttvos e negativos, os ,
. Õ-pí-opr(ó modÕ d~--s~r- humano, ainda -que'''lliío total- altos e baixos, as perdas e ganhos implicadas na tra-J
mente. A matéria da qual se constitui o humano está, jetória de desenvolvimento das novas tecnologias"
desde o princípio, sujeita a operações técnicas, que se (Kellner, 1999, p. 189).
manifestam na forma como nosso corpo se posiciona Exponenciada nos últimos escritos de Douglas
no ambiente, caminha, senta-se, gira a cabeça, articula Kellner, a perspectiva encontra embasamento mais gené-
a palavra, manipula o que está a seu alcance etc. tico nos textos deAndrew Feenberg. Para ambos, pode-se,
De todo modo, verifica-se, contudo, que foi por por meio dela, colaborar com os projetos que visam "criar
meio das concepções mais acima referidas que, histó- uma sociedade mais igualitária e capacitar os indivíduos e
rica c filosoficamente, "tornou-se questão perguntar se grupos sociais que vivem em condições subalternas" (ibi-

62 63
f
tt
dem, p. 190). As visões fáustica e prometeica sobre a tec- rias correlações e sínteses históricas. A verdadeira crítica
nologia e a cibercultura, creem eles, podem ser superadas não-cõiítrãpõe0liõmema·máqü1na:ãntes submete à exa-
teoricamente, sem perder de vista, como ocorre entre os
filósofos analíticos e sociólogos construtivistas, o con-
teúdo histórico, político e reflexivo das discussões sobre a
questão da técnica no mundo contemporâneo.
I
f
me suas diversas relações em condições determinadas. A
tecnologia é variável de uma constelação em que nãoé
possível distinguir, fora da abstraç~Q, entre_o U..§~_a forma
da -maqtona (cf. Marcuse; [ 1941) 1998). ----
-·-· PrÓpriá dessa abordagem é, portanto, a premis-
Acredito que, para o bem ou para o pior, a tecnologia é o J sa de que a tecnolog~ está sempre sujeita ao político
nosso destino, eúma forÇãl iíexorávei; que-eiãestá mudan-
e
do dmsticallientc tõaõs õs aspectos 'de nossa-vida que ela
nos.desâfia a divisar máóeiras de a tomàrmos mais facilita-
i (noutros termos: ela representa um poderio humano
coletivo) e de que só um processo de orientação não
dora de nossa vida (Kellner, 2000, p. 249).

Em Feenberg, a proposta central é proceder a uma


I tecnológica poderá - em tese - não apenas permitir
uma exploração critica e emancipatória das novas tec-
nologias, como eventualmente resolver os problemas
"reconstrução da modernidade na qual a tecnologia reú-
na o mundo, em vez de reduzir seu ambiente social, hu-
mano e natural a mera reserva de recursos exploráveis"
(Feenberg, 1999, p. 224). Como David Noble, Langdon
I econômicos, sociais e ambientais cri ado~ cbm o seu de-
senvolvimento oo mundo capitalista.
À crítica con.vém mostrar que a tecnologia não é uma
força neutra, mas também não é, em si mesma, malévola ou
Winner e outros, o autor argumenta que a tec~ol9.gi~ benéfica: visões como essas obscurecem os processos que, de
depende de fins Ol!~t:Q_Ull.!~ não__g§.. teCQQlggiç,ps. ~-º.mP~ fato, a explicam, através da geração ou mesmo do reforço de
prisio~eiros de ':lm fetiç!ÜSJP.Q t~cnológico, que só pode todo tipo de mistificação cotidiana acerca de suas circunstân-
sér superado via a reflp~ão filosófiç~aÇ.ão..política A cias. O pensamento assim veiculado acentua sua condição de
h"úmanidãdenão tem por que se voltar contra a tecnolo- poderio alienado da sociedade sobre a própria sociedade, "à
giã, embora também não ·tenha mótivõs parã âbfãÇâ=tâ expensa de outras atividades sociais e humanas igualmente
incondicionalmente. O caminho é, antes, a'íteràr ã <i1re- · importantes, levando à atrofia de muitas de nossas capaci-
ção em que ela se desenvolve. O objetivo seria apontar dades e a uma preocupação e obediência generalizadas para
para uma nova, pois, como disse seu ex-professor, "a com o mito da máquina" (Noble, 1977, p. 21).
tecnologia estabelecida se tornou um instrumento de O capitalismo moderno tornou a tecnologia um
política destrutiva" (Marcuse, [1964] 1979, p. 2 11 ). princíp~ de do'ffiin~Ção polítfc?:.coflftrmandôsúã faitã de
Para o autor, o verdadeiro ponto em questão não é rieutral!Clãde, mas isso não fecha totalmente as possibilida-
a tecnologia, mas a variedade de tecnologias e as possibi- des de sua transforn1ação e, portanto, nos impede de ser-
lidades de progresso que podemos escolher a partir dela mos fatalistas, como os pensadores fáusticos. A tecnologia

---
(Feenberg, 1991). A humanidade e a técnica não devem
--
ser opostas de forma abstra!a.L!!las entenâícfas em suas yá-
não se materializa apenas em urna série de bens, mas, tam-
bém, em uma série de lutas e disputas de eUllho e forma

64 65
sociais: "é um processo ambivalente de desenvolvimento Na França, por exemplo, os usuários alteraram o desenho
do sistema [de transmissão de dados] Minitcl atrav6s de
social suspenso entre diversas possibilidades•':(Feenberg,
intervenções posteriores à sua concepção, adicionando
1991 , p. 22). Apenas isso permite entender as resistências funções próprias da comunicação humana a sistemas que
à técnica e o sentido regressivo que tantas vezes ela vem originalmente eram destinados a apenas transmitir dados
adquirindo ao longo dos tempos modernos, desde o movi- (Feenberg, 1999, p. 121).
mento luddita até os movimentos ambientalistas, passan-
do pelo modemismo reacionário (He1f, 1993). As transformações por que os computadores liga-
Os computadores e celulares, por exemplo, podem dos em rede vêm passando revelam que os indivíduos
ser postos a serviço do mercado tanto quanto da educa- terminaram empregando um equipamento concebido para
ção; da competição tanto quanto da solidariedade. As al- prestar serviços e informações como fonte de distrãção,
ternativas não são fantasias utópicas, mas possibilidades interação e agilização dos pm~ps:-' Ã conca-!
reais contidas em nossa sociedade, ainda que de maneira tenaçãõ de instrumentos configurada pelos seus desig:nersl
latente, devido ao predomínio das relações sociais cria- no sentido da solução de um problema (a distribuição de;1
das, mantidas e reproduzidas pelo sistema dominante: o infonnação) foi percebida pelos seus usuá1ios como solu- :
capital ismo. ção para um problema totalmente distinto: a comunicação
Como diz Feenberg, a sociedade contemporânea [falando genericamente]" (Feenberg, 1999, p. 126). )
precisa ser entendida "como um terreno de luta entre dife-
rentes tipos de atores, engajados de diferentes modos com
o sentido e a tecnologia" (1999, p. xiü). Os empresários
que exploram os processos tecnológicos, os cientistas que
lhes fornecem os meios e os técnicos (engenheiros, de-
signers etc.) que os operacionalizam são apenas uma face
desse cenário. Os indivíduos comuns que os consomem,
os empregam e os adaptam a seu modo de vida e às suas
necessidades de forma mais ou menos significativa são o
outro lado da moeda, para não falar de todos os que aju-
dam a elaborar sua imagem para a sociedade. Douglas Kellner
As tecnologias de informação não são função
de um propósito socia l pré-determinado: são parte do Destarte, a cibercultura precisa ser vista em sua am-
contexto histórico em meio ao qual a vida é articu- bivalência, evitando-se a condenação apocalíptica, tanto
lada. As pessoas possuem o poder de reinvent].r....em
·o
set]tid~~ imbo li cÕ caráte-r -funciÕnal dos a~aratQS f quanto a celebração às vezes ingênua, noutras oportunista.
O Second Life reproduz virtualmente os padrões do sho-
t~cn o Iggiç.os~- pping center, das relações sociais e do trabalho alienado

66

I 67
vigentes no mundo capitalista. O fenômeno, contudo, não sites, blogues e redes sociais oposicionistas, são prova de
está isento de contradições, como revelam as manjfesta- que a internet e a nova mídia digital interativa possuem
ções de protesto e tentativas de canalizá-lo noutras dire- mais do que potencial para promover e sustentar projetos
ções. Os videogames são uma mídia paradigmática do I

' de transformação em nossa sociedade.


capital em sua etapa imperial, mas também um meio real i Contudo, prossegue (muito ambiguamente, é cer-
e potencial de expressão de algumas forças que o questio-
nam (cf. Dyer-Witheford, 2009, p. xv).
Kellner segue essa linha de análise, observando
que, embora a comunicação mediada por computador
I
i
'f
to), isso não deve nos cegar para suas várias limitações.
Apesar de não faltarem casos de uso crítico da nova mí-
dia, é preciso reconhecer que "os blogues, wikis e redes
sociais, juntas ou isoladas, nem sempre são congruentes
possa nos causar prejuízos em comparação com a inte- f com as práticas democráticas mais fottes e com a política
ração interpessoal imediata, não se deve criar uma hie-
rarquia rígida em favor da última.
i
f
emancipatória anticapitalista", porque, em última análise,
~ "a vasta maioria dos usuários continua cativa da agenda

Em vez disso, [afirma], eu concordaria com a lógica de


t individualista "[promovida pela -õossã -economia de rnerca~­
do]"; nessa esfe-,=ã tãir)bém- predom-ina "a lógica do capita-
ambas, no lugar do isto ou aquilo, vendo nestes modos de
se comunicar fonnas C01!!12..~0~~ngies_,_~ não !fl~~ãrri_§tê
lismo e do individualismo burguês" (Kellner, 2008, p. 32).
excludentes ....Ã comunicação face a face pode facilitar a A cibercultura revela o potencial revolucionário
manipul~ção e a dominação, tanto quanto a interação on- das novas tecnologias na vida cotidiana, q uando, por
-line: ela pode ser aborrecida e desgastante, envolver os exemplo, os celulares, computadores e outros disposi-
indivíduos em situações que eles não desejam realmente.
tivos são usados para as pessoas se inserirem no movi-
Eu não vejo nada de intrinsecamente nocivo na comunica-
ção por meio do computador, apesar de eu ver que existe o mento político e soc ial mundiat, sem perder suas co-
perigo de se perder no mundo virtual, de nele se perder as nexões com o ativismo local. Os recursos permitem a
habilidades interativas interpessoais e a capacidade de se mais pessoas se articul arem para expressar sua atitude
comunicar com os outros [off-line] (Kellner, 2000, p. 245). de repulsa às injustiças étnicas, sociais e econômicas em
grande escala. Os equipamentos informáticos portátei s
Para o autor, a cibercultura importa porque é um c domésticos permitem o desvio em relação às agendas
campo aberto ao surgimento de um espectro de opiniões estatais e corporativas, via a construção de redes libera-
bem mais amplo do que o até agora conhecido no mundo das de su~s injunções, de novos espaços e movimentos
da mídia, de novos modos de comunicação política, reais de oposição ou, ainda, via o encorajamento que elas
e virtuais. Existem exemplos e razões para "se ter esperan- dão ao debate e análise crítica da mídia, tanto quanto
ça na emergência de uma ecologia mídiática fornecedora para o surgimento de novas formas de j ornalismo.
de ferramentas capazes de fortal ecer a comunidade e a de-
mocracia entre seus usuários". A presença de movimentos Porém, cabe lembrar que esse processo também tem sido uma
revolucionários e de contestação social, para não falar dos revo lução que promove e desenvolve a sociedade de consumo
capitalista, o individualismo e a competição, estabelecendo

68 69
novas fonnas de fetichismo, servidão c domínio, ainda para filosofia da técnica, de 2006. Retomando a tradição
serem melhor percebidas e teorizadas (2004, p. 93). marxista, ele, com efeito, observa ali, de passagem,
que, apesar dos meios técnicos serem objetos de apro-
Kcllner tira de tudo isso a conclusão, várias vezes priações e disputas políticas e econômicas que não
repetida em seus artigos, de que a "a internet é um teneno nos permitem elaborar um juízo a seu respeito em ter-
disputado, que a esquerda, a diJ:eita e o centro usam para ! mos esscncialistas, nossa relação com esses meios e a
promover suas próprias agendas e interesses" (Kellner, f própria técnica não {Çpu~amente- co~tingente--ou total-
1999, p. 199). A cibercultura não é, como seus meios, in-
tiinsecamente participatória e democrática, visto que nela I mente indeterminada. -- · . ·

se confi·ontam forças sociais de todos os tipos. Os coleti-


vos progressistas e as subculturas se a1ticulam mais e me-
lhor agora, mas quem tem a hegemonia nos seus fluxos
!t Depois de séculos de uso, os seres humanos se tornaram
seres técnicos: as tecnologias se tomaram extensões das
faculdades humanas, que por sua vez modelam o pensa-
mento, a conduta e a interação entre eles. A tecnologia está
de inf01mação e saber são as forças reacionárias e con-
ser-vadoras. O fenômeno se articula confonne o tiÚno ·e as
circunstâncias de seus embates e confrontos.
I embebida na aventura humana de modo radical desde o seu
início, portanto (Kellner, 2006, p. 54).

A intemct tem se desenvolvido em meio aos pro- OcotTe que, assim sendo, encontramo-nos numa
jetos de entidades políti.cas e grupos sociais provenientes situação em que, para a maior parte de nós, a questão
de todo o espectro do campo político-ideológico, para não do sentido da técnica, obviamente derivado de muitos
falar do papel que, em sua expansão, possuem as corpora- outros fatores que não ela mesma, como o próprio autor
ções multinacionais c os grandes interesses econômicos. reconhece, é resolvida pela história. Ou seja, a posição
que ela ocupa na sociedade é possuidora de uma ten-

Il
Por isso, embora reconheçamos que é preciso enumerar os dência dominante, a despeito das contestações de que
usos políticos progressistas da internet, também reconhece-
mos que isso não nos livra da tarefa de criticá-la e teorizá-la
essa posição possa ser alvo, sem que isso importe em
como instrumento e extensão do tecnocapitalismo global monolitismo de sentido ou impossibilidade de mudan-
(Kellner, 2005, p. 83). ças em sua trajetória.
Feenberg tem isso bem claro, pensamos, ao ob-
De nossa parte, cremos que o próprio o autor servar que, na atualidade, a ati vj_dad~ técn ica é un}_Qf.g-
sugere uma forma de sair de sua relutância em profc.rir c~S~.Q. atr!lvés_.Q.Q__q!:!al a_9-~~<j~~lY§..f!~u em ~i tal,
um juízo histórico mais firme sobre o significado da pass~~lY.i!:-ªQ..~.~tema ~_ital ista:.A tecnologia se-
cibercultura e, ass im, evitar pronunciamentos muito gue sendo disputada, mas, em última instância, é uma
óbvios e, portanto, vazios sobre o assunto, como sua força modelada pelo capital e que, como tal, "privilegia
conclusão de que a internet é um terreno disputado os objetivos estreitos da produção visando ao lucro"
por todas as frações políticas, em seu a1iigo sobre a (1999, p. 222).

70 71
A concepção e o emprego dos objetos técnicos
são, pelo menos em nossa época, um processo guiado
pela necessidade de minimizar os custos, baratear a for-
ça de trabalho, enfrentar a competição com outras em-
presas, explorar mercados de consumo etc. O capitalis-
mo é, pois, o poder subjacente à sua crescente presença
na vida cotidiana, o elemento que, embora interagindo
dialeticamente com ela, inclusive no tocante aos seus
eventuais usos alternativos e emancipatórios, determi-
na sua exploração por parte da sociedade e inclusive
circunscreve radicalmente as perspectivas de reflexão
que dela podemos dispor ( cf. Gunkel, 2007).
Por isso tudo, concluímos, a cibercultura deve
ser vista, sem espanto, como uma formação em que,
em vez do império da técnica ou da espontaneidade hu-
mana, o que predomina, como elemento articulador de
suas experiências, é a f.2rl1!_.~~_ru.l.or.ia. A comunica-
ção on-line, a flânerie digital e a sociabilidade virtual
não somente se inscrevem em um sistema mercantil,
mas são por ele mediadas desde a raiz, visto que seus
sujeitos, antes mesmo de fazerem qualquer contato ou,
como se diz, interagirem, via de regra são já os sujeitos
que criaram a prática de uma indústria cultural oriunda
do início do século XX.

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