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E AGONISMO
Leno Fran cis co Da n n er
Marcu s Vin íciu s Xav ier de Ol i vei ra (Orgs . )
DEMOCRACIA
E AGONISMO
1ª Edição
São Carlos / S P
Editora De Cas t ro
2022
Copyright © 2022 dos autores.
Apresentação ........................................................................... 7
1
Elementos para uma metateoria da democracia
Delamar José Volpato Dutra .................................................. 11
2
Democracia, desacordos morais e o conflito entre tradição e
pluralismo político
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira ....................................... 39
3
Crises da democracia liberal e limites democráticos no Brasil
Afonso Maria das Chagas
Patrícia Mara Cabral de Vasconcellos ................................... 67
4
Amazônia nas disputas pela memória em um contexto de
pós-verdade: da utopia autoritária à distopia cognitiva
Aparecida Luzia Alzira Zuin
César Augusto Bubolz Queirós ............................................. 87
5
Dimensões conceituais, emancipação colonial e
empoderamento do “sujeito político ribeirinho” amazônida
Layde Lana Borges da Silva
Thais Bernardes Maghanini
Karina Rocha Prado .............................................................. 127
6
Ensaio sobre a identidade conservadora e o agonismo
democrático brasileiro
Carlos Alexandre Barros Trubiliano ..................................... 143
7
Criticismo social como práxis política: teoria social crítica,
participação política e transformação social-institucional
Leno Francisco Danner
Fernando Danner
Agemir Bavaresco ................................................................. 167
8
O conceito de vida boa nas filosofias aristotélica e ricoeriana
como uma ferramenta para viver bem em sociedade
Deborah Christina Biet de Oliveira .................................... 217
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1 - Apud CHRISTENSEN, Ralf. In: MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo? A Questão Fundamental da Democracia.
Tradução de Peter Neumann. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 44-45.
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1
Elementos para uma metateoria
da democracia
Delamar José Volpato Dutra
Introdução
1 - Nesse sentido, as perspectivas libertárias tendem a dar um peso maior aos direitos individuais do que aos direitos
políticos. Disso resulta um conceito de democracia, no máximo, instrumental, ou seja, como garantia da liberdade
individual, como, aliás, já aparece no texto de Constant (1819): “La liberté individuelle, je le répète, voilà la véritable
liberté moderne. La liberte politique en est la garantie”. O próprio Habermas admite que se o Estado de direito for
compreendido como aquele que protege a liberdade negativa, ele é possível sem democracia (HABERMAS,1997a,
p.294), dito claramente, muito embora a autonomia pública possa ter um valor intrínseco para muitas pessoas, ela
aparece primeiro como um meio para realizar a liberdade privada (HABERMAS, 1998, p. 101), razão pela qual o seu
intento foi o de: “(...) provar a existência de um nexo conceitual ou interno entre Estado de direito e democracia, o
qual não é meramente histórico ou casual” (HABERMAS,1997a, p. 310).
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Modelos de democracia
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A querela da economia
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2 - A economia constitui-se num ponto central da democracia nas análises de Habermas, mesmo do Habermas tardio,
do que é ilustrativo o seu livro Na esteira da tecnocracia, cujo Capítulo 7 vem justamente intitulado Democracia ou
capitalismo? Já Hayek (1973) registrara um conflito irreconciliável entre a democracia majoritária e o capitalismo (p. 7).
Hayek, sabidamente, vai se alinhar com a concepção de democracia liberal. Habermas, por seu turno, não se alinha à
democracia majoritária.
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Isso remete, uma vez mais, ao fato de a política não ser pensada como
um jogo de soma zero (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 193). Trata-se a bem da
verdade de repensar os conceitos de liberdade e de igualdade de uma forma
diferente da interpretação capitalista (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. XV).
De se perguntar, no entanto, na perspectiva defendida por Miguel,
segundo a qual não cabe o entendimento discursivo como cariz próprio da
democracia, se é possível até mesmo a hegemonia sustentada por Mouffe,
pois tal conceito pressupõe a aceitação de um núcleo ético básico univer-
sal, justamente o que permite a passagem do inimigo da guerra para o ad-
versário da política, como se verá. Deveras, Miguel nega a possibilidade de
determinações universais que poderiam anteder a todos, já que tudo seria
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Desse modo, a legitimidade porta conexão com o poder, não com ar-
gumentos. A política é vista como ligada à ordem, de tal forma que a hos-
tilidade é domesticada e o antagonismo contido. Ou seja, o outro deixa de
ser um inimigo e passa a ser um adversário: “Um adversário é um inimigo,
mas um inimigo legítimo, com quem temos alguma base comum, em virtu-
de de termos uma adesão compartilhada aos princípios ético-políticos da
democracia liberal: liberdade e igualdade” (MOUFFE, 2005, p. 20). Porém,
esclarece ela, discorda-se em relação ao sentido e à implementação de tais
princípios, sendo que tal desacordo não se resolve por deliberação: “De fato,
dado o pluralismo inerradicável de valores, não há solução racional para o
conflito – daí a sua dimensão antagonística” (MOUFFE, 2005, p. 20). Então,
como evitar que o antagonismo leve à guerra? Tal se dá por compromissos
temporários, aos quais chegar-se-ia não por deliberação, mas por conversão:
“Aceitar a visão do adversário significa passar por uma mudança radical de
identidades políticas. É mais uma espécie de conversão do que um proces-
so de persuasão racional (do mesmo modo que Thomas Kuhn argumentou
que a adesão a um novo paradigma científico é uma conversão)” (MOUFFE,
2005, p. 20). O que se consegue, portanto, não é um consenso sem exclusões,
mas um consenso conflitivo (MOUFFE, 2005, p. 21). Ou seja, muito embo-
ra haja certo consenso e lealdade em relação aos valores ético-políticos da
liberdade e da igualdade, tais princípios teriam interpretações diferentes e
conflitantes: “Idealmente, tal confrontação deveria ser observada em tor-
no das diversas concepções de cidadania que correspondem às diferentes
interpretações dos princípios ético-políticos: liberal-conservadora, social-
-democrata, neoliberal, radical-democrática e assim por diante. Cada uma
delas propõe a sua própria interpretação do “bem comum” e tenta imple-
mentar uma forma diferente de hegemonia” (MOUFFE, 2005, p. 21). Desse
modo, a hegemonia é o que se pode pôr no lugar de uma falha, de algo que
não pode ser preenchido, de uma totalidade ausente (LACLAU; MOUFFE,
2001, p. 8), mas que precisa vigorar: “The concept of’hegemony will emerge
precisely in a context dominated by the experience of fragmentation and by
the indeterminacy of the articulations between different struggles and sub-
ject positions” (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 13).
Apesar dos arroubos ao longo do texto, Miguel, na conclusão do seu
trabalho, chega aproximadamente a um mesmo resultado, aquele que põe
ao centro o conflito, mas sem deixar de dar o devido peso à liberdade indi-
vidual (MIGUEL, 2013, p. 305-307).
IV
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mental. Ele é aquilo que não pode ser incluído no todo do qual faz parte, e
não pode pertencer ao conjunto no qual já está desde sempre incluído [...]
é a fonte pura de toda identidade, e deve, porém, continuamente redefinir-
-se e purificar-se através da exclusão, da língua, do sangue, do território”
(AGAMBEN, 2002, p. 184).
Redefinida de forma existencializada como uma identidade homo-
gênea que se sustenta em relação a outras identidades, a partir da relação
amigo-inimigo que é a intensidade máxima dos vínculos entre os homens,
ou seja, o seu caráter propriamente político, o contraste com o liberalismo
e o estado de direito devem patente e implica que “As áreas até então ‘neu-
tras’ – religião, cultura, educação, economia – deixam então de ser ‘neu-
tras’ no sentido de não-estatal e não-político” (SCHMITT, 1992, p. 47). As-
sim, não há que se falar em nada que fique fora do político, especialmente
a economia. Não há que se falar em economia liberada do Estado ou este
liberado daquela (SCHMITT, 1992, p. 50).
De acordo com Schmitt, só haveria dois princípios político-formais:
identidade e representação. O Estado, como o próprio nome sugere, é o
status, a situação, de um povo como unidade política. Pressupõe homoge-
neidade e identidade que, por não poderem nunca ser reais, sempre impli-
cam certo grau de representação, pois nunca é o povo todo que participa
do governo (SCHMITT, 2003, p. 205). Os burgueses lutavam contra toda
espécie de absolutismo estatal, contra a democracia, a identidade extrema,
e contra a monarquia, a representação extrema (SCHMITT, 2003, p. 215).
Para Schmitt, é ponto extremo de dúvida que o método estatístico de
contagem de votos faz desaparecer a substância da igualdade democrática.
Ainda que seja o voto que torne democrática a eleição, a escolha (SCH-
MITT, 2003, p. 250), não há uma correlação entre número e substância de-
mocrática. Por isso mesmo, anota Schmitt, Rousseau pôde afirmar não ser
democrático que noventa corrompidos dominem sobre dez honestos, pois
desaparecida a substância democrática, ou seja, a virtude, nem a unanimi-
dade serviria para coisa alguma (SCHMITT, 2003, p. 246).
Os princípios políticos da representação e da identidade são impor-
tantes para se compreender por que é mista a forma de governo que rea-
liza o Estado de direito, haja vista o princípio da identidade ser imune à
possibilidade de controle: “Pufendorf’s formulation should be quoted: In a
democracy, where those who command and those who obey are identical,
the sovereign, that is, an assembly composed of all citizens, can change
laws and change constitutions at will; in a monarchy or aristocracy, ‘where
there are some who command and some who are commanded,’ a mutual
contract is possible, according to Pufendorf, and thus also a limitation of
state power” (SCHMITT, 2000, p. 14-15).
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3 - “Schmitt admira a Hobbes a la vez que lo critica. Celebra en Hobbes al único teórico político de rango que en el
poder soberano reconoció la sustancia decisionista de la política estatal. Pero también lamenta al teórico burgués que
se arredra ante las últimas consecuencias metafísicas y que, contra su voluntad, se convierte en antecesor del Estado
de Derecho tal como lo entiende el positivismo jurídico” (HABERMAS, 2007, p. 69).
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social order. The state, as such, is both the greatest human for-
ce and the highest human authority (STRAUSS, 1965, p. 194).
4 - Como já mencionado, o conceito de representação é central, não só para a democracia, como para a política.
Constant (1819) apontou para a necessidade da representação como verso da medalha do que ele nominou a liberdade
dos modernos, haja vista não mais se poder exigir uma dedicação prioritária das pessoas à vida política, à liberdade
pública. Para Schmitt (2003, p. 206), “(N)ão há Estado algum sem representação”. De acordo com Miguel (2014, p.
13), “[...] a representação política é incontornável para qualquer tentativa de construção da democracia em Estados
nacionais contemporâneos”.
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5 - O positivismo tende a ser desidratado de conteúdo ou tende a reduzir este a um mínimo, como em Hart. Não por
outra razão, Habermas (2003) chama a atenção para o caráter processual do positivismo. Nesse diapasão, devido a ter
acentuado o aspecto assecuratório do positivismo, Schmitt não viu as possíveis conexões com a democracia majoritária,
decorrente de outro aspecto saliente do positivismo, a discricionariedade. Na verdade, Schmitt tendia a localizar a
discricionariedade no âmbito político e não no âmbito jurídico. Não obstante, com a eclipse da política, diagnosticada
pelo próprio Schmitt, a discricionariedade ou a decisão tem migrado cada vez mais para o âmbito da discricionariedade
do direito. Hayek (1973), a seu modo, percebeu bem esse aspecto: “And since the theoreticians of democracy have for
over a hundred years taught the majorities that whatever they desire is just, we must not be surprised if the majorities
no longer even ask whether what they decide is just. Legal positivism has powerfully contributed to this development
by its contention that law is not dependent on justice but determines what is just” (p. 12).
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Como visto, os vários modelos tecem severas críticas uns aos outros.
Por exemplo, o modelo agregativo recebe críticas no sentido de o modelo
econômico de tomada de decisão, que está em sua base, ser problemático
para o campo político. O problema do modelo de Schumpeter seria o seu
caráter formal e restrito ao direito de votar. Teria um déficit epistêmico
concernente à liberdade, à igualdade e à economia em face da necessidade
de lhes dar um sentido mais substantivo, o que, por certo, faz com que os
elementos povo e poder tenham um papel mais destacado.
A teoria agônica, por sua vez, tece severas críticas ao modelo deli-
berativo. Não obstante, ela mesma reconhece que nem tudo é hegemonia
ou poder quando apela ao chamado núcleo ético-político da igualdade e da
liberdade. Por seu turno, o problema do modelo homogêneo é o exagero na
politização no sentido do conflito. Teria um déficit epistêmico no sentido
de que as decisões parecem estar alicerçadas apenas em um voluntarismo
aclamatório. Por outro lado, o modelo deliberativo é forçado a assumir que
nem tudo é deliberação no sentido estrito do predomínio do discurso, ou
seja, do melhor argumento, pois há negociações, as quais envolvem rela-
ções de poder e hegemonia.
Uma das mais duras críticas endereçadas ao modelo deliberativo é
que não seria realista e de que não levaria a sério os conflitos. Sem em-
bargo dessa crítica, veja-se, a propósito, o que Rawls afirma a respeito do
intolerante, no limite, ele tem que ser combatido. Os cidadãos que seguem
os princípios de justiça podem forçar os intolerantes a respeitar a liber-
dade dos outros (RAWLS, 1999, p. 192). Habermas, por seu turno, também
parece ter clara consciência dos limites da realidade, tanto que foca gran-
demente na coerção jurídica contra a força dos sistemas. Ademais, tem
claramente presente o problema do dissenso, do conflito, senão veja-se.
Uma das objeções de McCarthy à sua teoria é justamente que ela
não distinguiria conflitos mais importantes do que aqueles categorizados
por Habermas como conflitos de interesses motivados estrategicamente.
Haveria pelo menos mais dois tipos (MCCARTHY, 1991, p. 196). O primei-
ro diz respeito ao conflito que pode haver entre o bem comum e a econo-
mia. Ou seja, a disputa não é entre interesses particulares. Essa seria uma
disputa ético-política. O segundo tipo de desentendimento é mais grave,
pois concerniria ao que Habermas chama conflito moral, ou seja, a algo
que deveria vincular a todos igualmente. Ele apresenta quatro exemplos:
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6 - Essa oposição pode, ainda, vir marcada por diferentes visões de mundo, como aquela de muitos religiosos que
acreditam: “First, God created the universe. Second, God created the universe for a purpose, and with a design or
plan for achieving that purpose. Third, God’s purpose for the universe is a supremely and inclusively good purpose –
good in the sense that it involves the achievement of the blessedness of God’s creatures. This framework of beliefs
about life and the universe is vastly different from a secular framework, which instead views life largely as a fortunate
(or perhaps unfortunate) accident without any encompassing purpose or plan” (SMITH, 2014, p. 1350). De se anotar
que já Coulanges (2009) apontava para o diagnóstico de que a crença religiosa, muito embora uma criação humana,
seria mais forte do que os seus criadores, pois o homem acaba submetido ao seu pensamento: “il est assujetti à sa
pensée” (163). O único reparo é que Coulanges aplicava esse diagnóstico ao homem antigo, não ao moderno. Sem
embargo, as discussões políticas do século XX parecem sufragar a ideia de que o homem contemporâneo se encontra
tão submetido à religião, quanto ao antigo, ao menos no que concerne à religião ser um elemento importante no
debate político contemporâneo.
7 - Uma tese que relembra um ponto suscitado por Sandel (1998), quando afirma que os membros de uma sociedade
“[…] conceive their identity- the subject and not just the object of their feelings and aspirations- as defined to some
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extent by the community of which they are a part. For them, community describes not just what they have as fellow
citizens but also what they are, not a relationship they choose (as in a voluntary association) but an attachment they
discover, not merely an attribute but a constituent of their identity” (p. 150).
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Referências
8 - Nesse particular, o projeto da democracia deliberativa de Habermas, com base em papel bastante expressivo
do direito positivo, inclusive como compensação pelas falhas de eticidade, contrasta com a versão honnethiana de
democracia em bases mais éticas que jurídicas (VOLPATO DUTRA, 2017). Honnetth parece ter operado, inclusive,
uma espécie de virada afetiva na teoria crítica. Mais que isso, o reconhecimento, no sentido da afetividade, acaba
galgado a fundamento da própria cognição do mundo (HONNETH, 2008, p. 40s). Analogamente à terminologia de
Darwall (1977), opera-se um deslocamento do reconhecimento como respeito moral e jurídico para o reconhecimento
como afeto [appraisal] (p. 39). De se destacar, inclusive, o modo como Honneth parece recepcionar, por um lado, a
crítica de Marx ao direito, mas sem dar, como Marx, o devido peso à economia. Por outro lado, ele parece reconstruir
ou atualizar a crítica de Hegel a Kant, contudo, dando o peso maior não ao Estado, mesmo que inflado eticamente,
mas preenchendo com afetos de amor e de estima o vácuo deixado pelas relações jurídicas e morais inquinadas de
patologia (HONNETH, 2015, cap. 4.3 e 5.3). Tendo em vista essa discussão, vale anotar essa frase atribuída a Martin
Luther King Jr: “It may be true that the law cannot make a man love me, but it can keep him from lynching me, and I
think that’s pretty important” (apud SCHAUER, 2015, p. 22).
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Há moralistas imoralíssimos.
Guerra Junqueiro
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1 - Hannah emprega a expressão “hiato de credibilidade” que se tornou em um “abismo” às mentiras contidas nos
famosos Documentos do Pentágono (HANNAH, 1999, p. 14).
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sição a elas, porquanto disso decorreria um conceito tão abstrato que não
teria qualquer relevância operativa.
A identidade constitucional tem, contemporaneamente, fundamen-
to em razões de moralidade política, tais como os direitos fundamentais,
o direito de igualdade (equal protection of Law) e a liberdade de expressão.
Contudo, estes fundamentos morais só têm relevância e operatividade num
contexto em que as identidades pré-políticas não são excluídas por defi-
nitivo, mas conformadas pela Constituição. Assim, o direito de igualdade,
por ser um conceito abstrato, somente tem operatividade se da sociedade
em concreto se poder aferir que tipo de igualdade necessita: meramente
formal (ou de oportunidades) ou a material (distributiva).
Disso decorre que a problemática do sujeito constitucional implica,
de um lado, na necessidade de se contrapor frente àquelas identidades pré-
-políticas (nacionalidade, étnicas, culturais e religiosas), ao mesmo tempo
em que ele as deve abarcar, pois o intérprete constitucional, quando da
concretização do texto constitucional, jamais se despirá de quaisquer des-
sas identidades que formam o seu caráter.
Em síntese, se ao se formar a identidade constitucional o constituin-
te se despisse de qualquer das identidades pré-constitucionais, mesmo as-
sim elas se esgueirariam para dentro através da interpretação feita pelo
intérprete nelas formado. Sob esse aspecto particular, como dizia Helmut
Coing, referindo famoso brocardo horaciano,
O direito tem que considerar esta natureza do homem se qui-
ser ser eficiente e evitar vicissitudes inúteis. O direito tem que
ter em conta as condições como em realidade são. Nisso radica
sua humanidade. Um direito que descure disso corre o perigo
de praticamente fracassar, e, em todo caso, provocará o desas-
tre e a desdita. A história conhece muitos exemplos nos quais
as exigências das leis foram em sentido contrário aos da natu-
reza, e todas estas leis fracassaram. O homem não pode, à lar-
ga, regulamentar contra a natureza das coisas. A proposição
“naturam expellas furca, tamen usque recurret” também vigora no
direito (COING, 2020, p. 189).
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2 - Esse precedente foi objeto de overruling (procedimento do Common Law pelo qual há uma superação do
precedente) pela Suprema Corte, em votação apertadíssima de 5 votos a favor e 4 contrários, no caso Obergefell
vs. Hodges, de 2015, pelo qual a Corte considerou que a vedação de que pessoas do mesmo sexo contraíssem
matrimônio violava às cláusulas do devido processo legal substantivo e da proteção igualitária pela lei, nos termos da
XIV Emenda. É importante lembrar que muitas Supremas Cortes estaduais já vinham reconhecendo o direito à união
homoafetiva em suas jurisdições estaduais.
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3 - “A frase de Goethe ‘natureza e arte parecem se evadir e se encontram da maneira mais inopinada’, nos transmite
uma tendência, mas não uma verdade última. Nos chamados países em desenvolvimento tem-se, todavia, consciência
de seu significado como fator de identidade. Neste sentido há que se estabelecer, com toda a seriedade e não
somente como exemplo humorístico, a pergunta de se os troncos de árvore, nos quais habitam os espíritos segundo
os chamados “povos selvagens” da África, merecem proteção nacional e internacional como patrimônio cultural”
(HÄBERLE, 2003, p. 10).
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Algumas conclusões
4 - Afirma-se atribuído porque a fonte indicada, a entrevista que Saramago deu a Ubiratan Brasil ao Jornal Estado de
São Paulo em 17 de outubro de 2009 não consta nem a pergunta nem a resposta... ESTADO DE SÃO PAULO. “Deus
não existe fora da cabeça das pessoas”. Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,deus-nao-existe-
fora-da-cabeca-das-pessoas,452076. Acesso em: 20 jul. 2020.
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5 - A referência ao princípio da universalidade pode ser compreendido a partir de duas acepções, uma estritamente
jurídica, isto é, enquanto princípio jurídico fundamental do Direito Internacional dos Direitos Humanos que ilide,
absolutamente, a exclusão de qualquer pessoa da esfera de proteção do direito, uma decorrência do direito à
personalidade jurídica, e de outra perspectiva desde a concepção habermasiana contida no princípio U. Com efeito,
Habermas, tomando por norte diferidor entre autonomia moral/razão prática e heteronomia/agir comunicativo,
objetivando solver a controvérsia em torno do problema do solipsismo moral kantiano, propõe o conhecido Princípio
U, segundo o qual “Todas as normas válidas tem que preencher a condição de que as consequências e efeitos
colaterais que previsivelmente resultem de sua observância universal, para a satisfação dos interesses de todo
indivíduo, possam ser aceitas sem coação por todos os interessados”. Em outros termos, numa sociedade democrática,
a condição de validade de uma decisão acerca da criação de uma regra não existe a priopri, uma vez que a ética do
discurso se propõe, somente, a oferecer procedimentos racionais para a sua criação (HABERMAS, 1989, p. 61-142).
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Referências
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cos), a perpetuação das elites nas esferas do poder e a presença das “forças
invisíveis”,1 atuando no interior do Estado.
É no campo e na dinâmica da atuação em que, por dentro do Esta-
do, aparelham-se verdadeiras “organizações criminosas”. Aqui, a ideia de
um Estado apropriado, na lógica de determinados interesses de grupos,
atuando de forma pouco transparente, isolando ou mitigando o controle
público, abrindo margens para a legitimação de processos de subversão da
coisa pública, mau uso de instrumentos e funções. Nota-se, nesta perspec-
tiva, que as formas obscuras do poder deveriam ser enfrentadas pela de-
mocracia, então disseminada pela sociedade, efetivando assim uma perene
vigilância a toda forma de oligopólio.
A ideia de “miliciarização”2 de setores do Estado encaixa-se neste fe-
nômeno. Trata-se do fato, não só da violência imposta, explícita ou simbóli-
ca, na roupagem estatal, mas também da adoção das estratégias corporativas
ou de bancadas, com recomendação e proteção de governos. Se as decisões
políticas escapam do controle público, se os arranjos em matéria de políti-
cas e programas efetivam-se a partir da lógica interna e institucionalizada,
distante do controle social, logo, estabelece-se um poder sob máscara e não
disciplinado pela transparência (BOBBIO, 2000). Nestes casos, o que ampa-
ra um governo de coalização configura-se muito mais a uma plataforma de
favores recíprocos que a uma gestão de interesse público.
O resultado consequente desta crítica é que a educação para a cida-
dania ativa, em sintonia com o próprio exercício da democracia, não foi
desenvolvida. O que tem ocorrido é uma apatia e uma desafeição política,
por parte da população, uma vez que o voto acaba sendo a forma de parti-
cipação política mais visível e institucionalizada.
Embora uma crise da democracia não implique em crise do capita-
lismo, é incongruente pensar que a democracia não vivenciaria crises ao
conviver com um sistema econômico como o capitalista, o qual, em essên-
cia, diverge de seus princípios básicos. Como expressa Przeworski (2020), a
1 - Bobbio desenvolve a ideia de que ao lado de um Estado visível, forças invisíveis coexistem com a mesma força e
dinamismo. Esta invisibilidade diz respeito à ausência de transparência de ações estatais e ausência de publicidade
destas ações, inclusive em matéria administrativa. Assim, forças subversivas paralelas ao governo, ou com a sua
anuência, passam a praticar “ações invisíveis” sem que estas sejam reveladas pelo Estado. Neste sentido ainda, grupos
extremistas, em certas circunstâncias, se associam aos órgãos estatais, inclusive em órgãos de repressão, atuando em
grande liberdade. A esta forma de atuação destas forças secretas no interior do Estado, como uma verdadeira ameaça
à democracia, chama-se também de “criptogoverno” ou “criptopoder”.
2 - Compreende-se aqui por miliciarização de setores do Estado o trânsito deste poder que se organiza sob formas de
milícias, cartelizado, que não só opera disputa por territórios, mas se assume enquanto setores e forças políticas por
dentro do Estado, se alastrando, inclusive, sobre o tecido social. Ao contrário do tráfico, este é um poder que se elege,
portanto, é mais que um poder paralelo. Ainda que volte sobre a lógica da privatização da segurança, e, portanto, na
“fabricação e instrumentalidade do medo”, sobre pessoas e coletividades, esse poder tende a avançar na legitimidade
dentro do próprio Estado. Por isso, tão caro a tais segmentos algumas pautas como: armamentismo da sociedade,
legalização de práticas irregulares, como grilagem de terras públicas, excludentes de ilicitude no exercício da função
militar; militarização da educação, da segurança pública e outros setores púbicos, e uma série de medidas político-
legislativas alinhadas a um verdadeiro estado de exceção permanente.
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3 - Trata-se de teoria elaborada por Maria Eva Pignatta (2010) e Carlos Henrique Canesin (2008), evidenciando a
existência de variáveis explicativas de determinados fenômenos como um verdadeiro vetor de causalidade. Tal estudo,
também sob a influência da Escola Francesa de Relações Internacionais, aponta que, na compreensão das identidades
nacionais, estas forças resultam de um determinado arranjo de diversos fatores que influenciam no comportamento
de agentes políticos, classes dominantes e mesmo na formação discursiva hegemônica que compõem as relações
internas e externas destes atores. Por fim, podem se tratar de diversos fatores que coexistem e se interconectam,
como fatores geográficos, demográficos, econômicos, da mentalidade coletiva e correntes sentimentais.
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Considerações finais
Referências
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4
Amazônia nas disputas pela memória
em um contexto de pós-verdade: da
utopia autoritária à distopia cognitiva
Aparecida Luzia Alzira Zuin
César Augusto Bubolz Queirós
Introdução
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2 - Cf. Para Greimas e Courtès, no Dicionário de Semiótica, “Representação é um conceito da filosofia clássica que,
utilizado em semiótica, insinua – de maneira mais ou menos explícita – que a linguagem tria por função estar no
lugar de outra coisa, de representar uma ‘realidade’ diferente. As palavras não são então nada mais do que signos,
representações das coisas do mundo. As semióticas servem-se do termo representação, dando-lhe um sentido técnico
mais preciso [...] entender-se-á como construção de uma linguagem de descrição de uma semiótica-objeto; [...] juntar
investimentos semânticos a símbolos de uma linguagem formal” (2008, p. 419).
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A palavra utopia foi criada por Thomas Morus (ou Thomas More
como também é conhecido) que nomeia uma ilha imaginária e também
o título de sua principal obra: A utopia ou o tratado da melhor forma de
Governo (1516). Sabe-se que muitos autores consideram a obra de Morus
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SUJEITOS
• subcomponente do espaço tópico e oposto ao utópico (em que se realizam
as perfomances), o espaço é aquele em que se deenrolasm as provas
preparatorias ou qualificantes, em que se adquirem as competência (2008,
PARATÓPICO p. 362); espaço no qual o sujeito adquire competência para a ação (tanto
na dimensão pragmática quanto na dimensão cognitiva) (GREIMAS &
COURTÈS, 2008, pp. 361).
Aqui, iniciamos
Aqui, iniciamos a análisea sobre
análiseo sobre
espaçoo espaço
utópicoutópico (subcomponente
(subcomponente do
do espaço
espaço tópico) – a Amazônia. A Amazônia é o espaço utópico das narrati-
tópico) – a Amazônia. A Amazônia é o espaço utópico das narrativas que povoavam
vas que povoavam o imaginário dos antigos viajantes, cujas histórias sem-
o imaginário
pre dos
eramantigos
sobre viajantes, cujas
ouro, pedras histórias beleza,
preciosas, semprefonte
se contavam sobre obelas
da juventude, ouro,
e fortes amazonas. Daí uma das lendas mais persistentes e que motivou
pedras preciosas, beleza, fonte da juventude, belas e fortes amazonas. Daí uma das o
imaginário dos conquistadores, a do El Dorado.
lendas mais persistentes e que motivou o imaginário dos conquistadores – a lenda do
O El Dorado era um lugar fabuloso, situado em algum lugar
El Dorado. do noroeste amazônico; dele se contava ser tão rico e cheio de
tesouros
O El Dorado que,
era um segundo
lugar a lenda,
fabuloso, “o chefe
situado da tribo
em algum lugarrecebia por
do noroeste
amazônico; dele se contava ser tão rico e cheio de tesouros que, segundo a
lenda, “o chefe da tribo recebia por todo o corpo uma camada de ouro em pó
e a seguir
3 - Também denominada se banhava
de Semiótica Discursiva em um lago
ou Semiótica vulcânico” (SOUZA, 1994, p. 23).
Francesa.
– “Lá,
100 Preste João, Grão Khan ou as áreas contíguas ao Éden, aqui o Eldorado,
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4 - Ao longo de cerca de 250 anos de conquista e colonização portuguesa, muitos povos indígenas foram mortos pela
arma de fogo dos conquistadores e, sobretudo, foram dizimados pelas doenças contagiosas trazidas pelos europeus
(varíola, sarampo, catapora, gripe, tuberculose e doenças venéreas). Assim, as populações indígenas na Amazônia
foram reduzidas de maneira drástica. À época do primeiro contato europeu havia aproximadamente 5 milhões de
índios na bacia Amazônica, dos quais 3 milhões viviam no Brasil. Atualmente há apenas cerca de 430 mil indígenas
na Amazônia. Estimativa de John Hemming com base nos relatos dos primeiros contatos, nas taxas prováveis de
destruição e nos números e localização dos povos indígenas que sobrevivem.
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5 - Para a semiótica discursiva (francesa ou greimasiana), um texto pode ser analisado níveis, pelos quais se dá o
percurso gerativo de sentido, que se estrutura do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto. Tem-se,
assim, nesta ordem, o nível fundamental (ou profundo), o narrativo e o discursivo. Cada um desses níveis tem uma
sintaxe e uma semântica próprias; a sintaxe seria o mecanismo que ordena os conteúdos, e estes estariam no domínio
da semântica. No nível fundamental, que está apresentado aqui, tem-se mais especificamente, o que tratamos da
semântica fundamental, isto é, a significação se apresenta por uma oposição, por meio de estruturas fundamentais que
se opõem, seja no eixo do contrário (contrariedade) e no eixo do contraditório (contraditoriedade). GREIMAS, A. J.;
COURTÈS, J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Contexto, 2008.
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6 - Compreende-se por quadrado semiótico a representação visual da articulação lógica de uma categoria semântica
qualquer. A estrutura elementar da significação, quando definida – num primeiro momento – como uma relação
entre ao menos dois termos, repousa apenas sobre uma distinção de oposição que caracteriza o eixo paradigmático
da linguagem. [...]. Faz-se necessária uma tipologia das relações, por meio da qual se possam distinguir os traços
intrínsecos, constitutivos da categoria, dos traços que lhe são alheios GREIMAS, Algiras Julien; COURTÉS, Joseph.
Vários tradutores. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Contexto, 2008, p. 400. Título original, Sémiotique,
dictionnaire raisonné de la théorie du langage.
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7 - Cf. Para Greimas e Courtès, o termo isotopia foi tomado do domínio da físico-química e o transferiu para a análise
semântica, conferindo-lhe uma significação específica, levando em consideração seu novo campo de aplicação.
De caráter operatório, o conceito de isotopia designou, inicialmente, a iteratividade, no decorrer de uma cadeia
sintagmática, de classe, mas que garantem ao discurso enunciado a homogeneidade. Assim acontece com a categoria
sêmica que subsume os dois termos contrários: levando-se em consideração os percursos os quais podem dar origem,
os quatro termos do quadro semiótico que serão denominados isotópicos.
8 - S1 e S2, utilizados aqui, é a abreviatura para sujeito 1; sujeito 2, nos termos da semiótica discursiva. Sobre esses
sujeitos seguem-se as análises seguintes.
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9 - Cultura é um sistema semiótico, um sistema de textos, e, enquanto tal, um sistema perceptivo, de armazenagem e
divulgação de informações. Como os processos perceptivos são inseparáveis da memória, na estrutura de todo texto
se manifesta a orientação para um certo tipo de memória, não aquela individual, mas a memória coletiva. Cultura
é assim memória coletiva não-hereditária. Conceitos Centrais da Semiótica da Cultura. Disponível em: http://www.
pucsp.br. Acesso em: 18 jul. 2018.
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Fonte: https://www.brasil247.com/brasil/bolsonaro-diz-que-e-men-
tira-que-a-amazonia-esteja-em-chamas-ou-sendo-desmatada.
A pressuposta ausência de conhecimento do presidente ao argumen-
tar “mesmo por ser floresta úmida, não pega fogo”, possibilitou a disse-
minação de informações falsas e equivocadas sobre a natureza da floresta
amazônica, e, por isso mesmo, do fato da ciência usar de modo confortável
a informação sobre o assunto. Significa dizer que o tema do desmatamento
e queimada, ao ser tratado como “mentira” pelo governo federal, não está
condizente com os dados apresentados pelo Instituto Nacional de Pesqui-
sa Espaciais (INPE), de notório reconhecimento cientifico mundial, pro-
movendo, desse modo, a desinformação em vistas à distopia cognitiva.
Intitulado “Efeitos de cenários de mudanças climáticas e de
uso do solo na probabilidade de fogo durante o século 21 na
Amazônia brasileira” (Effects of climate and land-use chan-
ge scenarios on fire probability during the 21st century in the
Brazilian Amazon), o trabalho mostra que as futuras conver-
sões de floresta para usos agropastoris não manejados adequa-
damente podem causar um aumento de mais de 70% na ex-
tensão de áreas com alta probabilidade de fogo no final deste
século em relação aos padrões observados.
Este cenário inclui, por exemplo, a redução da efetividade das
áreas protegidas, a pavimentação de novas rodovias e o au-
mento do desmatamento. Quando combinado com o cenário
pessimista de mudança climática do CMIP5 do IPCC, que
projeta maiores emissões de gases de efeito estufa (GEE) ao
longo do século 21, a área com alta probabilidade de incêndios
poderia aumentar em até 110% (INPE, 2019).
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Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50215491.
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Fonte: https://www.bbc.com/news/world-latin-america-49433767
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11 - Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 do Desenvolvimento Sustentável. Disponível em:
https://gtagenda2030.org.br/2018/06/11/informacao-para-alcancar-o-desenvolvimento-sustentavel/. Acesso em: 3
jan. 2021.
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Fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/
brasil/2020/09/4874653-não-video-falso-salles-volta-a-afir-
mar-que-a-amazonia-não-esta-queimando.html
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Fonte: https://www.moneytimes.com.br/bolsonaro-volta-a-se-refe-
rir-ao-coronavirus-como-gripezinha-e-criticar-governadores-por-
-restricoes/
Para as organizações que atuam na área de acesso à informação, o
destaque do artigo 19, da Agenda 2030, é importante para o desenvolvi-
mento sustentável e humano. O objetivo deste artigo só será alcançado se
estiver “calcado nos valores da boa governança e transparência, de modo
que todas as pessoas exerçam maior controle social das instituições públi-
cas e participem ativamente da vida política” (GTSC/A2030; 2018).
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Fonte: https://susanalitico.saude.gov.br/extensions/covid-19_html/
covid-19_html.html
Todavia, por meio dos mecanismos de contrainformação/negacio-
nismo governamental, não há comunicação promotora da vida e da saúde
pública, da prevenção e proteção contra os danos ambientais, mas a ins-
tauração da distopia cognitiva no Brasil. Devido a esse projeto necropo-
lítico e de cultura de morte, hoje o país enfrenta a pior crise sanitária do
século XXI com mortes e sem previsão de soluções urgentes. Do mês de
março de 2020, do pronunciamento do presidente da República, em cadeia
nacional, subestimando o perigo do coronavírus e não promovendo nenhu-
ma política em vista às medidas sanitárias necessárias para proteção da
população, o Brasil chegou ao número de 266.398 mortos, com 11.051.665
casos acumulados, até o dia 09 de março de 2021.
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Fonte: https://susanalitico.saude.gov.br/extensions/covid-19_html/
covid-19_html.html
Dentro do espectro político e da vida pública, destaca-se que não há
como fugir das regras o presidente da República e seu quadro ministerial.
Para tal, é necessário garantir um contexto em que o fluxo de informações
de interesse público seja livre de qualquer barreira e que a proteção à li-
berdade de expressão e associação seja prioridade do Estado Brasileiro.
A distopia cognitiva, em resumo, pode ser tal a utopia autoritária. Como
resume Buey (2007, p. 218): “En términos morales la distopia es solo la otra
cara de la utopía: la otra forma de reaccionar ante el malestar o el disgusto
que nos produce la civilización o el mal presente”.
Em um momento em que o país enfrenta um quadro pandêmico,
com a morte de mais de 266.398 pessoas, e convive cotidianamente com
práticas e discursos negacionistas de um governo que recusa a adoção de
medidas sanitárias de proteção e distanciamento social, o que provoca um
efeito nefasto em parcelas significativas da população de rejeição e con-
denação de tais medidas, a tarefa de analisar a necropolítica e a utopia
autoritária como chaves explicativas de um momento histórico marcado
pela emergência de um discurso fortemente autoritário e reacionário, que
condena veementemente os direitos humanos e nega direitos básicos de
uma cidadania conquistada, é verdadeiramente fundamental. Neste capí-
tulo, buscamos analisar alguns elementos que auxiliem na compreensão do
quadro político autoritário e distópico vivido pelo país desde 2016, o que
permitiu a ascensão política de um discurso populista de caráter misógino,
reacionário e autoritário.
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Referências
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Dimensões conceituais, emancipação
colonial e empoderamento do “sujeito
político ribeirinho” amazônida
Layde Lana Borges da Silva
Thais Bernardes Maghanini
Karina Rocha Prado
Introdução
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1 - Nesta obra, Sen afirma que “a necessidade econômica amplia a necessidade política, através de: 1) Sua importância
direta para a vida humana associada a capacidades básicas (como a capacidade de participação política e social); 2) Seu
papel instrumental de aumentar o grau que as pessoas são ouvidas quando expressam e defendem suas reivindicações
de atenção política (como as reivindicações de necessidades econômicas); 3) Seu papel construtivo na conceituação de
“necessidades econômicas” (SANTOS, 2013, p. 41). Por isso é que o desenvolvimento, em seus intrincados processos
irá demandar “que a pessoa tenha o direito de participação pública” não sendo alijada dos seus direitos de cidadão
num “sistema democrático”. O desenvolvimento como liberdade não pode “deixar de levar em conta essas privações”
(SEN, 2010, p. 207; SANTOS, 2013, p. 41).
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do poder político da comunidade que se viu afetada por alguma ação pú-
blica ou privada podem, antes, lançar mão dos meios de instrumentos de
pressão tais como a mídia, as ouvidorias, as assembleias, audiências públi-
cas, agendamento de reuniões com comissões, articulação junto às insti-
tuições, abaixo-assinados. Enfim, há um leque de medidas além de simples
manifestações que serão estudadas para se encontrar a melhor forma de se
fazer ouvir e representar.
O multiculturalismo oferece em certa medida um suporte à cons-
trução da Cidadania do Sujeito Político Ribeirinho porque “valoriza a di-
versidade enquanto uma forma de interação entre culturas diferentes e
operacionalização dos direitos humanos através de políticas públicas de
reconhecimento da diferença” (MELO, 2015). A cidadania é “a sensação
de pertencer a uma comunidade, de participar de valores comuns, de uma
história comum”, de língua, religião, história e experiências, como conse-
quência, gera-se um “sentimento de identidade coletiva”. O multicultu-
ralismo permite as diferenças culturais, ao que parece, desde que não se
insurjam contra a dignidade humana.
As pessoas devem ter direito de desfrutar de suas tradições e da “cul-
tura que escolherem” – cabe apenas ao povo ter a liberdade de opção, e não
que sua escolha seja “influenciada por governantes, religiosos ou espe-
cialistas culturais” (SANTOS, 2013). A cidadania perpassa pela “sensação
de pertencer a uma comunidade, de participar de valores comuns, de uma
história comum”, de língua, religião, história e experiências. E como con-
sequência, gera-se um “sentimento de identidade coletiva”.
Um dos aspectos mais importante do multiculturalismo é o
reconhecimento e valorização da diversidade de culturas den-
tro de um mesmo espaço geográfico. Decorrência direta desta
concepção é a valorização e o respeito à cultura local.
O multiculturalismo caminha no sentido contrário, ao pregar
a convivência harmônica entre condutas divergentes, preocu-
pando-se mais com a sociedade local, principalmente aquela
parcela menos privilegiada, visando a manutenção de culturas
que se encontram fragilizadas frente ao poderio econômico de
outros grupos (SANTOS; ALVES JÚNIOR, 2016, p. 226).
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3 - O multiculturalismo, segundo os teóricos, se direciona para o “localismo, que, ao se fazer presente, dá sentido à
produção local, negando a ideia de homogeneidade, porquanto, embora se possa dizer que a cidade é aberta e cosmopolita,
ela também precisa fixar signos de identificação” que sejam entendidos de forma comum (COSTA, 2012, p. 32).
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4 - As afirmativas de Fanon (1968) advém da descolonização francesa da Argélia, numa guerra pelo domínio da
identidade e do direito de ser cidadão africano e não europeu, como lhes queria o colonizador francês, que ao difundir
a cultura da metrópole asfixia a humanidade da colônia do africano, homem do terceiro mundo.
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Referências
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Ensaio sobre a identidade
conservadora e o agonismo
democrático brasileiro
Carlos Alexandre Barros Trubiliano
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Vale informar que o NUM somava 200 mil filiados espalhados por 130 mi-
nas de carvão por toda a Grã-Bretanha (DUNFORD, 2002).
Em 1983, Thatcher nomeia Ian MacGregor para presidir o National
Coal Board [Conselho Nacional do Carvão] (NCB). Coube ao novo gestor
implementar um programa de corte de custos, com dispensa de trabalha-
dores e fechamento das minas consideradas não lucrativas. Antecedendo
ao movimento grevista, o NCB gerou estoques preventivos de carvão; os
trabalhadores das minas consideradas lucrativas, como a Nottinghamshire
e as de Midlands, tiveram a garantia de manutenção de seus empregos caso
não apoiassem o NUM; o aparato policial recebeu treinamento para re-
pressão a práticas grevistas, e aos trabalhadores dispensados foi ofertado
um programa de indenização conforme o tempo de serviço (EVANS, 2004).
Mesmo com o planejamento da NCB, o NUM conseguiu por 16 me-
ses manter a greve; os grevistas fizeram piquetes e bloquearam as princi-
pais minas, dificultando o abastecimento de carvão. Entretanto, o cenário
de alta taxa de desemprego e de forte repressão estatal (policial e judiciária)
gerou medo na classe trabalhadora: o movimento, ao contrário de outras
décadas, não obteve o apoio de operários de outros setores. A recusa se
deu, sobretudo, devido às novas regras jurídicas que tornavam ilegal uma
categoria entrar em greve para apoiar outra (Employment Acts). Paulati-
namente, o movimento foi desarticulado – seus líderes foram processados
e vários deles, encarcerados (DUNFORD, 2002).
O triunfo do governo Thatcher sobre os grevistas foi além do êxito
de um programa de fechamento de minas com justificativa na lógica de
otimização mercadológica: derrotar o então mais poderoso sindicato do
país teve também um forte conteúdo simbólico. É importante informar
que o fim da greve ocorreu meses depois da vitória britânica na Guerra
das Malvinas; diante desses triunfos, Thatcher consolidou uma construção
imagética de força e liderança, fazendo valer a identificação da sua repre-
sentação como a “Dama de Ferro”. Pedagogicamente, a derrota do NUM
indicava aos outros sindicatos britânicos que era impraticável contestar
o governo, e que o neoliberalismo e o enfraquecimento dos direitos tra-
balhistas vinham como uma forte onda difícil de parar. Essa conjuntura
política não ficou restrita à Grã-Bretanha, mas influenciou todos os países
centrais do sistema capitalista global.
Governos da direita ideológica, comprometidos com uma for-
ma extrema de egoísmo comercial e laissez-faire, chegaram ao
poder em vários países por volta de 1980. Entre esses, Reagan e
a confiante e temível Sra. Thatcher na Grã-Bretanha (1979-90)
eram os mais destacados. Para essa nova direita, o capitalismo
assistencialista patrocinado pelo Estado nas décadas de 1950 e
1960, não mais escorado, desde 1973, pelo sucesso econômico,
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1 - Também pertence a Aquino a marca do boneco inflável conhecido como Pixuleco, uma caricatura do ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva com roupas de presidiário.
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2 - No início dos anos 1970, o governo Richard Nixon (EUA) lançou um conjunto de políticas de combate aos narcóticos
e ao narcotráfico que iam de reformas na legislação até ajuda e intervenção militar em países da América Latina. Tais
medidas ficaram conhecidas como “Guerra às Drogas”. Essa doutrina foi responsável por políticas de intervenção nas
favelas de todo Brasil, em especial no Rio de Janeiro e em São Paulo, e por balizar a Lei de Drogas (Lei 11.343/2006).
Segundo o relatório do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), em 2017, só os estados de São Paulo e Rio
de Janeiro gastaram, juntos, R$ 5,2 bilhões para aplicarem a Lei de Drogas. Disponível em: https://cesecseguranca.com.
br/wp-content/uploads/2018/04/ObservatorioInterve%C3%A7ao-PPT-26.04.2018-compressed.pdf.
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Deus”. Entretanto, ao longo dos anos 1990, “os bandidos voltaram ao controle
ostensivo do território; a ocupação policial acabou, mas Jesus ficou” (p. 71).
A pesquisadora não associa a atuação dos policiais como responsá-
vel direta pelo crescimento evangélico neopentecostal na favela. Todavia,
a imposição simbólica da religiosidade cristã em detrimento das práticas
religiosas outrora presentes e a associação dos traficantes às religiões de
matriz africana marcaram, de modo emblemático, uma mudança significa-
tiva nas mentalidades. Quanto à dominação do neopentecostalismo sobre
as demais religiosidades, o fenômeno se observa ao longo das primeiras
décadas do século XXI.
Ainda em referência à pesquisa de Cunha (2009, 2014), para os tra-
ficantes convertidos, estar na igreja, frequentar os cultos e participar das
campanhas religiosas modernizou as práticas sociais e pecuniárias. A
“nova fé” estimulava o controle dos impulsos violentos e a programação
financeira. Observou-se entre os “traficantes evangélicos” o progresso ma-
terial (individual); a mudança no comportamento mais capitalista estimu-
lou o acúmulo e a aquisição de bens fora da favela. Aos “novos cristãos”, os
pastores orientavam “guardar e largar essa vida”; a “teologia do domínio”
e da “batalha espiritual” transformaram os traficantes em “soldados do
senhor”, com a possibilidade de “redenção dos pecados”, ao mesmo tempo
que poderiam “mudar de vida” com acumulação de capital – essas benesses
seriam recompensas aos serviços prestados na “cruzada evangelizadora”.
Nesse cenário, estabeleceu-se uma relação de interesses e recipro-
cidades entre o neopentecostalismo e os traficantes. De um lado, a igreja
oferecia conforto moral e uma rede de contatos e proteção por meio dos
irmãos de fé. O discurso beligerante de “guerra santa” passou a conferir
respaldo moral aos traficantes convertidos, que embora ainda exercessem
atividades ilícitas, em tese incompatíveis com a vida cristã, estariam a ca-
minho da redenção e, portanto, da salvação. Por outro lado, a autoridade
dos traficantes dentro das favelas conferia aos pastores poder e influência
junto à comunidade. Neste contexto, por meio dessas alianças, as lideran-
ças evangélicas se tornaram expressiva força religiosa e política, seja no
âmbito das favelas, seja no âmbito municipal (CUNHA, 2009).
Capítulo à parte da aliança, os traficantes convertidos em “guerrei-
ros de Jesus” passaram a compreender a cosmologia das religiões de ma-
triz africana como o “mal encarnado”. Logo, com vistas à redenção dos
seus atos e em busca da purificação, os traficantes passaram a exercer coa-
ção sobre os terreiros, expulsando das comunidades mães e pais de santo e
proibindo qualquer manifestação religiosa que não fosse a cristã.
Compreendemos a guinada conservadora do deputado Alexandre
Frota e a conversão dos traficantes em “guerreiros de Jesus” como exem-
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política: teoria social crítica,
participação política e transformação
social-institucional
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não acontecem por acaso, senão que são resultado de ação reflexiva e in-
tencionada, de uma práxis que possui carnalidade e politicidade. Ora, isso
nos leva a percebermos a centralidade dos três momentos fundamentais,
dos três passos metodológico-programáticos basilares para a constituição
e para a realização do criticismo social enquanto práxis política: o objeto da
crítica, a práxis da crítica e o sujeito da crítica, que são (a) o campo do polí-
tico, isto é, a esfera da reprodução sociocultural, (b) o tipo de ação e/ou ca-
minho assumido politicamente para tal (e certamente o tipo de política que
poderia enquadrar, interpretar e transformar o horizonte da reprodução
sociocultural, a assim chamada Realpolitik) e (c) o sujeito epistemológico-
-político da práxis política, da transformação social. A tematização desses
três momentos imbricados e mutuamente dependentes também pressupõe
e implica no fato de que o âmbito teórico-político das ciências humanas
e sociais é normativo, ético-político, não cabendo aqui neutralidade, for-
malidade, imparcialidade e impessoalidade, muito menos tecnicalidade –
trata-se de um ideal regulador, este da neutralidade axiológica, da técnica
pura em termos de pesquisa e da impessoalidade do sujeito epistêmico-
-político, que não se coaduna com a pungência e a dramaticidade das lutas
sociais e dos sujeitos políticos em termos de Realpolitik, que não faz jus à
politicidade-carnalidade dos sujeitos epistemológico-políticos e de suas
lutas sociais em termos de Realpolitik.
O primeiro ponto central para entendermos o sentido, a constituição
e a dinamização do criticismo social, portanto, consiste na intrínseca cor-
relação e mútua dependência entre epistemologia e política, entre teoria e
prática, conforme dissemos acima, correlação e dependência entre teoria e
prática que representam uma já clássica noção na filosofia e na sociologia
acadêmicas desenvolvidas na Europa entre os séculos XIX e XX, e assumi-
das ainda hoje como mote basilar das investigações sociais e da fundamen-
tação-dinamização do campo do político por posições como a Escola de
Frankfurt (Adorno, Horkheimer, Marcuse, Habermas, Honneth, Forst, Ja-
eggi, Brunkhorst etc.) e a filosofia francesa contemporânea (Bataille, Fou-
cault, Derrida, Sartre etc.), principalmente quando se fala na continuação
daquela tradição filosófico-sociológica, profundamente imbricada com
movimentos políticos e revoluções sociais (pense-se na correlação esta-
belecida entre a filosofia francesa do século XVIII e a Revolução Francesa
de 1789, assim como na profunda conexão entre marxismo e movimentos
proletários desde meados do século XIX em diante ou mesmo o mútuo
suporte entre marxismo e Revolução Russa de 1917, ou o maio de 1968 e a
filosofia franco-alemã), assim como teorias pós-coloniais e decoloniais e
os movimentos de emancipação latino-americanos e africanos, e as teorias
ligadas às minorias – feministas, queer – e as lutas de grupos marginaliza-
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tudo, a classe social dá a ideia de uma ação coletiva, que aglutina dife-
rentes indivíduos e grupos sociais desde um objetivo normativo-político
e metodológico-programático comum, o que lhes confere, utilizando ter-
mos já clássicos para se compreender o conceito de classe social, vontade
e consciência comum, minimamente unitária em termos de ação episte-
mológico-política. A transformação social necessita de ação coletiva, de
amplo aspecto, exatamente pelo sentido macroestrutural da sociedade e
de suas instituições. Aquele ditado clássico, de que uma andorinha só não
faz verão, certamente possui muito sentido quando falamos em transfor-
mação social desde a práxis política, desde a participação política. As múl-
tiplas vozes e ações precisam assumir um ponto comum, uma dinâmica
comum: somente assim elas mudam comportamentos, direcionam sujeitos
epistemológico-políticos e, com isso, reorientam a constituição-atuação
das instituições. Segundo, a noção de classe social enquanto macrossujeito
epistemológico-político nos parece interessante por suas duas contrapo-
sições básicas. (a) Ela ataca diretamente a individualização e o anonima-
to dos sujeitos epistemológico-políticos, assim como sua consequência, a
impessoalidade e imparcialidade das instituições sociopolíticas. E (b) ela
recusa o caráter lógico-técnico, não-político e não-normativo dessas mes-
mas instituições sociopolíticas, de sua constituição, de seu funcionamen-
to, de sua programação e de sua administração ao longo do tempo. Ora,
tanto a individualização-anonimato dos sujeitos epistemológico-políticos
quanto o sentido lógico-técnico das instituições sociopolíticas levam a
uma poderosa – às vezes a uma definitiva – despolitização seja dos sujeitos
epistemológico-políticos, seja dessas instituições sociopolíticas, no senti-
do de que existiriam amplos campos e dinâmicas da reprodução social que,
por serem particularizados e impessoais, não poderiam ser enquadrados
político-normativamente, na medida em que são apenas lógico-técnicos e
particulares. Com isso, em se afirmando a individualização-anonimato dos
sujeitos epistemológico-políticos constituintes de uma dada sociedade e
a impessoalidade-imparcialidade das instituições dinamizadoras dessa
mesma sociedade, pode-se apontar – como o faz, por exemplo, o conserva-
dorismo – para o fato de que não se pode politizar totalmente a constitui-
ção, a legitimação e a evolução das instituições sociopolíticas e o enten-
dimento-atuação dos sujeitos epistemológico-políticos. Aqui, nem tudo é
político, nem tudo é política. Ora, mas quem determina o que é e o que não
é político, o que é e o que não é política? Esse é o ponto nodal: somente
de modo político-normativo e como luta-hegemonia baseada em motivos
político-normativos se pode definir o que é e o que não é político, o que é
e o que não é política. Não existe um fundamento essencialista e naturali-
zado que determine isso, e certamente os fundamentos – essencialistas e
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quência daquela correlação, o criticismo social como práxis política sai das
ruas e dos sujeitos epistemológico-políticos não-institucionais e é assu-
mido, centralizado e monopolizado pelas próprias instituições desde essa
perspectiva lógico-técnica, autorreferencial, autossubsistente, autônoma
e sobreposta em relação às ruas. Com isso, o institucionalismo torna-se
a arena político-programática, o paradigma crítico-normativo e o sujeito
epistemológico-político de si mesmo, da legitimação e do enquadramento
das classes sociais e de suas lutas e, por fim, de qualquer possível relação-
-ligação entre sistemas sociais e sociedade civil, elites-técnicos institucio-
nais e sujeitos epistemológico-políticos não-institucionalizados.
Essa forma de institucionalismo também elide, minimiza e apaga,
em grande medida, o papel da esfera público-política como lugar da práxis
epistemológico-política, ao tornar as instituições em autorreferenciais e
autossubsistentes, como estruturas-sujeitos lógico-técnicos que se auto-
nomizam e se sobrepõem a essa mesma esfera público-política, seus sujei-
tos epistemológico-políticos e suas lutas sociais. Essa forma de institucio-
nalismo, ainda aqui, solapa a práxis política espontânea e contraposta às
instituições constituída e dinamizada pela sociedade civil exatamente por
colocar o procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal interno
às instituições como a arena-práxis seja para a constituição-legitimação-
-evolução institucional, seja para, a partir daqui, pensar-se e problematizar-
-se a constituição-evolução social de um modo mais geral. Em ambos os
casos, a esfera público-política, enquanto arena e práxis político-normativa,
é enquadrada, periferizada e, ao cabo, substituída pelo institucionalismo
lógico-técnico, não-político e não-normativo, com seu procedimentalismo
apolítico, sem carnalidade. Nesse sentido, e ainda como consequência, as
classes sociais e suas lutas, próprias da esfera público-política, são mini-
mizadas e mesmo deletadas do horizonte do institucionalismo, que se con-
cebe exatamente como uma área-estrutura-sujeito puro, imparcial, impes-
soal, formal e neutro em relação a tais classes e suas lutas por hegemonia.
Desse modo, em primeiro lugar, os sujeitos epistemológico-políticos ins-
titucionalizados, com base naquele procedimento lógico-técnico objetivo
e apolítico, podem decidir em nome de todos e representando todos, para
além das classes sociais e de suas lutas. E, em segundo lugar, a esfera do
institucionalismo, sua constituição lógico-técnica, sua dinâmica procedu-
ral e seus sujeitos epistemológico-políticos neutros e impessoais aparecem
sobrepostos e autônomos em relação às classes sociais e suas lutas, com
capacidade para assumir – e, assim, prescindir – delas, periferizando-as,
suas pautas e sua luta, de forma a negá-las, minimizá-las. Nesse sentido, a
correlação entre instituições lógico-técnicas, procedimentalismo apolítico
e sujeitos epistemológico-políticos imparciais, neutros e impessoais leva
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O conceito de vida boa nas filosofias
aristotélica e ricoeriana como uma
ferramenta para viver bem em
sociedade
Deborah Christina Biet de Oliveira
Introdução
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Mas o que vem ser essa força? Os argumentos e as palavras não são
suficientes para causar mudança neste indivíduo que se deixa levar pelas
suas paixões.
Ora, se os argumentos bastassem em si mesmos para tornar
os homens bons, eles teriam feito jus a grandes recompen-
sas, como diz Teógnis, e as recompensas não faltariam. Mas
a verdade é que, embora pareçam ter o poder de encorajar e
estimular os jovens de espírito generoso, e preparar um cará-
ter bem-nascido e genuinamente amigo de tudo o que é nobre
para receber a virtude, eles não conseguem incutir nobreza e
bondade na multidão (ARISTÓTELES, 1991, p. 239).
Então o que deveria ser feito para que essa dureza ceda? O que é essa
força? Segundo o próprio Aristóteles, o homem só é capaz de mudar a si
mesmo quando está sob pressão: “O homem comum não obedece por natu-
reza ao sentimento de pudor, mas unicamente ao medo, e não se abstém de
praticar más ações porque elas são vis, mas pelo temor ao castigo” (ARIS-
TÓTELES, 1991, p. 239). O homem comum somente possui a capacidade
de agir diferente de sua natureza quando submetido às leis, pois não está
no homem praticar boas ações por vontade própria,
[...] pois levar uma vida temperante e esforçada não seduz a
maioria das pessoas, especialmente quando são jovens. Por
essa razão, tanto a maneira de criá-los como as suas ocupa-
ções deveriam ser fixadas pela lei; pois essas coisas deixam
de ser penosas quando se tornaram habituais. Mas não basta,
certamente, que recebam a criação e os cuidados adequados
quando são jovens; já que mesmo em adultos devem praticá-
-las e estar habituados a elas, precisamos de leis que cubram
também essa idade e, de modo geral, a vida inteira; porque a
maioria das pessoas obedece mais à necessidade do que aos
argumentos, e aos castigos mais do que ao sentimento nobre.
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Ricoeur também nos tem algo a dizer sobre a Vida Boa e ela está
totalmente ligada à sua perspectiva ética. Ricoeur utiliza-se de muitos con-
ceitos aristotélicos dentro de sua filosofia, e no sétimo capítulo de O Si-
-Mesmo como Outro, fragmenta a ética aristotélica dentro de sua Tríplice
estrutura da perspectiva ética que consiste na seguinte frase: viver bem
com e para os outros em instituições justas. Caracterizando-se, assim, sua
ética por finalidade e por objetivo a ser atingido, que é o Viver Bem, alcan-
çar a Vida Boa. Percebe-se aqui neste ponto que é o aspecto teleológico
de Aristóteles que se manifesta. O objetivo é que todos tenham uma Vida
Boa, e “Alcançar a realização pessoal significará o coroamento e o fim úl-
timo das ações” (GUBERT, 2014, p. 82).
Na filosofia de Ricoeur o Eu e o Outro detêm grande importância,
mas não se encontram apenas na filosofia do filósofo francês. O Outro
está presente também na filosofia de Aristóteles, nos livros VIII e IX da
Ética a Nicômaco. Outro possui o caráter mediador, dessa forma, Ricoeur
denomina a Amizade em Aristóteles como sendo o Tratado da Amizade.
Sobre a amizade, o próprio Aristóteles afirma: “É uma virtude ou implica
1 - Outra crença que se harmoniza com a nossa concepção é a de que o homem feliz vive bem e age bem; pois
definimos praticamente a felicidade como uma espécie de boa vida e boa ação. As características que se costuma
buscar na felicidade também parecem pertencer todas à definição que temos dela. Com efeito, alguns identificam a
felicidade com a virtude, outros com a sabedoria prática, outros com uma espécie de sabedoria filosófica, outros com
estas, ou uma destas, acompanhadas ou não de prazer; e outros ainda também incluem a prosperidade exterior. Ora,
algumas destas opiniões têm tido muitos e antigos defensores, enquanto outras foram sustentadas por poucas, mas
eminentes pessoas. E não é provável que qualquer delas esteja inteiramente equivocada, mas sim que tenham razão
pelo menos a algum respeito, ou mesmo a quase todos os respeitos (ARISTÓTELES, 1991, p. 17-18).
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E continua:
[...] o útil não é permanente, mas muda constantemente. E as-
sim, quando desaparece o motivo da amizade, esta se dissolve,
pois que existia apenas para os fins de que falamos. Essa es-
pécie de amizade parece existir principalmente entre velhos
(pois na velhice as pessoas buscam não o agradável, mas o útil)
e, dos jovens e dos que estão no vigor dos anos, entre os que
buscam a utilidade. E tampouco tais pessoas convivem muito
umas com as outras, pois às vezes nem sequer se veem com
agrado, e por isso não sentem necessidade de tal companhia, a
menos que sejam mutuamente úteis: o convívio só lhes é agra-
dável na medida em que despertam uma na outra a esperança
de algum bem futuro (ARISTÓTELES, 1991, p. 173).
2 - Solicitude e estima de si são conceitos basilares na filosofia de Ricouer. Solicitude é a característica de quem está
disposto a ajudar, daquele que é solícito. Enquanto a estima de si é mais que estimar a si mesmo, nesse conceito
apresentado por Ricoeur encontramos incorporados as três pessoas gramaticais: “eu”, “tu”, “nós”, de maneira que
estimar de si é na verdade estimar ao Tu e ao Nós.
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lio para resolver a dissimetria encontrada pelo filósofo francês, que seria a
passividade entre o si e o outro:
Neste sentido, partir do polo do si significa afirmar que ele
toma a iniciativa de poder-fazer e o faz por meio do desejo
de partilhar da dor dos outros. Neste caso, o outro se reduz à
condição de alguém que somente recebe a partir da iniciativa
de um si que é beneficente. Por outro lado, a mesma dinâ-
mica pode também ser percebida no movimento inverso do
outro para o si. Em ambos os casos, permanece um elemen-
to de passividade, pois não se verifica nenhuma troca mútua
(GUBERT, 2014, p. 83).
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Referências
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Sobre os Autores
Agemir Bavaresco
Doutor em Filosofia pela Sorbonne. Professor de Ética e Filosofia Política
no Departamento de Filosofia e no Programa de Pós-Graduação em Filo-
sofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
E-mail: abavaresco@pucrs.br
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Fernando Danner
Doutor em Filosofia pela PUCRS. Professor de Ética e Filosofia Política no
Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia
da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).
E-mail: fernando.danner@gmail.com.
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