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DEMOCRACIA

E AGONISMO
Leno Fran cis co Da n n er
Marcu s Vin íciu s Xav ier de Ol i vei ra (Orgs . )

DEMOCRACIA
E AGONISMO

1ª Edição

São Carlos / S P

Editora De Cas t ro

2022
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Conselho Editorial: Profª Drª Jucelia Linhares Granemann


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Faculdade de Educação – UFMG / FAE Universidade Federal de Rondônia – UNIR

Editor da Editora De Castro: Carlos Henrique C. Gonçalves


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Arte capa: Carlos Henrique C. Gonçalves
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Sumário

Apresentação ........................................................................... 7

1
Elementos para uma metateoria da democracia
Delamar José Volpato Dutra .................................................. 11

2
Democracia, desacordos morais e o conflito entre tradição e
pluralismo político
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira ....................................... 39

3
Crises da democracia liberal e limites democráticos no Brasil
Afonso Maria das Chagas
Patrícia Mara Cabral de Vasconcellos ................................... 67

4
Amazônia nas disputas pela memória em um contexto de
pós-verdade: da utopia autoritária à distopia cognitiva
Aparecida Luzia Alzira Zuin
César Augusto Bubolz Queirós ............................................. 87

5
Dimensões conceituais, emancipação colonial e
empoderamento do “sujeito político ribeirinho” amazônida
Layde Lana Borges da Silva
Thais Bernardes Maghanini
Karina Rocha Prado .............................................................. 127
6
Ensaio sobre a identidade conservadora e o agonismo
democrático brasileiro
Carlos Alexandre Barros Trubiliano ..................................... 143

7
Criticismo social como práxis política: teoria social crítica,
participação política e transformação social-institucional
Leno Francisco Danner
Fernando Danner
Agemir Bavaresco ................................................................. 167

8
O conceito de vida boa nas filosofias aristotélica e ricoeriana
como uma ferramenta para viver bem em sociedade
Deborah Christina Biet de Oliveira .................................... 217

Sobre os Autores ................................................................ 227


Apresentação

Há quem considere um regime democrático algo símile a um funeral


de um personagem importante. Palavras solenes, olhares contritos, conten-
ção nas ações e comportamentos, que são condições indispensáveis para se
prestar as exéquias a uma pessoa (muitas vezes nem tão) querida, admirada
ou respeitável em vida. Se lágrimas brotarem de forma espontânea, tanto
melhor. Se não, as carpideiras servem para isso mesmo. Mas como os figu-
rões somente morrem de quando em vez, o mesmo ocorre com esta concep-
ção de democracia, vale dizer, se circunscrever ao exercício do sufrágio ativo
e/ou passivo a cada dois anos, com o qual se outorga o mandato popular.
Encerrada a apuração, é possível ouvir os alto-falantes gritarem: “Circular,
circular, não há nada que se ver aqui! Vocês não têm que comprar pão e fei-
jão? Vocês não têm que trabalhar? Circular, circular...”.
Nessa modalidade de democracia, festa é somente aquela que se dá
entre os eleitos e seus correligionários, afinal, a máquina pública (pouco)
republicana está aí para enchê-los de privilégios e recursos que serão (ab)
usados em proveito próprio.
Além disso, por se aplicar no contexto brasileiro o princípio da liber-
dade do mandato, o eleito poderá, nos quatro anos em que o exercer, dar-
-lhe o destino que bem entender, “prestando contas” por meio da compra
de espaços publicitários nos meios de comunicação, de outdoors; e dos
alegres assessores que irão, 24 horas por dia, invadir as mídias sociais com
propaganda enganosa, ofensas aos adversários com fake news, calúnias,
difamações e injúrias as mais variadas, envenenando a vida social de uma
inimização constante, que é o caldo primordial dessa forma de democracia.
Há quem se conforme com isso; há quem aposte todas as suas fichas
nisso. Mas há aqueles que entendem que esse modo de viver o regime de-
mocrático é um arremedo que, conforme Marx, se dá, primeiramente como
tragédia, depois como farsa.
Os ensaios que compõem este livro, todos de professores e pesqui-
sadores brasileiros das mais diversas Universidades brasileiras, públicas
e privadas, e que amavelmente aceitaram o convite feito pelos organiza-
dores, demonstram o quão distante está a necrofesta da democracia com
relação àquilo que, de fato, poderia ser.

7
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Não se trata, conforme o distinto leitor observará, de idealizar a de-


mocracia e seus atores, pois se há algo que a teoria política aprendeu com
autores seminais como Maquiavel, Hobbes, Montesquieu, Schmitt et al. é
que a esfera do político, por ser um âmbito do “humano, demasiado hu-
mano”, se dá entre feras e não entre anjos. E como Augusto dos Anjos já
o dizia: “O homem, que, nesta terra miserável/ Mora, entre feras, sente a
inevitável/ Necessidade de também ser fera” (Versos Íntimos).
Contudo, mesmo as feras precisam ser domadas em seus institutos
se se quiser ter um modelo político-jurídico minimamente racional que
transforma a guerra de todos contra todos numa disputa regulada pelas
normas jurídicas em que o importante é proteger as “regras do jogo”.
Assim, no Capítulo 1 , o professor Delamar José Volpato Dutra apre-
senta o texto Elementos para uma metateoria da democracia, na qual ele
apresenta as diversas teorias sobre a democracia com a finalidade de “es-
crutinar alguns elementos cujo tratamento seria imprescindível para haver
uma teoria da democracia consistente e coerente”. No Capítulo 2 , Demo-
cracia, desacordos morais e o conflito entre tradição e pluralismo polí-
tico, o professor Marcus Vinícius Xavier de Oliveira discorre, ante à pers-
pectiva da democracia agônica, sobre os desacordos morais entre maioria
e minoria, bem como o papel moderador que o princípio do pluralismo
político, o Estado de Direito e os direitos humanos devem desempenhar
na solução desses conflitos. No Capítulo 3 , os professores Afonso Maria
das Chagas e Patrícia Mara Cabral de Vasconcellos tratam sobre as Crises
da democracia liberal e limites democráticos no Brasil, em que buscam
responder a um questionamento fundamental: existe, de fato, uma crise no
regime democrático brasileiro?
O Capítulo 4 é composto pelo ensaio dos professores Aparecida Lu-
zia Alzira Zuin e César Augusto Bubolz Queirós intitulado Amazônia nas
disputas pela memória em um contexto de pós-verdade: da utopia auto-
ritária à distopia cognitiva, em que argumentam, por uma perspectiva in-
terdisciplinar, que as disputas pela memória na Amazônia, num contexto
pós-verdade, só são possíveis de serem compreendidas por uma descons-
trução dos discursos históricos que fundaram uma utopia autoritária que
difundiu uma imagem da Amazônia como lugar receptivo às transforma-
ções da natureza pelo trabalho do homem, ao progresso harmonizado com
a cultura local, ao crescimento econômico sem danos ambientais. No Ca-
pítulo 5 , as professoras Layde Lana Borges da Silva, Thais Bernardes Ma-
ghanini e Karina Rocha Prado discorrem sobre as Dimensões conceituais,
emancipação colonial e empoderamento do “sujeito político ribeirinho”
amazônida, defendendo a necessidade de emancipação social e política a
partir de uma perspectiva que privilegie e seja receptiva à identidade re-

8
DEMOCRACIA E AGONISMO

gional. No Capítulo 6 , intitulado Ensaio sobre a identidade conservadora


e o agonismo democrático brasileiro, o professor Carlos Alexandre Barros
Trubiliano analisa as especificidades do “conservadorismo” brasileiro, que
guarda pequenas distinções dos movimentos iliberais que grassam pelo
mundo atualmente, indicando as inúmeras contradições performáticas e
conceituais. No Capítulo 7 , intitulado Criticismo social como práxis po-
lítica: teoria social crítica, participação política e transformação social-
-institucional, os professores Leno Francisco Danner, Fernando Danner e
Agemir Bavaresco pensam sobre o liame indissolúvel entre teoria e práti-
ca como base da estruturação das ciências humanas e sociais, implicando
isso na asserção de que se teoriza para politizar e se politiza para teorizar,
em um movimento imbricado e mutuamente dependente que não admite
um estilo de objetividade científica muito comum – mas também muito
problemático – no que diz respeito à constituição e ao funcionamento do
campo das ciências naturais. Por fim, no Capítulo 8 , O conceito de vida
boa nas filosofias aristotélica e ricoeriana como uma ferramenta para
viver bem em sociedade, Deborah Christina Biet de Oliveira apresenta a
leitura ricoeriana do pensamento aristotélico acerca da vida boa e justa em
uma sociedade democrática.
Ao final da leitura desses ensaios e artigos, pensamos que o leitor con-
cordará com uma franca objeção com relação àquela concepção tanatopo-
lítica de democracia, pois necrosa e busca matar o que de mais essencial
conforma o regime, a saber, a ideia de que, entre erros e acertos, o povo é
responsável por seu próprio destino, e que a festa da democracia só o é no
estrépito da crítica e da tentativa pela construção de uma forma de vida livre.
Nesse sentido, talvez seja necessário ouvir o que Friedrich Muller
afirma sob o real significado da expressão povo:
Não se perguntou aqui o que significa a palavra povo, mas
como ela é utilizada onde e por quem. No discurso do direito.
Ali: em textos de normas, sobretudo constitucionais, muito ra-
ramente ainda em textos de normas legais. Por vocês: os cons-
tituintes, os legisladores, os guardiões da lei. Por que vocês
utilizam essa palavra aí? Para gritar pelo alto-falante: circu-
lar, circular, não há nada a descobrir aqui! A palavra povo não
é utilizada por vocês para dizer quem seria esse povo, afinal
de contas. O povo é pressuposto para que vocês possam falar
de outra coisa, mais importante: NÓS SOMOS LEGÍTIMOS!
Com a expressão POVO, que está à mão [zuhanden] de vocês,
com esse instrumento objetual [zeug] no sentido de São Mar-
tinho, vocês apontam para o peito estufado de heróis que vo-
cês pretendem ser: populus lo volt. São vocês os que significam
isso; e esse é então o significado de povo. O discurso jurídico
procede assim, o discurso científico não se incomodou. Aqui
se tenta deixar-se incomodar. O resultado não são quatro po-
vos nem quatro conceitos de povo. São três espécies de gesti-

9
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

culação, com as quais vocês lidam com o povo, ainda no plano


da linguagem. Mas como nada mais é significado, isso também
acaba sendo significativo. A quarta espécie de gesticulação, a
simples, vai aqui como lembrete para vocês, ainda que desa-
gradável [sei euch hinter den Spiegel gesteckt]: todas as pessoas
que vivem aqui”1 (destaques no original).

Por fim, agradecemos a todos os autores que, dedicando seus tempos e


disposições em tempos de pandemia e necropolítica, escreveram os ensaios
que compõem este livro, cuja destinação, como todo gesto de desprendi-
mento e fraternidade – compartilhar tempo, conhecimento e apreço pela de-
mocracia é um gesto elevado de fraternidade! – é para que o leitor, quodlibet,
possa ser contemplado e, quem sabe, afetado positivamente, transformando
informação em conhecimento prudente para uma vida decente.
Agradecemos também a nosso editor, Carlos Henrique C. Gonçalves,
pelo apoio e profissionalismo de sempre, e ao grande poeta Thiago de
Mello, que da Amazônia para o mundo nos ensinou que
Faz escuro mas eu canto,
porque a manhã vai chegar.
Vem ver comigo, companheiro,
a cor do mundo mudar.
Vale a pena não dormir para esperar
a cor do mundo mudar.
Já é madrugada,
vem o sol, quero alegria,
que é para esquecer o que eu sofria.
Quem sofre fica acordado
defendendo o coração.
Vamos juntos, multidão,
trabalhar pela alegria,
amanhã é um novo dia.

Terras de Rondon, agosto de 2021.

Leno Francisco Danner


Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Universidade Federal de Rondônia

Marcus Vinícius Xavier de Oliveira


Jus Gentium – Grupo de Estudos
e Pesquisas em Direito Internacional
Universidade Federal de Rondônia

1 - Apud CHRISTENSEN, Ralf. In: MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo? A Questão Fundamental da Democracia.
Tradução de Peter Neumann. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 44-45.

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1
Elementos para uma metateoria
da democracia
Delamar José Volpato Dutra

Introdução

A democracia pode ser estudada sob vários vieses, a começar pela


discussão se ela tem um valor intrínseco ou não,1 bem como se é um sis-
tema de governo confiável ou não (ELY, 1980). Para os teóricos defensores
da democracia, ela é analisada a partir de vários pontos de vista, desde
aquele da representação (MIGUEL, 2014), até aquele da sua relação com
os direitos humanos (HABERMAS, 2001). Ademais, há pelo menos quatro
modelos de democracia que atualmente disputam o campo de sua compre-
ensão. O primeiro é o modelo agregativo, representado por Schumpeter
(2003), Downs (1957), Arrow (1963), entre outros. O segundo modelo é o
deliberativo, representado exemplarmente por Rawls (1999, 2005) e Haber-
mas (1997) – a despeito de Miguel (2013, p. 65) creditar mais esse modelo a
Habermas do que a Rawls. O terceiro modelo é aquele agônico de Mouffe
e Laclau (2001). Finalmente, o quarto é o modelo da homogeneidade, de-
fendido por Schmitt.

1 - Nesse sentido, as perspectivas libertárias tendem a dar um peso maior aos direitos individuais do que aos direitos
políticos. Disso resulta um conceito de democracia, no máximo, instrumental, ou seja, como garantia da liberdade
individual, como, aliás, já aparece no texto de Constant (1819): “La liberté individuelle, je le répète, voilà la véritable
liberté moderne. La liberte politique en est la garantie”. O próprio Habermas admite que se o Estado de direito for
compreendido como aquele que protege a liberdade negativa, ele é possível sem democracia (HABERMAS,1997a,
p.294), dito claramente, muito embora a autonomia pública possa ter um valor intrínseco para muitas pessoas, ela
aparece primeiro como um meio para realizar a liberdade privada (HABERMAS, 1998, p. 101), razão pela qual o seu
intento foi o de: “(...) provar a existência de um nexo conceitual ou interno entre Estado de direito e democracia, o
qual não é meramente histórico ou casual” (HABERMAS,1997a, p. 310).

11
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Desse modo, o tratamento da democracia parece levar o estudioso


ou a ter que se filiar a um desses modelos ou a ter que propor uma nova
teoria, o que, neste último caso, é deveras difícil devido à longa tradição de
reflexão sobre a temática. Em razão disso, escolheu-se trilhar um outro ca-
minho, aquele de uma metateoria sobre a democracia. Tal metateoria pre-
tende escrutinar alguns elementos cujo tratamento seria imprescindível
para haver uma teoria da democracia consistente e coerente. Outrossim,
para apontar a direção do proveito de tal empreendimento, escrutina-se
algumas críticas tecidas aos principais modelos vigentes, a fim de exem-
plificar o uso que se poderia fazer da metateoria da democracia, no que diz
respeito precisamente a tentar superar tais críticas.

Modelos de democracia

A literatura aponta vários modelos, concepções, conceitos de demo-


cracia. Habermas (1997) no cap. VII de Direito e democracia começa por
distinguir uma avaliação da democracia a partir de uma perspectiva inter-
na ou de uma perspectiva externa, uma distinção importante, certamente,
para o tratamento do tema da legitimidade. A seguir, distingue três mode-
los de democracia, o liberal, o republicano e o discursivo, este último aque-
le defendido por ele mesmo. Mouffe (2005), por seu turno, apresenta três
modelos de democracia: o modelo agregativo, o modelo deliberativo e o
modelo agônico. Miguel (2013) parece acompanhar Mouffe nessa trilogia.

O modelo agregativo de democracia é de natureza mais descritiva do


que normativa. Isso implica que os indivíduos agiriam não por razões mo-
rais, mas com base em interesses e preferências. De acordo com o modelo,
ordem e estabilidade adviriam não da participação, do consenso no bem
comum, sempre ilusório, mas de compromissos entre interesses (MOU-
FFE, 2005, p. 12). Para fazer escolhas sociais, dever-se-ia seguir mecanis-
mos de mercado baseados em interesses e preferências. Miguel (2013, p.
31) vincula essa corrente à chamada teoria das elites, a incluir Schumpeter.
Este último teria consolidado a tese da democracia concorrencial, sendo
esta a corrente dominante atualmente (MIGUEL, 2013, p, 49).
Esse modelo tem vários vieses: avalia como problemático o excesso
de participação política, haja vista, por exemplo, Hitler ter chegado ao po-
der depois de intensa participação política; desacredita a noção de bem co-
mum e foca nos indivíduos atomizados (MIGUEL, 2017, p. 49-50). De fato,
para Schumpeter (2003, p. 269), na teoria clássica da democracia, o povo
julgava das questões políticas e escolhia representantes para executar seus

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DEMOCRACIA E AGONISMO

julgamentos. O que ele se propõe a fazer é desconstruir o primeiro aspecto


e fortalecer o segundo aspecto. Ou seja, não há propriamente o povo, como
não há um bem comum determinável e, em acréscimo, as pessoas não sa-
bem decidir questões políticas. Por isso, ele supõe que os dois menciona-
dos aspectos devam ser revertidos. Ou seja, o papel do povo é o de produzir
um governo, governo este que decidirá as questões políticas. Daí a sua de-
finição de método democrático: “And we define: the democratic method is
that institutional arrangement for arriving at political decisions in which
individuals acquire the power to decide by means of a competitive struggle
for the people’s vote” (SCHUMPETER, 2003, p. 269). Como bem se vê, a
democracia aponta para a eleição de líderes que terão o poder de decidir.
Segundo o destaque de Miguel (2013, p. 53), isso implica uma liber-
dade formal, a de votar, e a redução da participação política a um mínimo,
precisamente, votar. Com isso, líderes são eleitos, mediante uma disputa
por votos. O líder ou partido vencedor forma um governo para decidir as
questões políticas. Miguel (2013, p. 54) registra que a principal inspiração
oculta de Schumpeter é Hobbes, cuja principal preocupação seria a esta-
bilidade, não a liberdade. Segundo Miguel, a concepção schumpeteriana
estaria presente inclusive na teoria pluralista de Dahl.
Alguns problemas que podem ser apontados em relação a essa teoria
são os seguintes: o primeiro deles, é que a política é isolada das desigualda-
des materiais e simbólicas (MIGUEL, 2013, p. 58), devido a ficar reduzida à
votação para escolha de líderes; outro problema é a concepção atomizada
de pessoa que não considera os processos de produção das vontades dos
indivíduos (MIGUEL, 2013, p. 63).

II

O modelo deliberativo, como bem pontua Mouffe (2005, p. 12), pre-


tendeu dar conta de problemas de legitimidade pela conexão da justiça e
da política. Isso pode ser verificado pela análise que Rawls (1999) faz de
Arrow e de Downs: “And this would seem to imply that the application of
economic theory to the actual constitutional process has grave limitations
insofar as political conduct is affected by men’s sense of justice, as it must
be in any viable society, and just legislation is the primary social end” (p.
317). Rawls se indispõe, aqui, com a concepção de democracia de Downs e
Arrow, a qual foca no processo formal de escolha dos líderes, sem conside-
rar que determinações de justiça deveriam permear o todo da democracia,
inclusive os seus resultados.
De acordo com Miguel (2013, p. 66), para essa corrente: a democracia
não visa agregar preferências já consolidadas, pois estas são construídas so-
cialmente; enfatiza-se a participação e não só a votação; resgata-se também

13
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

a possibilidade de o povo participante debater e decidir questões concretas


a respeito do bem comum. Em vez de interesses e preferências, esse modelo
foca no papel que a argumentação pode desempenhar no processo de deci-
são, cujo objetivo é chegar a um entendimento. Como observa Mouffe (2005,
12), essa perspectiva é normativa e não descritiva. Ela busca lealdade com
base na legitimidade que une soberania popular e direitos humanos.
Apontam-se vários problemas para esse modelo. Segundo Miguel
(2013, p. 61), a deliberação não pensa adequadamente a política como con-
flito, como interesse, dominação, o que levaria, inclusive, a uma acomo-
dação à ordem vigente. Como já dito, ela tem dificuldade em lidar com a
noção de interesse (MIGUEL, 2013, p. 72-73). Ao invés, a teoria tenta dar
conta do diagnóstico da crise de legitimidade pelo apelo a um consenso em
bases morais (MOUFFE, 2005, p. 12). Portanto, não seria uma resposta pro-
priamente política. Ademais, a proposta idealizaria as condições da comu-
nicação e seria insensível à exclusão/inclusão de grupos sociais (MIGUEL,
2013, p. 68, 70). Por ser processual e formal, a igualdade substantiva não
lhe seria importante (MIGUEL, 2013, p. 69). Por conseguinte, não trataria
adequadamente o fato de os cidadãos serem abstratamente iguais sob o
viés político, mas desiguais economicamente (MIGUEL, 2013, p. 73), além
de ser cega às desigualdades de poder, de status e de linguagem padrão
(MIGUEL, 2013, p. 75). Senão por isso, ainda parece descartar a represen-
tação (MIGUEL, 2013, p. 75-76). Em suma, por não ser representativa, por
não considerar as desigualdades e os diversos tipos de dominação, não se-
ria um modelo realista (MIGUEL, 2013, p. 77), sem contar que seria uma
versão de democracia com viés conservador, pois quando não se chegasse a
um consenso, restaria preservado o status quo (MIGUEL, 2013, p. 81).
Essa mesma crítica é endereçada, até de forma mais contundente, ao
véu de ignorância de Rawls, que camuflaria ou eliminaria o conflito políti-
co (MIGUEL, 2013, p. 78-79), justamente escondendo-o sob o véu.
Em suma, “Rawls, Habermas e Honneth são a linha de frente da per-
cepção de que o conflito de interesses é um mal a ser extirpado” (MIGUEL,
2013, p. 84). Para eles, no lugar do conflito é posta a imparcialidade, o diá-
logo e o altruísmo, respectivamente.
Nesse ponto, as críticas de Miguel se somam àquelas de Mouffe,
como ver-se-á, já que, para ela, a versão deliberativa de democracia elimi-
naria o conflito a propósito das interpretações diferentes dos princípios da
liberdade e da igualdade.

A querela da economia

Que a economia seja importante, pode ser visto na consideração crí-


tica que Habermas faz a propósito da impotência do dever-ser em Rawls:

14
DEMOCRACIA E AGONISMO

“A realidade recalcitrante com a qual o raciocínio normativo quer enten-


der-se não é feita apenas e, em primeira linha, de pluralismo de ideais de
vida e de orientações axiológicas conflitantes, mas também de um material
mais duro que são as instituições e os sistemas de ação” (HABERMAS,
1997a, p. 92).2 São sistemas de ação os mercados, ou seja, a economia, e as
burocracias estatais (HABERMAS, 1997a, p. 153).
A querela da relação entre economia e democracia vem pelo menos
desde Aristóteles, já que este relaciona a democracia ao governo dos pobres:
[...] a verdadeira diferença entre oligarquia e democracia é a
pobreza e a riqueza. É inevitável que quando o poder se exerce
em virtude da riqueza, quer sejam poucos ou muitos, trata-se
de uma oligarquia; quando os pobres governam, trata-se de
uma democracia. Acontece, porém, conforme notamos, que os
ricos são escassos e os pobres numerosos. É que a riqueza é
de poucos, enquanto a liberdade é de todos: estas são as cau-
sas pelas quais uns e outros reclamam o poder (POLÍTICA,
1279b40-1280a5).

Marx protestara ao dizer que, politicamente, os cidadãos são conside-


rados iguais, mas, economicamente, os homens estariam em situação desi-
gual: “Assim como os cristãos são iguais no céu e desiguais na terra, também
os membros singulares do povo são iguais no céu de seu mundo político e
desiguais na existência terrena da sociedade” (MARX, 2005, p. 97).
Ou seja, trata-se de como conciliar a economia desigual com a políti-
ca igual (MIGUEL, 2013, p. 70, 84, 94). Inclusive, a questão social de Arendt
é interpretada por Miguel como degradação da política, na medida em que
as necessidades corroeriam a busca pela liberdade (MIGUEL, 2013, p. 70).
Nesse ponto preciso, alega ele, Habermas criticaria o idealismo arendtia-
no, mas teria sido vitimado por um problema análogo. Aliás, esse ponto é
alavancado por Miguel (2013) a calcanhar de Aquiles de toda e qualquer
teoria, a atingir especialmente o paradigma comunicativo entendido como
superação do paradigma do trabalho (p. 94). Não só isso, quando Rawls, em
o Liberalismo político, e Habermas, em Direito e democracia, descem do
céu à terra, suas obras vêm marcadas pelo elogio do presente e, portanto,
pela despotencialização da crítica às desigualdades (MIGUEL, 2013, p. 95).
Como visto, as duas falhas principais do modelo deliberativo seriam
em relação à representação e à base material. Com isso, o mundo material
se torna o foco, a justificar até “um uso (legítimo) de coerção, impondo aos

2 - A economia constitui-se num ponto central da democracia nas análises de Habermas, mesmo do Habermas tardio,
do que é ilustrativo o seu livro Na esteira da tecnocracia, cujo Capítulo 7 vem justamente intitulado Democracia ou
capitalismo? Já Hayek (1973) registrara um conflito irreconciliável entre a democracia majoritária e o capitalismo (p. 7).
Hayek, sabidamente, vai se alinhar com a concepção de democracia liberal. Habermas, por seu turno, não se alinha à
democracia majoritária.

15
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

grupos privilegiados a subtração de suas benesses” (MIGUEL, 2013, p. 95).


Pare ele, a democracia é um governo com conteúdo, o governo dos pobres.
A democracia não é aceitação de determinados valores ético-políticos ou
regras do jogo: “O antagonismo entre dominantes ou dominados pode se
expressar ou pode ser escamoteado, mas não há fórmula retórica que o faça
ser transcendido” (MIGUEL, 2013, p. 96). A versão radicalizada de demo-
cracia busca justamente pôr um fim às relações capitalistas de produção:
“Of course, every project for radical democracy implies a socialist dimen-
sion, as it is necessary to put an end to capitalist relations of production,
which are at the root of numerous relations of subordination; but socia-
lism is one of the components of a project for radical democracy, not vice
versa” (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 178).
Tratar-se-ia de uma luta de classes? Tratar-se-ia de guerra, não de
política? Não, pois uma tal proposta faria terra arrasada de várias dife-
renças relevantes. Afinal, quem são os dominados? Quem são os domina-
dores? A mesma pessoa pode ser vítima e algoz. Pode ser um trabalhador
miserável, misógino, machista. Por isso, para os autores, a proposta tem
que ser democrática, no sentido de requerer a participação de todos:
[…] when one speaks of the socialization of the means of pro-
duction as one element in the strategy for a radical and plu-
ral democracy, one must insist that this cannot mean only
workers’ self-management, as what is at stake is true parti-
cipation by all subjects in decisions about what is to be pro-
duced, how it is to be produced, and the forms in which the
product is to be distributed. Only in such conditions can there
be social appropriation of production. To reduce the issue to a
problem of workers’ self-management is to ignore the fact that
the workers’ ‘interests’ can be constructed in such a way that
they do not take account of ecological demands or demands of
other groups which, without being producers, are affected by
decisions taken in the field of production” (LACLAU; MOU-
FFE, 2001, p. 178).

Isso remete, uma vez mais, ao fato de a política não ser pensada como
um jogo de soma zero (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 193). Trata-se a bem da
verdade de repensar os conceitos de liberdade e de igualdade de uma forma
diferente da interpretação capitalista (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. XV).
De se perguntar, no entanto, na perspectiva defendida por Miguel,
segundo a qual não cabe o entendimento discursivo como cariz próprio da
democracia, se é possível até mesmo a hegemonia sustentada por Mouffe,
pois tal conceito pressupõe a aceitação de um núcleo ético básico univer-
sal, justamente o que permite a passagem do inimigo da guerra para o ad-
versário da política, como se verá. Deveras, Miguel nega a possibilidade de
determinações universais que poderiam anteder a todos, já que tudo seria

16
DEMOCRACIA E AGONISMO

absolutamente conflitivo e enviesado pela dominação. Não obstante, na


democracia, não se pode matar o derrotado político. No limite, a proibição
do homicídio não seria um interesse universal? O antagonismo dos domi-
nantes e dos dominados realmente não pode ser transcendido?
Aliás, carece às críticas de Miguel, inclusive, uma melhor leitura de
Habermas e de Rawls. Por exemplo, este último, ao analisar o ótimo de Pa-
reto, que ele prefere chamar de eficiência (RAWLS, 1999, p. 58), afirma: “[...]
the principle of efficiency cannot serve alone as a conception of justice”
(RAWLS, 1999, p. 62). Ora, um sistema é eficiente se não puder ser modifi-
cado, para melhorar a posição de alguém, sem prejudicar a posição de um
outro. Tomado em termos absolutos, o que Rawls não faz, isso implicaria, no
limite, que um sistema baseado na servidão não poderia ser alterado, pois
para melhorar a vida dos servos prejudicaria a dos senhores. A posição de
Rawls (1999), claramente, não é essa, como se pode abduzir da citação: “The
democratic conception [of equality] is not consistent with the principle of
efficiency if this principle is taken to mean that only changes which improve
everyone’s prospects are allowed. Justice is prior to efficiency and requires
some changes that are not efficient in this sense” (p. 69).

III

O terceiro modelo é aquele que põe ao centro o conflito. De acordo


com Mouffe (2005, p. 16), Rawls e Habermas buscariam, como primeiro
ponto, evitar o conflito referente ao pluralismo de valores. Isso é feito, no
caso de Rawls, pela exclusão das doutrinas abrangentes não razoáveis, já,
no caso de Habermas, isso é feito pela separação entre ética e moral, como
se verá abaixo. Isso implicaria uma tensão entre a soberania popular e a
perspectiva liberal de ambos os autores. Ora, tal tensão até pode ser equa-
cionada via negociação, mas não pode ser eliminada. Por isso, o modelo de
política deliberativa “[...] é incapaz de reconhecer a dimensão do antago-
nismo e seu caráter inerradicável, que decorre do pluralismo de valores”
(MOUFFE, 2005, p. 19). Para ela, tal perspectiva acaba por reduzir a polí-
tica à justiça. Para a perspectiva de Mouffe, toda objetividade social vem
marcada pela exclusão. Quando há essa convergência entre objetividade e
poder, há o que ela denomina de hegemonia. Dito claramente, não há “[...]
lacuna insuperável entre poder e legitimidade [...]: a) se qualquer poder é
capaz de se impor, é porque foi reconhecido como legítimo em algumas
partes e b) se a legitimidade não se baseia em um fundamento apriorístico,
é porque se baseia em alguma forma de poder bem-sucedido” (MOUFFE,
2005, p. 19). Esse modelo desacredita a confiança na argumentação e foca
no conceito de hegemonia como sendo central.

17
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Desse modo, a legitimidade porta conexão com o poder, não com ar-
gumentos. A política é vista como ligada à ordem, de tal forma que a hos-
tilidade é domesticada e o antagonismo contido. Ou seja, o outro deixa de
ser um inimigo e passa a ser um adversário: “Um adversário é um inimigo,
mas um inimigo legítimo, com quem temos alguma base comum, em virtu-
de de termos uma adesão compartilhada aos princípios ético-políticos da
democracia liberal: liberdade e igualdade” (MOUFFE, 2005, p. 20). Porém,
esclarece ela, discorda-se em relação ao sentido e à implementação de tais
princípios, sendo que tal desacordo não se resolve por deliberação: “De fato,
dado o pluralismo inerradicável de valores, não há solução racional para o
conflito – daí a sua dimensão antagonística” (MOUFFE, 2005, p. 20). Então,
como evitar que o antagonismo leve à guerra? Tal se dá por compromissos
temporários, aos quais chegar-se-ia não por deliberação, mas por conversão:
“Aceitar a visão do adversário significa passar por uma mudança radical de
identidades políticas. É mais uma espécie de conversão do que um proces-
so de persuasão racional (do mesmo modo que Thomas Kuhn argumentou
que a adesão a um novo paradigma científico é uma conversão)” (MOUFFE,
2005, p. 20). O que se consegue, portanto, não é um consenso sem exclusões,
mas um consenso conflitivo (MOUFFE, 2005, p. 21). Ou seja, muito embo-
ra haja certo consenso e lealdade em relação aos valores ético-políticos da
liberdade e da igualdade, tais princípios teriam interpretações diferentes e
conflitantes: “Idealmente, tal confrontação deveria ser observada em tor-
no das diversas concepções de cidadania que correspondem às diferentes
interpretações dos princípios ético-políticos: liberal-conservadora, social-
-democrata, neoliberal, radical-democrática e assim por diante. Cada uma
delas propõe a sua própria interpretação do “bem comum” e tenta imple-
mentar uma forma diferente de hegemonia” (MOUFFE, 2005, p. 21). Desse
modo, a hegemonia é o que se pode pôr no lugar de uma falha, de algo que
não pode ser preenchido, de uma totalidade ausente (LACLAU; MOUFFE,
2001, p. 8), mas que precisa vigorar: “The concept of’hegemony will emerge
precisely in a context dominated by the experience of fragmentation and by
the indeterminacy of the articulations between different struggles and sub-
ject positions” (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 13).
Apesar dos arroubos ao longo do texto, Miguel, na conclusão do seu
trabalho, chega aproximadamente a um mesmo resultado, aquele que põe
ao centro o conflito, mas sem deixar de dar o devido peso à liberdade indi-
vidual (MIGUEL, 2013, p. 305-307).

IV

Há, ainda, o modelo radicalizado de Schmitt que desafia os anterio-


res, inclusive a versão domesticada de Mouffe e de Miguel.

18
DEMOCRACIA E AGONISMO

Veja-se, então, como Schmitt apresenta a democracia. Para ele, a ho-


mogeneidade do povo é a característica mais fundamental da democracia.
É da homogeneidade que decorre a eliminação do diferente (SCHMITT,
2000, p. 9). Desse modo, não só a igualdade é definida como homogeneida-
de, como a democracia honra a distinção amigo/inimigo. Ele sustenta que
qualquer elemento pode ser relevante para estabelecer a igualdade dos que
têm aquela qualidade em relação aos que não a têm. Pode ser uma quali-
dade física, moral, como a virtude, ou espiritual, como uma religião, ou a
pertença a uma nação (SCHMITT, 2000, p. 9).
Segundo ele, não compõe o significado primordial de democracia os
sufrágios universais, com igual peso de todos os votos. Nenhuma democra-
cia concede sufrágio somente em virtude da humanidade de alguém, isso
porque direitos iguais só fazem sentido se houver homogeneidade (SCH-
MITT, 2000, p. 10). Schmitt critica severamente a igualdade universal de
todos os seres humanos. De acordo com ele, tal ideia nunca foi efetivada
em democracia alguma, pois todas elas têm critérios de inclusão e de ex-
clusão de cidadãos. E, poderíamos dizer, contêm critérios de definição de
seres humanos que são pessoas e de seres humanos que não são pessoas,
como fetos, anencéfalos e mortos cerebrais. Ou seja, a igualdade de todos
os seres humanos não é o que caracteriza a democracia em parte alguma.
É, sim, o que caracteriza o liberalismo como uma teoria moral (SCHMITT,
2000, p. 11). A seu favor, Schmitt pode alegar o caráter discriminatório de
todas as democracias na concessão da maior parte dos direitos. Quiçá, uma
tese que faz mais sentido hoje do que no tempo de Schmitt, vis-à-vis dos
problemas da imigração e da bioética. A maior parte dos Estados, além de
negar o direito político do sufrágio, nega o direito ao trabalho, à previdên-
cia e mesmo à permanência no país por mais de um determinado tempo,
em geral bem curto. Uma tal igualdade não existiria em parte alguma, o
que só mostraria que o liberalismo seria uma ideologia que mascararia
o que acontece politicamente e mesmo economicamente. A igualdade só
tem sentido em particular, não em geral, ou seja, há que se falar da igual-
dade em relação a algum predicado, como a riqueza ou a cidadania. Senão,
o nascimento resumiria toda a igualdade e com isso o próprio conceito de
igualdade não teria mais nenhum significado político.
As desigualdades não podem ser eliminadas simplesmente afirman-
do que os homens são todos iguais em algum aspecto, por exemplo, são
todos matáveis. Isso significa que as diferenças se tornarão relevantes em
algum aspecto, ainda que não um aspecto político, como na distribuição
da propriedade. Isso é inevitável, para Schmitt. Fosse evitável não haveria
mais necessidade de política (SCHMITT, 2000, p. 12-13).

19
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

A filosofia política de Rousseau é um paradigma para a interpre-


tação de Schmitt, até porque ela é o fundamento para muitas defesas da
democracia. Segundo ele, a obra de Rousseau comportaria dois modelos de
igualdade incoerentes entre si. Por um lado, uma fachada liberal, a apontar
para o contrato; por outro lado, um núcleo de homogeneidade corporifica-
do no conceito de vontade geral (SCHMITT, 2000, p. 13). Ou seja, no núcleo
do pensamento político de Rousseau está uma homogeneidade do povo tão
forte que só haveria unanimidade, sem necessidade de partidos, religiões
diferentes, nada que pudesse dividir o povo. Na interpretação que Schmitt
oferta de Rousseau, a unanimidade seria tão forte que a feitura das leis
não geraria discussão (SCHMITT, 2000, p. 14). Ele chega a afirmar que isso
implicaria que, em um processo judicial, o acusado e o acusador deveriam
querer a mesma coisa (SCHMITT, 2000, p. 14). Por isso, a unanimidade
não precisa de um contrato para construí-la. Como bem pontuou Heck, a
vontade geral é um evento, não uma construção: “A volonté générale é even-
to e não um resultado discursivo” (HECK, 2008, p. 15). O contratualismo
pertence a um outro mundo. Um mundo liberal constituído por sujeitos
individuados ao extremo, como mônadas (SCHMITT, 2000, p. 14).
A democracia implica uma série de identificações que o liberalismo
nega, como aquela entre o governo e o governado (CRISTI, 2011, p. 360).
Ora, uma democracia com base na homogeneidade é estável porque seu
governo não reside no resultado aritmético da votação, sempre mutável.
Por isso mesmo Rousseau pôde sustentar não haver nem a necessidade de
votar. Na Teologia política Schmitt acusara a Rousseau de eliminar, me-
diante o conceito de vontade geral, os elementos decisionista e personalis-
ta da soberania (SCHMITT, 1985, p. 48). Agora, como mencionado acima, a
nova redescrição que ele faz da democracia permite-lhe se reconciliar com
Rousseau, haja vista este último extirpar o individualismo de sua concep-
ção de democracia. Em suma, a lei na democracia não é ratio, mas vontade:
“lex est quod populus jussit” (SCHMITT, 2003, p. 253). Se o povo é o soberano,
povo não é o conjunto de todos os indivíduos, mas o resultado de uma (de)
cisão por uma identidade. Desse modo, sua concepção de democracia con-
tinua honrando o decisionismo.
Agamben chama a atenção exatamente para o conceito cindido de
povo presente no contexto da democracia. De fato, se a democracia for de-
finida pela afirmativa de Lincoln, ou seja, como governo do povo, pelo povo
e para o povo, pode-se perceber uma fratura em tal conceito, como se hou-
vesse uma sobreposição de povos: “Um mesmo termo denomina, assim,
tanto o sujeito político constitutivo quanto a classe que, de fato, se não
de direito, é excluída da política” (AGAMBEN, 2002, p. 183). Ele arremata:
“O ‘povo’ carrega, assim, desde sempre, em si, a fratura biopolítica funda-

20
DEMOCRACIA E AGONISMO

mental. Ele é aquilo que não pode ser incluído no todo do qual faz parte, e
não pode pertencer ao conjunto no qual já está desde sempre incluído [...]
é a fonte pura de toda identidade, e deve, porém, continuamente redefinir-
-se e purificar-se através da exclusão, da língua, do sangue, do território”
(AGAMBEN, 2002, p. 184).
Redefinida de forma existencializada como uma identidade homo-
gênea que se sustenta em relação a outras identidades, a partir da relação
amigo-inimigo que é a intensidade máxima dos vínculos entre os homens,
ou seja, o seu caráter propriamente político, o contraste com o liberalismo
e o estado de direito devem patente e implica que “As áreas até então ‘neu-
tras’ – religião, cultura, educação, economia – deixam então de ser ‘neu-
tras’ no sentido de não-estatal e não-político” (SCHMITT, 1992, p. 47). As-
sim, não há que se falar em nada que fique fora do político, especialmente
a economia. Não há que se falar em economia liberada do Estado ou este
liberado daquela (SCHMITT, 1992, p. 50).
De acordo com Schmitt, só haveria dois princípios político-formais:
identidade e representação. O Estado, como o próprio nome sugere, é o
status, a situação, de um povo como unidade política. Pressupõe homoge-
neidade e identidade que, por não poderem nunca ser reais, sempre impli-
cam certo grau de representação, pois nunca é o povo todo que participa
do governo (SCHMITT, 2003, p. 205). Os burgueses lutavam contra toda
espécie de absolutismo estatal, contra a democracia, a identidade extrema,
e contra a monarquia, a representação extrema (SCHMITT, 2003, p. 215).
Para Schmitt, é ponto extremo de dúvida que o método estatístico de
contagem de votos faz desaparecer a substância da igualdade democrática.
Ainda que seja o voto que torne democrática a eleição, a escolha (SCH-
MITT, 2003, p. 250), não há uma correlação entre número e substância de-
mocrática. Por isso mesmo, anota Schmitt, Rousseau pôde afirmar não ser
democrático que noventa corrompidos dominem sobre dez honestos, pois
desaparecida a substância democrática, ou seja, a virtude, nem a unanimi-
dade serviria para coisa alguma (SCHMITT, 2003, p. 246).
Os princípios políticos da representação e da identidade são impor-
tantes para se compreender por que é mista a forma de governo que rea-
liza o Estado de direito, haja vista o princípio da identidade ser imune à
possibilidade de controle: “Pufendorf’s formulation should be quoted: In a
democracy, where those who command and those who obey are identical,
the sovereign, that is, an assembly composed of all citizens, can change
laws and change constitutions at will; in a monarchy or aristocracy, ‘where
there are some who command and some who are commanded,’ a mutual
contract is possible, according to Pufendorf, and thus also a limitation of
state power” (SCHMITT, 2000, p. 14-15).

21
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Há quem defenda, como Cristi, ter havido mudanças no pensamento


de Schmitt em razão dos acontecimentos históricos. É assim que ele teria
sido, ao início monarquista e, depois, um democrata, embora não honesto
e sincero. Sem embargo disso, parece ser melhor ler Schmitt a partir de
seu conservadorismo, o que já se mostra no seu viés decisionista. Con-
servadorismo que ele deve aos autores do séc. XIX com vieses teológicos,
principalmente em sua reação contra a Revolução Francesa e contra o
anarquismo. A sua oposição ao normativismo do positivismo de Kelsen e ao
liberalismo também segue o mesmo veio conservador, pois, na verdade, tais
teorias implicam, a seu juízo, um individualismo incompatível com formu-
lações políticas que pensam o ser humano mais ligado à comunidade. Nesse
particular, o seu conservadorismo se manifesta na leitura da democracia por
ele proposta. Trata-se de uma democracia incompatível com o liberalismo
e com o Estado de direito. Portanto, é uma versão de democracia totalitária,
na qual o indivíduo se dissolve no todo. Nesse diapasão, o texto que ele es-
creve sobre Hobbes mostra como o individualismo que ele imputa ao pró-
prio Hobbes foi a mancha podre que levou ao Estado de direito liberal, no
qual prepondera o indivíduo sobre a comunidade: “La reserva de fe privada
concedida por Hobbes la entiende Carl Schmitt como puerta de entrada de
la subjetividad de la conciencia burguesa y de la opinión privada, que pro-
gresivamente desarrollan su fuerza subversiva. Pues esta esfera privada se
proyecta hacia afuera y se amplía hasta convertirse en esfera de la opinión
pública burguesa; en el seno de esta última la sociedad civil se hace valer
como contrapoder político” (HABERMAS, 2007, p. 71).3
Como um conservador consequente, sua democracia não pode hon-
rar o individualismo. Na verdade, o seu tratamento da democracia é mar-
cado por uma dupla faceta. Primeiro Schmitt a circunscreve nos limites
do Estado de direito e do individualismo, que ele, na verdade, considera
antidemocráticos. Ele assim os considera porque a sua concepção de de-
mocracia é definida sob o ponto de vista da homogeneidade, da identidade
de todos os membros. Essa é também a sua leitura de Rousseau. Portanto,
trata-se de uma versão de democracia conservadora e totalitária que não
honra o princípio da liberdade individual. Ou seja, a democracia não pode
ser concebida como uma expressão do individualismo. O individualismo
desenraíza o indivíduo, cinde-o da comunidade (SCHMITT, 1985, p. 3).
Se até o sistema de Hobbes, para ele, honraria o individualismo, então,
é possível fazer uma ideia do modo como ele concebe a homogeneidade
exigida pela democracia como poder soberano. Em um tal sistema não ha-

3 - “Schmitt admira a Hobbes a la vez que lo critica. Celebra en Hobbes al único teórico político de rango que en el
poder soberano reconoció la sustancia decisionista de la política estatal. Pero también lamenta al teórico burgués que
se arredra ante las últimas consecuencias metafísicas y que, contra su voluntad, se convierte en antecesor del Estado
de Derecho tal como lo entiende el positivismo jurídico” (HABERMAS, 2007, p. 69).

22
DEMOCRACIA E AGONISMO

veria necessidade de um parlamento discutidor. O legislador poderia até


ser contratado para fazer a lei, pois operaria a vontade geral. Ainda que
ele critique a vontade geral por despotencializar o decisionismo em sua
versão personalizada, a democracia assim concebida não deixa de honrar
o decisionismo do soberano em uma perspectiva agora despersonalizada.
No que diz respeito à teoria da constituição que honra o princípio político
democrático, o conceito de poder constituinte reterá o caráter da deci-
são que opera no vácuo, sem normatividade anterior que a gravitacione ou
pelo menos assim parece.
Sem embargo desse cariz, duas possibilidades interpretativas se
abrem. Uma defendida por Agamben e outra por Sá. A primeiro, comenta
uma afirmação de Schmitt de 1982: “I have been and I am a jurist. I will
remain a jurist. I will die a jurist. And all the misfortune of being a jurist is
involved therein” (SCHMITT apud AGAMBEN, 2016, p. 458). A intepreta-
ção de Agamben é a de que, com isso, Schmitt queria mostrar que o direito
é basicamente constituído pela decisão. Para ele, o estado de exceção mos-
traria precisamente que o direito é formalmente decisão a exorbitar qual-
quer norma (AGAMBEN, 2016, p. 458). Por sua vez, Sá é de outra cepa. Para
ele, o estado de exceção seria diferente da anarquia e do caos, a revelar uma
ordem, ainda que uma ordem não jurídica, tendo na autoconservação a sua
racionalidade própria (SÁ, 2003, p. 171). Ora, considerando a própria afir-
mativa de Schmitt da correlação entre proteção e obediência, azada parece
a posição de Sá, senão veja-se: “[...] não há [...] nenhuma legitimidade ou
legalidade racional sem a conexão de proteção e obediência. O protego ergo
obligo é o cogito ergo sum do Estado” (SCHMITT, 1992, p. 78).

Dos elementos da democracia

Considerando as quatro teorias apresentadas e suas críticas, torna-


-se possível escrutinar alguns elementos que poderiam ser considerados
fundamentais no tratamento de democracia. A seguir, apresentam-se tais
elementos:
1) PODER – Toda democracia tem um elemento de poder, como seu pró-
prio nome indica. Poder é um conceito complexo a envolver a legitimida-
de, a autoridade e, no limite, a violência, já que todo poder é capaz de vio-
lência (HART, 1994, p. 201). Isso pode ser visto na ambiguidade dos termos
poder e autoridade:
‘Power’ is an ambiguous term. It stands for potentia, on the
one hand, and for potestas (or jus or dominium), on the other. It
means both ‘physical’ power and ‘legal’ power. The ambiguity
is essential: only if potential and potestas essentially belong to-
gether, can there be a guaranty of the actualization of the right

23
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

social order. The state, as such, is both the greatest human for-
ce and the highest human authority (STRAUSS, 1965, p. 194).

Segundo Schmitt (1996, p. 30, 1996, p. 45), Hobbes, justamente, teria


eliminado a distinção entre auctoritas e potestas.
O modelo agonístico, com base na hegemonia, bem como a demo-
cracia homogênea são fortes nesse quesito. Poder-se-ia dizer tratar-se de
um elemento político. Outrossim, esse particular é o que dá à democracia
majoritária um peso peculiar (WALDRON, 2016, cap. 10).
Que o poder seja um elemento ineliminável, mostra-se, de forma
oblíqua, nas três versões liberais da teoria, a demandar limites à demo-
cracia majoritária, incluso na versão agônica de Mouffe, configurada com
base na defesa do núcleo ético-político da liberdade e da igualdade.
Por certo, o poder, na medida em que se canaliza política e juridi-
camente, pode cumprir uma função assecuratória de princípios abstratos
como a liberdade e a igualdade, bem como epistêmica no sentido da deter-
minação dos mesmos.
2) POVO – Poderia ser formulado também no plural, povos. Esse elemen-
to, além de estar presente na própria palavra democracia, compõe um
dos pontos centrais. Conceitos como virtude, maldade, antropologia, so-
lidariedade, amizade, republicanismo, representação,4 têm peculiar rela-
ção com o conceito de povo. Os modelos agônico e homogêneo, amiúde,
chamam a atenção para esse elemento. “Povo é uma categoria política,
que reúne as pessoas que estão submetidas a um governo. Desta forma,
povo se opõe exatamente a governo [...] Um ‘governo do povo’ é, assim,
uma contradição nos termos” (MIGUEL, 2013, p. 20). De acordo com o
teórico da Constituição, “O conceito central da democracia é Povo, e não
Humanidade” (SCHMITT, 2003, p. 230). Ou seja, trata-se da democracia
do povo, não da democracia da humanidade. Nesse particular, segundo
Schmitt (2003), haveria duas formas de tratar de minorias ou de imigran-
tes, ou eles são assimilados pela cultura dominante ou são oprimidos,
expulsos, eliminados (p. 228). O conceito de nação também tem aqui o seu
lugar (SCHMITT, 2003, p. 228).
3) DIREITO ou LIBERDADE – Poder-se-ia nominar também no plural: di-
reitos ou liberdades. Todas as versões de democracia têm preocupação em
dar uma resposta a esse ponto, seja em um sentido mais amplo, mais res-

4 - Como já mencionado, o conceito de representação é central, não só para a democracia, como para a política.
Constant (1819) apontou para a necessidade da representação como verso da medalha do que ele nominou a liberdade
dos modernos, haja vista não mais se poder exigir uma dedicação prioritária das pessoas à vida política, à liberdade
pública. Para Schmitt (2003, p. 206), “(N)ão há Estado algum sem representação”. De acordo com Miguel (2014, p.
13), “[...] a representação política é incontornável para qualquer tentativa de construção da democracia em Estados
nacionais contemporâneos”.

24
DEMOCRACIA E AGONISMO

trito ou mais disciplinado. As três versões liberais da teoria focam nesse


elemento. É o caso do núcleo ético-político da liberdade e da igualdade em
Mouffe, dos direitos humanos em Habermas ou da igualdade da liberdade
de voto em Schumpeter. Por certo, esse elemento cria diversas dissonân-
cias em relação à democracia. No caso da democracia homogênea, esse
elemento é entendido de forma reduzida, no sentido de só haver os direitos
reconhecidos pela comunidade entre os iguais, ou seja, estão informados
pela igualdade democrática, a igualdade perante a lei (SCHMITT, 2003, p.
174). Dito claramente, o seu conteúdo se determina pelas leis. Para alguns,
como Nozick, a liberdade pode ser um outro nome para a justiça.
4) LEI ou AUTORIDADE – Trata-se de um elemento jurídico, aquele da lei
positiva. Habermas, bem como a versão schumpeteriana, são fortes nesse
quesito, diferentemente do modelo agônico. É praticamente ausente no
modelo homogêneo, já que Schmitt teceu severas críticas ao direito, espe-
cialmente pelo seu viés positivista. No entanto, o elemento da segurança
presente no direito, na medida em que se espera que repita, para casos
semelhantes, as decisões pretéritas, é apenas um aspecto da lei positiva. O
outro aspecto é aquele da discricionariedade defendida por muitos positi-
vistas e que foi pouco aventada por Schmitt.5 De outro lado, o elemento da
lei positiva conecta fortemente com o poder. Em relação a esse ponto, vale
acrescentar, o poder é um recurso escasso e disputado. O poder, sem um
conteúdo mínimo (de liberdade, de igualdade, entre outros), pode até ser
viável, e ele foi viável ao longo da história sem que tal conteúdo tivesse sido
estendido a todos, contudo, em tal caso, ele é constantemente ameaçado
por instabilidades (HART, 1994, p. 201-202). Há, por certo, nesse quesito,
uma conexão com o poder, como já mencionado há pouco, sendo apenas
de se reforçar a ambiguidade existente entre poder e autoridade, destacada
por Strauss, como visto acima. Em geral, essa instância cumpre uma fun-
ção epistêmica no sentido da determinação de princípios abstratos, por
exemplo, liberdade e igualdade, bem como uma função assecuratória.
5) JUSTIÇA ou IGUALDADE – Há uma gama de teorias a conectar, forte-
mente, igualdade e democracia: “O valor normativo a ser perseguido na
democracia é a igualdade entre os indivíduos” (MIGUEL, 2013, 305). Rawls,

5 - O positivismo tende a ser desidratado de conteúdo ou tende a reduzir este a um mínimo, como em Hart. Não por
outra razão, Habermas (2003) chama a atenção para o caráter processual do positivismo. Nesse diapasão, devido a ter
acentuado o aspecto assecuratório do positivismo, Schmitt não viu as possíveis conexões com a democracia majoritária,
decorrente de outro aspecto saliente do positivismo, a discricionariedade. Na verdade, Schmitt tendia a localizar a
discricionariedade no âmbito político e não no âmbito jurídico. Não obstante, com a eclipse da política, diagnosticada
pelo próprio Schmitt, a discricionariedade ou a decisão tem migrado cada vez mais para o âmbito da discricionariedade
do direito. Hayek (1973), a seu modo, percebeu bem esse aspecto: “And since the theoreticians of democracy have for
over a hundred years taught the majorities that whatever they desire is just, we must not be surprised if the majorities
no longer even ask whether what they decide is just. Legal positivism has powerfully contributed to this development
by its contention that law is not dependent on justice but determines what is just” (p. 12).

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

por exemplo, usa o termo igualdade democrática no item 13 de sua obra


máxima. De outro lado, segundo Schmitt (2003), muito embora se costume
citar a liberdade e a igualdade como princípios democráticos, só a igual-
dade seria um princípio democrático; a liberdade, especialmente a indivi-
dual, seria um princípio liberal (p. 222). Vale destacar, como já avançado
no conceito de povo, que, para ele, não se trataria de uma igualdade geral
e indiferente, como avançado pelos liberais (SCHMITT, 2003, p. 223-4).
Noções como equidade, imparcialidade, justiça estão conectadas com esse
aspecto. Por certo, a querela econômica também tem peculiar correlação
com esse elemento.
6) ECONOMIA – Considera-se um item à parte, haja vista a importância
que esse elemento porta em relação à democracia, desde Aristóteles, pas-
sando por Marx até Laclau e Mouffe. Ela compõe preocupação central da
obra de Rawls, Dworkin, Habermas, Nozick, Fraser. Termos como frater-
nidade e solidariedade têm correlação com esse elemento.
Como visto, dois desses elementos, poder e povo, compõem o pró-
prio termo democracia. Três outros elementos traduzem os ideais da revo-
lução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Este último ganha seu
espaço privilegiado na dimensão da economia. O elemento jurídico ganha
sua importância, hodiernamente, no geral, como elemento mediador.
Optou-se por separar os elementos da liberdade e da igualdade por-
que esses dois princípios não são facilmente conjugáveis, como pode ser
visto a partir de Hobbes, Kant e Habermas. Para o primeiro, nos termos do
cap. XVI do Leviatã, o direito natural é a liberdade. Para ele, a igualdade,
por um lado, é um fato natural, nos termos do cap. XIII do referido livro:
“Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para
matar o mais forte”; por outro lado, é uma determinação da lei natural
que aparece na segunda lei, “contentando-se, em relação aos outros homens,
com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mes-
mo”, na nona lei, “que cada homem reconheça os outros com seus iguais por
natureza” e na décima lei, “Que ao iniciarem-se as condições de paz ninguém
pretenda reservar para si qualquer direito que não aceite seja também reservado
para qualquer dos outros”. Segundo Kant (RL, AA 06: 237-238) o único direi-
to inato que os humanos têm em razão de sua humanidade é a liberdade;
a igualdade está contida na liberdade. Por fim, para Habermas, “Normas
de ação que surgem em forma jurídica autorizam os atores a fazerem uso
de liberdades subjetivas de ação. A simples forma dos direitos subjetivos
não permite resolver o problema da legitimidade dessas leis. Entretanto, o
princípio do discurso revela que todos têm um direito à maior medida pos-
sível de iguais liberdades de ação subjetivas” (HABERMAS, 1997, p. 160).

26
DEMOCRACIA E AGONISMO

Vê-se bem, portanto, que ambos os princípios têm fontes e fundamentos


diversos, particularmente se o que estiver em consideração for a liberdade
jurídica e não a liberdade comunicativa.

Análise de alguns aspectos das teorias da democracia

Como visto, os vários modelos tecem severas críticas uns aos outros.
Por exemplo, o modelo agregativo recebe críticas no sentido de o modelo
econômico de tomada de decisão, que está em sua base, ser problemático
para o campo político. O problema do modelo de Schumpeter seria o seu
caráter formal e restrito ao direito de votar. Teria um déficit epistêmico
concernente à liberdade, à igualdade e à economia em face da necessidade
de lhes dar um sentido mais substantivo, o que, por certo, faz com que os
elementos povo e poder tenham um papel mais destacado.
A teoria agônica, por sua vez, tece severas críticas ao modelo deli-
berativo. Não obstante, ela mesma reconhece que nem tudo é hegemonia
ou poder quando apela ao chamado núcleo ético-político da igualdade e da
liberdade. Por seu turno, o problema do modelo homogêneo é o exagero na
politização no sentido do conflito. Teria um déficit epistêmico no sentido
de que as decisões parecem estar alicerçadas apenas em um voluntarismo
aclamatório. Por outro lado, o modelo deliberativo é forçado a assumir que
nem tudo é deliberação no sentido estrito do predomínio do discurso, ou
seja, do melhor argumento, pois há negociações, as quais envolvem rela-
ções de poder e hegemonia.
Uma das mais duras críticas endereçadas ao modelo deliberativo é
que não seria realista e de que não levaria a sério os conflitos. Sem em-
bargo dessa crítica, veja-se, a propósito, o que Rawls afirma a respeito do
intolerante, no limite, ele tem que ser combatido. Os cidadãos que seguem
os princípios de justiça podem forçar os intolerantes a respeitar a liber-
dade dos outros (RAWLS, 1999, p. 192). Habermas, por seu turno, também
parece ter clara consciência dos limites da realidade, tanto que foca gran-
demente na coerção jurídica contra a força dos sistemas. Ademais, tem
claramente presente o problema do dissenso, do conflito, senão veja-se.
Uma das objeções de McCarthy à sua teoria é justamente que ela
não distinguiria conflitos mais importantes do que aqueles categorizados
por Habermas como conflitos de interesses motivados estrategicamente.
Haveria pelo menos mais dois tipos (MCCARTHY, 1991, p. 196). O primei-
ro diz respeito ao conflito que pode haver entre o bem comum e a econo-
mia. Ou seja, a disputa não é entre interesses particulares. Essa seria uma
disputa ético-política. O segundo tipo de desentendimento é mais grave,
pois concerniria ao que Habermas chama conflito moral, ou seja, a algo
que deveria vincular a todos igualmente. Ele apresenta quatro exemplos:

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

aborto, eutanásia, pornografia e direitos dos animais. A esse respeito, duas


possibilidades podem se apresentar: “What one party considers to be a
moral issue, another party may regard merely as a pragmatic issue or as a
question of values open to choice or as a moral issue of another sort, or the
opposing parties may agree on the issue but disagree as to the morally cor-
rect answer” (MCCARTHY, 1991, p. 197). O caso do aborto é típico, para
alguns, o feto é uma pessoa, portanto, tem direitos, o que implica alocar
a proteção dos direitos do feto como questão de justiça, ou seja, daquilo
que é devido aos outros. Para outros, o feto não é uma pessoa, portanto,
não tem direitos, o que implica que a sua vida está à disposição da ética
subjetiva de cada um.6 Para ele, “These types of disagreement are usually
rooted in different ‘general and comprehensive moral views’” (MCCAR-
THY, 1991, p. 197). Por isso mesmo,
Disagreements of these sorts are likely to be a permanent fe-
ature of democratic public life. They are in general not resol-
vable by strategic compromise, rational consensus, or ethical
self-clarification in Habermas’s senses of these terms. All that
remains in his scheme are more or less subtle forms of coer-
cion, e.g., majority rule and the threat of legal sanctions (MC-
CARTHY, 1991, p. 198).

Não obstante, se os participantes forem reflexivos, bem como fali-


bilistas, e considerarem as instituições e procedimentos justos, eles ten-
deriam a avaliar as decisões como sendo legítimas, ainda que discordem
delas. Ou seja, consentiriam com normas que acham injustas, talvez, na
esperança de mudá-las no futuro (MCCARTHY, 1991, p. 198).
Habermas acolhe tal consideração como conflito de valores por
contraposição a conflito de interesses e começa por registrar certo en-
colhimento da capacidade das pessoas, juridicamente consideradas, pri-
vatizarem domínios da vida social, frente ao crescimento da identidade
dos indivíduos conectada com identidades coletivas que não podem ser
privatizadas (HABERMAS, 1995-1996, p. 1488).7

6 - Essa oposição pode, ainda, vir marcada por diferentes visões de mundo, como aquela de muitos religiosos que
acreditam: “First, God created the universe. Second, God created the universe for a purpose, and with a design or
plan for achieving that purpose. Third, God’s purpose for the universe is a supremely and inclusively good purpose –
good in the sense that it involves the achievement of the blessedness of God’s creatures. This framework of beliefs
about life and the universe is vastly different from a secular framework, which instead views life largely as a fortunate
(or perhaps unfortunate) accident without any encompassing purpose or plan” (SMITH, 2014, p. 1350). De se anotar
que já Coulanges (2009) apontava para o diagnóstico de que a crença religiosa, muito embora uma criação humana,
seria mais forte do que os seus criadores, pois o homem acaba submetido ao seu pensamento: “il est assujetti à sa
pensée” (163). O único reparo é que Coulanges aplicava esse diagnóstico ao homem antigo, não ao moderno. Sem
embargo, as discussões políticas do século XX parecem sufragar a ideia de que o homem contemporâneo se encontra
tão submetido à religião, quanto ao antigo, ao menos no que concerne à religião ser um elemento importante no
debate político contemporâneo.
7 - Uma tese que relembra um ponto suscitado por Sandel (1998), quando afirma que os membros de uma sociedade
“[…] conceive their identity- the subject and not just the object of their feelings and aspirations- as defined to some

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DEMOCRACIA E AGONISMO

Nesse sentido, ele analisa dois mecanismos constitucionais que seriam


capazes de neutralizar diferenças ou conflitos (HABERMAS, 1995-1996, p.
1489). O primeiro é pela distinção entre questões de justiça e questões da
vida boa, ou seja, a diferença entre o justo e o bem, passível de aplicação
para os casos da eutanásia e do aborto, por exemplo. Em casos assim, a ques-
tão está de tal modo ligada a visões de mundo, ideologias, religiões, que o
conflito não pode ser resolvido por discurso ou negociação, restando como
alternativa justamente a sua privatização sob o viés do que é eticamente dis-
ponível ao indivíduo decidir (HABERMAS, 1995-1996, p. 1489). Porém, para
tal, os sujeitos precisam tomar o ponto de vista moral: “They must, instead,
take the moral point of view and examine which regulation is ‘equally good
for all’ in view of the prior claim to an equal right to coexist” (HABERMAS,
1995-1996, p. 1490). Como ele observa, por um lado, isso não resolve pro-
priamente o conflito, apenas abstrai dele. Por outro lado, tal mecanismo de
neutralização não significa que as consequências dessa regulamentação se-
jam distribuídas simetricamente. Pode ocorrer até o contrário disso. Essa
distribuição assimétrica das consequências acaba por ser um efeito colateral
de se deixar irresoluta a controvérsia do conflito, tendo em vista a coexistên-
cia. Sabidamente, tal estratégica tende a beneficiar uma perspectiva liberal,
por exemplo, em relação à eutanásia. Justamente por isso, faz-se necessária
a tolerância, por exemplo, em relação ao aborto: “Instead, what is legally re-
quired of us is tolerance for practices that in ‘our’ view are ethically deviant.
Tolerance is the price for living together in an egalitarian legal community”
(HABERMAS, 1995-1996, p. 1490).
O uso de tal estratégia só pode ocorrer sob o pressuposto de que o
conflito seja considerado ético (HABERMAS, 1995-1996, p. 1491). Em ou-
tras palavras, ele concerniria a uma questão pessoal, não moral. Dito cla-
ramente, a questão não diria respeito a uma questão de justiça no sentido
daquilo que seria bom para todos. Como isso, ocorre a exigência de mais
tolerância de uns em relação aos outros, o que acaba por impactar o segun-
do modo de neutralizar diferenças: a legitimação pelo procedimento. Mes-
mo no nível altamente abstrato de discussão moral da primeira estratégia,
o consenso, de fato, raramente é alcançado. Em sendo assim, pergunta-se,
a busca pela única resposta correta seria uma ilusão? Mesmo que empiri-
camente os consensos sejam bastante ilusórios, cabe perguntar, mais uma
vez, por que a busca pela única resposta correta é ainda necessária? Em a
resposta sendo positiva, como reconciliar tal desiderato com a evidência
dos dissensos permanente?

extent by the community of which they are a part. For them, community describes not just what they have as fellow
citizens but also what they are, not a relationship they choose (as in a voluntary association) but an attachment they
discover, not merely an attribute but a constituent of their identity” (p. 150).

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Em consideração à primeira questão, dito cruamente, a crença na


possibilidade da única resposta correta é necessária porque senão a alter-
nativa seria a violência. Em outras palavras, caso não sejam possíveis esses
vários tipos de entendimento entre as diferentes visões de mundo, então,
a alternativa seria o conceito de política defendido por Schmitt em O con-
ceito do político e em A crise da democracia parlamentar (HABERMAS,
1995-1996, p. 1493). Se os conflitos políticos forem de natureza ética e não
puderem ter uma redescrição em um nível mais abstrato de justiça, então,
haveria pouca alternativa à violência. Nesse caso, “Political disputes would
forfeit their deliberative character and degenerate into purely strategic
struggles for power […]” (HABERMAS, 1995-1996, p. 1493).
Desse modo, repõe-se a questão: como o procedimento pode supor-
tar essa demanda? Precisamente nesse caso, para Habermas, a institucio-
nalização jurídica do procedimento comunicativo pode ajudar. Com efeito,
“a specific feature of law is that it can legitimately compel” (HABERMAS,
1995-1996, p. 1494), com isso, o discurso político e de negociação ganha al-
gumas propriedades formais do direito. Por exemplo, sob o ponto de vista
externo, limitações de tempo podem ser introduzidas como uma regra que,
sob o ponto de vista interno do participante, não afeta a força legitima-
tória discursiva. Nesse diapasão, é pressuposta a legitimidade prima facie
das decisões majoritárias, a despeito das limitações de tempo existentes
para que uma decisão seja tomada, em geral por votação. Tratar-se-ia de
um procedimento imperfeito porque não poderia garantir que o resultado
viria marcado pela correção; por outro lado, seria um procedimento puro,
pois não haveria critério de correção independente do próprio procedi-
mento (HABERMAS, 1995-1996, p. 1494-5).
Nessa perspectiva, para que a tolerância seja razoável, é necessário
que haja uma base para concordar em discordar, senão, seria apenas um
modus vivendi (HABERMAS, 1995-1996, p. 1500). No entanto, Habermas
diagnostica que a tolerância vem sendo experimentada subjetivamente, de
forma crescente, como não razoável (HABERMAS, 1995-1996, p. 1500). Por
conseguinte, a tolerância é um recurso político que escasseia, o que pode
ter por consequência a exacerbação do ódio, do conflito, na sociedade. Ha-
bermas pensa que uma das maneiras de fazer frente a isso seria por uma
fundamentação normativa da tolerância (HABERMAS, 1995-1996, p. 1501).
Como conclusão, ele avança a tese segundo a qual, “The democratic
process promises to deliver an ‘imperfect’ but ‘pure’ procedural rationality
only on the premise that the participants consider it possible, in principle,
to reach exactly one right answer for questions of justice” (HABERMAS,
1995-1996, p. 1501). Precisamente contra isso a perspectiva agônica levanta
as suas suspeitas, as quais são admitidas por Habermas, na sua explicação

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DEMOCRACIA E AGONISMO

do em princípio da citação, no sentido de “operate with the (generally valid)


premise of ‘one right answer’ merely as a promissory note or bill to be paid
at a later date” (HABERMAS, 1995-1996, p. 1502).

Considerações finais

As diversificadas teorias da democracia combinam os elementos


de forma diferente, dando maior ou menor importância a alguns deles.
Há leituras que tomam a democracia como incompatível com direitos in-
dividuais fortes, como é a proposta homogênea. Há outras que a tornam
incompatível com um tipo de economia, a capitalista, como o modelo
agônico. Essas posições têm, outrossim, restrições ao modelo fortemen-
te juridicizado de democracia. Dito em outras palavras, haveria uma in-
compatibilidade da democracia com o liberalismo, com a economia capi-
talista e com direito positivo
Há outras leituras mais compatibilistas. Essas leituras têm uma longa
tradição que vem ao menos desde Hobbes, a incluir Locke, Kant, Rousseau,
Rawls, Habermas. De acordo com os compatibilistas, seria possível harmo-
nizar, equacionar, combinar, os cinco elementos. Por exemplo, a proposta de
Habermas (1997b, p. 10-11) defende haver um nexo constitutivo entre poder
e direito (p. 10). Nesse sentido, ela inclui o conceito de poder (Macht) e de au-
toridade (Autorität) normativa que advém justamente pelo direito legítimo.
Portanto, diferentemente da proposta agônica, o conceito de poder político
não é reduzido ao poder social. Justamente, segundo Habermas, as leituras
empiristas, como a de Mouffe, que fala em objetividade social, não ignoram
a relação entre poder e legitimidade, mas tendem a reduzir a legitimidade ao
poder social como força (Kraft) capaz de impor interesses. Como visto, o con-
ceito de hegemonia operaria uma convergência entre objetividade e poder,
de tal forma a não haver lacuna insuperável entre poder e legitimidade. Para
Habermas, é diferente. Sob o ponto de vista do participante, as condições de
aceitabilidade (Akzeptabilität) do direito e da dominação política (politischer
Herrschaft) se transformam em condições de aceitação (Akzeptanzbedingun-
gen), quando, então, as condições de legitimidade se tornam condições da
estabilidade de uma crença geral na legitimidade do governo. Ou seja, não
se trata do fato do poder social como quer Mouffe.
Evidentemente, isso confere um papel destacado às instituições ju-
rídicas, especialmente a sua função judicante. Veja-se que um sentido re-
almente exacerbado da interpretação pode correr na direção de um sem
sentido pleno dos princípios ético-políticos da liberdade, da igualdade e
da fraternidade. Como bem destacou o filósofo-político inglês, “Todas as
leis, escritas ou não, têm necessidade de uma interpretação” (HOBBES,
1979, cap. XXVI). A despeito disso, a interpretação do soberano encontra

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

um limite na disposição de obediência do súdito, na medida em que suas


ordens têm que ter em vista a proteção do mesmo, como se lê no último
parágrafo do Liviatã: “E assim cheguei ao fim de meu discurso sobre o go-
verno civil e eclesiástico, ocasionado pelas desordens dos tempos presen-
tes, sem parcialidade, sem servilismo, e sem outro objetivo senão colocar
diante dos olhos dos homens a mútua relação entre proteção e obediência,
de que a condição da natureza humana e as leis divinas (quer naturais,
quer positivas) exigem um cumprimento inviolável”. Ora, não há proteção
sem conteúdo certo, por exemplo, a proibição do homicídio. Desse modo, a
proposta de um sem-conteúdo absoluto como condição da ordem política,
como parece pressupor o conceito de hegemonia que se põe no lugar de
uma falha, ou uma ausência radical de conteúdo, não pode ser levada até o
final, ao menos sob o pálio da democracia agônica que quer incluir a todos,
não só os trabalhadores, e que, por isso mesmo, na letra do próprio texto,
já não pode abdicar de duas determinações bem claras, as quais, portanto,
constituem uma atmosfera por contraposição ao vácuo, ainda que rarefei-
ta, aliás, com conteúdo oxigenado bem claro, a saber, direito à vida, direito
à livre expressão de ideias, direito à tolerância:
Vislumbrada a partir da óptica do ‘pluralismo agonístico’, o
propósito da política democrática é construir o “eles” de tal
modo que não sejam percebidos como inimigos a serem des-
truídos, mas como adversários, ou seja, pessoas cujas ideias
são combatidas, mas cujo direito de defender tais ideias não é
colocado em questão. Esse é o verdadeiro sentido da tolerân-
cia liberal-democrática (MOUFFE, 2005, p. 20).

Reale propôs uma teoria do direito, chamada por ele de tridimensio-


nal. Ele restringiu a teoria tridimensional ao domínio da ética, com alguma
aplicação na estética. Pretende-se fazer duas alterações na sua teoria. A
primeira é transformá-la nos termos de uma metateoria. Na verdade, não
se trata de uma teoria específica, mas de uma metateoria sobre a ética, a
incluir o direito, a moral, a política. Nesse sentido, os quatro modelos de te-
oria democrática teriam aspectos tridimensionais, já que têm aspectos filo-
sóficos, sociológicos ou fáticos, e jurídicos. O ponto mais importante para
a presente proposta é que o tridimensionalismo de Reale poderia apoiar o
que se chamou de versões compatibilistas das teorias democráticas.
A teoria tridimensional, de acordo com seu autor, pressuporia uma
complementariedade das pesquisas filosóficas, com finco no fundamento
do valor, das pesquisas sociológicas, com viés na eficácia dos fatos, e das
ciências jurídicas, com base na vigência da norma (REALE, 1986, p. 14).
Desse modo, fato, norma e valor não seriam separáveis, mas momentos
inelimináveis do direito. Por seu turno, o tridimensionalismo específico

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DEMOCRACIA E AGONISMO

de Reale “procura correlacionar dialeticamente os três elementos em uma


unidade integrante” (REALE, 1986, p. 48). Haveria uma tensão entre fato
e valor, da qual resultariam as normas (REALE, 2002, p. 392-3). Segundo
Reale (1986, p. 57), a sua teoria tridimensional se distingue por ser concreta
e dinâmica, ou seja, quando o sociólogo estuda o direito, as outras dimen-
sões estão envolvidas, sendo que elas se alteram ao longo do tempo. Não se
trata de uma tridimensionalidade genérica ou abstrata, na qual o socioló-
gico, o jurista e o filósofo estudariam o fenômeno separadamente. Ela teria
concreção histórica, pois seria funcional e dialética, já que da polaridade
ou tensão entre fato e valor resultaria o momento normativo. Em epíto-
me, ela seria concreta ou integrante, haja vista a norma ser uma realidade
cultural, pois nela se compõem conflitos de interesses e se integram reno-
vadas tensões fático-axiológicas, segundo razões de oportunidade e con-
veniência. Ou seja, a interpretação de uma lei depende de circunstâncias
fáticas que se alteram, bem como da alteração do próprio valor, no caso de
Reale, o valor da pessoa humana. De acordo com a teoria, a justificação do
poder tem condicionamentos nos fatos, mas também no valor (p. 61).
Como se vê, portanto, o modelo tridimensional de Reale sustenta a
interpretação compatibilistas dos diversos elementos que deveriam com-
por uma boa teoria da democracia.
Por fim, sob um viés de justiça, quiçá, poder-se-ia apontar para o
caráter bem-sucedido da proposta compatibilista para realizar determi-
nações de justiça. Para tal, toma-se com exemplar a teria de Fraser (2013,
p. 193), que é, precisamente, uma teoria tridimensional da justiça. Justiça,
para ela, significa paridade de participação, de tal forma que com essa for-
mulação ela correlaciona diretamente justiça e democracia. Segundo o seu
modelo, injustiças são obstáculos à participação: por um lado, no domínio
da economia, tal obstáculo ou injustiça seria a má distribuição; de outro
lado, hierarquias sociais e culturais que ferem o igual status, também afe-
tariam a paridade de participação. Vale anotar que essas desigualdades de
status são nominadas por ela de reconhecimento falho (misrecognition). Es-
sas duas dimensões da justiça, a econômica e a cultural, têm relações mú-
tuas, mas não se reduzem uma à outra (FRASER, 2013, p. 194). Por fim, ela
acrescenta uma terceira dimensão, aquela propriamente política, instância
na qual as lutas referentes à má distribuição e ao reconhecimento falho
são, na verdade, decididas. Ela concerne a quem e como se decide. Tem
relação, portanto, com a representação (FRASER, 2013, p. 195). A injustiça,
nessa dimensão, é a representação falha (misrepresentation). Por certo, tem
relação com as outras duas esferas, mas não pode ser reduzida a elas (FRA-
SER, 2013, p. 196). O viés político-democrático de sua proposta se mostra
em certa prioridade da dimensão da representação em relação às outras

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

duas esferas: “Thus, no redistribution or recognition without representa-


tion” (FRASER, 2013, p. 199).
Ora, é possível avaliar as democracias atuais, fortes no predomínio do
elemento da lei positiva, no sentido de terem avançado nas dimensões da
justiça propostas por Fraser, haja vista terem determinado e assegurado, não
sem luta política, direitos de participação no poder, direitos sociais que as-
seguram condições mínimas de vida, bem como de terem determinado e as-
segurado o respeito a um status igualitário mínimo no sentido do reconhe-
cimento devido igualmente a todos, ainda que não em um sentido afetivo.8

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8 - Nesse particular, o projeto da democracia deliberativa de Habermas, com base em papel bastante expressivo
do direito positivo, inclusive como compensação pelas falhas de eticidade, contrasta com a versão honnethiana de
democracia em bases mais éticas que jurídicas (VOLPATO DUTRA, 2017). Honnetth parece ter operado, inclusive,
uma espécie de virada afetiva na teoria crítica. Mais que isso, o reconhecimento, no sentido da afetividade, acaba
galgado a fundamento da própria cognição do mundo (HONNETH, 2008, p. 40s). Analogamente à terminologia de
Darwall (1977), opera-se um deslocamento do reconhecimento como respeito moral e jurídico para o reconhecimento
como afeto [appraisal] (p. 39). De se destacar, inclusive, o modo como Honneth parece recepcionar, por um lado, a
crítica de Marx ao direito, mas sem dar, como Marx, o devido peso à economia. Por outro lado, ele parece reconstruir
ou atualizar a crítica de Hegel a Kant, contudo, dando o peso maior não ao Estado, mesmo que inflado eticamente,
mas preenchendo com afetos de amor e de estima o vácuo deixado pelas relações jurídicas e morais inquinadas de
patologia (HONNETH, 2015, cap. 4.3 e 5.3). Tendo em vista essa discussão, vale anotar essa frase atribuída a Martin
Luther King Jr: “It may be true that the law cannot make a man love me, but it can keep him from lynching me, and I
think that’s pretty important” (apud SCHAUER, 2015, p. 22).

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DEMOCRACIA E AGONISMO

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37
2
Democracia, desacordos morais
e o conflito entre tradição
e pluralismo político
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira

Há moralistas imoralíssimos.
Guerra Junqueiro

Moralistas são pessoas que renunciam às alegrias corriqueiras para


poder, sem culpa e recriminação, estragar a alegria dos outros.
Bertrand Russel

O moralista é um hipócrita que reprime nos outros


o que não reprime em si.
Contardo Calligaris

Introdução

Lopéz Arangurem, em seu livro Ética y Poltica, de 1966, portanto,


escrito numa Espanha que ainda não divisava claramente o final da ditadu-
ra franquista, afirmou uma verdade político-sociológica inegável, qual seja
La democracia no es un status en el que puede un pueblo có-
modamente instalarse. Es una conquista ético-política de cada
día, que sólo a través de una autocrítica siempre vigilante pue-
de mantenerse, como decía Kant de la moral en general, una
tarea infinita en la que si no se progresa se retrocede, pues
incluso lo ya ganado ha de reconquistarse cada día [...] La de-

39
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

mocracia nunca puede dejar de ser lucha por la democracia


[...] antes y más profundamente que un sistema de Gobierno es
un sistema de valores que demanda una reeducación político-
-moral [...] (LOPÉZ ARANGUREM, 1966, p. 293-294).

Essa concepção se aproxima muito àquela que se tem identificado


como agônica, posto estar incrustada no paradoxo do já-mas-ainda-não,
vale dizer, na noção de perfectibilidade da democracia “real” quando cote-
jada como o modelo “ideal” em que a igual-liberdade e a igual-dignidade
sejam asseguradas a todas as pessoas, indistintamente, bem como da fra-
gilidade das conquistas civilizacionais alcançadas ante as ameaças reais e
iminentes de retrocesso, tendo como substrato essencial de compreensão
a distinção entre poder e governo.
Ao justificar a sua adesão a essa concepção agonística, Chantal Mou-
ffe o faz a partir dos seguintes argumentos:
Alguns teóricos como Hannah Arendt veem o político como
um espaço de liberdade e da deliberação pública, enquanto
outros o veem como um espaço de poder, conflito e antago-
nismo. Meu entendimento do “político” claramente pertence
à segunda perspectiva, mais precisamente por ser esta a for-
ma como eu distingo o ‘político’ da ‘política’: por “político”
entendo a dimensão do antagonismo que tomo como consti-
tutiva das sociedades humanas, enquanto por “política” com-
preendo um conjunto de práticas e instituições através das
quais se cria uma ordem, organizando a coexistência humana
no contexto de conflitualidade provido pelo político (MOU-
FFE, 2005, p. 9, livre tradução).

A distinção proposta por Mouffe entre política e político é indispen-


sável para se chegar ao conceito de democracia enquanto sistema político
por estabelecer a sua alteridade fundamental tanto com relação às formas
de governo como das instituições estatais responsáveis por sua permanên-
cia na facticidade histórica. Se isso não for possível, ocorrerá aquilo que
Agamben tem severamente criticado, como seja, a anfibologia que se abate
sobre o próprio conceito de democracia, tornando impossível a comunica-
ção e a práxis políticas. Com efeito, conforme Agamben
O termo democracia soa uma nota falsa sempre que surge nos
debates atuais por conta de uma ambiguidade preliminar que
condena [a] qualquer pessoa que o usa a não se comunicar. Do
que falamos quando falamos de democracia? Qual a lógica sub-
jacente? Um observador atento vai logo perceber que, enquanto
ouve a palavra, isso pode significar uma de duas coisas diferen-
tes: uma forma de constituir o corpo político (neste caso nós
estamos falando sobre direito público) ou uma técnica de go-
verno (neste caso nosso horizonte é a prática administrativa).
Para dizer de outro modo, democracia designa tanto a forma

40
DEMOCRACIA E AGONISMO

pela qual o poder é legitimado como a maneira pela qual ele é


exercido. Uma vez que é perfeitamente claro que o último signi-
ficado prevalece no discurso político contemporâneo - a palavra
democracia é utilizada na maior parte dos casos para identificar
a uma técnica de governo (algo que, per se, não é particular-
mente reconfortante) -, é fácil verificar porque quem continua
a usá-la, de boa-fé, no sentido anterior, pode experienciar certo
mal-estar. Estes dois campos da conceituação (o jurídico-polí-
tico e o econômico-gerencial) tem-se sobreposto um ao outro
desde o nascimento da política, do pensamento político e da de-
mocracia na polis grega ou cidades-estados, o que torna difícil
separá-los [....] Quando o mesmo conceito político fundamen-
tal pode ser traduzido tanto como “constituição” quanto como
“governo”, então nos aventuramos para além da ambiguidade e
ingressamos no terreno inexpressivo da anfibologia (um termo
da gramática e da retórica que significa a indefinição de [um]
significado) (AGAMBEN, 2014, p. 11-12).

Logo, uma concepção agônica de democracia deve pressupor, pelo


menos, três níveis de disputas: a) sobre o significado de democracia; b)
sobre os critérios de seu funcionamento enquanto sistema político, isto é,
a que se presta e como devem operar as instituições, o que envolve, sem
qualquer dúvida, discussões sobre os níveis razoáveis do exercício da vio-
lência consentida, de enfrentamento das desigualdades sociais e de gêne-
ro, de proteção ao meio ambiente a partir da ideia de pacto intergeracional
(DE OLIVEIRA; MOREIRA, 2016, p. 115-132, 2019, p. 157-172) etc; e c) o
conteúdo das normas sociais (não necessariamente jurídicas) no concer-
nente às pretensões e expectativas sobre a vida boa e justa e de igual digni-
dade, isto é, uma disputa sobre o valor fundante de uma genuína sociedade
decente, que deve assegurar a todas as pessoas o viver bem (DWORKIN,
2011, p. 1). Mas isso somente é possível se a teoria que a busca compreen-
der estiver imbuída daquele fundamento emancipatório que Boaventura
de Souza Santos identifica pela díade “conhecimento prudente para uma
via decente” (SANTOS, 2001, passim).
No presente trabalho, como indicado por seu título, os dois primei-
ros problemas serão marginais em relação ao terceiro, aqui tratado a partir
do conceito de desacordos morais no contexto de uma sociedade plural.
Para aclarar, a concepção de democracia aqui adotada se aproxima
àquela de Adam Pzreworski em Crises of democracy, segundo a qual
A democracia está funcionando bem quando [as] instituições
políticas estruturam, absorvem e regulam todos os conflitos
que possam surgir na sociedade. [As] Eleições – o mecanis-
mo pelo qual uma coletividade decide quem deve governá-la
e como – são os mecanismos centrais pelos quais os conflitos
são processados nas democracias. No entanto, este mecanis-
mo funciona bem somente quando as apostas não forem muito

41
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

grandes, se se perder uma eleição não for um desastre e se


as forças políticas que foram derrotadas tiverem uma razoável
chance de vencer no futuro (PZREWORSKI, 2019, p. 143)

Em síntese, no contexto das democracias agônicas contemporâneas,


os princípios da maioria, da proteção das minorias, do pluralismo político e
da inviolabilidade dos Direitos Humanos devem estruturar o como dos con-
flitos morais e políticos, conflitos que não lhe são acidentais, mas essenciais.
Mas o que se deve entender por desacordo moral? E mais importan-
te ainda, qual a expectativa que se deve ter quando o desacordo envolve a
relação bastante assimétrica entre maioria e minorias?
Entende-se por desacordo moral a circunstância de que um mesmo
fato histórico-social ou comportamento humano in abstrato ou concreto
seja objeto de valoração positiva ou negativa, bem como ocorra a defesa,
no espaço público (DE OLIVEIRA; MOREIRA, 2018, p. 34-82), tanto da ne-
cessidade de que ele sirva de paradigma positivo e, portanto, repetido por
outras pessoas, ou mesmo adotado como parâmetro para a criação de polí-
ticas públicas, ou negativo, devendo mesmo, em determinadas circunstân-
cias, ser proibido. Essas valorações – no sentido de julgamento axiológico
– têm como parâmetros códigos morais partilhados comunitariamente.
No que toca à abrangência do desacordo, é possível categorizá-lo em
relativo e absoluto. Será relativo quando, inobstante a sua manifestação,
for possível a dissolução em favor de uma decisão moralmente legítima
para os contendedores, podendo-se aqui se adotar tanto os princípios fun-
damentais do pensamento habermasiano – comunicação, entendimento e
consenso sem coerção – ou o da pedagogia freiriana – diálogo, capacidade
de escuta e veracidade.
Em Habermas, o desacordo assim resolvido redundará em emanci-
pação social; para Paulo Freire, a aprendizagem que produz transformação
social (MEDEIROS; 2015, p. 1214-1230). Contudo, é importante observar
que tanto em Freire como em Habermas não é possível haver consenso
sobre a mentira.
Com efeito, o dever de verdade, para que ocorra a composição do desa-
cordo social, é condição prima facie, e isso é bastante evidente, pois, sendo a
mentira um vácuo linguístico destituído de facticidade ou razão,1 não é apta
a produzir consenso duradouro, embora seja usual no campo da disputa pelo
poder, como atesta a história. Entretanto, o ônus político e social da mentira
torna a vitória idêntica àquela de Pirro, vale dizer, insustentável, demandan-
do de seus agentes não somente o embuste, mas também o autoengano, a

1 - Hannah emprega a expressão “hiato de credibilidade” que se tornou em um “abismo” às mentiras contidas nos
famosos Documentos do Pentágono (HANNAH, 1999, p. 14).

42
DEMOCRACIA E AGONISMO

desfatualização contínua e o apelo à violência pura e simples como condição


de manutenção do poder (ARENDT, 1999, p. 15-17).
Já o desacordo moral absoluto é aquele em que os fundamentos mo-
rais se encontram em polos que são de tal forma inconciliáveis que não é
possível uma composição que permita a construção de um caminho me-
diano. A oposição, por ser absoluta, ilide e impede qualquer consenso, en-
sejando, nesse sentido, uma disputa pela afirmatividade ou negatividade
da valoração atribuída a fato ou comportamento, sendo possível que os
oponentes defendam o silenciamento do outro, quando não, em situações
particularmente graves, a sua eliminação moral e física.
A questão que se procurará responder é que papel deve ser desempe-
nhado pelas instituições democráticas no contexto de desacordos morais,
sejam eles relativos ou absolutos.
Os marcos teóricos que darão fundamentação e direção à busca des-
sa resposta são, no aspecto normativo, o princípio do pluralismo político,
e no teórico-dogmático a teoria liberal desenvolvida por Michel Rosenfeld
em seu ensaio A identidade do sujeito constitucional, temas que serão
abordados no próximo tópico.

Democracia e pluralismo: uma leitura a partir da identidade do sujeito


constitucional de Michel Rosenfeld

Michel Rosenfeld é professor titular da Cátedra Justice Sidney L.


Robins de Direitos Humanos da Benjamim N. Cardozo Scholl of Law –
Yeshiva University, Nova Iorque, sendo sectário do liberalismo político
anglo-saxônico que foi defendido por, entre outros, John Rawls e Ronald
Dworkin.
Essa linha da filosofia política contemporânea – que está centrada
no princípio do pluralismo político – funda-se sobre as exigências político-
-jurídicas necessárias para a constituição de uma sociedade modelada pela
diversidade de opiniões acerca do bem e da vida boa (diversidades ético-
-morais), o que pressupõe a coexistência de variados grupos que lutam pelo
reconhecimento e concretização de seus direitos fundamentais mediante
a (re)afirmação de princípios da moralidade política, em especial, o prin-
cípio da igual dignidade de todos perante o direito, o que ilidiria, absolu-
tamente, discriminações e tratamentos humilhantes a qualquer pessoa ou
grupo (TAYLOR, 2018, p. 34-82).
Em dois momentos distintos de sua obra Rosenfeld afirma a relação
indissociável entre o constitucionalismo e o pluralismo:
O constitucionalismo não faz sentido na ausência de qualquer
pluralismo. Em uma comunidade completamente homogênea,
com um objetivo coletivo único e sem uma concepção de que

43
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

o indivíduo tem algum direito legítimo ou interesse distinto


daqueles da comunidade como um todo, o constitucionalismo
[...] seria supérfluo (ROSENLFED, 2003, p. 21, nota 13).

E, “[...] o constitucionalismo depende do pluralismo e pode, em últi-


ma instância, ser visto como aquele que outorga os meios para institucio-
nalizar o pluralismo”. (ROSENLFED, 2003, p. 36).
Para que fique claro, constitucionalismo é sinônimo de democra-
cia constitucional, vale dizer, o sistema democrático regulado por prin-
cípios e regras constitucionais e vinculação imediata e inarredável aos
Direitos Humanos.
Frente a isso, o autor procura fundamentar a construção da identi-
dade do sujeito constitucional a partir de uma ética pluralista, em que o
constituinte, ao fundar um Estado Constitucional, deve renunciar às suas
identidades pré-constitucionais e firmar-se sobre o pluralismo como sua
característica mais proeminente.
Essa construção se dá necessariamente pelo discurso jurídico, mor-
mente o discurso jurisdicional, na medida em que a identidade do sujeito
constitucional, por ser evasiva, prenhe de vacuidade, precisa ser recons-
truída a cada momento de modo a se (re)legitimar a Constituição segundo
os parâmetros do constitucionalismo, donde surge, no entender de Rosen-
feld, uma tensão entre Constituição (enquanto texto) e o direito consti-
tucional (princípios político-morais a serem implementados), tendo como
paradigma o governo limitado (check and balances), com respeito aos direi-
tos fundamentais e os princípio da Rule of Law.
Como afirmado, Rosenfeld afirma que a identidade do sujeito consti-
tucional é problematicamente evasiva, que já se inicia no próprio conceito
de sujeito constitucional, pois o termo, em inglês – constitucional subject –
pode denotar três significados distintos: a) subject pode denotar o mesmo
que súdito, como seja, aquele que se sujeita à Constituição, b) subject tam-
bém pode denotar aquele que tem o poder de elaborar a Constituição, como
seja, sujeito constituinte, e c) subject, por fim, pode denotar o conteúdo, o
componente normativos das normas constitucionais (subject matter).
Além disso, o problema persiste mesmo que se possa estabelecer com
precisão o “o quê” e o “quem” significam sujeito constitucional, na medida
em que existe uma propensão em ligá-lo, por suas relações, profundas e
complexas, com outras identidades relevantes, tais como as identidades
nacionais, culturais, étnicas e religiosas. Ademais, a identidade constitu-
cional é propensa a se alterar com o tempo, abarcando ora um significado
ora outro, conforme a interpretação que se faça da expressão, devendo-se,
portanto, fazer-se a sua reelaboração através de um entrelaçamento entre
o passado e o futuro das gerações que se sujeitam à Constituição.

44
DEMOCRACIA E AGONISMO

No contexto do problema do entrelaçamento, o autor aponta a com-


plexidade que decorre de uma Constituição escrita na relação que ela
tem consigo mesma, vale dizer, a possibilidade de se fazerem interpre-
tações distintas do mesmo texto constitucional. Que fazer? Socorrer-se
da concepção originalista (a Constituição significa o que os fundadores
da Constituição entendiam que ela deveria significar), ou socorrer-se na
necessidade de reinterpretação e reconstrução do texto constitucional a
fim de compatibilizá-la com o presente? Além disso, uma Constituição
é necessariamente incompleta, no sentido de que não lhe é possível nem
recobrir toda a matéria constitucional relevante, como é certo que ela não
o faz, uma vez que a necessidade de regulação constitucional de determi-
nada matéria surge da necessidade político-jurídica historicamente dada,
sujeitando-se, por consequência, a distintas interpretações. Assim, uma
constituição escrita deve ser necessariamente aberta à interpretação, mes-
mo que isso pressuponha aceitar-se uma multiplicidade de interpretações
divergentes, embora igualmente defensáveis.
De semelhante forma, o problema das emendas à Constituição im-
põe um caráter evasivo e conflitivo da Constituição consigo mesma, pois,
haja uma maior ou menor facilidade para que a Constituição seja emenda-
da, sempre surge o questionamento: estas emendas destoam da identidade
constitucional? O caso da Hungria é bastante interessante: com o passar
desta nação do socialismo para o capitalismo, a partir de 1989, somente
o dispositivo que prevê Budapeste como capital da República permane-
ceu. Qual a identidade dessa “nova” Constituição frente àquela originária?
(ROSENFELD, 2003, p. 20)
No contexto acima, a própria Constituição Americana é bastante ex-
pressiva neste sentido: antes da Guerra da Secessão, permitia-se a escravi-
dão (caso Dread Scott vs. Stanford), sendo que com o seu término, a escravidão
foi proibida (Emenda XIV), permitindo-se, no entanto, a segregação racial
(regra separate but equal, caso Plessy vs. Ferguson), para, ao depois, se negar a
possibilidade da própria segregação (caso Brown vs. Board of Education). Que
identidade constitucional permaneceu no correr de todas essas alterações?
Segundo Rosenfeld, o constitucionalismo impõe, para a formação da
identidade constitucional, um confronto entre pluralismo e tradição, que
identifica as diversas identidades pré-constitucionais, tais como religião,
etnia, cultura e nacionalidade. Esse confronto se concretiza pela imposi-
ção de limites às identidades pré-políticas da nação (PREUSS apud RO-
SENFELD, 2003, p. 21).
A identidade constitucional, por competir com aquelas identidades
pré-constitucionais relevantes, não pode ser conceituada como mera opo-

45
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

sição a elas, porquanto disso decorreria um conceito tão abstrato que não
teria qualquer relevância operativa.
A identidade constitucional tem, contemporaneamente, fundamen-
to em razões de moralidade política, tais como os direitos fundamentais,
o direito de igualdade (equal protection of Law) e a liberdade de expressão.
Contudo, estes fundamentos morais só têm relevância e operatividade num
contexto em que as identidades pré-políticas não são excluídas por defi-
nitivo, mas conformadas pela Constituição. Assim, o direito de igualdade,
por ser um conceito abstrato, somente tem operatividade se da sociedade
em concreto se poder aferir que tipo de igualdade necessita: meramente
formal (ou de oportunidades) ou a material (distributiva).
Disso decorre que a problemática do sujeito constitucional implica,
de um lado, na necessidade de se contrapor frente àquelas identidades pré-
-políticas (nacionalidade, étnicas, culturais e religiosas), ao mesmo tempo
em que ele as deve abarcar, pois o intérprete constitucional, quando da
concretização do texto constitucional, jamais se despirá de quaisquer des-
sas identidades que formam o seu caráter.
Em síntese, se ao se formar a identidade constitucional o constituin-
te se despisse de qualquer das identidades pré-constitucionais, mesmo as-
sim elas se esgueirariam para dentro através da interpretação feita pelo
intérprete nelas formado. Sob esse aspecto particular, como dizia Helmut
Coing, referindo famoso brocardo horaciano,
O direito tem que considerar esta natureza do homem se qui-
ser ser eficiente e evitar vicissitudes inúteis. O direito tem que
ter em conta as condições como em realidade são. Nisso radica
sua humanidade. Um direito que descure disso corre o perigo
de praticamente fracassar, e, em todo caso, provocará o desas-
tre e a desdita. A história conhece muitos exemplos nos quais
as exigências das leis foram em sentido contrário aos da natu-
reza, e todas estas leis fracassaram. O homem não pode, à lar-
ga, regulamentar contra a natureza das coisas. A proposição
“naturam expellas furca, tamen usque recurret” também vigora no
direito (COING, 2020, p. 189).

Assim, fica evidente que a identidade do sujeito constitucional é


algo sempre complexo, fragmentado, parcial e incompleto, o que se mostra
bastante evidente numa Living Constitution, como é o caso da Constituição
de 1787, uma vez que ela se tem renovado constantemente, sendo, por isso,
a identidade constitucional o produto de um processo dinâmico sempre
aberto à maior elaboração e revisão. Neste sentido, Rosenfeld analisa o
preâmbulo da CF/1787, através da conhecida expressão “Nós, o povo...”,
que num primeiro momento se faz anunciar como o sujeito constitucional
desta Constituição:

46
DEMOCRACIA E AGONISMO

a) abstratamente: Nós, o Povo... informa que tomam parte da identidade do


sujeito constitucional não somente os constituintes que a fizeram, como
também todas as pessoas que viviam nos EUA à época; além do que, dessa
expressão se infere que todos as pessoas não somente reconhecem a legi-
timidade do texto, como também, conforme Rousseau, se sujeitam à sua
normatividade, por expressar a vontade geral;
b) concretamente: os constituintes de 1787 eram todos homens brancos,
anglo-saxões, protestantes e proprietários de terras e escravos, que de
modo algum representavam a todas as pessoas que se sujeitariam àquela
Constituição, pois, por definição, se muito, representavam pouco mais de
25% da população: 50% eram mulheres, que estavam excluídas do processo
político, e 24% eram negros, a quem não se reconheciam nem mesmo a
condição de seres humanos (conforme, aliás expressou o Juiz da Suprema
Corte Presidente Taney no seu voto no caso Dread Scott, decisão judicial
que corroborou com a eclosão da guerra civil);
c) historicamente: ao se cotejar o Nós, o Povo... com a cláusula “todos os ho-
mens nascem iguais” da Declaração de Independência Americana de 1776,
que deveria servir de fundamento para a formação do sujeito constitucio-
nal, por ser o documento de libertação face à Colônia, evidencia-se a apo-
ria entre o texto e a realidade, seja pela exclusão das mulheres, seja pela
negação da identidade humana aos negros. Disto evidencia-se a dissocia-
ção entre os autores e os que se sujeitariam à norma constitucional, já que,
no caso dos negros, torna-se bastante evidente a sua exclusão enquanto
sujeito de direito.
Assim, segundo Rosenfeld, a identidade do sujeito constitucional
deve ser considerada mais como uma ausência, um hiato, um vazio, do que
como algo concreto e estabelecido do qual se possa extrair legitimidade
para o exercício do poder político, o que possibilita: “a) a sua reconstrução,
pois, por ser indispensável, deverá sempre ser reconstruída como condição
de legitimidade da Constituição;” e “b) a sua complementação, porquanto,
para conseguir aquele fim, deverá ser reconstruído, mas sob a condição
de que essa reconstrução, esse preenchimento do hiato não poderá ser de-
finitivo ou completo, como seja, a reconstrução será um continuum, um
processo permanente pela busca de legitimidade do texto constitucional.”
Em suma: a identidade do sujeito constitucional só é suscetível de
determinação parcial mediante um processo de reconstrução orientado
pelo objetivo de se alcançar um equilíbrio entre a assimilação e a rejeição
das identidades pré-constitucionais. Contudo, como se dá a formação da
identidade do sujeito constitucional?

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Para Rosenfeld, o processo de formação da identidade do sujeito


constitucional se dá a partir de dois marcos teóricos distintos: o primeiro
é nas teorias da formação da identidade do sujeito na dialética hegeliana –
negação; subsunção; negação da negação –, e nas teorias psicanalíticas de
Freud e Lacan; o outro é através da teoria linguística na forma da negação,
da metáfora e da metonímia. Pela negação se forma a identidade do sujeito
como um em si mesmo; pela metáfora, o sujeito se aproxima das demais
identidades relevantes a partir da analogia e da similaridade; e pela meto-
nímia, se estabelece a identidade do sujeito constitucional pela contextua-
lização do discurso – que é um processo oposto ao da metáfora.
Pois bem. A formação do eu (sujeito) somente se torna necessária
quando ele se confronta com o outro. Sem que o outro seja percebido
como um outro eu, não se faz presente qualquer problema acerca do su-
jeito. No tema referido à identidade do sujeito constitucional, esse eu
somente torna-se relevante quando contrastado com o outro eu contido
nas identidades pré-constitucionais forjadas pela tradição (nacionalida-
de, etnia, religião e cultura).
O constitucionalismo moderno, que se origina na contradição entre
o pluralismo e a tradição, forma-se necessariamente em contraposição com
esta, que é o seu outro. Como consequência, o pluralismo constitucional re-
quer que um grupo que se constitua em um eu coletivo reconheça grupos si-
milarmente posicionados como outros eus, e/ou que cada eu individual trate
os demais indivíduos como outros eus. Dessa relação surge a contradição
entre o eu do pluralismo (eu interno) e o eu da tradição (outro externo).
Assim, conforme Rosenfeld, ao seguir-se a concepção hegeliana, se
percebe que o confronto entre o eu e o outro deriva da separação entre su-
jeito e objeto. O sujeito somente reconhece o outro quando, após perseguir
a satisfação de seu desejo por meio de objetos, vê que esta satisfação não
é perene, na medida em que é levado, após aquela primeira satisfação, a
procurar outros objetos, e assim, sucessivamente, sem jamais se satisfazer.
Somente quando ele se volta para outros sujeitos é que seu desejo é satis-
feito. Portanto, o desejo do sujeito é que impulsiona o eu a buscar o outro.
Entretanto, a dialética da formação do sujeito em Hegel por si só não
leva à reciprocidade entre os sujeitos, como se vê na relação entre o Senhor
e o Escravo: o Senhor afirma-se como sujeito quando supera o medo da
morte e alcança o estado de um eu reconhecido; já o Escravo, por não su-
perar o medo da morte, se submete ao papel que lhe é imposto por aquele
que o reconhece. Assim, abdicando de sua identidade, se submete ao Se-
nhor, que é o outro reconhecido/temido. Contudo, por meio da dialética,
os papéis se invertem: o Senhor depende do trabalho do escravo para a
satisfação de suas necessidades, e tomando o Escravo, como consequência,

48
DEMOCRACIA E AGONISMO

consciência de seu labor e habilidade, forma a sua identidade no sentido


de ser indispensável ao seu Senhor. Assim, o Senhor se torna dependente
do Escravo e o Escravo senhor de seu Senhor. Neste sentido, o modo de
formação do sujeito em Hegel se dá por meio da sujeição do eu ao outro.
Já na teoria psicanalítica, o sujeito busca a satisfação de seus desejos
nos objetos, mas, como debalde, isto não é perene, ele necessita ajustar o
seu comportamento por meio da renúncia. Renunciando aos objetos ele
obtém o reconhecimento do outro. A relação, portanto, entre sujeito e ob-
jeto se revela numa carência de duas formas: a) como ele necessita de ob-
jetos para ser completo, ele é, por si só, incompleto; b) o sujeito, enquanto
não é reconhecido pelo outro, é uma carência no sentido de não ter senão a
negação de seus objetos. Da separação entre o sujeito e objeto surge a sua
consciência de que é carente e incompleto. Para isso ele precisa que o ou-
tro o reconheça, para que desse ato possa formar a sua própria identidade,
suprindo a sua carência e incompletude.
As teorias de Hegel e Lacan, segundo a qual a identidade do sujeito
se forma tão somente pela sua sujeição ao outro, parecem não correspon-
der ao processo de formação do sujeito constitucional, posto que na teoria
constitucional moderna, principalmente se fundada na concepção revolu-
cionária, lhe é atribuído o poder de criar uma realidade político-jurídica ex
nihilo (Preuss), sem qualquer consideração pelas identidades pré-constitui-
ções que possa vir a suplantar.
Ocorre que, mesmo que fruto de uma revolução, o sujeito constitu-
cional não consegue apagar totalmente as identidades pré-constitucionais,
e isto se dá por um dúplice movimento, a saber: com o passar do tempo as
novas gerações não se sentem mais presas à herança revolucionária, como
também não renunciam àquelas identidades pré-constitucionais pretensa-
mente suplantadas, já que, na facticidade histórica, não existe a possibili-
dade de formação de algo ex nihilo. Isto quer significar que, não obstante se
tente espancar a tradição, ela sempre se esgueira para dentro da identidade
constitucional formada a partir da revolução, sendo, portanto, a identidade
constitucional condicionada tanto pelo passado que se quer preterir quanto
pelo futuro que se pretende construir. Não há como o eu revolucionário des-
cartar definitivamente o outro tradicional, pois do contrário, o eu revolucio-
nário não se forma no sentido do constitucionalismo, que é pluralista, mas
torna-se, sim, terror, que é arrivista, fundamentalista e integralista.
Assim, o constitucionalismo funda-se sobre o pluralismo, o que im-
põe a necessidade de se formar uma identidade que transcenda a identi-
dade tradicional, o que torna a identidade constitucional num vazio, numa
ausência que se encontra entre dois polos: a autocompreensão dos cons-
titucionalistas – fundada na tradição – e na nova sociedade política que se

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

quer constituir, fundada no pluralismo, cujo vértice de equilíbrio é o Rule


of Law (Estado de Direito), o governo limitado (separação dos poderes) e a
inviolabilidade dos Direitos Humanos.
Se há um vazio como característica proeminente da identidade do
sujeito constitucional, isso implica que ela é constantemente objeto de
ressignificação por intermédio do discurso constitucional pluralista, o que
impõe ao agente do discurso abstrair-se de sua própria identidade e fixar
na pluralidade de identidades e concepções de vida boa e justa que, legi-
timamente, coexistem na sociedade. Isto se dá por meio de um discurso
contextualizado, e que toma em conta as restrições normativas e factu-
ais relevantes. Como o discurso é elaborado em dado contexto, e como o
texto constitucional é aberto-a-uma-finalidade e sujeito a transformações,
é pelo discurso constitucional que o sujeito constitucional é inventado e
reinventado. Contextualizar, portanto, é construir a identidade do sujeito
constitucional de forma adequada e pertinente a uma determinada épo-
ca. Assim, na medida em que a identidade do sujeito constitucional está
aberta à contextualização, por ser, repita-se, incompleta e vaga, é que a sua
construção e reconstrução são decorrentes do discurso constitucional.
Isso pressupõe, em vista do pluralismo, que o agente do discurso não
pode personificar-se a si mesmo como sendo o sujeito da identidade cons-
titucional. Assim, nem os constituintes, nem os cidadãos e nem os intér-
pretes da constituição são propriamente o sujeito constitucional. Este se
forma a partir da soma de todos estes sujeitos parciais, sendo que, disso,
a autoidentidade do sujeito constitucional deve vincular todas as pessoas
que se reúnem sobre o conjunto das normas constitucionais. Nesse con-
texto, a teoria de Dworkin – da construção e reconstrução da interpretação
constitucional – se faz necessária, pois somente assim, considerando-se o
passado, o presente e o futuro, é que se poderá contextualizar a identidade
do sujeito constitucional.
No entender de Rosenfeld, a construção e a reconstrução são dois
momentos distintos da investigação da incompleta e sempre em desen-
volvimento identidade do sujeito constitucional, na medida em que a in-
terpretação constitucional se pauta pela dualidade, ao menos, de decisões
“corretas” acerca do problema concreto. Nesse sentido, relembra o autor
a famigerada decisão da Suprema Corte no caso Roe vs. Wade, da década
de 70, em que o tribunal Órgão decidiu, contramajoritariamente, em favor
do direito individual da mulher em abortar até o terceiro mês de gestação
– como consectário do direito de privacidade – julgando inconstitucional
as leis estaduais que criminalizavam a conduta. Contramajoritariamente
porquanto nos EUA a maior parte da população é contrária ao aborto. Essa
decisão significou um enorme impacto na formação do sujeito constitu-

50
DEMOCRACIA E AGONISMO

cional, na medida em que, até hoje, os legislativos estaduais intentam a


revisão da decisão, propugnando pela criminalização do aborto ou criando
restrições à sua prática mediante, por exemplo, a proibição de financia-
mento público de ONGs ou entidades sociais que tenham como objetivo
prestar assistência às mulheres que queiram abortar.
Nesse caso, muito embora a Constituição não regulamentasse em ne-
nhum dispositivo o aborto, a partir de uma reconstrução do direito de priva-
cidade, outorgou-se à mulher o direito de optar pela interrupção da gravidez.
O importante no processo de reconstrução é a justificabilidade da
decisão, vale dizer, a razão de se optar por uma determinada interpreta-
ção em detrimento de outra, o que permite a tomada de posição a favor
ou contra a decisão. De qualquer sorte, qualquer decisão constitucional
importante envolve uma modificação do sujeito constitucional. Assim, a
função da reconstrução é a de harmonizar o velho e o novo no contexto
em que aplicado, de forma a se poder formular uma compreensão do su-
jeito constitucional.
Rosenfeld, tomando como fundamento a teoria reconstrutiva de
Dworkin, dela se afasta no tocante àquilo que ele identifica como uma
insuficiência para a fundamentação da contrafactualidade. Com efeito,
Dworkin, em primeiro lugar, apõe o primeiro requisito da reconstrução
em torno dos princípios de moralidade pública por ele defendido, e que
poderiam ser assim resumidos: primeiro, o direito de cada pessoa a igual
respeito e dignidade; em segundo lugar, e que no entender de Rosenfeld
é insuficiente, é o critério da coerência, vale dizer, a conformidade da
nova interpretação com o corpus sedimentado das interpretações preté-
ritas. Esta segunda exigência é, no entender do autor, insuficiente, pois
impede o exercício da contrafactualidade, vale dizer, a reconstrução da
identidade do sujeito constitucional de modo a renová-lo, adaptando-o à
realidade social vigente.
A reconstrução da identidade constitucional no âmbito da herme-
nêutica constitucional se dá por três institutos da linguística: a negação,
a metáfora e a metonímia, e se em dois polos, a saber, a autoidentidade
do sujeito constitucional (o que ele é) e o constitucionalismo (aquilo que
ele deve ser: entenda-se, plural). A isto ele denomina de discurso contra-
factual. Por esta narrativa é que é possível preencher-se o vazio a que está
condicionado o sujeito constitucional.
Essa reconstrução está sujeita a dois distintos grupos de intérpre-
tes: a) os que pretendem manter o status quo, para os quais a identidade
do sujeito constitucional deve ser formada de modo a compatibilizar o eu
constitucional como o eu do constitucionalismo, demonstrando, assim, a
identificação de um com o outro; e b) os que pretendem apresentar uma

51
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

cisão entre o eu constitucional e o eu do constitucionalismo, cujo discur-


so contrafactual revela os simulacros do discurso meramente legitimante,
evidenciando a contradição entre Constituição (o eu constitucional) e Di-
reito Constitucional (o eu do Constitucionalismo).
Seja em “a” ou “b”, o discurso constitucional toma como norte de
operação as mesmas técnicas, a saber: a) negação: porque o sujeito consti-
tucional somente emerge a partir da renúncia, isto é, daquilo que ele não é,
para se afirmar, no processo dialético, naquilo que ele é, ou seja, na nega-
ção da negação; b) metáfora, também denominada de condensação, na qual
a identidade do sujeito constitucional se forma a partir de um discurso que
busca apontar as similaridades com as identidades pré-constitucionais re-
chaçadas na negação, de modo a não se perder na mera negatividade: ele
é símile, se identifica com aquelas identidades, mas de um modo a não
assimilá-las completamente, mas sim do modo e nos termos em que ele
as regula; e c) metonímia, ou deslocamento, pelo qual o discurso é contex-
tualizado, de modo a situar historicamente o sujeito constitucional, pois
de modo contrário ele não teria condições de se concretizar no âmbito da
sociedade em que está inserido.
O papel da negação na formação do sujeito constitucional é multi-
facetado, intrincado e complexo, na medida em que envolve, entre outras
coisas, a rejeição, o repúdio, a repressão, a exclusão e a renúncia; visto que
a formação do sujeito, conforme averba Hegel, se estabelece mediante um
processo dialético: negação, subsunção e negação da negação. Na negação,
o sujeito primeiramente adquire a sua própria identidade mediante a sua
negação, já que ela não é redutível aos objetos de seus desejos. Disso sur-
ge, entretanto, uma carência, já que a identidade é afirmada tão-somente
como aquilo que ela não é; na subsunção, o sujeito parte para a formação
de sua identidade de forma positiva, o que envolve, num primeiro momen-
to, na negação de que seja uma carência, um hiato, um vazio, buscando,
desta sorte, afirmar-se a partir das múltiplas identidades concretas que o
cercam, alienando-se, desta sorte, a si mesmo, já que ele somente adquire
identidade afirmando aquilo que é o outro. Por fim, na negação da nega-
ção, ele assume ser uma identidade distinta de todas as demais, tendo-as
assimilado, tornando-se, portanto, um ser para si mesmo.
Na formação da identidade constitucional se dá o mesmo. Na primei-
ra etapa, negação, ela afirma-se como um ser que é distinto do ser pré-cons-
titucional, formado pelas identidades parciais vindas da tradição ou da re-
volução, para se afirmar como uma identidade plural, e que, portanto, deve
recusar aquelas identidades não-plurais. Na segunda etapa, a subsunção
(em Hegel subsumir tem um duplo significado, a saber, extinguir, fazer ces-
sar, mas também preservar, conservar. O que a subsunção extingue é a ime-

52
DEMOCRACIA E AGONISMO

diatidade da identidade do sujeito, não a sua existência, que é mediatizada


pela identidade que o subsume), pela qual o sujeito constitucional recorre
àquelas mesmas identidades vindas da tradição ou da revolução por ele
descartadas no processo da negação. O constitucionalismo, sob pena de
tornar a Constituição abstrata e não concretizável na sociedade, deve assi-
milar aquelas identidades, mas não de modo que seja por elas suplantado,
mas sim as suplantando, as subsumindo mediante um duplo processo de
extinção de suas imediatidades e da preservação de suas medianidades,
como seja, como instrumentos a serviço deste mesmo constitucionalis-
mo, que por definição, é plural. Isto quer significar, precisamente, que o
constitucionalismo convive com as identidades pré-constitucionais de for-
ma bastante clara, como seja, não é anulado por elas, mas as conforma de
modo a somente valerem nos termos regulamentados pelo pluralismo.
No entanto, por este processo, o constitucionalismo se aliena, pois
somente consegue formar-se enquanto sujeito assimilando as identidades
que quer suplantar.
Assim, por exemplo, a identidade religiosa é suplantada pelo consti-
tucionalismo para logo depois ser por ele subsumida, como seja, encarta-
da, reservando-lhe, no entanto, o espaço privado, de modo a que as demais
religiões recebam a mesma proteção.
Numa terceira e última etapa da formação da identidade do sujeito
constitucional, que é a negação da negação, o sujeito enfrenta aquela alie-
nação que o habilita a ser alguém subsumindo as identidades que nega.
Por este terceiro estágio da dialética, o sujeito toma consciência que ele
é um ser para si mesmo, na medida em que, apesar de ter de assimilar as
identidades pré-constitucionais que pretendia descartar, ao assimilá-las
não se anulou a si mesmo, mas sim que construiu algo novo.
A identidade que se formou é obra sua, e coerente com as suas pre-
tensões, como seja, assimilando as mais diversas compreensões acerca do
bem e do justo, e não somente uma. No dizer de Rosenfeld:
Mas quais dessas concepções de bem deverão ser reincorpo-
radas, e em qual medida, é algo que é determinado pelos cri-
térios normativos impostos pelo pluralismo, tornando claro,
assim, que a tolerância do pluralismo das diversas concepções
de bem resulta de uma posição ativa e não de uma postura
passiva (ROSENFELD, 2003, p. 57).

Ao negar a negação de que não é um sujeito, se não mediante uma


alienação face as identidades pré-constitucionais, o sujeito constitucional,
fundado no pluralismo, se torna um ser para si mesmo. Ele é Senhor de sua
obra, e não coadjuvante.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Como visto, a metáfora é um instrumento essencial para o discurso


de autoafirmação do sujeito constitucional, na medida em que busca es-
tabelecer a identidade do constitucionalismo a partir de similaridades e
equivalências, deixando de lado as diferenças e dessemelhanças. Assim,
na asserção presente na Declaração de Independência de 1776 “todos os
homens nascem iguais”, o discurso constitucional metafórico deve se pren-
der no estabelecimento de afirmações que afirmem as semelhanças entre
os mais diversos seres humanos, independentemente de qualquer outro cri-
tério, a não ser a natureza humana, rechaçando-se, assim, as diferenças de
cor, de raça, de origem etc. Nos Estados Unidos, na decisão confirmatória
do regime de segregação (Plessy vs. Ferguson), o Juiz Harlan, em voto venci-
do, afirmou a famosa regra segunda a qual, a Constituição é cega à cor das
pessoas (the Constitution is colorblind). Trata-se, como se vê, de um discurso
metafórico, centrado no pluralismo, porque se concentra na identidade co-
mum de brancos e negros – seres humanos –, e não no que os diferencia, a
cor. Ocorre o mesmo no entendimento da dimensão constitucional do prin-
cípio da proteção da privacidade e da liberdade de expressão. Em 1965, no
caso Griswold vs. Connecticut, a Suprema Corte entendeu que casais casados
tinham o direito de usarem contraceptivos, sendo vedado aos Estados proi-
bi-los; já em 1972, no caso Eisenstadt vs. Baird, aquela Corte entendeu que
idêntica proteção se estende aos casais heterossexuais não casados.
Contudo, em 1986, no caso Bowers vs. Hardwick, a Corte entendeu,
por maioria, que os casais homossexuais não tinham, para fins de proteção
do direito de intimidade, os mesmos direitos que os casais heterossexuais,
sendo, portanto, constitucionais as legislações estaduais que proíbem e cri-
minalizam o sexo homossexual consensual entre adultos.2 No entanto, nos
votos dissidentes, os Juízes que se posicionaram favoravelmente à idêntica
proteção, afirmaram a existência de similaridade entre homossexuais e hete-
rossexuais no que diz respeito ao ponto de vista do sujeito, isto é, quer héte-
ros quer homossexuais tinham o mesmo interesse em decidir como viveriam
suas próprias vidas e, mais estritamente, em decidir como se comportariam
em suas associações pessoais e voluntárias com seus companheiros. A intro-
missão do Estado na vida privada de qualquer um deles – hétero ou homos-
sexuais – era igualmente opressiva (ROSENFELD, 2003, p. 66-67).
O último instituto de afirmação da identidade constitucional é a me-
tonímia, que opera de modo diverso da metáfora, ou seja, estabelece um

2 - Esse precedente foi objeto de overruling (procedimento do Common Law pelo qual há uma superação do
precedente) pela Suprema Corte, em votação apertadíssima de 5 votos a favor e 4 contrários, no caso Obergefell
vs. Hodges, de 2015, pelo qual a Corte considerou que a vedação de que pessoas do mesmo sexo contraíssem
matrimônio violava às cláusulas do devido processo legal substantivo e da proteção igualitária pela lei, nos termos da
XIV Emenda. É importante lembrar que muitas Supremas Cortes estaduais já vinham reconhecendo o direito à união
homoafetiva em suas jurisdições estaduais.

54
DEMOCRACIA E AGONISMO

eixo de continuidade, de contextualização da identidade do sujeito cons-


titucional frente às identidades pré-constitucionais relevantes. Como a
identidade do sujeito constitucional é um hiato, um vazio, ele busca preen-
cher este seu vazio por intermédio de sua contextualização junto àquelas
identidades pré-constitucionais, numa síntese entre presente, passado e
futuro. Mas o passado é de impossível recordação, e o futuro é incerto,
donde o presente ser sempre um vazio que se busca preencher.
Os argumentos jurídicos fundados na metonímia evocam as diferen-
ças mediante a contextualização, repousam sobre relações de proximida-
de para delinear o quadro que revele o máximo possível de detalhes con-
cretos, sendo, portanto, o discurso metonímico um modo de demonstrar
que as argumentações metafóricas ultrapassam o caso paradigmático, não
podendo, portanto, se tidas como precedentes. Como já visto, no caso Bo-
wers vs. Hardwick, a Suprema Corte alegou, por decisão majoritária, que
as relações homossexuais praticadas por pessoas maiores e capazes, por
livre consentimento, não se assemelhavam de modo nenhum, para fins de
proteção constitucional, aos relacionamentos heterossexuais de pessoas
casadas ou solteiras, sendo, portanto, válidas as leis estaduais que crimina-
lizam esta prática, pois, consoante voto de um Juiz daquela Corte, é conde-
nado pelo código ético-moral judaico-cristão, que como se sabe, é parte da
identidade pré-constitucional dos EUA. Trata-se, como se observa, de um
discurso metonímico, que nega a similaridade entre a união homossexual
e a união heterossexual, porquanto aquela é negada como legítima pela
identidade religiosa preponderante nos EUA.
Dessa sorte, numa síntese possível, vê-se que a negação, a metáfora e
metonímia se conjuminam no sentido de estabelecer a identidade do sujeito
constitucional. A negação, é claro, delimita o sujeito constitucional ao fazer
a mediação entre identidade e diferença. Mas identidade e diferença só po-
dem adquirir formas determinadas ao se utilizar o trabalho da metáfora e da
metonímia. Em outros termos, somente a metáfora e a metonímia revelarão
qual identidade – ou mais precisamente, quais identidades – e qual diferença
– ou diferenças – devem ser mediatizadas pela negação para a produção de
uma reconstrução plausível de um sujeito constitucional adequado.
Assim, negação, metáfora e metonímia se estabelecem como padrões
de formação da identidade do sujeito constitucional, tomando como ponto
de partida a própria vaguidade do pluralismo. Assim, a negação nega o
status quo tradicional; a metáfora amplia o plexo de situações constitucio-
nalmente protegidas por assimilação – fecha os olhos para as diferenças,
visualizando tão-somente os pontos de convergência –, o que, em certa me-
dida, pode tornar a identidade do sujeito constitucional por demais abstrata
e descontextualizada de seu medium social; a metonímia, por fim, estabelece

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

um eixo de contiguidade entre a identidade constitucional e as identida-


des tradicionais mais relevantes e impregnadas no medium social, como, por
exemplo, a identidade religiosa. Por este processo, o discurso constitucional
contextualiza o sujeito constitucional perante a própria ótica social.

Desacordos morais e moralidade majoritária: o estudo da Pew Research


Center

Pelo que conseguimos apreender do que acima se expôs, ou o re-


gime democrático se funda e se legitima pela pluralidade de concepções
acerca da vida boa e justa, ou não o é; seus institutos político-jurídicos
devem objetivar o tornar possível o florescimento e permanência dessas
concepções (princípio da proteção das minorias), não podendo, entretanto,
deslegitimar ou derrogar as identidades pré-constitucionais que forjaram
a unidade político-moral da comunidade.
Assim, valores morais, formas de expressão religiosas, estórias e
histórias sobre o passado, concepções sobre modos legítimos de arranjos
familiares e criação dos filhos etc, quando pertencentes à identidade pré-
-constitucional são recepcionadas pelo sistema político criado pela consti-
tuição e passam a ser interpretados e regrados conforme as normas cons-
titucionais, e não por seus próprios fundamentos de legitimação social,
sendo submetidos, constantemente, a um processo de retificação em suas
eficácias e legitimidades por intermédio da interpretação constitucional,
que deve adequar, seja pela negação, pela metáfora ou pela metonímia, a
coexistência em igual dignidade e legitimidade com as demais expressões
morais, religiosas, tradicionais etc de minorias, não podendo nem um nem
outro arrogar-se legitimidade exclusiva, pois o que vale e deve ser perse-
guido é a manutenção do pluralismo.
Um exemplo bastante significativo. Na Itália, como em muitas ou-
tras nações de maioria católica, os prédios públicos em geral, e os órgãos
judiciais em particular, ostentam, em lugar central, o crucifixo. Esse sím-
bolo religioso, em sua forma de expressão católico-romano, que retrata a
Jesus crucificado, não representa nem aos demais grupos do cristianismo
– reformados, evangélicos, pentecostais etc –, quanto mais as muitas reli-
giões não cristãs, como o budismo, animistas, muçulmanismo etc.
Além disso, muitos interpretam, a partir do conceito abstrato de Estado
Laico, que nenhum símbolo religioso deve ser ostentado em prédios públicos,
pois isso violaria o muro inseparável que deve haver entre Estado e Igreja.
O caso italiano foi levado à apreciação do Tribunal Europeu de Di-
reitos Humanos pela cidadã italiana Soile Lautsi, que apresentou uma
reclamação perante a Corte após o esgotamento interno por, tendo dado
a seus filhos uma educação laica, entendeu que eles eram oprimidos em

56
DEMOCRACIA E AGONISMO

sala de aula, onde são afixados de forma central crucifixos. Em primeira


instância, a Corte julgou procedente o pedido formulado pela reclamante,
condenando a Itália a retirar os crucifixos de todas as repartições públicas,
bem como indenizá-la em 5.000 Euros. Para a Câmara,
A presença do crucifixo, que é impossível não notar nas salas
de aula, poderia facilmente ser interpretada por alunos de to-
das as idades como um símbolo religioso, o que poderia ocor-
rer de modo a ser educados em um ambiente escolar que tem a
marca de uma determinada religião.
Tudo isso pode ser encorajador para os alunos religiosos,
mas irritante para indivíduos que praticam outras religiões,
particularmente se eles pertencem a minorias religiosas, ou
que são ateus.
O Tribunal de Justiça não é capaz de compreender como a ex-
posição, nas classes de escolas públicas, de um símbolo que
possa ser razoavelmente associado com catolicismo, pode ser-
vir o pluralismo educativo, que é essencial para a preservação
de uma sociedade democrática como foi concebido pelo poder
da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, um pluralis-
mo que é reconhecido pela Corte Constitucional da República
Italiana (TEDH, 2009).

O Estado italiano recorreu da decisão para a Grand Chamber, que


retificou a decisão da Câmara, ao considerar que “Nada prova a possível
influência que a exibição de um símbolo religioso nas paredes das salas de
aula poderia ter sobre os alunos, portanto, é razoável supor que não tem
efeito sobre os jovens cujas crenças estão em formação” (TEDH, 2011).
Outro caso bastante interessante é o das árvores Baobás, que no
contexto do constitucionalismo africano, são objetos de proteção cons-
titucional como símbolos de coesão e de unidade dos povos africanos,
particularmente porque acreditam que elas guardam os espíritos de seus
antepassados,3 ou o fato de o Vidovdan – dia de São Vito –, ser feriado na-
cional, no qual o kosovares comemoram não somente a lembrança daquele
santo, mas também a morte do príncipe Lazar e seu exército pelo exército
turco-otomano em 1389 na Batalha do Kosovo, e que teve por efeito a ocu-
pação da região por mais de cinco séculos.
É fato histórico-sociológico, nesse sentido, que há um imbricamento
na tradição entre religião, política e cultura, o que forja uma identidade
majoritária que torna muito complexo os modos pelos quais se expressam
as demais identidades minoritárias.

3 - “A frase de Goethe ‘natureza e arte parecem se evadir e se encontram da maneira mais inopinada’, nos transmite
uma tendência, mas não uma verdade última. Nos chamados países em desenvolvimento tem-se, todavia, consciência
de seu significado como fator de identidade. Neste sentido há que se estabelecer, com toda a seriedade e não
somente como exemplo humorístico, a pergunta de se os troncos de árvore, nos quais habitam os espíritos segundo
os chamados “povos selvagens” da África, merecem proteção nacional e internacional como patrimônio cultural”
(HÄBERLE, 2003, p. 10).

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Um índice dessa complexidade pode ser razoavelmente medido pela


autocompreensão dos indivíduos acerca da relação entre moralidade e re-
ligiosidade, como foi recentemente feito pelo Pew Research Center sob
o título “The Global God Divide”, publicado em julho de 2020, em que
se objetivou aferir em 34 países a “[...] cross-national perceptions of reli-
gion, including the connection between belief in God and morality, the
role God and prayer play in people’s lives and the importance of religion”
(Pew Research Center, 2020). Para 45% dos 38.426 entrevistados, somente
pessoas que acreditam em Deus podem ter comportamentos morais. Con-
tudo, dependendo do país a que pertence a pessoa, esta percepção altera
significativamente: na Suécia, a ideia é apoiada por 9% dos entrevistados;
na Filipinas, 96%.
O Brasil ficou pari passu com essa última, a Indonésia e a Turquia,
nações em que o fator religioso é um dos pontos mais destacados de coesão
social. Com efeito, no Brasil, para 84% dos entrevistados existe uma cor-
relação necessária entre fé e moralidade. Contudo, quando decomposto os
números para alguns fatores distintivos – idade, escolaridade e orientação
política –, tem-se os seguintes dados: a) para jovens com menos de 30 anos
esse índice decai 29 pontos do que entre os maiores de 50 anos, isto é 70% a
89%; b) quando o fator é escolaridade, o índice é 77% para os mais escolari-
zados e 91% para os menos; c) se a orientação é “esquerda”, o índice é de 74%,
se “direita”, 92%. Seja qual for o critério, portanto, a percepção de correlação
religião-moralidade é sempre superior à maioria absoluta em todos eles.
Esses números poderiam ser explicados por vários critérios, mas po-
demos adotar dois que têm orientado os estudos comparados. O primeiro é
o nível de desenvolvimento social, com baixo nível de analfabetismo e con-
flito social. Quanto mais uma sociedade é desenvolvida, a religião se tor-
na, eo ipso, em fator menos relevante para a coesão social (INGLEHART;
NORRIS, 2011).
O segundo fator é o índice de distribuição de riquezas. Sabe-se que
o Brasil é o segundo país mais desigual nesse índice, atrás do Catar. No
Brasil, 1% da população concentra 28,3% de toda a riqueza produzida, no
Catar, 29%. O terceiro colocado é o Chile, com 23,7% (ONU, 2019).
Sociedades em que o nível de pobreza é acentuado, as religiões de-
sempenham um papel importantíssimo de coesão, acolhimento, formação
de identidade e proteção comunitária, uma vez que o Estado, quando com-
parece, não é na execução de políticas públicas de renda básica, mas de
atividades eleitoreiras que tendem a manter o coronelismo e o paternalis-
mo políticos. Em síntese, programas de distribuição de renda básica criam
condições de emancipação social, ao contrário das atividades eleitoreiras,

58
DEMOCRACIA E AGONISMO

que geram uma maior dependência político-econômica, inclusive no as-


pecto moral-religioso.
É bastante óbvio que em um contexto de baixo desenvolvimento hu-
mano e de elevado nível de desigualdade social que a moralidade majo-
ritária forjada e mantida pela tradição religiosa tende a ser reforçada e
transmitida com maior força no contexto social, criando condições bastan-
te desfavoráveis para formas minoritárias de cultura, valores e comporta-
mentos, sempre interpretados ou pelo aspecto da criminalidade (propen-
são à criminalização de comportamentos minoritários), da medicalização
(o surgimento ou manutenção dos “ismos”, como no caso, por exemplo, do
homossexualismo) ou do rechaço discursivo ou físico do “desvio” moral.
Há quem procure resolver o problema entre moralidades a partir do
paradoxo atribuído a José Saramago.4 Afirmam que ao lhe terem pergunta-
do “Como podem homens sem Deus serem bons?”, ele respondeu: “Como
podem homens com Deus serem tão maus?”. Esse tipo de afirmação forma
uma polaridade com aquele índice que identifica a correlação entre crença
e moralidade. Para o paradoxo saramaguiano, crença em Deus e perversão
moral e ignorância intelectual são, no mínimo, siameses; para a outra po-
laridade, ateísmo e perversão moral são dados como certos.
Numa democracia agônica estas duas polaridades devem existir
pois, conforme afirmado em linhas acima, a polarização e a disputa pelos
significado e conteúdo das normas sociais lhe é essencial, pois é desse em-
bate, dos desacordos morais e políticos, que a democracia se forja em sis-
tema político forte o bastante para suportar os testes mais duros. Ademais,
desde que Eco e Martini publicaram aquele fabuloso epistolário “Em que
creem os que não creem?” que, pelo menos no campo das ciências sociais
e políticas, não se poderia interpor qualquer impedimento ao diálogo e à
mútua aceitação entre fidentes e ateus (ECO; MARTINI, 2008).
Assim, que papel as instituições democráticas devem exercer nesse
contexto?

Algumas conclusões

As instituições democráticas têm uma moralidade.


Contudo, essa moralidade não lhe é atribuída nem pela maioria, pois
do contrário não haveria distinção entre tradição e democracia, nem pela
minoria, pois isso equivaleria a uma contradição absoluta, pois, caso ela
tivesse essa aptidão, não seria minoria.

4 - Afirma-se atribuído porque a fonte indicada, a entrevista que Saramago deu a Ubiratan Brasil ao Jornal Estado de
São Paulo em 17 de outubro de 2009 não consta nem a pergunta nem a resposta... ESTADO DE SÃO PAULO. “Deus
não existe fora da cabeça das pessoas”. Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,deus-nao-existe-
fora-da-cabeca-das-pessoas,452076. Acesso em: 20 jul. 2020.

59
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

A moralidade da democracia é aquela que decorre de sua própria


identidade constitucional, forjada pelos institutos do governo limitado, do
Estado de Direito e da inviolabilidade dos Direitos Humanos.
Assim, a moralidade democrática é decorrente de uma concepção
humana, demasiada humana de justiça, qual seja, aquela inerente (decor-
rente, portanto) e imanente (no sentido estrito do termo, composto pelos
termos latino in e manere, e que desde a concepção spinozana, é aquela re-
alidade que se dá e mostra-se a si mesma sem qualquer vínculo ou depen-
dência a uma causa transcendente) (SPINOZA, 2008, p. 13-15) ao Estado
de Direito, ao governo limitado, ao pluralismo político e ao Direito In-
ternacional dos Direitos Humanos, o que pressupõe uma separação entre
moralidade privada e direito.
Com efeito, segundo Rodolfo Vásquez, o campo de tensão e batalha
própria de toda filosofia do direito é aquele pertinente às relações exis-
tentes entre direito e moral, vale dizer, as relações possíveis e influências
recíprocas que existam entre estes dois campos, se é que elas existam ou
deveriam existir (VÁSQUEZ, 2006, p. 17).
Essa concepção que coarcta a comunicação entre direito e moralida-
de privada parte da distinção kantiana entre direito e moral, como seja, da
distinção entre autonomia – derivada do princípio kantiano da maioridade
moral do ter-se “[...] coragem de te servires do teu próprio entendimento”
(KANT, 1990, p. 9) e heteronomia, identificada por Kant a partir da expres-
são “[...] a vontade não se dá a lei a si mesma, mas é sim um impulso estra-
nho que dá a lei” (KANT, 2007, p. 90), em que direito e moral são instâncias
independentes vis-à-vis, e que se conformam em círculos não secantes e,
portanto, estanques no que concerne a uma influência recíproca.
Entretanto, não se pode negar que entre direito e moral possa existir
uma correspondência conteudística entre o que é bom/justo mal/injusto.
Assim, o estupro, do ponto de vista da moral, é um mal que se pratica
em detrimento da autonomia sexual de outrem, sendo que, da perspectiva
do direito, se constitui em crime, haja vista a reprovabilidade penal do
comportamento, uma vez que a autonomia sexual é um bem jurídico pe-
nalmente relevante; a corrupção, pública ou privada, é moralmente repro-
vável e constitui-se em um mal à coletividade, da mesma forma que, para o
direito, a prática de atos de corrupção constituem-se em comportamentos
ilícitos que atraem, segundo o caso, sanções de caráter político, adminis-
trativo e/ou criminal.
Entretanto, apesar da semelhança na reprovabilidade de tais com-
portamentos, direito e moral têm respostas diversas desde suas estruturas
normativas, posto operarem a partir de códigos binários próprios: a moral
a partir da polaridade bom/mal; o direito desde a polaridade lícito/ilícito.

60
DEMOCRACIA E AGONISMO

Além disso, a natureza da sanção cominada também é diversa: na moral, ou


uma autorreprovação pelo agente ou uma de caráter difuso pelos membros
da sociedade; no direito, a sanção é de caráter institucional, na medida em
que cabe às instâncias pré-existentes ao comportamento ilícito exercer a
persecução necessária para se impor ao agente a sanção jurídica.
Aquelas polaridades têm fundamentos em razões de decidir distin-
tas, não podendo ser nem confundidas nem sobrepostas uma à outra em
razão da decantada autonomia vis-à-vis, mormente porque em muitas cir-
cunstâncias da vida social aquela correspondência entre preceito moral/
prescrição jurídica não existe, como o demonstram alguns temas da vida
pública em que existem dissensos morais irredutíveis à conciliação, tais
como o aborto, as uniões homoafetivas, a eutanásia, a descriminalização
das substâncias estupefacientes, a inserção de temas sensíveis do ponto de
vista da moralidade majoritária nos regimes de educação etc. Em tais ca-
sos, como dito, ante a impossibilidade de consenso – são dissensos morais
profundos –, não cabe ao direito optar por uma concepção moral “A” ou
“B”, mas permitir, desde o postulado da neutralidade, que as normas jurí-
dicas regulem tais comportamentos a partir dos princípios jurídicos que
lhes dão espeque e legitimam a sua vigência jurídico-normativa.
Dois exemplos ajudarão a entender o problema:
A) O conceito majoritário de família tradicional, isto é, patriarcal,
formado pelo vínculo matrimonial entre homem e mulher, com o objetivo
de apoio mútuo e criação de prole, e que se encontra hoje em franco de-
clínio frente a outras formas de estruturação dos núcleos familiares. Em
síntese, ele não corresponde à realidade sociológica atual, salvo, talvez, en-
quanto capa da cartilha de alfabetização “Caminho Suave” e nas pregações
de grupos majoritários. Além disso, não se constitui, em absoluto, no único
modelo de família protegido pelo Direito.
Conforme decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos no
Caso Atala Riffo e crianças, de 2012, a proteção do núcleo familiar de in-
tervenções indevidas não contempla nenhum modelo predeterminado pela
tradição, uma vez que o Sistema Interamericana de Proteção aos Direitos
Humanos não fez opção por nenhum paradigma de arranjo familiar, no
caso, hetero ou homoafetivo.
B) O problema do estatuto jurídico do embrião e a cláusula “em geral
desde a concepção”. O Sistema Interamericana de Proteção aos Direitos
Humanos não prevê, expressa ou implicitamente, nenhuma vedação quer à
descriminalização do aborto quer as práticas que tenham por finalidade a
manipulação de embriões humanos para fins reprodutivos.
A tese dita “pró-vida” é defendida pelos campos fundamentalistas
que apelam abstratamente para a cláusula “em geral desde a concepção”

61
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

do artigo 4.1 da Convenção Americana, e o fazem ou por ignorância ou por


má-fé, ou, pior, pela soma dos anteriores, já que, conforme atesta o pro-
cesso legislativo de deliberação e aprovação desse Tratado, essa cláusula
foi inserida no texto convencional para permitir: 1) que os Estados que já
permitiam o aborto aderissem ao texto; e 2) que os Estados, segundo suas
políticas de saúde e de garantia dos direitos da mulher, em particular re-
produtivos, adotassem políticas públicas variadas para a regulamentação
do aborto, inclusive a sua legalização, mas jamais a sua proibição absoluta
(Caso Artavia Murillo e outros, 2012).
Entretanto, é bastante óbvio que uma democracia agônica pressupõe
que nas diversas fases de deliberação acerca de um projeto de lei ou polí-
tica pública se expresse os mais diversos argumentos advindos do direito,
da moral, de concepções religiosas, econômicas, entre outras, o que tende
a esfumar aquela autonomia normativa entre os campos; e desde uma pers-
pectiva democrática e plural, esta esfumação é plenamente legítima, guar-
dados os limites de legitimidade discursiva decorrentes dos princípios da
universalidade5 e da não-discriminação. Contudo, uma vez promulgada a
norma, a autonomia entre direito e moral deve prevalecer sobre as opções
morais, políticas, econômicas daquele que irá aplicar a norma.
Assim, não é função das instituições democráticas fazer uma opção
entre moralidade majoritária e minoritária, de forma a tomar partido no
contexto de dissensos morais, sejam eles relativos ou absolutos.
Os dissensos são, por definição, a substância de uma democracia que
pretenda resistir aos ataques mais duros contra as suas instituições, par-
tam estes ataques da maioria ou de minorias.
O que se deve exigir das instituições é neutralidade normativo-ins-
titucional na aplicação do ordenamento jurídico, de forma que possam ser
acolhidas ou rechaçadas proposições morais, majoritárias ou não e desde
que compatíveis com os seus princípios fundamentais.
O critério, portanto, nunca será a adequação do ato ou do fato à
moralidade majoritária, mas a sua conformação e tipicidade democráti-
ca, apreendidos não da concepção individual do aplicador – que deve ser,
no mínimo, irrelevante, ou se não o for, que ele se declare suspeito para

5 - A referência ao princípio da universalidade pode ser compreendido a partir de duas acepções, uma estritamente
jurídica, isto é, enquanto princípio jurídico fundamental do Direito Internacional dos Direitos Humanos que ilide,
absolutamente, a exclusão de qualquer pessoa da esfera de proteção do direito, uma decorrência do direito à
personalidade jurídica, e de outra perspectiva desde a concepção habermasiana contida no princípio U. Com efeito,
Habermas, tomando por norte diferidor entre autonomia moral/razão prática e heteronomia/agir comunicativo,
objetivando solver a controvérsia em torno do problema do solipsismo moral kantiano, propõe o conhecido Princípio
U, segundo o qual “Todas as normas válidas tem que preencher a condição de que as consequências e efeitos
colaterais que previsivelmente resultem de sua observância universal, para a satisfação dos interesses de todo
indivíduo, possam ser aceitas sem coação por todos os interessados”. Em outros termos, numa sociedade democrática,
a condição de validade de uma decisão acerca da criação de uma regra não existe a priopri, uma vez que a ética do
discurso se propõe, somente, a oferecer procedimentos racionais para a sua criação (HABERMAS, 1989, p. 61-142).

62
DEMOCRACIA E AGONISMO

decidir –, mas do próprio arcabouço democrático que tem por finalidade


última assegurar a dignidade da pessoa humana, a sua autonomia e a invio-
labilidade do indivíduo e a prevalência dos interesses coletivos.
Nesse sentido, e para retomar um dos pontos centrais da teoria de
Michel Rosenfeld, determinar historicamente o conteúdo dos direitos hu-
manos não implica em ficar-se preso à tradição ou abraçar-se, sem medida,
a pretensões morais e políticas que se apresentem como progressistas, mas
sim permitir a coexistência agonística num contexto em que o direito e
as instituições resolvam os dissensos morais de acordo com os princípios
fundamentais de uma sociedade livre, justa e solidária.

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65
3
Crises da democracia liberal
e limites democráticos no Brasil
Afonso Maria das Chagas
Patrícia Mara Cabral de Vasconcellos

Introdução

Como reconhecer uma crise social, em especial quando se fala de


democracia, é um dos embates políticos mais controversos. As discussões
que envolvem não somente o que é democracia como também o questiona-
mento de experiências de cunho totalitário no contexto democrático são
sinais de crise ou são um elemento constitutivo da própria modernida-
de (GLIDES, 1991). No caso da recente democracia brasileira, buscamos
questionar em que medida houve ou há uma crise ou se o processo de cons-
trução da democracia abarca instabilidades políticas ou econômicas que
não ameaçam os valores democráticos. A metodologia utilizada é a pesqui-
sa bibliográfica aliada a análises da conjuntura atual que versam sobre os
termos da democracia liberal e da democracia no Brasil.
Mills (1982) afirma que há uma crise quando as pessoas estimam
certos valores com relação às questões públicas e sentem que há uma
ameaça a tais valores. Em contrapartida, haveria momentos de bem-es-
tar, em que as pessoas não sentem qualquer ameaça sobre os valores es-
timados ou ainda momentos em que os indivíduos sentem que os valores
estão ameaçados, em instabilidade, gerando o pânico. Przeworki (2020),
ao redigir o prefácio na edição brasileira de sua obra Crises da Demo-
cracia, dizia que não acreditava que o Brasil teria uma democracia em
crise. No entanto, ao reavaliar os rumos políticos com a eleição de Jair

67
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Bolsonaro, considera que não tinha visto, com clareza, os elementos já


presentes que indicavam uma iminente crise.
Dessa forma, para compreender as crises e limites do sistema de-
mocrático brasileiro, propomos, primeiramente, apresentar o conceito de
democracia, diferenciando os elementos que constroem o debate teórico
sobre a democracia clássica e a moderna concepção de democracia liberal.
Posteriormente, apontamos como a democracia liberal pode combinar ex-
periências e estratégias totalitárias (CASTELLS, 2018; MOUNK, 2019; PR-
ZEWORKI, 2020). Neste ponto, salientamos quais são os valores ligados à
democracia que são vistos como essenciais para o reconhecimento desse
sistema político e quais são os sinais da crise da democracia liberal. Ressal-
tamos que, desde os anos 2000, segundo Santos, Hoffmann e Duarte (2021),
vivenciamos uma recessão democrática tendo como exemplos países como
a Rússia, a Venezuela, a Turquia e a Nicarágua, mas também países con-
siderados modelos de democracia como os Estados Unidos e a Inglaterra.
Na terceira seção, examinamos como a democracia brasileira
é moldada por forças sociais profundas em uma combinação
na qual a democracia está de “braços dados com a elite”. Tal
fato dissimula uma representatividade e faz da desigualdade
social o ponto principal da crise democrática brasileira. A
desigualdade seria a comprovação da falácia das propostas
de representação democrática. Na opinião de Santos (2017),
a crise atual da democracia no Brasil expressa uma “versão
de democracia como riqueza sem limite legítimo e poder sem
constrangimento de afronta” (SANTOS, 2017).

Não há dúvidas de que a instabilidade da democracia brasileira se in-


sere na crise da democracia liberal presente em tantos outros países, mas
há peculiaridades, no caso do Brasil, que precisam ser observadas como
a sua tradição autoritária e a sua herança cultural, o que levaria o país ao
enfraquecimento dos ideais democráticos ao invés de sua consolidação.

Antes de falar em crise: a democracia clássica e a democracia liberal

Na percepção grega, a diferença entre um regime oligárquico (Aris-


tocracia) e o regime democrático se estabelece no fato de que, neste, os
indivíduos reconhecidos como cidadãos são os cidadãos legítimos; no re-
gime oligárquico, tais cidadãos são considerados enquanto duas classes,
a dos cidadãos legítimos – eupátridas – que participavam do governo e
os cidadãos por natureza. Aqueles, dotados de plena capacidade jurídica,
poderiam assumir determinadas funções, acessar os cargos de controle,
serem proprietários. Basicamente, a construção simbólica de tal cidadania
baseava-se, em tese, no sangue e no patrimônio. Já os cidadãos por nature-

68
DEMOCRACIA E AGONISMO

za são os “não-cidadãos”, identificados como os trabalhadores ou escravos,


as mulheres, os estrangeiros, objetos de regulação ou controle institucio-
nal. O reconhecimento, ao lado da categoria padronizada em torno do con-
ceito de “igualdade” dos cidadãos, esboça-se, via de regra, num fundo de
desigualdade (VERNANT, 1992).
A constatação da experiência democrática, seja na Grécia ou nas
nações europeias, acabou por fim em restringir a polis à comunidade de
cidadãos, deixando claro que há um lugar para os não-cidadãos, sob uma
dimensão de não-política, no caso, a condicionante econômica. A pergun-
ta que se sobressai é justamente em como articular esta relação entre o
“mundo político” e o “mundo econômico”, ou mesmo, de compreender
como se processa essa lacuna ou fronteira.
Essa ideia do “governo dos melhores” (Aristós), entendido também
como governo de poucos, se sobrepõe ao conselho, à assembleia. Não só
mantendo e legitimando o poder concentrado na mão de poucos, como
também o abismo da desigualdade entre ricos e pobres, entre os que detêm
facilmente acesso às oportunidades contra aqueles a quem estas lhes são
negadas. Sabendo-se, para tanto, que o impedimento a este acesso (algo
perigoso na teoria da justiça), faz parte do conjunto, a fim de que se har-
monizem tais estruturas, em nome de determinada ordem, da legalidade
ou do Estado de direito.
Em grande parte, os sistemas, sobretudo os que se alicerçam em ba-
ses desta ambivalência democrática, vide os regimes coloniais, operam sob
a lógica de que é intrinsicamente necessário manter irretocável tal dinâ-
mica de funcionamento social. Assim, este outro “não-cidadão”, ou é re-
legado a mero objeto a ser possuído, uma peça, uma mercadoria (regime
jurídico-econômico da escravidão), ou perpetuamente amedrontado pela
(im)possibilidade de sua condição de humano livre (mita e encomienda no
regime colonial espanhol), ou, então, pelas cobranças vinculadas, em que
reciclava-se a insolvência, mantendo o trabalhador preso por meio de uma
dívida interminável que a cada dia crescia mais. Exemplo disso o sistema
de aviamento nos seringais amazônicos dos ciclos da borracha.
É possível perceber, portanto, que a polis primitiva e repaginada nas
sociedades ocidentais, além de ser uma “comunidade de cidadãos”, indica
uma sociedade mais ampla, que inclui cidadãos e não cidadãos. Há, no
interior desta dimensão cívica, neste padrão de convivência democrática,
uma conivência com a desigualdade material, mantida consensualmente,
amenizada por uma determinada ideia de igualdade política, e entre os
“cidadãos livres”, óbices às relações de clientela.
É claro, no entanto, que isso contemplava algumas brechas de parti-
cipação política aos não-cidadãos (participação de mulheres, estrangeiros

69
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

e escravos em processos judiciais, cerimônias religiosas). Situações como


tal, no entanto, precisam ser compreendidas na busca de flexibilizar pos-
síveis tensionamentos, construindo vias de escape, dentro destas tensões
geradas pelo jogo das diferenças no interior da sociedade de cidadãos e nas
brechas do sistema (OBER, 1996).
Aos não-cidadãos é vedada a participação institucional, reservada
a eles a incorporação sob outras modalidades, não no nível do discurso
institucional, mas no nível das práticas sociais. No entanto, se os repre-
sentantes políticos não atuarem no sentido de assegurar os direitos ins-
titucionais dos cidadãos, a ideia de democracia morre na sua dimensão
procedimental, leia-se, escolhas de representantes. Esta transição, aliás,
tem sido um indicativo autocrítico (revisão) dos próprios defensores da
“democracia liberal”, na atualidade. Implica, na verdade, uma compreen-
são de democracia não somente como forma de governo, mas como forma
de organização da sociedade (CHAUÍ, 2019).
Assim, o sufrágio universal como característica que traria ao sistema
político democrático o ideal de igualdade nas esferas política e econômica
é ainda mais problemático quando analisado na coexistência da democra-
cia com o sistema capitalista (PRZEWORKI, 2020). Com a desigualdade
global crescente (MILANOVIC, 2016; SASSEN, 2016), as insatisfações au-
mentam sem encontrar na representatividade eleitoral alternativas que
modifiquem os fluxos dos mercados e transformem a vida das pessoas.
Conceitos tradicionais de democracia, como os apresentados por
Schumpeter (2017) e Dahl (2012), em que os critérios de competição e par-
ticipação bem como liberdade de expressão e de associação, respectiva-
mente, são considerados os requisitos mínimos para o funcionamento de-
mocrático, acabam por não explicar os diferentes contornos que a crise
democrática liberal assume na atualidade. As variáveis apontadas pelos
autores não ajudam a compreender o esfacelamento do ideal democrático,
na medida em que não promovem uma reflexão sobre o apoio dado às lide-
ranças e sobre a confiança que a população deposita em suas instituições.
Assim, na fala dos autores Santos, Hoffmann, Duarte (2021):
[...] institucionalizar um regime democrático é, antes de qual-
quer coisa, assegurar a crença nas regras pelos competidores
do poder, nas suas leis e em seu funcionamento pelo corpo de
cidadãos. Quando vemos um crescimento de grupos antissis-
temas, um aumento no boicote às eleições e às próprias regras
de competição não sendo respeitadas pela elite concorrente é
sinal de que o sistema de fidúcia no regime está se erodindo.
O mesmo podemos dizer do apoio de massas (SANTOS, HO-
FFMANN, DUARTE, 2021, p. 180)

70
DEMOCRACIA E AGONISMO

A concepção de democracia foi essencialmente ressignificada pelo


advento do liberalismo no contexto da formação do Estado moderno, no
século XVIII. Neste contexto, tem-se como eventos simbólicos fundado-
res, a Carta de Direitos Inglesa (Bill of Rights de 1689), a Declaração da
Independência das Treze Colônias americanas (1776), ideais consumados
posteriormente na publicação do Federalista (1788), e a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão (1789).
Cada evento, em cada contexto, buscava reafirmar os fundamentos
da concepção liberal de Estado, a concepção de uma sociedade civil, a se-
paração de poderes, a ideia da representatividade democrática etc. Consti-
tuem-se, assim, os limites legais e institucionais às pretensões absolutistas
das Coroas, a ideia do federalismo e da separação de poderes e as liberda-
des e direitos individuais e coletivos, certificados como universais, válidos
e exigíveis em qualquer tempo e em qualquer lugar.
Nesta ressignificação, portanto, hegemoniza-se uma visão liberal,
tanto em relação ao Estado quanto em relação à participação da Socieda-
de civil. Demarcam-se as linhas da representação estabelecidas sobre os
vínculos pré-constituídos, bem como, tácita ou explicitamente, delineiam-
-se os novos contornos que vão configurar a relação entre Estado e suas
instituições (poder político), com os interesses privados e suas relações de
mercado (poder econômico).
Assim como a própria modernidade, a democracia liberal, por sua
natureza burguesa, também tinha suas promessas que, variando em cada
contexto, não foram cumpridas, revelando assim a caricatura da própria
ideia de democracia moderna. A ideia das promessas não cumpridas foi
amplamente desenvolvida por Bobbio (2000), em que é possível intuir, in-
clusive, os maiores obstáculos à concretização da democracia.
Algumas destas promessas não cumpridas dizem respeito a pressu-
postos substanciais no que tange à instituição da democracia, como, por
exemplo, o reconhecimento da dimensão pluralista na composição das so-
ciedades, a ampliação do espaço público, locus por excelência da dinâmica
participativa, e a ideia, imperativa, da educação para a cidadania. São fato-
res que dizem respeito à dimensão constituinte de determinada sociedade.
Nesta direção, ainda, há a compreensão de que estes elementos pos-
sam conjugar com a ideia de justiça social, materializada no combate à
pobreza, à desigualdade, como dimensões substantivas na superação dos
obstáculos que impedem a concretização dos valores democráticos, de for-
ma institucionalizada.
Outras destas promessas, denunciadas por Bobbio, versam sobre a
manutenção de interesses de grupos (revanche dos interesses oligárqui-

71
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

cos), a perpetuação das elites nas esferas do poder e a presença das “forças
invisíveis”,1 atuando no interior do Estado.
É no campo e na dinâmica da atuação em que, por dentro do Esta-
do, aparelham-se verdadeiras “organizações criminosas”. Aqui, a ideia de
um Estado apropriado, na lógica de determinados interesses de grupos,
atuando de forma pouco transparente, isolando ou mitigando o controle
público, abrindo margens para a legitimação de processos de subversão da
coisa pública, mau uso de instrumentos e funções. Nota-se, nesta perspec-
tiva, que as formas obscuras do poder deveriam ser enfrentadas pela de-
mocracia, então disseminada pela sociedade, efetivando assim uma perene
vigilância a toda forma de oligopólio.
A ideia de “miliciarização”2 de setores do Estado encaixa-se neste fe-
nômeno. Trata-se do fato, não só da violência imposta, explícita ou simbóli-
ca, na roupagem estatal, mas também da adoção das estratégias corporativas
ou de bancadas, com recomendação e proteção de governos. Se as decisões
políticas escapam do controle público, se os arranjos em matéria de políti-
cas e programas efetivam-se a partir da lógica interna e institucionalizada,
distante do controle social, logo, estabelece-se um poder sob máscara e não
disciplinado pela transparência (BOBBIO, 2000). Nestes casos, o que ampa-
ra um governo de coalização configura-se muito mais a uma plataforma de
favores recíprocos que a uma gestão de interesse público.
O resultado consequente desta crítica é que a educação para a cida-
dania ativa, em sintonia com o próprio exercício da democracia, não foi
desenvolvida. O que tem ocorrido é uma apatia e uma desafeição política,
por parte da população, uma vez que o voto acaba sendo a forma de parti-
cipação política mais visível e institucionalizada.
Embora uma crise da democracia não implique em crise do capita-
lismo, é incongruente pensar que a democracia não vivenciaria crises ao
conviver com um sistema econômico como o capitalista, o qual, em essên-
cia, diverge de seus princípios básicos. Como expressa Przeworski (2020), a

1 - Bobbio desenvolve a ideia de que ao lado de um Estado visível, forças invisíveis coexistem com a mesma força e
dinamismo. Esta invisibilidade diz respeito à ausência de transparência de ações estatais e ausência de publicidade
destas ações, inclusive em matéria administrativa. Assim, forças subversivas paralelas ao governo, ou com a sua
anuência, passam a praticar “ações invisíveis” sem que estas sejam reveladas pelo Estado. Neste sentido ainda, grupos
extremistas, em certas circunstâncias, se associam aos órgãos estatais, inclusive em órgãos de repressão, atuando em
grande liberdade. A esta forma de atuação destas forças secretas no interior do Estado, como uma verdadeira ameaça
à democracia, chama-se também de “criptogoverno” ou “criptopoder”.
2 - Compreende-se aqui por miliciarização de setores do Estado o trânsito deste poder que se organiza sob formas de
milícias, cartelizado, que não só opera disputa por territórios, mas se assume enquanto setores e forças políticas por
dentro do Estado, se alastrando, inclusive, sobre o tecido social. Ao contrário do tráfico, este é um poder que se elege,
portanto, é mais que um poder paralelo. Ainda que volte sobre a lógica da privatização da segurança, e, portanto, na
“fabricação e instrumentalidade do medo”, sobre pessoas e coletividades, esse poder tende a avançar na legitimidade
dentro do próprio Estado. Por isso, tão caro a tais segmentos algumas pautas como: armamentismo da sociedade,
legalização de práticas irregulares, como grilagem de terras públicas, excludentes de ilicitude no exercício da função
militar; militarização da educação, da segurança pública e outros setores púbicos, e uma série de medidas político-
legislativas alinhadas a um verdadeiro estado de exceção permanente.

72
DEMOCRACIA E AGONISMO

distribuição desigual da renda e propriedade conflita com a igualdade po-


lítica (sufrágio universal), pois o governo da maioria pode representar uma
ameaça à propriedade. A acomodação entre o capitalismo e a distribuição
de renda é um arranjo facilmente rompido.
O que demonstramos é que apontar as diferenças e expectativas que
rondam o conceito da democracia clássica e da democracia liberal são im-
portantes, pois esclarecem quais elementos da democracia estariam em
crise. Segundo Castells (2018), a atual crise democrática instaura-se a par-
tir do distanciamento entre governantes e governados, ou seja, é uma crise
de representatividade. A democracia liberal estaria em crise e, não neces-
sariamente, os ideais democráticos. Neste contexto, mais uma pergunta
precisa ser respondida: a democracia incorpora ações totalitárias?

A democracia liberal e as ações totalitárias

As ações totalitárias, no plano discursivo ou retórico, costumam


ser cuidadosamente planejadas, sobretudo quando se trata de inflamar as
bases de apoio. Não se trata meramente de predicativos, mas de formas
dinâmicas em que se processa a estratégia política, com seus arranjos e
adequações em cada contexto. A memória de desafetos históricos, a crítica
ao pensamento divergente, a reversão dos fatos em circunstâncias de um
contexto totalitarista ressoam como uma estratégia política, em que mui-
tas vezes um discurso, um pronunciamento mobilizam mais que um deba-
te, uma audiência pública, uma assembleia. Diz respeito a um “chamado à
luta”, tão comum em contextos autoritários.
Assim o foi, na transição da República de Weimar ao III Reich, na
Alemanha do fim dos anos 30, no Nacional-fascismo da Itália no início dos
anos 20, no delírio nacionalista da Unidade Nacional Espanhola do Fran-
quismo, na Espanha, como do regime totalitário, em Portugal, também na
década de 30, implementado por golpe militar contra a República, o Sala-
zarismo. Tanto na Espanha quanto em Portugal, tais regimes perduraram
até meados da década de 1970.
O apelo invariavelmente é reeditado. Assume características essen-
cialmente populistas, nos gestos e nas palavras, relegam o debate da es-
fera pública ao campo do senso comum, negam ou desvirtuam a ciência,
atentam contra a liberdade de expressão e opinião, dissolvem parlamen-
tos e, via de regra, adotam um discurso de conservação das tradições, dos
valores, da moral, contando, para tanto, com forte apelo e apoio religioso
e fundamentalista.
Insiste-se, há a necessidade de compreender tal dinâmica que opera
não sob a forma de ignorância da realidade, mas como estratégia políti-
ca, articulada e planejada. Busca-se criar, assim, um clima de instabilida-

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

de, gerenciando ao mesmo tempo o caos e a sua superação, estabelecendo


uma cisma social, em que seja possível demarcar o território dos culpados,
imaginando suas razões e inspirações. Por outro lado, justifica-se a inação
governamental, indicando como salvação nacional, situações autoritárias e
intervencionistas em nome da ordem e da segurança jurídica.
Nesta alternativa de uma intervenção totalitária, de um poder sem
controles, tanto os pilares da estrutura republicana quanto a experiência
democrática, seja no campo da participação, seja em âmbito da represen-
tação, seja no plano dos direitos assegurados, desmoronam enquanto for-
mas de Estado e Organização social.
A história aponta, portanto, que essa associação, transitando entre o
fracasso da democracia liberal, um forte apelo de um populismo naciona-
lista e o enfrentamento teórico-narrativo de valores socialistas e igualitá-
rios, ainda que no campo das institucionalidades, conflui automaticamente
para as experiências totalitárias. Tais experiências, portanto, impulsio-
nam-se por uma revitalização do populismo, pela suspensão de direitos
civis básicos, pela eliminação simbólica e concreta dos divergentes (opo-
sitores) e pelo Estado totalitário. Ao fim, ao declinar para o autoritarismo,
desenvolve com naturalidade o culto à personalidade, centralizado na ideia
de “mito”, ou “lenda”. Em cada lugar, este personagem é deificado a partir
da própria nominação que o caracteriza. O Führer (condutor, guia), o Duce
(líder), o Sentinela do Ocidente, o Salvador da Pátria, enfim.
A pretensão totalitária igualmente se reveste não só deste significa-
do de um protagonismo biográfico de quem a incorpora, de forma caris-
mática, como também sugere, para o imaginário popular, estes consensos
mobilizadores, sejam eles portadores de um delírio nacionalista, religioso
ou ideológico. Curioso, entretanto, perceber que, no mesmo tecido social
como um ambiente em que a própria democracia fertiliza, pode ocorrer a
produção e reprodução de experiências totalitárias.
Se há um dado aqui que se perpetua, são as fraturas estruturais, sob
as quais, tal sistema e sua compreensão são engendradas. Em outros ter-
mos, prevalece as desigualdades abissais, a criação de categorias epistêmi-
cas de dominação e subalternização social, a colonização dos interesses,
sobre a possibilidade de humanização da existência social. Esta raciona-
lidade nivela-se, inclusive, nas concepções de “democracia e cidadania”.
Torna-se assim, passível, o consenso entre a crença no mercado e a natu-
ralização disseminada do individualismo, como um valor no tecido social
constitutivo. Reedita-se a totalidade social, a partir deste caráter nivelador.
Em tal cenário, torna-se atual recordar os anos 1930 da República de
Weimar, em que as tensões provocadas a partir da ressignificação do po-
pulismo contra a onda liberal, o negacionismo dos valores democráticos,

74
DEMOCRACIA E AGONISMO

o extermínio da opinião divergente e do próprio discordante, significaram


a antessala da Segunda Guerra Mundial. No entanto, estabeleceu-se como
condição insuperável, a emergência do fascismo e do completo estado de
exceção. Percebe-se que do mesmo contexto de crise, de colapso econômi-
co, impacta-se uma forte contração social, pulverizada por um populismo
de ocasião, fomentando assim uma linear tendência ao fascismo.
E como a história nunca se repete seguindo o mesmo roteiro, as
semelhanças de contextos necessitam servir de advertência. Claro, po-
rém, é que nas estruturas nem sempre visíveis, que operam como “forças
profundas”,3 tanto da gestação quanto da manutenção desta ordem, nem
sempre é possível integrar os interesses, sobretudo de quem nunca acre-
ditou em democracia com aspirações de justiça social. Os agentes polí-
ticos que incorporam tais pretensões estão ou estarão sempre dispostos
a confiar ingenuamente em apostas totalitárias, ou nacional-autoritária,
como instrumento controlável para que, enfim, os objetivos ou resultados
confluam para determinados grupos de interesses.
Esta mesma leitura ainda desafia a compreensão de cenários em que
os governos já não conseguem mais resolver os problemas socioeconômi-
cos nas iguais condições e pressupostos, como dantes. Não só a demo-
cracia calcada na lógica liberal-parlamentar, mas também a ideia de cida-
dania-participativa e igualdade, enquanto valores socialistas da esquerda
democrática, oscilam neste vão metafórico, entendido como “síndrome de
Weimar”. Em outros termos, a gramática da regeneração nacional e de-
mocrática, proposta como solução, resultou na tribulação do nazismo, re-
vitalizada pelo populismo, enraizada, assim, no mesmo tecido social que
engendrara o seu oposto.
As nuances que envolvem as ações totalitárias dentro da democracia
podem passar despercebidas. As análises dos cientistas políticos, de modo
geral, apontavam que as democracias no pós-Guerra Fria tenderiam a um
movimento de consolidação, principalmente quando observada a estabi-
lidade das democracias em países desenvolvidos. Assim, o debate sobre
as causas que poderiam provocar um retrocesso democrático foi pouco
considerado. Outra vertente de discussão subestimada foi a relação entre
a democracia e o liberalismo (MOUNK, 2019). Para Mounk, a democracia
e o liberalismo não formam um todo coeso. A autora explicita que uma
democracia sem direitos pode implicar na tirania da maioria. O conceito

3 - Trata-se de teoria elaborada por Maria Eva Pignatta (2010) e Carlos Henrique Canesin (2008), evidenciando a
existência de variáveis explicativas de determinados fenômenos como um verdadeiro vetor de causalidade. Tal estudo,
também sob a influência da Escola Francesa de Relações Internacionais, aponta que, na compreensão das identidades
nacionais, estas forças resultam de um determinado arranjo de diversos fatores que influenciam no comportamento
de agentes políticos, classes dominantes e mesmo na formação discursiva hegemônica que compõem as relações
internas e externas destes atores. Por fim, podem se tratar de diversos fatores que coexistem e se interconectam,
como fatores geográficos, demográficos, econômicos, da mentalidade coletiva e correntes sentimentais.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

definido pela autora é democracia iliberal ou democracia sem direitos. Do


ponto de vista do leitorado, isto repercute na intolerância com a defesa
dos direitos das minorias étnicas e religiosas. Por outro lado, direitos sem
democracia podem degenerar na exclusão do povo na tomada de decisões.
Neste caso, os interesses da tecnocracia e da força dos mercados prevale-
cem e a elite cede menos à vontade popular. Visualiza-se, assim, o libera-
lismo antidemocrático ou direitos sem democracia.
Contudo, diferente do contexto das experiências totalitárias do iní-
cio do século XX, uma das dimensões apontadas para a crise da democracia
liberal é a fragmentação das decisões provocadas por esferas de decisões
internacionais. O fomento de instituições transnacionais e a dificuldade
de responder a problemas de cunho transfronteiriço, como terrorismo e
migração por exemplo, seriam um indicativo de fragilidade do Estado na-
cional que assolapa a democracia na esfera local.
Nessa conjuntura, Castells (2018) aponta que a crise de legitimidade
da democracia liberal vai prevalecendo ao longo do tempo. Em tese, na
democracia, os cidadãos devem sentir que são representados e que as ins-
tituições funcionam conforme a vontade coletiva. Ocorre que, tal vínculo
subjetivo tem como mecanismo de correção, essencialmente, o mecanismo
de escolha por meio das eleições periódicas, ao mesmo tempo em que o
rol de escolhas possíveis passa a ser limitado por aquelas que se enraí-
zam nas instituições e nos interesses de grupos próximos do poder, o que
apontamos nas distinções entre as expectativas da democracia clássica e
da democracia liberal. Em complemento, a legitimidade do sistema é co-
locada em xeque, pois as decisões que impactam na vida dos cidadãos são
tomadas fora da esfera direta da atuação do Estado-nação. Esta é a crise de
legitimidade. Dentre as causas que a desencadeiam estão: 1) a globalização
da economia e da comunicação limitando a capacidade do Estado-nação
em oferecer respostas para problemas que são essencialmente globais; 2)
uma desigualdade e polarização cada vez maior entre os que formam as
elites cosmopolitas e os trabalhadores locais do Estado-nação.
Para além da crise de legitimidade há, também, a crise de identidade.
A causa igualmente relacionada à globalização refere-se à distinção entre
os ditos cidadãos do mundo e aqueles que reforçam a identidade nacio-
nal expressando-se através da xenofobia e intolerância (CASTELLS, 2018).
Dessa forma, os sinais de uma crise podem ser assim visualizados:
Os sinais de que podemos estar vivendo uma crise incluem: 1)
o rápido desgaste dos sistemas partidários tradicionais; 2) o
avanço de partidos e atitudes xenofóbicos, racistas e naciona-
listas; e 3) o declínio no apoio à democracia em pesquisas de
opinião pública (PRZEWORSKI, 2020).

76
DEMOCRACIA E AGONISMO

O populismo enquanto faceta de uma ação totalitária, como já dito


anteriormente, seria a resposta para uma democracia que não minimiza
as desigualdades sociais e não oferece alternativas. A insatisfação com as
instituições, conforme explana Przeworski (2020), gera dois tipos de po-
pulismo: o participativo e o delegativo. O primeiro expressa a vontade do
povo de governar a si mesmo; no entanto, relembra-se que não existe uma
vontade única do povo e que, portanto, haveria decisões plurais e partici-
pativas, mas que não seriam apoiadas por todos. O segundo tipo refere-se
à vontade de ser bem governado por outros. Neste caso, a vontade da maio-
ria quer prevalecer ainda que seja por meio de estadistas que tenham que
confrontar as relações de poderes pré-estabelecidas. O risco para o siste-
ma democrático é que sua característica principal de alternância de poder
pelas eleições pode ser comprometida. Como afirma Przeworski:
O populismo “delegativo” é o que acontece quando o povo quer
que o governo fique ainda que acabe com as restrições à sua re-
elegibilidade e à sua liberdade de adotar políticas. O resultado,
então, é o “retrocesso democrático” (PRZEWORSKI, 2020).

Na visão clássica da democracia está presente a ideia de que qualquer


tentativa de concentração ou usurpação do poder seria contida pela separa-
ção dos poderes ou, em última instância, pela rebelião do próprio povo. Con-
tudo, a análise das crises da democracia tem constatado que o povo pode não
reagir às violações e, além disso, que os governos reacionários conseguem
angariar o popular. É neste sentido, que Mounk avalia que o populismo se
apresenta como democrata, mas assola as instituições liberais.
As democracias liberais têm muitos mecanismos de controle
criados para impedir um partido de acumular demasiado po-
der e para conciliar os interesses de grupos diferentes. Mas
na imaginação dos populistas a vontade do povo não precisa
ser mediada, e qualquer compromisso com as minorias é uma
forma de corrupção (MOUNK, 2019).

Assim, Mounk (2019) aponta o populismo como a ameaça mais sé-


ria à democracia. Nos últimos anos, democracias consolidadas em países
como a Hungria, Itália, Áustria, Estados Unidos, França, Espanha, Gré-
cia, Suécia, Alemanha, Holanda apresentaram um processo de desconso-
lidação da democracia ou visualizaram a ascensão de grupos extremistas.
Diante desse contexto global e com a perspectiva teórica apresentada é
que avaliamos os limites democráticos no Brasil.

77
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Forças culturais profundas e colonialidade do poder: os limites


democráticos no Brasil

A ideia de forças profundas, tomada de empréstimo da Teoria das


Relações Internacionais, agrega alguns elementos que ajudam a entender
o desgaste da democracia em tempos contemporâneos e no atual contex-
to histórico. A definição nos ajuda a perceber as formas de estruturação
e modificação sistêmicas, ou seja, aquilo que simboliza as continuidades,
muitas vezes acenando para mudanças. Ademais, indica também os ir-
rompimentos, as intervenções e as rupturas estabelecidas como proces-
sos que, na história das sociedades humanas, representam-se, sobretudo,
nas estruturas relacionais.
Não são somente os Estados, mas também as sociedades, os povos,
os interesses subjacentes, a dimensão econômica, que formam, enquanto
forças profundas, as circunstâncias históricas em um momento dado. As
ideias naturalizadas e transmitidas em cada cultura, as instituições, aqui-
lo que mobiliza um povo, uma sociedade, dão a cadência e o alcance das
estruturas e das tendências mais profundas em cada contexto. Produzem
arranjos sociais, orientam-se enquanto força mobilizadora, estabelecem
uma coesão moral.
Neste sentido, é que o papel do governo e a sua funcionalidade prá-
tica passam a ser notadamente influenciados por essas forças. Por vezes,
tentam controlá-las ou até mesmo ignorá-las, mas jamais conseguem sub-
traí-las. Os conflitos que subjazem a esta construção, a ressignificação das
instituições, o reenquadramento da forma como a sociedade se autocom-
preende remontam neste “nem sempre visível”, incorporados no tecido
histórico-social de cada povo. Assim compreendemos, portanto, a manu-
tenção de estruturas medievais de desigualdade reciclada, mantida inal-
terada em uma perpetuada dinâmica colonial, fundada em ambivalências
dualistas e, por indução, segregacionista. É o velho clientelismo, reeditado
em práticas governistas de chefes locais, anulando qualquer possibilida-
de de participação e mudança, do povo subalternizado pelo coronelismo,
adestrado pelo compadrio, inativado, portanto, com relação ao protagonis-
mo da própria história.
Da mesma forma, uma compreensão dos processos democráticos
brasileiros, suas crises e agonias, media-se pela abordagem das nossas
forças profundas constitutivas. Nas metamorfoses do colonialismo pere-
nizado nas estruturas e relações, ou na condição histórica da escravidão
e nos seus contemporâneos e maquiados efeitos, não é a versão dos fatos
que conta. Não se repagina o nosso status democrático tão somente pela
adoção de uma outra gramática, como se assim o fazendo, modificaríamos
a genética de nossas estruturas relacionais.

78
DEMOCRACIA E AGONISMO

Por isso, entre nossas forças profundas com correlação imediata


– mesmo com os efeitos e perversões do tempo – com a sintomática da
democracia contemporânea, perpassam essas dimensões originárias que
compõem e recompõem a sociedade brasileira. Exemplifica isso, o passado
escravocrata e da grande propriedade brasileira, reeditado tantas vezes em
contexto republicano. A escolha por uma economia centrada na monocul-
tura de exportação para atender às demandas externas, caracterizando não
só a ausência de um projeto de nação, mas também um regime de susten-
tação estrutural, sedimentado em estruturas de desigualdade, injustiça e
preconceito (PRADO JUNIOR, 2000, p. 17).
Sob este ângulo, a violência institucionalizada ou patrimonializada é
prática e método contra os mais pobres, reiteradamente mobilizada pelas
elites, sobretudo quando aqueles ameaçam os seus interesses. Em outros
termos, compreende-se a lógica presente na prática de conservar padrões
e valores, mantida nas velhas ou novas recomposições de poder. A depen-
der de como estes arranjos são processados estabelece-se a aliança entre o
atraso da aristocracia rural com a burguesia conservadora, urbana e repu-
blicana, resultando em um Estado avesso e refratário, desde há muito, às
demandas por participação democrática ou popular (FERNANDES, 2005).
Em consequência, as crises democráticas nas regiões periféricas
como a América Latina, incluso o Brasil, não são exceções, mas um risco
constante. A instabilidade permanente ocorre devido ao contexto de colo-
nialidade persistente, em que prevalecem as relações hierárquicas raciais,
o patriarcado e a desigualdade nas relações de gênero. Não que o colonia-
lismo tenha se extinguido, mas se tornou mais ativo e reconfigurado em
novas relações de poder, estabelecendo, sobretudo, um novo padrão global
de controle do trabalho (CARVALHO, 2021). Na expressão da colonialida-
de e, portanto, em essência fundada nas relações de poder do eurocentris-
mo, a democracia é entendida por Quijano da seguinte forma:
O que o termo democracia significa no mundo atual, no pa-
drão mundial de poder colonial/moderno/capitalista/eurocên-
trico, é um fenômeno concreto e específico: um sistema de
negociação institucionalizada dos limites, das condições e das
modalidades de exploração e de dominação, cuja figura insti-
tucional emblemática é a cidadania e cujo marco institucional
é o moderno Estado-nação (QUIJANO, 2002, p. 15).

Em outras palavras, a busca pela igualdade democrática está inserida


em um contexto de desigualdades sociais e de poderes. Para Carvalho (2021),
isto significa que a democracia discursa em uma igualdade formal, mas é
pautada em desiguais condições sociais, “ou seja, a igualdade convive cons-
tantemente com a desigualdade”. Como resultado, o grau de tensão entre

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

igualdade formal e a busca efetiva por direitos é que explica o porquê de as


democracias não existirem da mesma forma nos diferentes países, fazendo
com que as peculiaridades históricas culturais devam ser consideradas.
Não se trata de um argumento evolucionista no qual a explicação das
crises democráticas, em países como o Brasil, reside na afirmativa de que
tais países não conseguiram alcançar o mesmo grau de civilização (natura-
lização da inferioridade das raças) e desenvolvimento e, portanto, de con-
solidação da democracia. Nesta visão, o problema centraliza-se na esfera
nacional diante do atraso no processo de modernização (CARVALHO, 2021).
A falácia desse argumento reside em não perceber a relação com a dinâmica
do capitalismo mundial e a relação entre o centro e a periferia como uma
modernidade que se constrói mutualmente. Assim, afirma Carvalho:
Dessa forma, torna-se necessário analisar os problemas e as
mazelas enfrentados pelas regiões periféricas segundo suas
próprias especificidades dentro desse todo e não a partir de
um modelo geral, formulado no interior da Europa, que foi im-
posto e incorporado acriticamente (CARVALHO, 2021, p.16).

Uma visão decorrente da colonialidade do poder interpreta que as


crises democráticas nos países da periferia do sistema mundo são resul-
tados da articulação e proximidade da elite branca local com os coloniza-
dores. Destarte, o conflito trava-se entre a maioria da população, na busca
por um efetivo processo de democratização (liberdade, igualdade e cidada-
nia), com a elite aliada ao capital internacional. Um confronto constante
que convive reiteradamente com a possibilidade de ruptura.
No caso brasileiro, a ideia de democracia, aproximando-se dos ide-
ais liberais da democracia liberal europeia, remodelou-se de acordo com
os contextos e condições de cada época. Algumas questões, entretanto,
marcaram profundamente o desenvolvimento da democracia no país, ma-
terializando-se em forma de arranjos políticos e institucionais, recriando
possibilidades de ajustes de interesses, ou interditando indicativos de mu-
danças sociais, de inspiração popular ou revolucionária.
A transferência da Corte portuguesa para o Brasil colônia, de 1808 a
1821, poderia influir nas condições de mudanças estruturais, como regime
de escravatura e o tráfico negreiro, por exemplo. No entanto, ainda que
escoltados pela proteção britânica, os ideais abolicionistas não atravessa-
ram o Atlântico. Afinal, não interessava à política real interferir nos cos-
tumes dos grupos dominantes da Colônia. Estabelece-se, assim, um fator
de continuidade colonial que vincula, inclusive, algum tempo depois, o ato
independentista. Trata-se de “arranjos intencionais”, aceitando-se que as
coisas permaneçam iguais, uma vez que mudanças podem ser uma ameaça
aos interesses reais e aos interesses aliados.

80
DEMOCRACIA E AGONISMO

Igualmente, no episódio do “fico” do Imperador regente e toda movi-


mentação política que culminou na Independência do Brasil, em 1822, pra-
ticamente em nada se assemelhou aos processos de emancipação e ruptura
Colônia-Metrópole. Uma vez mais os arranjos políticos beneficiaram a
elite agrária, com seus governantes regionais, indicados por conveniência.
Assim, se manteve inalterada a estrutura agrário-latifundiária, a economia
de exportação primária e o regime de escravidão, única mão-de-obra que
havia no País. Uma emancipação sem rupturas em que, mantidas as es-
truturas, a Colônia se tornaria um Império, simetricamente sem trocas no
comando e sem alterações nas alianças.
Na Proclamação da República, não se viu o ideário republicano em
que o povo deveria ter sido o protagonista dos acontecimentos, conforme
Murilo Carvalho (2016). Sem compreender o que se passava, os cidadãos
estavam alheios ao processo político republicano. Uma república militar,
articulada com a monarquia, sem povo, para que, ao tudo mudar, tudo
permanecesse como sempre esteve. E assim, igualmente, os arranjos se-
guiram, sendo parte constitutiva da nossa experiência republicana e de-
mocrática. A história já o registrara antes, por ocasião da Lei de terras,
em 1850, a serviço dos terratenentes e prevenindo-se dos futuros “sem
terras”, os “escravos livres”. Tanto faz que uma integrante da Corte, filha
de Dom Pedro II, promovesse sem revoltas e sem revoluções, a abolição
da escravidão, em 1888.
Para os grandes incômodos sociais ou políticos que ameacem as es-
truturas, grandes golpes. Assim, na Revolução de 1930 ou no golpe de Esta-
do de 1937, o pressuposto se padroniza: “façamos a revolução, antes que o
povo a faça” (SOUZA, 2016). Como também no golpe civil-militar de 1964,
assumido enquanto caráter preventivo, mas no conteúdo, como resistência
às possibilidades de reformas e avanços sociais.
Sempre que o contexto exige, a retórica comparece. Assim, sem que
se processem mudanças, mas que se agrade boa parte da população, al-
teram-se ou adjetivam-se os roteiros, deixando inalteradas as estruturas,
especialmente consagradas e materializadas na dinâmica de um Estado
apropriado. E, assim, a República substitui o império, o Estado Novo suce-
de a Velha República, a Nova República substitui o regime ditatorial, gol-
pes se autocompreendem como revoluções. A realidade descreve-se como
um ato contínuo, sem rupturas, inserindo sempre, se necessário, um novo
texto, a cada cena.
Nesta direção, inclusive, compreendem-se dois movimentos – tanto
a elaboração, por parte da Assembleia Constituinte, assim como suas dis-
putas, e os obstáculos à sua efetivação, 33 anos após. O que, na verdade,

81
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

seria a base da constituição da república e da democracia, a ela inerente,


padece pelo descumprimento.
Uma vez mais, como se faltasse um texto a este contexto, cumpre-se
o destino dos arranjos políticos, do manuseio de interesses preservados
sempre, pela negação, pela procrastinação e pela desregulamentação. Na
mesma linha de reflexão de Norberto Bobbio (2010), pode-se dizer, nestes
casos, das promessas não cumpridas da Constituição e de suas garantias,
muitas ainda adormecidas na inefetividade.
De 1989 até a atualidade, Santos, Hoffmann, Duarte (2021) argumentam
que a democracia brasileira tem perdido constantemente o apoio das massas e
tem tido perda da legitimidade do espaço de suas instituições, o que se verifica
pelo crescente processo de judicialização da política, por exemplo.
As elites no poder utilizam-se de mecanismos dentro da lei para favore-
cerem interesses democráticos. Tal atitude é expressa pelo conceito de “har-
dball”. O impeachment da presidente Dilma Rousseff ilustra um dos casos ao
qual o conceito se aplica e no qual a competição política sofre um reverso.
Além de condições históricas e culturais, dialogadas como forças
profundas e colonialidade, no caso do Brasil, a desigualdade social expres-
sa uma potencial crise democrática, ainda que a crise da democracia não
implique em crise do capitalismo. Inclusive, pensar que a democracia não
vivenciaria crises convivendo com um sistema econômico como o capita-
lista, o qual em essência diverge de seus princípios básicos, é incongruen-
te. Como expressa Przeworski (2020), a distribuição desigual da renda e
propriedade conflita com a igualdade política (sufrágio universal), no qual
o governo da maioria pode representar uma ameaça à propriedade. A aco-
modação entre capitalismo e distribuição de renda é um arranjo facilmen-
te rompido. Uma assertiva, que coloca a democracia do Brasil sujeita a
instabilidades, deriva do seguinte fato:
Quase todos concordam que é improvável o colapso da democra-
cia em países economicamente desenvolvidos; há forte evidência
de que em países menos desenvolvidos a democracia é vulnerável
à desigualdade de renda, e que, quanto mais velhas são, é mais
provável que continuem existindo (PRZEWORSKI, 2020).

O que demonstra a fala do autor é que o caso brasileiro está no lado


oposto, ou seja, de uma democracia recente em um país marcado por alta
desigualdade social com desenvolvimento econômico considerado “em de-
senvolvimento”. Assim, reconhece o autor que o crescimento econômico e
a desigualdade social são fatores importantes para explicar rupturas de-
mocráticas, mas há, também, um terceiro fator descrito pelo pesquisador
que desfavorece o caso do Brasil, o fato de ser uma democracia presiden-
cial. As instituições mistas ou parlamentares tenderiam a ser menos vul-

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DEMOCRACIA E AGONISMO

neráveis a crises de governança e, portanto, resistiriam melhor a situações


de impopularidade (PRZEWORSKI, 2020).
No contexto da crise da democracia liberal global, a eleição de Bolso-
naro no Brasil, segundo Mounk (2019), deve ser vista como um dos eventos
mais importantes da história do país desde o fim do regime militar. Como
um líder populista, Bolsonaro, na visão da autora, “é o adversário mais pode-
roso que a democracia brasileira enfrenta em meio século” (MOUNK, 2019).
Vislumbramos que a democracia brasileira reúne elementos de fra-
gilidade: possui forças profundas que demarcam a sua construção social
histórica de participação popular e manutenção de interesses de grupos
privilegiados; está marcada por um contexto mundial de colonialidade do
poder; uma sociedade definida pela desigualdade social, por experiências
populistas e arranjos políticos e institucionais da elite nacional com o ca-
pital internacional.

Considerações finais

Como afirma Przeworki, “tentar identificar as causas do desgaste


das instituições e normas democráticas rende mais perguntas que res-
postas” (Przeworki, 2020). A democracia brasileira, caminhando de bra-
ços dados com a elite, é um fator que gera descrença na política e des-
crença no poder do voto. Dentre tantas perguntas que são geradas diante
do contexto atual brasileiro, a principal é: estamos na ameaça de viven-
ciar um regime totalitário?
As análises e os preceitos históricos indicam que no Brasil as crises
democráticas são constantes e a possibilidade de ruptura de uma realidade,
plausível. Não queremos com isto expor uma visão determinista da histó-
ria, ao contrário, conhecer os limites democráticos brasileiros nos conduz
a pensar em alternativas. Permite-nos tirar a venda dos olhos e enxergar
a democracia como um sistema político que sofre retrocessos, que abarca
ações totalitárias e que, portanto, instrumentos múltiplos de participação
e de controle devem ser aprimorados. Não é o fim da história.

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4
Amazônia nas disputas pela memória
em um contexto de pós-verdade: da
utopia autoritária à distopia cognitiva
Aparecida Luzia Alzira Zuin
César Augusto Bubolz Queirós

Introdução

Este artigo apresenta a Amazônia nas disputas pela memória em um


contexto pós-verdade, e para compreender esse contexto perpassa pelos
discursos históricos que fundaram a utopia autoritária, difundindo uma
imagem da Amazônia como lugar receptivo às transformações da natureza
pelo trabalho do homem, ao progresso harmonizado com a cultura local,
ao crescimento econômico sem danos ambientais.
A abordagem aqui analisa a configuração de utopia segundo “um es-
tágio superior a ser conquistado, com patamar mais elevado de felicidade”
(FONSECA, 2012, p. 23). No Brasil, sem esse pretenso estágio, a Amazô-
nia permaneceria no atraso; perderia sua grandeza geopolítica para outras
nações; permaneceria “vazia, inóspita”. Mas, que felicidade é esta ou para
quem ela se destina ou destinou? Se observados os modos como foi confi-
gurada, também trouxe a infelicidade com a recusa dos direitos dos povos
originários, com a ofensiva ao humanismo e as alterações do espaço geo-
político, que ao nosso ver impulsionaram a utopia autoritária. O que nos
autoriza a fazer essas afirmações? Diríamos que três a respeito. Em pri-
meiro lugar, a lógica eurocêntrica que dispensou condutas pacíficas no pe-
ríodo colonizador. Em segundo lugar, trata-se da rigorosa subestimação da

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Amazônia sustentada na potencialização dos programas refutadores dos


recursos naturais e humanos do lugar pelos governos brasileiros, sejam do
período militar ou progressistas. Porém, a potência desse efetivo discur-
sivo sobreveio, com certeza, na terceira onda, com o governo de extrema
direita instalado no Brasil, desde 2018, de Jair Messias Bolsonaro, pois, ao
lado do anti-humanismo vem resumindo suas táticas na ofensiva teórica
contra os direitos do homem e da natureza.
Fausto (2009, p. 57), em seu texto, A ofensiva teórica contra os di-
reitos do homem: em torno das teses de Alain Badiou e Slavoj Zizek,
resumidamente diz que é difícil definir o humano “pelo humano”, como
também é absurdo defini-lo apenas pelo “anti-humano”; porém, essas duas
realidades existem como potencialidades. No presente caso seria válido ou
melhor optar, por razões lógicas, na potencialidade humana, mas o “lado
anti-humano é o da violência, de uma cultura de morte”; o lado que con-
trapõe e impede a coexistência dos indivíduos, da cooperação, a sobre-
vivência, em suma (FAUSTO, 2009). Isso explica o exercício negacionista
sobre a exploração e o desmonte das políticas de preservação e proteção
ambiental; o uso da desinformação por meio das fake news; a necropolítica
promovida pelo governo bolsonarista, em que pese as contraposições às
instituições científicas; aos direitos humanos; à defesa do desenvolvimen-
to humano e social. Daí a distopia cognitiva, no momento em que a comu-
nidade global propõe na Agenda 2030 a informação pública como essencial
para construir instituições democráticas e imprescindíveis a reivindicar
Direitos Humanos e controle social; o interesse pelos direitos dos povos
originários; a necessidade de considerar o equacionamento das estratégias
do desenvolvimento do País.
Com viés pautado na observação literária e histórico-crítica, o tra-
tado sobre a utopia autoritária é a primeira parte do estudo. Inicia-se com
um breve panorama histórico e os modos como a Amazônia passou a ser
identificada como o “Eldorado” (lugar utópico) nos discursos fundantes
dos colonizadores ao longo dos tempos. Ao longo dos tempos, cita-se aqui
a passagem do período colonizador, principalmente do século XX, porque
foi nesta época que o imaginário coletivo sobre a Amazônia se intensificou
por meio das pautas e/ou da agenda político-econômica do período dos go-
vernos militares na década de 70, que reuniram ao mesmo tempo o “mito
do vazio demográfico” (antigo e propagado pelos colonizadores portugue-
ses e espanhóis sob o poder e/ou domínio da igreja católica que ditava a
ocupação da Amazônia por meio de bulas papais compreendidas na ordem
do Direito Romano), e o “mito da terra prometida” – que serviria, por muito
tempo, para a afirmação do crescimento acelerado, como de fato se deu nas
décadas de 60 e 70 com os incentivos fiscais e os intensos investimentos do

88
DEMOCRACIA E AGONISMO

governo federal da época aos conhecidos projetos de colonização dirigida,


especialmente, ao estímulo da migração, em grande maioria originária das
regiões Sul, Sudeste e Centro-oeste do Brasil.
A outra fase se deu com o “mito do crescimento” defendido pelos go-
vernos pós-regime militar por meio dos projetos hidrelétricos; e na década
de 90, sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso (1986), a exemplo
da Usina Hidrelétrica Tucuruí II. E, em seguida, com os projetos hidre-
létricos discursados como desenvolvimentistas inclusos no Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC),1 no governo Luiz Inácio da Silva, se-
guidos pela presidenta Dilma Roussef. Aqui destacando, principalmente,
as Usinas Hidrelétricas Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira (Rondônia).
Contudo, nos modos de publicizar a região como utópica, a Amazô-
nia passou a ser o objeto cuja experiência vivida, enquanto lugar caracte-
rístico e/ou específico dos colonizadores e governantes, a permite, hoje,
em pleno século XXI (ano 2021), ser observada enquanto distópica – haja
vista que esta terra de belezas naturais (floresta, rios com abundância de
água, fauna, flora, etc.), promissão, fartura, progresso em constante ascen-
são e com oportunidades de trabalho como é discursivizada, contrasta com
os efeitos danosos que perpetuam em decorrência da política contínua de
exploração, desestabilização socioambiental e cultural, e, atualmente, com
a política negacionista e, ao mesmo tempo, permissiva ao aumento dos
danos ambientais, às invasões de terras indígenas, ao avanço da autoridade
governamental no espaço desrespeitando a cultura e dos modos de vida do
lugar, entre outras manifestações prejudiciais à preservação da Amazônia.
Em um Estado Democrático de Direito, sob a regulação de uma
economia mista como é o caso brasileiro, o objetivo que está posto neste
formato não tem o homem e sua relação com a natureza como ponto de
partida, sobretudo, a sua cultura e seu meio. Assim, pretende-se ao longo
da segunda parte do exercício analisar como a representação da Amazônia
pode ser o objeto de valor (no sentido semiótico) e, como tal, se intersec-
ciona com os feixes de relações sociais, econômicas, políticas, culturais,
etc. Aqui, o objeto-valor se define como o lugar de investimento dos valo-
res (ou das determinações) com as quais o sujeito (a sociedade; o governo,
por exemplo) pode estar em conjunção (ter alguma coisa) ou em disjunção
(o objeto jamais foi possuído). Por isso, o reconhecimento dos programas
narrativos complexos (por vezes, autoritários) nos orienta a compreender,
em seguida, o valor de base e o valor de uso, no caso da Amazônia. Mais,
enquanto objeto sofreu as consequências “da reflexividade que constitui

1 - Criado em 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC promoveu a retomada do planejamento e


execução de grandes obras de infraestrutura social, urbana, logística e energética do país, contribuindo para o seu
desenvolvimento acelerado e sustentável. Disponível em: http://www.pac.gov.br/. Acesso em: 20 mar. 2019.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

uma característica de todos os processos de representação que têm marca-


do a cultura contemporânea: a representação2 é mimese ou sombra do ob-
jeto e do mundo” (FERRARA, 2008, p. 47-48). Nestes termos, a Amazônia
passa a ser dotada de sentidos, ou seja, construção e reprodução espacial,
cujas variantes revelam suas especificidades nos modos como o lugar se
manifesta com os seus elementos semióticos constituintes.
Nesse investimento analítico, a pesquisa é qualitativa, com os proce-
dimentos metodológicos bibliográfico, documental e iconográfico. Para o
caso em questão o argumento é indutivo; e numa perspectiva interdiscipli-
nar à luz da História, Literatura, Sociologia e Semiótica Discursiva (Grei-
masiana/Francesa) analisa os tipos do espaço tópico: utópico e paratópico;
ensejando discutir as intencionalidades negacionistas do governo federal,
no período de 2019 e 2021, para compreender a manifestação da tentativa
de reabilitação da utopia autoritária em vistas à distopia cognitiva que se
desenvolve paralelamente ao aumento do saber (como atividade cognitiva)
que visa o estabelecimento de sociedades pacíficas e inclusivas para o de-
senvolvimento sustentável, a promoção do acesso universal à Justiça.

Integração, ocupação e exploração: a Amazônia e a “utopia autoritária”

More descreve a ilha (composta por cinquenta e quatro cida-


des, que tem como capital Amaurota). Descrevi a vocês o mais
exatamente possível a estrutura dessa república que considero
não somente a melhor, mas a única que merece esse nome. To-
das as outras falam do interesse público e cuidam apenas dos
interesses privados. Aqui nada é privado, e o que conta é o bem
público. Não poderia ser de outro modo. Em outros lugares,
cada um sabe que, se não cuida de sua própria pessoa, e por
mais florescente que seja o Estado, morrerá de fome; portanto
é forçado a pensar em seus interesses em vez dos do povo, isto
é, de outrem. Entre os utopianos, ao contrário, onde tudo é de
todos, um homem está seguro de ter o necessário contanto que
os celeiros públicos estejam repletos (MORUS, 2001).

No processo histórico da colonização portuguesa no Brasil e da


construção imagética da Amazônia, a região foi objeto de um conjunto
de representações que a colocava tanto na condição de um obstáculo ao
progresso, região incivilizada e de uma natureza insubmissa, quanto como
uma fronteira a ser alcançada a fim de integrar aquelas vastas e ricas terras

2 - Cf. Para Greimas e Courtès, no Dicionário de Semiótica, “Representação é um conceito da filosofia clássica que,
utilizado em semiótica, insinua – de maneira mais ou menos explícita – que a linguagem tria por função estar no
lugar de outra coisa, de representar uma ‘realidade’ diferente. As palavras não são então nada mais do que signos,
representações das coisas do mundo. As semióticas servem-se do termo representação, dando-lhe um sentido técnico
mais preciso [...] entender-se-á como construção de uma linguagem de descrição de uma semiótica-objeto; [...] juntar
investimentos semânticos a símbolos de uma linguagem formal” (2008, p. 419).

90
DEMOCRACIA E AGONISMO

ao desenvolvimento nacional. Seria, portanto, um imenso “vazio” demo-


gráfico e civilizatório que precisava ser incorporado à Nação, pela ação
do Estado e de agentes privados – apoiados por sua ação. Segundo Djalma
Batista, é necessário enxergar a região amazônica além dos estereótipos:
Apesar da aparente homogeneidade geográfica, caracteriza-
da pela presença de rios caudalosos e de uma floresta sempre
verde [...], toda essa terra imensa, além de ter pouca gente,
possui diversidades étnica e cultural, embora a economia
não divirja muito. Cada Amazônia tem, entretanto, as suas
características próprias. [...] o espaço amazônico, apesar de
grande, tem uma distribuição demográfica irregular, de que
resulta, apesar de tudo, no final, um mínimo da presença do
homem (BATISTA, 2007, p. 43).

A análise de tais representações se faz de extrema importância uma


vez que elas justificavam, legitimavam e orientavam um conjunto de ações
que, reciprocamente, retroalimentava tais representações. Sua construção
está diretamente alinhada a um bloco de interesses concretos que tem na
ocupação da região e no aproveitamento – predatório – de seu potencial
econômico o grande objetivo. Diante disso, a natureza e os povos origi-
nários não poderiam ser “entraves” a esse discurso de desenvolvimento e
“progresso”. Para Chartier,
As percepções do social não são de forma alguma discursos
neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, po-
líticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros,
[...] a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os
próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. [...] As lutas de
representação têm tanta importância como as lutas econômicas
para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe,
ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que
são seus, e o seu domínio (CHARTIER, 1990, p. 17).

No entanto, se a implementação de tal “missão civilizatória” atinge


seu ápice durante o período da ditadura militar, devemos considerar que –
com diferenças e especificidades que serão analisadas em outro momento
– o projeto de ocupação/integração da região amazônica está presente ao
longo dos últimos séculos e perpassou diferentes governos. Camila Mon-
ção destaca que “os ideais de ‘desenvolver, integrar e ocupar’ a Amazô-
nia surgem com força antes mesmo da ditadura, durante a Era Vargas. [...]
Muitas características dos projetos da ditadura de 1964 têm grande seme-
lhança com propostas do Estado Novo para a região amazônica”.
Em discurso pronunciado na cidade de Manaus, em evento realizado
no Ideal Clube, em outubro de 1940, Vargas deixava claro seu projeto de
civilizar e ocupar a região amazônica, deixando transparecer a premissa

91
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

de uma oposição entre homem e natureza: “conquistar e dominar” essas


terras seriam, portanto, a “mais alta tarefa do homem civilizado”. Neste
discurso, na presença do interventor Álvaro Maia, o presidente Getúlio
Vargas afirmava
Vim para ver e observar de perto as condições de realização
do plano de reerguimento da Amazônia. Todo o Brasil tem os
olhos voltados para o Norte, com o desejo patriótico de auxi-
liar o surto do seu desenvolvimento. [...] Nada nos deterá, nesta
arrancada, que é, no século vinte, a mais alta tarefa do homem
civilizado: conquistar e dominar os vales das grandes torrentes
equatoriais, transformando a sua força cega e a sua fertilida-
de extraordinária em energia disciplinada. O Amazonas, sob
o impulso fecundo da nossa vontade e do nosso trabalho, dei-
xará de ser, afinal, um simples capítulo da história da Terra, e,
equiparado aos outros grandes rios, tornar-se-á um capítulo
da história da civilização (D’ARAUJO, 81, p. 77).

Neste contexto, a “grandeza territorial” da Amazônia – com sua “fe-


racidade inigualável” – lançaria ao homem civilizado os colossais desafios
de “adensar o povoamento, conquistar a terra, dominar a água, sujeitar a
floresta “em toda a sua pitoresca e perigosa extensão”. Para isso,
Impõe-se a enorme responsabilidade de civilizar e povoar
milhões de quilômetros quadrados. Aqui, na extremidade se-
tentrional do território pátrio, sentindo essa riqueza poten-
cial imensa, que atrai cobiças e desperta apetites de absorção,
cresce a impressão dessa responsabilidade, a que não é possí-
vel fugir nem iludir (D’ARAUJO, 81, p. 77).

As representações da Amazônia estavam mais impregnadas pelas suas


possíveis ausências do que por uma visão real da multiplicidade de experiên-
cias e vivências desta região multifacetada que aguçava tantas curiosidades e
ambições. Civilizar, ocupar e integrar eram as tarefas às quais as autoridades
brasileiras se propunham, travando uma “cruzada desbravadora” que tinha
como principal intuito “vencer o grande inimigo do progresso amazonense,
que é o espaço imenso e despovoado” (D’ARAUJO, 81, p. 77).
Com o golpe civil-militar de 1964, o processo de ocupação da região
passa a ocorrer de forma contínua e sistemática, a partir da criação de pla-
nos, programas e superintendências criados pelo governo central com a
finalidade de executar planos de ocupação e desenvolvimento do espaço
amazônico. Durante o governo de Castelo Branco, foram implementadas
as bases político-institucionais para este reordenamento: em 1966, a cria-
ção da Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM)
e a reformulação do Banco de Crédito da Amazônia S. A., dando lugar ao
Banco da Amazônia S. A. (BASA), que, em conjunto com o Banco do Brasil,

92
DEMOCRACIA E AGONISMO

foram os principais financiadores deste modelo. Em 1967, foi criada a Supe-


rintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA) e, em 1970, o Progra-
ma de Integração Nacional (PIN) e o RADAM (FRANKLIN, 2014, p. 336).
A implementação dessa política de ocupação da Amazônia foi ideali-
zada a partir da lógica da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), gestada
no âmbito da Escola Superior de Guerra (ESG), fundada em agosto de 1949.
A partir da criação do National War College, em 1946, diversas escolas mi-
litares foram fundadas na América Latina seguindo sua inspiração: Escola
Superior de Guerra (ESG), no Brasil; Academia de Guerra, no Chile; Escola
Nacional de Guerra, no Paraguai; Escola Superior de Guerra, na Colômbia;
Escola de Altos Estudos Militares, na Bolívia. Para Padrós, o aparelhamen-
to dessas instituições tinha como objetivo fundamental “implicar atores
locais na defesa de uma área que passou a ser compreendida como inserida
na nova concepção de segurança interna dos EUA que o Pentágono, atra-
vés da DSN, assumiu a qualificação das Forças Armadas da América Lati-
na, fornecendo treinamento, doutrinação, armamento e suporte logístico”
(PADRÓS, 2005, p. 210). Neste contexto de Guerra Fria e de bipolaridade
política, a DNS seria a “manifestação de uma ideologia que repousa sobre
uma concepção de guerra permanente e total entre o comunismo e os paí-
ses ocidentais” (BORGES, 2014, p. 24).
No Brasil, a geopolítica de Golbery do Couto e Silva e dos demais
membros da ESG serviu de esteio para a elaboração dos projetos voltados
para a ocupação da Amazônia, tendo um desenvolvimento econômico aos
moldes do capitalismo tradicional com base numa política de Segurança
Nacional. Nessa perspectiva, a Amazônia passa a ser vista do ponto de vis-
ta geopolítico como tendo uma importância estratégica para a segurança
nacional, representando um “elemento essencial do próprio tamponamen-
to inicial da fronteira” (SILVA, 1967, p. 133). Nessa direção, os projetos
desenvolvimentistas voltados para a “integração” da Amazônia tinham por
finalidade a consolidação de um “domínio efetivo” sobre a região.
A partir dessa perspectiva geopolítica e estratégica inspirada na
DSN, podemos analisar os projetos destinados à ocupação/integração da
Amazônia tendo como ponto de partida dois aspectos principais: a inte-
gração da região como forma de efetivar o pleno domínio do território
diante da cobiça internacional (inimigo externo) e a ocupação do espaço
amazônico a partir de estímulos à migração – tanto no Nordeste, quanto
no Sul e Sudeste – a fim de promover o esvaziamento dos conflitos internos
e focos de oposição ao ‘regime’ (inimigo interno).
No contexto da DSN, a cobiça internacional e as possíveis ameaças
de internacionalização da Amazônia justificariam a necessidade premente
de ocupação daquela vasta e quase inabitada região. Em seu livro A Ama-

93
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

zônia e a Cobiça Internacional, Arthur Cezar Ferreira Reis, que governou


o estado do Amazonas após a deposição de Plínio Ramos Coelho em junho
de 1964, argumentava que a atenção dos países desenvolvidos estaria di-
recionada para a Amazônia, cuja exploração de suas potencialidades por
estes países representaria a solução para uma variada gama de problemas
enfrentada no Velho Continente. Assim, os países economicamente mais
desenvolvidos iriam encontrar um meio, seja lícito ou ilícito, de lançar
mão das potencialidades amazônicas (REIS, 1973, p. 158). No final da dé-
cada de 1960, eram frequentes nos periódicos notícias, artigos e editoriais
explorando a temática da ameaça à soberania nacional e da internaciona-
lização da Amazônia.
O artigo intitulado A Amazônia corre perigo de internacionaliza-
ção?, escrito por Arthur Cezar Ferreira Reis e publicado na revista Reali-
dade, no ano de 1967, já antecipa a visão do autor sobre as ameaças da co-
biça internacional sobre os territórios amazônicos. No artigo, Reis expõe
o risco que o território nacional sofria em função da cobiça internacional
pelas terras amazônicas, afirmando que “aguçavam os apetites dos povos
poderosos que careciam de matérias-primas para seus parques industriais
e de espaço para nele situarem parcelas que carecem de lar, de terra para
viver”. Segundo Reis, para impedir a internacionalização da Amazônia, faz-
-se necessário que “nos armemos, não apenas para a luta armada” (REIS,
1967). Em 25 de janeiro de 1968, a capa do periódico Folha do Norte trazia
a seguinte manchete: Não se trata de chauvinismo: nossa soberania está
mesmo ameaçada, contendo declarações do senador Arthur Virgílio e do
ministro Albuquerque Lima denunciando uma possível invasão na Ama-
zônia. Em dezembro de 1967, o periódico O Jornal, trazia uma reportagem
intitulada É o plano da invasão, que também denunciava planos de tomada
da Amazônia. Segundo Medeiros
A internacionalização da Amazônia se insere nas narrativas
hegemônicas levadas a efeito por atores-autores que forjam
o poder de decidir sobre o espaço amazônico, muitas vezes,
tratado como região problema. Jornais e revistas se tornam
instrumentos de divulgação, debates, prognósticos, conjuntu-
ras, repercussões e de projeções que estabelecem proposições
territoriais (MEDEIROS, 2012, p. 123).

Nessa direção, tanto a imprensa quanto os discursos dos represen-


tantes da ditadura convergiam ao estabelecer uma narrativa que criava a
premência da ocupação da região face a uma ameaça externa, o que legiti-
mava e justificava os excessos e atropelos ocorridos durante a aplicação de
projetos desenvolvimentistas que resultavam no genocídio e desterritoria-
lização das populações indígenas e no desmatamento desenfreado.

94
DEMOCRACIA E AGONISMO

Por outro lado, para garantir a integração da Amazônia ao território


nacional era necessária sua efetiva ocupação, com o deslocamento da fron-
teira agrícola para as margens do rio Amazonas e incorporação de amplas
faixas da população através da reorientação das migrações de mão de obra
do Nordeste. Segundo Morais,
A propaganda oficial alardeada pelo presidente Médici cen-
trava-se em transferir ‘os homens sem terra do Nordeste para
as terras sem homens da Amazônia’. Os ‘homens sem terra’
do Nordeste eram resultado da concentração de terras e de
políticas públicas que mais agravavam que atenuavam a situ-
ação de pobreza na região, pois não foram capazes de atacar
as questões básicas de infra-estrutura que visava minimizar
os problemas decorrentes da seca. Da mesma forma, a Ama-
zônia, apesar da baixa densidade demográfica, não se consti-
tuía no “vazio demográfico” que se apregoava. As suas terras
já estavam ocupadas por tribos indígenas e por pequenos
agricultores e posseiros, desde pelo menos o século XVIII
(MORAIS, 2000, p. 59).

A fim de operacionalizar tais intentos, em dezembro de 1966, foi lan-


çada a “Operação Amazônia”, que abria “caminhos para a exploração dos
recursos naturais, articulando o tripé da economia brasileira, formada pelo
capital estatal, privado nacional e privado estrangeiro, representado pelos
grandes monopólios multinacionais” (STELLA, 2009, p. 86). Nela, a região
era descrita “como um dos maiores desertos do mundo”, necessitando de
um esforço conjunto para adensar o povoamento e fomentar a exploração
capitalista, sob a inspiração da ideologia de “segurança nacional” e cujo
lema seria “integrar para não entregar”.
Segundo Antenor Silva, o Plano de Integração Nacional (PIN), lan-
çado em 1970, surge como uma estratégia geopolítica e combinava pro-
gramas de exploração da infraestrutura e econômicos na Amazônia com
um projeto de colonização para o assentamento de nordestinos sem terra
(SILVA, 2015, p. 71). A iniciativa do governo de Médici estava baseada na
construção de grandes rodovias com a finalidade de integrar a região ama-
zônica ao território nacional. Ainda segundo Silva, o Plano de Integração
Nacional “vislumbraria posteriormente a construção de outras rodovias
como a Cuiabá-Porto Velho (atual BR-364) e a Perimetral Norte (atual BR-
210), mas nenhuma dessas tornar-se-ia tão emblemática quanto a Transa-
mazônica” (SILVA, 2015, p. 71). Analisando as metas oficiais do Plano de
Integração Nacional, Oliveira destaca três
a primeira referia-se à abertura de duas rodovias na Amazônia
– a Transamazônica (ligando o Nordeste e a Belém-Brasília à
Amazônia Ocidental – Rondônia-Acre) e a Cuiabá-Santarém,
ligando o Mato Grosso à Transamazônica e ao próprio porto de

95
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Santarém, no rio Amazonas; a segunda medida foi a implanta-


ção, em faixa de terra de 10 km de cada lado das novas rodovias,
de um programa de “colonização e reforma agrária” e o início
da primeira fase do plano de irrigação do Nordeste; e a terceira
medida referia-se à transferência de 30% dos recursos financei-
ros dos incentivos fiscais oriundos de abatimento do imposto
de renda para aplicação no programa (OLIVEIRA, 1991, p. 63).

No entanto, devemos salientar que a implementação destes proje-


tos desenvolvimentistas no espaço amazônico ocorreu sem que fossem
levadas em consideração as reais necessidades dos habitantes da região
e, principalmente, a despeito de seus interesses. A elaboração de tais pro-
jetos partiu de um profundo desconhecimento da lógica regional, caracte-
rizando-se pela imposição de um modelo de desenvolvimento exógeno e
que atendia sobretudo aos interesses do capital privado nacional e inter-
nacional com forte influência da geopolítica bipolar. A implementação de
um amplo programa de construção de grandes obras rodoviárias no espaço
amazônico com o intuito de integração territorial e de fixação populacional
– com a construção da Rodovia Transamazônica (BR-230), Manaus-Porto
Velho (BR 319), Cuiabá-Santarém (BR-163), da Perimetral Norte (BR-210),
entre outras – rasgou a floresta, provocando enormes e irreparáveis danos
ambientais e a violação dos direitos dos povos tradicionais.
Tal quadro permite que tracemos uma relação direta entre a impo-
sição de um projeto desenvolvimentista da ditadura para o espaço ama-
zônico e a utopia autoritária levada a cabo pelos militares, que consistia
não apenas na “crença de que seria possível eliminar quaisquer formas
de dissenso (comunismo, ‘subversão’, ‘corrupção’) tendo em vista a inser-
ção do Brasil no campo da ‘democracia ocidental e cristã’” (FICO, 2004,
p. 33); como também em uma estratégia de desenvolvimento econômico
verticalizada e autoritária que colocava os interesses do Estado acima dos
direitos individuais e que recorria sistematicamente à violação desses di-
reitos a fim de concretizar suas ações de governo. Nesse sentido, a “utopia
autoritária” tinha por premissa a crença da superioridade militar sobre os
civis, o que conferia às Forças Armadas a responsabilidade efetiva sobre
os rumos do país e um certo compromisso ético e moral originado de sua
condição. Para Fico, a crença nessa superioridade militar estava baseada
em duas dimensões: a primeira de “viés saneador” e a segunda de “base
pedagógica”. Por meio da primeira, cabia aos militares o saneamento do
organismo social, “extirpando-lhe fisicamente o ‘câncer do comunismo’”
(FICO, 2004, p. 38). Essa tarefa de erradicação da oposição e do dissenso re-
presentados pelo “comunismo” e pela “subversão” cabia à polícia política,
ao aparato repressivo e de espionagem, de censura à imprensa e ao corpo
jurídico. A segunda dimensão, de base pedagógica, buscava exercer uma

96
DEMOCRACIA E AGONISMO

prática educativa que partia do pressuposto de que a população brasileira


era despreparada, não sabia votar e que, portanto, necessitava que lhes
fosse dada orientação.
Luis Felipe Miguel também observa a existência dessa crença na su-
perioridade moral e técnica dos militares, que estariam cientificamente
preparados para oferecer soluções a todos os problemas nacionais. Esse
discurso seria um dos elementos que justificariam a intervenção direta dos
militares na gestão da vida nacional uma vez que, diferentemente dos po-
líticos profissionais, não estariam presos aos grupos que os apoiam, tor-
nando-os incapazes de adotar medidas firmes. Para o autor, a legitimidade
dos governos militares não estaria vinculada à soberania popular pois sua
legitimidade se condiciona à adequação aos “objetivos nacionais perma-
nentes”. E, de acordo com a doutrina, são as próprias “elites” que interpre-
tam as aspirações nacionais e fixam tais objetivos (MIGUEL, 2002, p. 44).
Com esse intuito, a partir de 1964, foi criado um aparato repressi-
vo “fundamentado na perspectiva da ‘utopia autoritária’, segundo a qual
seria possível eliminar o comunismo, a ‘subversão’, a corrupção etc. que
impediriam a caminhada do Brasil rumo ao seu destino de ‘país do futuro’”
(FICO, 2004, p. 36). Assim, o SNI foi criado ainda em 1964 e, gradualmente,
foi se estabelecendo um aparato jurídico autoritário que conformaria as
bases legais e buscaria a legitimação do regime. Para Carlos Fico, a “utopia
autoritária” pode ser considerada como sendo o “cimento ideológico que
agregava todas as instâncias”, sendo uma forma menos elaborada e intelec-
tualmente diluída da Doutrina de Segurança Nacional (FICO, 2004, p. 38).
Recentemente, vivenciamos a retomada desses discursos de “integra-
ção” da Amazônia e de aproveitamento de suas riquezas naturais. Sobretu-
do, desde as jornadas de junho de 2013, verificamos o crescimento de uma
onda reacionária e fortemente autoritária que canalizou um discurso fas-
cista, marcado por fortes ataques à Constituição e aos Direitos Humanos,
pela tentativa de reabilitação da ditadura militar e por ataques agressivos
às instituições. Foi nessa onda reacionária que, durante a eleição de 2018,
uma eleição marcada pela forte utilização de fake news e pela cada vez mais
evidente interferência do Poder Judiciário no processo eleitoral, foi eleito
o presidente Jair Messias Bolsonaro, um parlamentar de pouca projeção
ao longo de toda a sua carreira política e que se notabilizou pela defesa
da ditadura militar, pela apologia à tortura e pelo envolvimento em cons-
tantes polêmicas. Sua eleição teve como pano de fundo o reavivamento de
um discurso anticomunista, a defesa de valores da “família tradicional” e a
busca pela identificação com a ditadura militar – tido como um período de
prosperidade e segurança e livre da corrupção. Para a Amazônia, verificou-
-se a retomada do discurso “integracionista” e “desenvolvimentista”, em

97
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

que os órgãos de fiscalização foram sucateados e desestimulados a fim de


promover a ocupação da região e o desenvolvimento do agronegócio e da
mineração – com reiterados chamamentos para a exploração do nióbio da
região como forma de alavancar o desenvolvimento nacional.
Buscando compreender as ações e discursos do atual governo a partir
da discussão apresentada neste tópico, indicamos algumas características
que remetem à ideologia de uma “utopia autoritária” e que estão presentes
nas falas, posturas e atitudes dos atuais governantes. Considerando o espa-
ço de que ainda dispomos, propusemos a apenas indicar alguns pontos de
análise que serão melhor aprofundados em outro momento.
Como destacado ao longo deste tópico, é elemento constituinte da
“utopia autoritária” a crença na superioridade técnica e moral dos mili-
tares, a quem caberia certo compromisso ético e moral de efetivar o sane-
amento social do país. Dada a sua condição corporativa e sua formação,
eles estariam preparados para oferecer melhores soluções aos problemas
nacionais do que os políticos profissionais, presos a interesses políticos e
suscetíveis à corrupção. A maciça presença de militares em postos-chave
do atual governo é, certamente, um sinal da permanência de elementos da
mencionada “utopia autoritária” no governo e tem se acentuado ao longo
do último ano, o que aponta para um possível agravamento da ameaça à
democracia e às instituições. Esse processo de militarização da política –
atípico em tempos de democracia – é facilmente perceptível ao observar-
mos a forte presença de militares no governo de Bolsonaro. Atualmente,
nove pastas ministeriais são ocupadas por integrantes das Forças Arma-
das. Além disso, os postos de comando das diretorias das principais empre-
sas estatais brasileiras (como Petrobrás, Eletrobrás, Correios, Infraero, Casa
da Moeda, Ebserh...) estão nas mãos de membros das Forças Armadas. Em-
bora a militarização dos ministérios e de áreas estratégicas do governo seja
justificada pela suposta competência e pela formação técnica desses milita-
res, o que vemos é uma clara tentativa de utilização da “credibilidade” das
Forças Armadas para trazer legitimidade ao governo Bolsonaro e, ao mesmo
tempo, para sinalizar o apoio das armas ao governo diante de constantes crí-
ticas, denúncias e crises institucionais. A militarização do governo se cons-
titui possível ameaça à democracia no país e motivo de aprofundamento da
instabilidade na relação entre os três poderes da República.
No que diz respeito às posturas do governo em relação à Amazônia,
observa-se a retomada de um discurso conspiracionista que se utiliza do
argumento da cobiça internacional sobre os espaços amazônicos com o
intuito de justificar uma ocupação que atenda aos interesses do agronegó-
cio, da pecuária e da mineração. A nomeação do vice-presidente, o general
Mourão, para o Conselho Nacional da Amazônia em meio a uma crise in-

98
DEMOCRACIA E AGONISMO

ternacional motivada pelas queimadas na Amazônia é mais um capítulo do


processo de militarização da política em meio às acusações de que ONGs
dedicadas a lutar pela preservação do meio ambiente estariam atendendo a
interesses internacionais com o intuito de ocupar a Amazônia.
Os argumentos conspiratórios de internacionalização da Amazônia
servem como pretexto para a promoção de uma ocupação desordenada e
predatória dos espaços amazônicos e para o afrouxamento dos mecanismos
de proteção ambiental. Às vésperas da reunião do G20, o general Augusto
Heleno, Chefe do Gabinete de Segurança Institucional do governo, afir-
mou: “A estratégia de preservar o meio ambiente do Brasil para mais tarde
[outros países] explorarem. Está cheio de ONG por trás deles, ONGs sabi-
damente a serviço de governos estrangeiros” (BULLA; FROUFE, 2019). No
entanto, tal nacionalismo é seletivo, pois, enquanto denunciava as amea-
ças de internacionalização da Amazônia brasileira, propunha aos Estados
Unidos uma parceria para a exploração da floresta. Ou seja, tal discurso
conspiratório serve de escudo e alicerce para a exploração das riquezas da
região pelo capital privado – nacional ou internacional.
Outros elementos que consideramos parte do entulho autoritário da
ditadura militar não serão aqui analisados mais detidamente. No entanto,
gostaríamos de mencionar algumas dimensões para posterior análise: a) a
existência de um discurso baseado na noção de “segurança nacional”, que
elege grupos de oposição ao governo como inimigos internos, retomando
o discurso do anticomunismo; b) utilização de narrativas que reabilitam a
ditadura, que estabelecem uma disputa pela memória desse período his-
tórico que se caracteriza pelo negacionismo relacionado às violações dos
direitos humanos e atrocidades cometidas pelo e enorme do Estado e, ao
mesmo tempo, constrói uma imagem de um tempo de prosperidade e se-
gurança; c) tentativas frequentes de estabelecer mecanismos de controle
do Executivo sobre o Legislativo e sobre o Judiciário e o estabelecimento
de um conflito latente entre os três poderes da República cuja intenção
é criar as condições para uma supremacia do Executivo; e d) uma relação
conflituosa com a imprensa e com os meios de comunicação, que se reflete
nos frequentes entraves colocados sobre o trabalho de veículos de comu-
nicação e jornalistas que realizam uma cobertura mais “independente” e
mesmo em tentativas de censura e de cerceamento à livre expressão.

O espaço tópico na perspectiva colonizatória: utópico e paratópico

A palavra utopia foi criada por Thomas Morus (ou Thomas More
como também é conhecido) que nomeia uma ilha imaginária e também
o título de sua principal obra: A utopia ou o tratado da melhor forma de
Governo (1516). Sabe-se que muitos autores consideram a obra de Morus

99
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

como o relato de uma sociedade perfeita, mas, impossível de se concreti-


zar na realidade. Mesmo Morus, ao longo da sua narrativa, descreve a ilha
como um lugar aprazível, desejada e perfeita, entretanto, difícil de ser vista
ou materializada: “[...] reconheço de bom grado que há na república utopia-
na muitas coisas que eu desejaria ver em nossas cidades. Que desejo, mais
do que espero ver” (MORUS, 2002, p.167) Esta frase do livro, possivelmen-
te, serve para a compreensão do que venha a significar utopia, na qual, o
desejo carece de condições para se tornar real.
Para compreender a significação de utópico, primeiramente, perpas-
samos pelo sentido de espaço tópico. Na semiótica greimasiana3 o espaço é
considerado uma categoria importante no princípio de narratividade, por
isso, examina-o e o classifica segundo sua relevância, denominando “lugar
tópico”, aquele em que o sujeito age e no qual ocorre toda e qualquer ação.
O lugar tópico é subdividido, conforme o tipo de ação do sujeito na narra-
tiva, em: utópico e paratópico.

Figura 1 - Lugar tópico e as subdivisões conforme o tipo de ação do


sujeito na narrativa
Figura 1: lugar tópico e as subdivisões conforme o tipo de ação do sujeito na narrativa

• subcomponente do espaço tópico e oposto ao espaço paratópico (onde se


adquirem as competências); o espaço utópico é o lugar onde o herói (ou heroína)
realiza a performance dessa ação e chega à vitória; onde se realizam as
UTÓPICO performances que nas narrativas míticas é muitas vezes subterrâneo,
Lugar tópico

celeste ou subaquático (GREIMAS & COURTÈS, 2008, p. 525).

SUJEITOS
• subcomponente do espaço tópico e oposto ao utópico (em que se realizam
as perfomances), o espaço é aquele em que se deenrolasm as provas
preparatorias ou qualificantes, em que se adquirem as competência (2008,
PARATÓPICO p. 362); espaço no qual o sujeito adquire competência para a ação (tanto
na dimensão pragmática quanto na dimensão cognitiva) (GREIMAS &
COURTÈS, 2008, pp. 361).

Fonte: elaborada pelos autores


Fonte: elaborada pelos autores.

Aqui, iniciamos
Aqui, iniciamos a análisea sobre
análiseo sobre
espaçoo espaço
utópicoutópico (subcomponente
(subcomponente do
do espaço
espaço tópico) – a Amazônia. A Amazônia é o espaço utópico das narrati-
tópico) – a Amazônia. A Amazônia é o espaço utópico das narrativas que povoavam
vas que povoavam o imaginário dos antigos viajantes, cujas histórias sem-
o imaginário
pre dos
eramantigos
sobre viajantes, cujas
ouro, pedras histórias beleza,
preciosas, semprefonte
se contavam sobre obelas
da juventude, ouro,
e fortes amazonas. Daí uma das lendas mais persistentes e que motivou
pedras preciosas, beleza, fonte da juventude, belas e fortes amazonas. Daí uma das o
imaginário dos conquistadores, a do El Dorado.
lendas mais persistentes e que motivou o imaginário dos conquistadores – a lenda do
O El Dorado era um lugar fabuloso, situado em algum lugar
El Dorado. do noroeste amazônico; dele se contava ser tão rico e cheio de
tesouros
O El Dorado que,
era um segundo
lugar a lenda,
fabuloso, “o chefe
situado da tribo
em algum lugarrecebia por
do noroeste
amazônico; dele se contava ser tão rico e cheio de tesouros que, segundo a
lenda, “o chefe da tribo recebia por todo o corpo uma camada de ouro em pó
e a seguir
3 - Também denominada se banhava
de Semiótica Discursiva em um lago
ou Semiótica vulcânico” (SOUZA, 1994, p. 23).
Francesa.

– “Lá,
100 Preste João, Grão Khan ou as áreas contíguas ao Éden, aqui o Eldorado,

o lugar encantado; a cidade é Manoa das lendárias mulheres guerreiras – presentes


DEMOCRACIA E AGONISMO

todo o corpo uma camada de ouro em pó e a seguir se banhava


em um lago vulcânico” (SOUZA, 1994, p. 23).

– “Lá, Preste João, Grão Khan ou as áreas contíguas ao Éden, aqui


o Eldorado, o lugar encantado; a cidade é Manoa das lendárias mulheres
guerreiras – presentes na invenção da Amazônia” (GONDIM, 2008, p. 99).
Eldorado: 1) Cidade ou país fictício que exploradores do XVI afirmavam
existir na América do Sul; 2) Local pródigo em riquezas e oportunidades.
Reitera-se, nos termos da semiótica, utópico é o lugar onde o herói chega
à vitória; em que realiza a performance dessa ação.
Conforme Greimas e Courtès (2008, p. 242), o termo herói pode servir
para denominar o “actante sujeito quando este, dotado de valores modais
correspondentes, se encontra em certa posição de seu percurso narrativo”.
O sujeito somente se torna herói ou heroína quando de posse de certa com-
petência (poder e/ou saber-fazer). Há quatro tipos de heróis ou heroínas a
depender da sua atuação discursiva. Para estes semioticistas (2008, p. 242),
na dimensão pragmática da narrativa, o herói atualizado (antes da sua per-
formance) “distinguir-se-á do herói realizado” (de posse do objeto da busca).

Figura 2 - O tipo de herói na dimensão pragmática

herói atualizado herói realizado


(antes da sua performance) (de posse do objeto da busca)

Fonte: elaborada pelos autores.

Quer dizer que herói (ou heroína) é a denominação de um estatuto


actancial determinado. No sentido restrito, denomina-se herói/heroína,
particularmente nos estudos de literatura oral ou clássica, o actante sujeito
tal qual acaba de ser definido, mas dotado, ainda, de conotações – eufóricas
– moralizantes, que se opõem ao traidor (conotado disforicamente) (GREI-
MAS; COURTÈS; 2008, p. 242).
Na condição de heróis atualizados (antes da performance de chegar ao
Eldorado) os viajantes em busca de novas rotas para o comércio das espe-
ciarias, plantas medicinais, animais e insetos para as experiências científi-
cas (já escassos no Velho Mundo); da fonte da juventude (envelhecimento
europeu) e terras (expansão europeia), atravessaram o Atlântico com suas
grandiosas embarcações deixando para trás a Europa, aportando no exta-
siado lugar de grandiloquência natural, a Amazônia (objeto de valor). Con-
forme contam os documentos escritos pelo frei Gaspar de Carvajal, esses
heróis atualizados chegaram ao maior rio da Amazônia, em 1541-2.

101
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Com o desenrolar da narrativa, é possível conferir que os europeus


percorreram e reconheceram as terras do Eldorado (utopia), e de modo per-
formático obtiveram a posse do objeto de busca. Esta passagem de estado
de herói atualizado para herói realizado pode ser vista quando descrevem
as cidades na esperança de poderem atacá-las.
[...] A proximidade do reino das Amazonas é antecipada por
mais indícios.
[...] As Amazonas são as guardiãs desse Éden tropical.
Além disso a terra e tão boa e fértil e tão ao natural como a de
nossa Espanha, pois entrámos nela por São João e já começa-
vam os índios a queimar os campos. É terra temperada, onde
se colherá muito trigo e se darão todas as árvores frutíferas.
Além disso está aparelhada para criar todo o gado, porque há
nelas muitas ervas como em nossa Espanha, tais como o oré-
gão e cardos pintados e rajados, e outras muitas ervas boas.
Os montes destas terras são azinhais e soverais com bolotas,
porque nós as vimos, e carvalhais. A terra é alta e faz lombas,
todas de savanas, com erva que apenas chega aos joelhos, e há
muita caça de toda espécie (CARVAJAL, 1941, p.13-66, apud
GONDIM, 2007, p. 97-107, grifos nossos).

Segundo Gondim (2007, p. 106), a cidade das Amazonas é a utopia de


Carvajal, diferente da utópica cidade de Tomas Morus, erigida provavel-
mente na aprazível e desértica Ilha de Fernando de Noronha, inspirada na
Mundus Novus de Vespucci.
A performance realizada pelos heróis para a conquista do lugar utó-
pico de Carvajal, primeiro com a vitoriosa saga marítima atravessando
os mares, depois com os modos violentos e bélicos para a conquista das
terras das Amazonas,4 serve-nos à compreensão dos modos de fazer dos
colonizadores no lugar; mas, também é possível reconhecer nas analogias
que perpassam ao longo do discurso (como as nossas terras; como o nosso
modo de plantar; como fazer guerra; como evitar emboscadas), o programa
da utopia autoritária instaurado por aqueles que passaram ao estado como
heróis realizados. Isto é, na narrativa do cronista (dimensão pragmática),
são reconhecidos os elementos correspondentes do objeto de busca e pos-
se adquirido: o lugar utópico é produtivo, tem riquezas para serem explo-
radas e apropriadas, as terras são parecidas com aquelas do Velho Mundo.
Desde então, a Amazônia passou a ser desejada como o lugar onde
os heróis dessa epopeia marítima passaram a descrevê-la, ou seja, por um

4 - Ao longo de cerca de 250 anos de conquista e colonização portuguesa, muitos povos indígenas foram mortos pela
arma de fogo dos conquistadores e, sobretudo, foram dizimados pelas doenças contagiosas trazidas pelos europeus
(varíola, sarampo, catapora, gripe, tuberculose e doenças venéreas). Assim, as populações indígenas na Amazônia
foram reduzidas de maneira drástica. À época do primeiro contato europeu havia aproximadamente 5 milhões de
índios na bacia Amazônica, dos quais 3 milhões viviam no Brasil. Atualmente há apenas cerca de 430 mil indígenas
na Amazônia. Estimativa de John Hemming com base nos relatos dos primeiros contatos, nas taxas prováveis de
destruição e nos números e localização dos povos indígenas que sobrevivem.

102
DEMOCRACIA E AGONISMO

lado, figurativamente com a abundância de árvores odoríferas, plantas bal-


sâmicas, animais estranhos; por outro, habitado por homens e mulheres
com características físico-corporais animalescas e exóticas, com expres-
sões de imaturidade, diligência e preguiça; nudez; fáceis de serem captu-
rados e se tornarem prisioneiros de guerra.
Redobram os cuidados a fim de evitar emboscadas, enforcam
alguns prisioneiros de guerra, penetram em um rio “podero-
so”, batizado de rio Grande (Madeira), saqueiam os alimentos,
encontram muito milho (e também muita aveia), de que os índios
fazem pão, e vinho muito bom, parecendo cerveja”.
[...] Foi uma luta renhida. Temendo o pior, conseguem fugir
para o meio do rio, na esperança de atacarem mais adiante,
pois já divisavam grandes cidades, que estavam alvejando
(CARVAJAL, 1941, p.13-66, apud GONDIM, 2007, p.97-107,
grifos nossos).

Para Gondim (2007), se em outros momentos a natureza não será


comparada com alguma coisa já existente no velho – o que não deixará de
ser uma dádiva deste traduzida pela oferenda da identidade ao novo, como
ocorre com a similitude europocentrista –, por sua vez, é na diferença que
muitas vezes vem embutida a ideia de superioridade.
[...] captada nas expressões de debilidade ou pujança, degene-
rescência ou imaturidade, indolência ou diligência, inferno ou
paraíso, traição ou fidelidade, nomadismo ou sedentarismo,
poligamia ou monogamia, nudez como sensualidade ou ino-
cência sem malícia, antropofagia, alcoolismo, belicosidade,
inimizade, fetichismo, inconstância etc., etc., e o parâmetro
de avaliação é o olhar dos que descobriram a totalidade de que
fazem parte. Até então, formavam uma parte sem todo (TO-
DOROV, 1983, apud GONDIM, 2007), mesmo que resistam em
aceitá-la (GONDIM, 2007, p. 6)

Na dimensão cognitiva, opõe-se o herói oculto ao herói revelado


(após a sanção cognitiva do Destinador ou reconhecimento). Nestes ter-
mos, captadas as expressões manifestadas nas diferenças acima, dá-se iní-
cio ao conflito da trama amazônica, agora com a presença do herói revela-
do no seu estado de superioridade.

Figura 3 - O tipo de herói na dimensão cognitiva

herói oculto herói revelado

Fonte: elaborada pelos autores.

103
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

O percurso gerativo de sentido permite visualizar a distribuição


dos diferentes componentes e subcomponentes os quais orientam os dis-
cursos em vistas ao lugar utópico, assim designados na Teoria Semiótica
Discursiva (greimasiana ou francesa): 1) nível fundamental; 2) nível nar-
rativo; 3) nível discursivo.
Para essa análise, observa-se no nível fundamental,5 no interior do
discurso europeu, a pretensa e futura (que viria a ser dissipada tempos de-
pois por governantes brasileiros) utopia da autoridade, cujos elementos
fundantes no eixo da contrariedade encontram-se: a superioridade do ve-
lho – a inferioridade do novo; o paradisíaco – o infernal; o modus operandi
que definia o saber a partir do que eu sou e sei (europeu), não daquilo que o
outro é ou sabe (nativo). O herói oculto se revela a partir dessas diferenças
que passam a ser vistas na marca formada pelo conjunto de discursos que
mantêm entre si todos os sujeitos (individuais e coletivos) participantes
da gênese da utopia. Trata-se, nesse caso, da construção semiótica de uma
identidade para o lugar utópico, mas, de modo sabiamente autoritário. O
projeto potencializaria, desde então, as expressões de identidade europeia
e as novas formas de relacionamento orientadores com os povos locais,
não baseadas no reconhecimento e no respeito da diversidade cultural.
A identidade do Si dependerá da “construção” semiótica de
suas dessemelhanças em relação ao Outro. Essas desseme-
lhanças, essas diferenças mais ou menos acentuadas, con-
forme variarem os sujeitos e as circunstâncias, constituirão
a especificidade do Si, aquilo que lhe confere um jeito pró-
prio, uma identidade particular (dados esses importantes para
a semiótica que trata dos discursos). O mesmo acontece com
comunidades, grupos, indivíduos e instituições sociais; assim
também ocorre, portanto, com partidos políticos dedicados à
prática da gestão pública e/ou administrativa, seu modelo e/
ou modo de governar, seus projetos de ações sociais e marca
(ZUIN, 2015, p. 166-167).

Pode-se definir dessa forma, no nível fundamental do percurso ge-


rativo de sentido do herói revelado, o modelo de utopia autoritária, com a
assunção e atualização de determinados valores imanentes sob a forma da
instauração de axiologias sobre as quais se estruturarão as práticas, tem-
pos, atores e experiências dos colonizadores na Amazônia. É desta mesma

5 - Para a semiótica discursiva (francesa ou greimasiana), um texto pode ser analisado níveis, pelos quais se dá o
percurso gerativo de sentido, que se estrutura do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto. Tem-se,
assim, nesta ordem, o nível fundamental (ou profundo), o narrativo e o discursivo. Cada um desses níveis tem uma
sintaxe e uma semântica próprias; a sintaxe seria o mecanismo que ordena os conteúdos, e estes estariam no domínio
da semântica. No nível fundamental, que está apresentado aqui, tem-se mais especificamente, o que tratamos da
semântica fundamental, isto é, a significação se apresenta por uma oposição, por meio de estruturas fundamentais que
se opõem, seja no eixo do contrário (contrariedade) e no eixo do contraditório (contraditoriedade). GREIMAS, A. J.;
COURTÈS, J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Contexto, 2008.

104
DEMOCRACIA E AGONISMO

teia de relações e diferenças que emerge, aliás, o próprio sentido de todas


as “coisas”, na medida em que, a produção mesma do sentido consiste jus-
tamente em seu nível fundamental, em um processo de “marcações” de
diferenças e relações.

Quadro 1 - Quadrado semiótico 6 – Modelo de colonização do herói


revelado na Amazônia

Fonte: elaborado pelos autores.

Sob o signo do utópico, encontra-se o modelo de colonização que


assume valores identificados por uma alteridade radical em relação aos
códigos e costumes vigentes num determinado “aqui-agora” (o projeto dos
heróis realizados-performáticos), ora ocultos agora revelados (competen-
tes); aqueles que vieram para transformar o lugar utópico no desejável.
Afirmam-se aqui novo espaço e novos sujeitos, diferentes daqueles até
então vividos, conhecidos e valorizados pelo grupo de referência. A ho-
mologação de um modelo utópico autoritário de colonização implicaria
a assunção da nova identidade, nova missão no mundo novo, ou mesmo

6 - Compreende-se por quadrado semiótico a representação visual da articulação lógica de uma categoria semântica
qualquer. A estrutura elementar da significação, quando definida – num primeiro momento – como uma relação
entre ao menos dois termos, repousa apenas sobre uma distinção de oposição que caracteriza o eixo paradigmático
da linguagem. [...]. Faz-se necessária uma tipologia das relações, por meio da qual se possam distinguir os traços
intrínsecos, constitutivos da categoria, dos traços que lhe são alheios GREIMAS, Algiras Julien; COURTÉS, Joseph.
Vários tradutores. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Contexto, 2008, p. 400. Título original, Sémiotique,
dictionnaire raisonné de la théorie du langage.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

do novo “mundo possível e feliz”, tal como previsto na base fundadora da


utopia. Este é o campo de ação/fazeres dos heróis, de modo geral pautado
no objeto utópico – a Amazônia.
Já no campo do espaço paratópico encontra-se o modelo da pratici-
dade do velho mundo; observando-se os valores caracterizadores do uso e
da competência. Neste caso, afirmam-se os valores técnicos usados/empre-
gados como: penetração dos rios; saques das cidades; enforcamento dos
prisioneiros; invasão; conhecimentos bélicos, entre outros. Este campo
tenderia a ser contrário ao autoritário; contudo, se relaciona ao progra-
ma colonizatório, porque aponta ao modelo da exploração utilitária dos
lugares que o recepciona, e é, também, o mundo de estabelecimentos com
o modelo da violência que procura banir os valores do outro. É possível
identificar, neste modelo (utilitário, funcional) o projeto desprovido da co-
operação do outro. Na finalidade prática (das vivências locais) predomina,
neste caso, não somente a padronização e/ou homogeneização do lugar,
mas a padronização dos modos de vida, portanto, estabelecendo a simples
relação de uso entre os colonizados e colonizadores na Amazônia.
Logo, tem-se aqui os valores de base observado o campo semânti-
co da utopia. Já ao assumir a posição que pressupõe, contrariamente, os
valores de uso, essas mesmas marcas estariam se posicionando no campo
da praticidade. Ressaltam-se, na utopia, valores de natureza performática,
tais como fazer do lugar funcional, produtivo, com gerenciamento racio-
nal e técnico de políticas exploratórias, etc.; mas, no paratópico a compe-
tência do sujeito em saber invisibilizar/apagar a presença do outro. Nesse
sentido, é também como articulação relacional de diferenças que, sob a
perspectiva da semiótica discursiva, advêm aos sujeitos sociais (individu-
ais e/ou coletivos) suas próprias noções de identidade e de alteridade, sua
percepção de Si (ou de Nós) e do(s) Outro(s):
Não é diferente com o “sujeito” – eu ou nós – quando o con-
sideramos como uma grandeza sui generis a constituir-se do
ponto de vista de sua “identidade”. Também ele condenado,
aparentemente, a só poder construir-se pela diferença, o su-
jeito tem necessidade de um ele – dos “outros” (eles) – para
chegar à existência semiótica, e isso por duas razões. Com
efeito, o que dá forma à minha própria identidade não é só
a maneira pela qual, reflexivamente, eu me defino (ou ten-
to me definir) em relação à imagem que outrem me envia a
mim mesmo; é também a maneira pela qual, transitivamente,
objetivo a alteridade do outro atribuindo um conteúdo especí-
fico à diferença que me separa dele. Assim, quer a encaremos
no plano da vivência individual ou (...) da consciência coletiva,
a emergência do sentimento de “identidade” parece passar ne-
cessariamente pela intermediação de uma “alteridade” a ser
construída (LANDOWSKI, 2002, p. 3-4).

106
DEMOCRACIA E AGONISMO

No percurso dos níveis fundamental e narrativo, cujo propósito dos


colonizadores antigos foi traçar a analogia a partir das contrariedades
dentro-fora; novo-velho; interior-exterior; superior-inferir; conhecimen-
to-desconhecimento, conferido na familiarização do novo (exótico) com o
velho (tradicional), em sentido preciso, pode-se dizer que tem aí a analogia
– que é “identidade da relação que reúne dois ou mais pares de termos, um
par por vez” (GREIMAS; COURTÈS, 2008). Todavia, não se analisa nes-
te exercício se as relações analógicas são pretendidas como sinônimos de
proporção matemática, ou se semelhantes na operação cognitiva que ora
pode ser chamada de raciocínio por analogia, tal qual se dá pelos neogra-
máticos, na tradição linguística que atribui papel importante à atividade
analógica no funcionamento das línguas naturais (GREIMAS; COURTÈS,
2008, p. 29). Trata-se de analogia do velho (colonizador) com o novo (coloni-
zado) a propósito das relações de um sistema semiótico, isto é, serve como
ponto de partida para explicar a constituição e o desenvolvimento das iso-
topias7 figurativas, considerando o percurso gerativo de sentido.
Da mesma maneira, no nível narrativo, o que se tem é a homologação
desse apagamento da memória, da cultura dos povos originários. As rotas
comerciais que começavam a ligar a selva amazônica às civilizações euro-
peia e andina deixavam outras impressões sobre o lugar, caracterizando o
espaço tópico à imagem e semelhança do sujeito colonizador (S18) com a
invisibilidade do nativo (S2). Aqui, o utópico foi figurativizado no Eldorado
- mundus novus em oposição ao vetus orbis terrarum.

Espaço, tempo e cultura na sociedade pós-verdade

De acordo com Ferrara (2008), pensar o espaço e o tempo supõe en-


frentar uma complexidade, não apenas conceitual, mas da própria reflexi-
vidade que faz com que aqueles conceitos sempre utilizados sejam não só
revistos, porém, transformados em objetos de conhecimento, ou seja, “o
espaço e o tempo escapam da racionalização a que os reduziu o sistema
kantiano e passam a ser trabalhados por uma racionalidade na revisão do
seu próprio conceito” (FERRARA, 2008, p. 25). Os critérios ajustáveis à
tentativa de pensar novos conceitos para o espaço e o tempo têm relações,
inter-relações e interdependências entre o homem, o habitat e a cultura.

7 - Cf. Para Greimas e Courtès, o termo isotopia foi tomado do domínio da físico-química e o transferiu para a análise
semântica, conferindo-lhe uma significação específica, levando em consideração seu novo campo de aplicação.
De caráter operatório, o conceito de isotopia designou, inicialmente, a iteratividade, no decorrer de uma cadeia
sintagmática, de classe, mas que garantem ao discurso enunciado a homogeneidade. Assim acontece com a categoria
sêmica que subsume os dois termos contrários: levando-se em consideração os percursos os quais podem dar origem,
os quatro termos do quadro semiótico que serão denominados isotópicos.
8 - S1 e S2, utilizados aqui, é a abreviatura para sujeito 1; sujeito 2, nos termos da semiótica discursiva. Sobre esses
sujeitos seguem-se as análises seguintes.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Nessa direção, Santaella (2018, p. 36) explica o conceito de pós-ver-


dade. As principais definições do prefixo “pós” e como a pós-verdade é
compreendida no mundo atual:
[...] a “pós-verdade” deve ser entendida em dois sentidos di-
ferentes: de um lado, o significado “depois que a verdade
tenha se tornado conhecida”, de outro lado, o significado
inaugurado pelo artigo de Tesich, a saber, o fato de que a
verdade se tornou irrelevante. Assim, no seu sentido expan-
dido, o prefixo “pós” não mais significa apenas “depois de
um evento ou situação específica” como, por exemplo, na ex-
pressão “pós-guerra”, mas também implica “um tempo em
que um conceito se tornou irrelevante ou sem importância”
(SANTAELLA, 2018, p. 36, grifos nossos).

Tal como explicado, um conceito é passível de ser revisitado depen-


dendo do contexto em que é empregado, caso do conceito de cultura. É
ciente que a cultura resulta de um encadeamento lógico e inteligente que
passa de geração para geração; no entanto, não se pode dizer, nestes ter-
mos, que é hereditária. Neste sentido cultura9 é determinada, como foi a
Amazônia determinada por um domínio estético-econômico-exploratório,
desde as várias colonizações.
A título de exemplo sobre a estética cultural, tomamos o texto de
Gondim (2007). Para esta semioticista (2007), era prática, em alguns mo-
mentos como revisado acima, que os europeus comparacem as novidades
vistas pela primeira vez, no Novo Mundo, com algo pretensamente já co-
nhecido no Velho Mundo. Com isso, pressupõe-se que na prática de com-
parar o “novo” com o pretenso “já conhecido”, também tem a ver com a
antecipada cultura da domesticação do espaço. Não é só o mundo antigo
que se projeta assim sobre o novo: é o mundo de casa que se anexa pacifi-
camente aos descobrimentos ultramarinos (GERBI, 1978 apud GONDIM,
2007). Para Gondim (2007, p. 50) “utilizar a analogia é familiarizar o exóti-
co”, ou ainda inferimos, é anexar o lugar utópico (mundus novus) ao além-
-mar (vetus orbis terrarum) a partir daquilo que dele se destoa, com a inten-
cionalidade de instaurar naquilo que é crença o poder de ser verdadeiro.
Isso faz com que o resultado da veracidade ou falsidade da informação seja
o menos importante (SANTAELLA, 2018, p. 38-39).

9 - Cultura é um sistema semiótico, um sistema de textos, e, enquanto tal, um sistema perceptivo, de armazenagem e
divulgação de informações. Como os processos perceptivos são inseparáveis da memória, na estrutura de todo texto
se manifesta a orientação para um certo tipo de memória, não aquela individual, mas a memória coletiva. Cultura
é assim memória coletiva não-hereditária. Conceitos Centrais da Semiótica da Cultura. Disponível em: http://www.
pucsp.br. Acesso em: 18 jul. 2018.

108
DEMOCRACIA E AGONISMO

Distopias cognitivas: o monopólio do discurso negacionista

Há justiça quando um nobre qualquer, um ourives, um usurário, pes-


soas que não produzem nada ou apenas coisas sem as quais a comuni-
dade passaria facilmente, levam uma vida folgada e feliz na preguiça
ou numa ocupação inútil, enquanto o servente, o carroceiro, o arte-
são, o lavrador, por um trabalho pesado, tão contínuo que um animal
de carga dificilmente poderia suportar, tão indispensável que sem ele
o Estado não duraria um ano, só conseguem obter um pão mesqui-
nhamente medido e vivem na miséria? (MORUS, 1997, p. 162).

Para fins de análise da Amazônia nas disputas pela memória em um


contexto pós-verdade: da utopia autoritária à distopia cognitiva, nesta par-
te foram recortados textos sobre os temas: queimadas; desmatamento; pan-
demia Covid19, e suas expressões figurativas; na tentativa de classificar o
conjunto dos discursos em negacionismo ou desinformação governamental.
Para isso, a abordagem do inventário (conjunto de unidades semió-
ticas pertencentes à mesma classe paradigmática; ao mesmo paradigma)
dos componentes temáticos e figurativos amazônicos, conforme descri-
tos acima, em uma operação de homologação (análise semântica) e apli-
cável, a todos os domínios semióticos, que fazem parte do procedimento
geral de estruturação. A homologação é uma análise semântica, contudo,
ultrapassa seus limites (em sentido restrito), porque possibilita estabele-
cer as regras de operação entre os níveis, ou seja, para designar separa-
damente dois termos da dicotomia significante/significado ou expressão/
conteúdo que a função semiótica reúne (GREIMAS; COURTÈS, 2008, p.
371), o reconhecimento dos planos é postulado segundo o plano da ex-
pressão e do plano do conteúdo.
Assim, a Semiótica Discursiva caracteriza-se por ser um instrumen-
tal teórico, mas, sobretudo, por dar condições de apreensão do sentido,
da compreensão da significação. A partir da análise Semiótica, pode-se
alcançar a maneira e/ou modo de como se articulam os elementos consti-
tuintes de um texto. Essa teoria contribui para examinar os mecanismos
por meio dos quais um texto constrói a própria significação, o que vem a
ser, utilizando a terminologia que lhe é própria, seu percurso gerativo de
sentido, já apresentado em outra seção. Designamos pela expressão per-
curso gerativo a economia geral de uma teoria semiótica (ou apenas lin-
guística), vale dizer, a disposição de seus componentes uns em relação aos
outros, e isso na perspectiva da geração, isto é, postulando que, podendo
todo objeto semiótico ser definido segundo o modo de sua produção. Os
componentes que intervêm nesse processo se articulam uns com os outros
de acordo com um percurso que vai do mais simples ao mais complexo, do
mais abstrato ao mais concreto.

109
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Embora em alguns casos, a isotopia figurativa não tenha nenhuma


correspondente no nível temático, as isotopias figurativas sustentam as con-
figurações discursivas, e homologadas às isotopias temáticas, situadas em
um nível que vai do mais simples ao mais complexo, do abstrato ao mais
concreto, do percurso gerativo de sentido. Assim, por exemplo, a isotopia
colonizador/colonizado pode ser figurativizada por um conjunto de compor-
tamentos somáticos do europeu e do nativo; trata-se do caso mais frequente,
o qual atesta o processo de exploração normal da região amazônica (como
passagem do abstrato ao figurativo). Daí o “estabelecimento, com efeito de
sentido, que uma isotopia mais profunda pressupõe uma de superfície, e não
o contrário”, simplesmente (GREIMAS; COURTÈS, 2008, p. 276).
Por outro lado, pode-se conferir na passagem da Amazônia – do El-
dorado (utópico) à obscuridade (paratópica). A preservação do ambiente
que se pretendia manter no valor de base, ao passo que as políticas que
foram executadas para a efetivação desse programa ter sido o valor de uso.
Isso foi sucessivamente ao longo dos tempos empregado como estrutura
cada vez mais validada e reconstituída para justificar a presença do outro
na finalidade prática da Amazônia.
Numa primeira abordagem, essa validade é vista na Figura 4 , com
a negação sobre o tema das queimadas ou desmatamento amazônico. Se-
gundo o presidente da República, Jair Bolsonaro (2020) “é mentira” que a
Amazônia esteja em chamas ou sendo desmatada. Observa-se que, embora
o tema seja desmentido no plano do conteúdo discursivo governamental,
Durante encontro com presidentes de países que comparti-
lham a floresta, Jair Bolsonaro disse que a Amazônia é “preser-
vada por si só”. “Até mesmo por ser floresta úmida, não pega
fogo. Então essa história de que a Amazônia arde em fogo é
uma mentira”, afirmou (BRASIL 247, 2020, grifos nossos).

No plano da expressão, a figura registra a floresta em chamas.

110
DEMOCRACIA E AGONISMO

Figura 4 - Bolsonaro diz que é ‘mentira’ que a Amazônia esteja em


chamas ou sendo desmatada

Fonte: https://www.brasil247.com/brasil/bolsonaro-diz-que-e-men-
tira-que-a-amazonia-esteja-em-chamas-ou-sendo-desmatada.
A pressuposta ausência de conhecimento do presidente ao argumen-
tar “mesmo por ser floresta úmida, não pega fogo”, possibilitou a disse-
minação de informações falsas e equivocadas sobre a natureza da floresta
amazônica, e, por isso mesmo, do fato da ciência usar de modo confortável
a informação sobre o assunto. Significa dizer que o tema do desmatamento
e queimada, ao ser tratado como “mentira” pelo governo federal, não está
condizente com os dados apresentados pelo Instituto Nacional de Pesqui-
sa Espaciais (INPE), de notório reconhecimento cientifico mundial, pro-
movendo, desse modo, a desinformação em vistas à distopia cognitiva.
Intitulado “Efeitos de cenários de mudanças climáticas e de
uso do solo na probabilidade de fogo durante o século 21 na
Amazônia brasileira” (Effects of climate and land-use chan-
ge scenarios on fire probability during the 21st century in the
Brazilian Amazon), o trabalho mostra que as futuras conver-
sões de floresta para usos agropastoris não manejados adequa-
damente podem causar um aumento de mais de 70% na ex-
tensão de áreas com alta probabilidade de fogo no final deste
século em relação aos padrões observados.
Este cenário inclui, por exemplo, a redução da efetividade das
áreas protegidas, a pavimentação de novas rodovias e o au-
mento do desmatamento. Quando combinado com o cenário
pessimista de mudança climática do CMIP5 do IPCC, que
projeta maiores emissões de gases de efeito estufa (GEE) ao
longo do século 21, a área com alta probabilidade de incêndios
poderia aumentar em até 110% (INPE, 2019).

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Os conceitos como verdade, fatos, realidade e a aceitação têm a ver


com a avaliação de reivindicações do conhecimento (SANTAELLA, 2018,
p. 44). Mas, mesmo assim, surgem desinformações, o que gera como conse-
quência a busca incessante para provar a verdade por trás dos fatos e, com
isso, a ciência corrobora no combate à distopia cognitiva.
Nessa seara, discorre sobre o significado de distopia, haja vista que
agora a utopia está em outro eixo de oposição semântica, isto é, em contra-
riedade com aquilo que é tido como negativo.
O imbróglio conceitual não embaralha apenas o significado
da utopia, mas também – e como consequência – daquilo que
é seu contrário. É o que acontece com o uso das seguintes ex-
pressões: distopia, utopia negativa, antiutopia ou contrauto-
pia. Embora algumas vezes sejam tratadas como sinônimos
(BUEY, 2007).
Utopia e distopia revelam uma visão, um projeto, uma pers-
pectiva de futuro. O que as diferencia é sua natureza, o “sinal”
deste futuro: melhor (utopia) ou pior (distopia). Assim, distopia
pode ser sinônimo de utopia negativa, mas não de antiutopia
(BRASIL SALAU, 2011, p. 33-34).

No Brasil e nos Estados Unidos da América tem aumentado, consi-


deravelmente, o avanço do discurso autoritário empenhado em desacredi-
tar pesquisas científicas. Por trás desta reação contra a ciência, são divul-
gadas notícias falsas e tendenciosas, contrainformação em redes sociais,
propagação negacionista, muitas vezes ameaçadoras à preservação da vida,
dos direitos e do meio ambiente.
De acordo com Alexander Maar (2020, p. 8), o negacionismo certa-
mente não é inédito:
[...] negacionistas da evolução, terra planistas, opositores às va-
cinas, revisionistas históricos, entre outros, circulam há tempos
entre nós. O que é inédito no presente é a rápida e profusa dis-
persão dessas ideias. Keith Kahn-Harris explica que negacio-
nistas reagem ao que consideram um inconveniente: a criação
de um consenso moral acerca da coisa certa a fazer (KAHN-
-HARRIS, Denialism: what drives people to reject the truth)

112
DEMOCRACIA E AGONISMO

Figura 5 - Negacionismo prático na Amazônia

Fonte: elaborado pelos autores.

Ao todo, 9 milhões de crianças vivem na Amazônia Legal bra-


sileira, região formada por Acre, Amapá, Pará, Amazonas,
Rondônia, Roraima e parte dos Estados de Maranhão, Tocan-
tins e Mato Grosso. Os indicadores apontam que, de todas as
regiões do país, é ali o pior lugar do Brasil para ser criança,
destaca relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância
(Unicef). São de lá os mais altos níveis nacionais de mortalida-
de infantil.
Nos nove Estados da Amazônia Legal, cerca de 43% das crian-
ças e dos adolescentes vivem em domicílios com renda per ca-
pita insuficiente para adquirir uma cesta básica de bens, con-
tra 34,3% da média nacional.
Além disso, muitas meninas e muitos meninos amazônicos
não têm atendidos seus direitos à educação, água, saneamen-
to, moradia, informação e proteção contra o trabalho infantil.
Em 2016, 1.225 crianças morreram antes de completar 1 ano no
Estado do Amazonas. Desde 2010, os casos de sífilis congênita
diagnosticados em crianças menores de um ano de idade cres-
ceram 710%, segundo dados do Ministério da Saúde reunidos
pela Unicef. Foram 802 casos só em 2017 (BBC, Brasil, 2019).

Nesse contexto analítico, utopia está para o lugar positivo, da felicida-


de, dos heróis atualizados e revelados; distopia, para fins teóricos, está para
o lugar negativo e avesso à utopia; lugar daqueles sem o exuberante Eldorado.

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Figura 6 - A região Norte (Amazônia) e a população em situação de


pobreza (2016)

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50215491.

Segundo Jacoby (2007), o século XX inaugura a categoria “dis-


topia”, assim diferenciada de utopia: “as utopias buscam a
emancipação ao visualizar um mundo baseado em ideias no-
vas, negligenciadas ou rejeitadas; as distopias buscam o as-
sombro, ao acentuar tendências contemporâneas que amea-
çam a liberdade” (JACOBY, 2007, p.40).

A ameaça à liberdade é conferida no discurso negacionista, com voz


ressoante em outras instâncias governamentais. Aqui o texto volta a afir-
mar que Amazônia “não está queimando”.
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, voltou a afirmar
que a Amazônia não está “queimando”. Em uma publicação na
conta oficial do Twitter, Salles disse lamentar o vídeo produ-
zido por pecuaristas do Pará, e divulgado por ele, que nega as
queimadas na região amazônica e mostra mico-leão-dourado
— animal encontrado apenas na Mata Atlântica.
“Lamento o vídeo contendo o mico-leão na Amazônia, embo-
ra realmente ela não esteja queimando como dizem”, escre-
veu Salles no fim da noite de quinta-feira. O vídeo citado por
Salles foi divulgado, na quarta-feira (9/9), pelo próprio minis-
tro e pelo vice-presidente, general Hamilton Mourão, que co-
manda o Conselho Nacional da Amazônia Legal (CORREIO
BRAZILIENSE, 2020).

Por outro lado, segundo fontes de pesquisa do Inpe (2019), houve


mais queimadas na Amazônia neste ano.

114
DEMOCRACIA E AGONISMO

Figura 7 - Variação percentual no número de queimadas por Estado, em


2019 em comparação com a média do mesmo período entre 2015 e 2018

Fonte: https://www.bbc.com/news/world-latin-america-49433767

Segundo Kahn-Harris, o negacionismo enquanto movimento


é “combativo e extraordinário [pois ao passo que a simples] ne-
gação esconde a verdade, o negacionismo constrói uma nova
e melhor verdade”. Além disso o negacionismo oferece uma
visão distópica do mundo, pregando que não se pode acreditar
em autoridades médicas ou instituições: “se você acredita que
estão constantemente mentindo para você, paradoxalmente
você corre o risco de aceitar as inverdades [dos negacionistas]
... o negacionismo é uma combinação de dúvida e credulidade
corrosivas” (MAAR, 2020, p. 8).

Pinto, Collins e Veiga Júnior narram que o escritor português Fer-


reira de Castro,10 no seu livro A Selva, reúne suas impressões sobre a
Amazônia do início do século XX, em pleno ciclo da borracha. O livro,
contam os autores,
[...] termina com um grande incêndio no seringal, que pode ser
entendido como o fim de um regime cruel de exploração e com
a luz emanada do fogo como a possibilidade de reinvenção de
um novo Brasil. De lá para cá, muita coisa mudou, mas as re-
lações sociais continuam, em muitas situações, cruéis como as
do passado. Os seringais apenas foram substituídos por pasta-
gens (PINTO; COLLINS; VEIGA JÚNIOR, 2009).

10 - DE CASTRO, F. Edição Comemorativa do XXV. Aniversário da Publicação de A Selva, 1930-1955, Guimarães


Editores: Lisboa, Portugal; Martins, J. P.; Jornal da UNICAMP, Ano XIV, Nº 151, 2000.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

A narrativa de Castro (1930-1955), como tantas outras, depois de tan-


to tempo é atual. Nas afirmações de Salles, Ministro do Meio Ambiente,
sugere-se aproveitar o período da pandemia da Covid19 para continuar a
degradação da Amazônia. Embora com a crescente preocupação e avanço
da doença em um período histórico mundial frente à crise sanitária do co-
ronavírus, a população em situação de miséria, sem hospitais, “morrendo
sem ar” em plena Amazônia; sem tratamento adequado e vacina, a ideia
do ministro é desviar o foco de atenção da região em chamas e “passar a
boiada”. Veja as chamadas de importantes revistas e jornais do país acerca
de fala do então Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles em reunião
ministerial realizada em 22 de abril de 2020 :
[Revista Exame] Salles sugeriu aproveitar pandemia para “pas-
sar a boiada” no Meio Ambiente (EXAME, 2020)
[Jornal Correio Braziliense/Blog] Salles diz que quer aprovei-
tar a pandemia para “passar a boiada” (KAFRUNI, 2020)
[Portal de notícias G1] Ministro do Meio Ambiente defende
passar ‘a boiada’ e ‘mudar’ regras enquanto atenção da mídia
está voltada para a Covid-19 (G1 GLOBO, 2020)
[Revista Veja] Ricardo Salles fala em aproveitar a pandemia
para ‘ir passando a boiada’’ (GONÇALVES, 2020)
Salles vê “oportunidade” com coronavírus para “passar de
boiada” desregulação da proteção ao meio ambiente. Comen-
tários do ministro do Meio Ambiente são tradução literal de
suas políticas para a preservação, que incluem incentivo a gri-
leiros, desmatadores e madeireiras (ALESSI, 2020).

“Passar a boiada” é uma prática, fazer constante do avanço do agro-


negócio visto como crescimento econômico, do alimento como commodities,
sem propósito ou projeto de desenvolvimento humano e social para a região.

116
DEMOCRACIA E AGONISMO

Figura 8 - Foto aérea tirada em 16 de agosto de 2020 da área de


reserva da floresta Amazônica em chamas

Fonte: Carl de Souza/AFP.

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em 11 de setembro


de 2020, volta a ser notícia. Em sua rede social no Twitter, ele compartilha
vídeo produzido por pecuaristas do Pará que nega queimadas na Amazô-
nia. Contudo, enquanto o vídeo mostra imagens da Amazônia, aparece um
mico-leão-dourado, animal típico da Mata Atlântica.
“Lamento o vídeo contendo o mico-leão na Amazônia, em-
bora realmente ela [região amazônica] não esteja queimando
como dizem”, escreveu Salles no fim da noite de quinta-feira
(CORREIO BRAZILIENSE, 2020).

Com a contrainformação divulgada, pelo governo de Bolsonaro, há


clara negação da meta 16.10 do documento da Agenda 2030, que assegura
o acesso à informação e protege as liberdades fundamentais, em conformi-
dade com a legislação nacional e os acordos internacionais, e a meta 16.6,
que estabelece o desenvolvimento de instituições eficazes, responsáveis
e inclusivas em todos os níveis. Também é negada a demonstração dos
modos como o desenvolvimento sustentável depende da livre circulação
de informações públicas. Nesse contexto, a recente aprovação do Acordo
de Escazú, que versa sobre o acesso à informação, participação pública e
acesso à justiça em temas ambientais, é um grande passo rumo à imple-
mentação do ODS 1611 (GTSC/A2030; 2018).

11 - Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 do Desenvolvimento Sustentável. Disponível em:
https://gtagenda2030.org.br/2018/06/11/informacao-para-alcancar-o-desenvolvimento-sustentavel/. Acesso em: 3
jan. 2021.

117
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Figura 9 - Após vídeo falso, Salles volta a afirmar que a Amazônia


“não está queimando”

Fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/
brasil/2020/09/4874653-não-video-falso-salles-volta-a-afir-
mar-que-a-amazonia-não-esta-queimando.html

O vídeo citado por Salles foi divulgado, na quarta-feira (9/9),


pelo próprio ministro e pelo vice-presidente, general Hamil-
ton Mourão, que comanda o Conselho Nacional da Amazônia
Legal. O vídeo, de 1 minuto e 38 segundos e que conta com
narração em inglês e legendas em português, foi produzido
pela Associação de Criadores do Pará (AcriPará), que reúne
pecuaristas do Estado (CORREIO BRAZILIENSE, 2020).

O vídeo divulgado pelo ministro brasileiro e os casos de negacionis-


mo do presidente da República, além de prestar à desinformação sobre o
caso da Amazônia, ferem as diretrizes internacionais ao direito do acesso
à informação pública enquanto um direito constitucional regulamentado
pela Lei de Acesso à Informação Pública (Lei 12.527/11, doravante “LAI”).
Outro tema relacionado à Amazônia e que chamou a atenção mun-
dial foi o negacionismo presidencial com relação à pandemia da Covid19.
O modo como o presidente da República deu pronunciamento em cadeia
nacional amenizando os efeitos da Covid19 causou impactos danosos e
imensuráveis, entre eles, o avanço da doença no país e a proliferação de
novas cepas do coronavírus pelo mundo e pelas regiões do país; com des-
taque para a região amazônica e o caos sanitário na cidade de Manaus,
capital do estado do Amazonas (2021).

118
DEMOCRACIA E AGONISMO

O presidente Jair Bolsonaro voltou a reclamar, em pronuncia-


mento em cadeia nacional de rádio e TV, de restrições impos-
tas por governadores para a circulação de pessoas para conter o
avanço do coronavírus e chamou novamente a pandemia – que
já matou 46 e infectou 2.201 pessoas no país– de uma “gripezi-
nha”. “Nossa vida tem que continuar”.
“Devemos, sim, voltar à normalidade. Algumas poucas autorida-
des estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra
arrasada, como proibição de transporte, fechamento de comércio
e confinamento em massa”, completou (MONEYTIMES, 2020).

Figura 10 - Pronunciamento do presidente da República em cadeia


nacional

Fonte: https://www.moneytimes.com.br/bolsonaro-volta-a-se-refe-
rir-ao-coronavirus-como-gripezinha-e-criticar-governadores-por-
-restricoes/
Para as organizações que atuam na área de acesso à informação, o
destaque do artigo 19, da Agenda 2030, é importante para o desenvolvi-
mento sustentável e humano. O objetivo deste artigo só será alcançado se
estiver “calcado nos valores da boa governança e transparência, de modo
que todas as pessoas exerçam maior controle social das instituições públi-
cas e participem ativamente da vida política” (GTSC/A2030; 2018).

119
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Figura 11 - Casos de covid19 no Brasil (2021)

Fonte: https://susanalitico.saude.gov.br/extensions/covid-19_html/
covid-19_html.html
Todavia, por meio dos mecanismos de contrainformação/negacio-
nismo governamental, não há comunicação promotora da vida e da saúde
pública, da prevenção e proteção contra os danos ambientais, mas a ins-
tauração da distopia cognitiva no Brasil. Devido a esse projeto necropo-
lítico e de cultura de morte, hoje o país enfrenta a pior crise sanitária do
século XXI com mortes e sem previsão de soluções urgentes. Do mês de
março de 2020, do pronunciamento do presidente da República, em cadeia
nacional, subestimando o perigo do coronavírus e não promovendo nenhu-
ma política em vista às medidas sanitárias necessárias para proteção da
população, o Brasil chegou ao número de 266.398 mortos, com 11.051.665
casos acumulados, até o dia 09 de março de 2021.

120
DEMOCRACIA E AGONISMO

Figura 12 - Casos de covid19 por Região (2021)

Fonte: https://susanalitico.saude.gov.br/extensions/covid-19_html/
covid-19_html.html
Dentro do espectro político e da vida pública, destaca-se que não há
como fugir das regras o presidente da República e seu quadro ministerial.
Para tal, é necessário garantir um contexto em que o fluxo de informações
de interesse público seja livre de qualquer barreira e que a proteção à li-
berdade de expressão e associação seja prioridade do Estado Brasileiro.
A distopia cognitiva, em resumo, pode ser tal a utopia autoritária. Como
resume Buey (2007, p. 218): “En términos morales la distopia es solo la otra
cara de la utopía: la otra forma de reaccionar ante el malestar o el disgusto
que nos produce la civilización o el mal presente”.
Em um momento em que o país enfrenta um quadro pandêmico,
com a morte de mais de 266.398 pessoas, e convive cotidianamente com
práticas e discursos negacionistas de um governo que recusa a adoção de
medidas sanitárias de proteção e distanciamento social, o que provoca um
efeito nefasto em parcelas significativas da população de rejeição e con-
denação de tais medidas, a tarefa de analisar a necropolítica e a utopia
autoritária como chaves explicativas de um momento histórico marcado
pela emergência de um discurso fortemente autoritário e reacionário, que
condena veementemente os direitos humanos e nega direitos básicos de
uma cidadania conquistada, é verdadeiramente fundamental. Neste capí-
tulo, buscamos analisar alguns elementos que auxiliem na compreensão do
quadro político autoritário e distópico vivido pelo país desde 2016, o que
permitiu a ascensão política de um discurso populista de caráter misógino,
reacionário e autoritário.

121
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

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125
5
Dimensões conceituais, emancipação
colonial e empoderamento do “sujeito
político ribeirinho” amazônida
Layde Lana Borges da Silva
Thais Bernardes Maghanini
Karina Rocha Prado

Introdução

O tema do presente artigo são os contornos da cidadania do sujeito


ribeirinho amazônida onde se busca investigar e determinar as dimensões
conceituais de empoderamento da população ribeirinha na Amazônia Oci-
dental a partir da perspectiva indutiva observada na população descolo-
cada de Nova-Mutum Paraná por ocasião da barragem para construção
da Usina Hidrelétrica de Jirau, no Rio Madeira, na cidade de Porto Velho,
capital do Estado de Rondônia.
O problema de pesquisa reside na falta de conhecimento e conscien-
tização sobre as questões que permeiam a vivência das populações tra-
dicionais ribeirinhas enquanto Sujeito Político que não tem participação
ativa em atividades que lhes afetam, especialmente na porção ocidental da
região amazônica, quando da elaboração de instrumentos socioambien-
tais observadamente falhos, como o Estudo de Impacto Ambiental – EIA
e Relatório de Impacto Ambiental – RIMA para o licenciamento conjunto
da construção de dois grandes empreendimentos hidrelétricos no Rio Ma-
deira. Desse licenciamento resultaram danos efetivos às comunidades tra-
dicionais ribeirinhas, cujo empoderamento se busca determinar diante da

127
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

falta de legislação protetiva interna que lhes assegure melhor os direitos


à territorialidade ancestralmente adquirida, certamente como um direito
adquirido pelos sujeitos existentes na região de interesse (ZHOURI; LAS-
CHEFSKI; PEREIRA, 2015).
A questão das territorialidades, a da cultura e a da necessidade de re-
conhecimento do Sujeito Político Ribeirinho vieram à tona após o advento
desses grandes empreendimentos e obras de infraestrutura que passaram
a ser autorizadas na Amazônia Ocidental numa mudança de paradigmas
governamentais e da política pública energética do país.
O comportamento governamental em relação às garantias dos espa-
ços democráticos durante e após os desdobramentos resultantes da rea-
locação de ribeirinhos para a construção das barragens das usinas do Rio
Madeira, colocando-os em um novo modus e locus de vida impostos pelo
poderio político-econômico são analisados.
Nesse contexto é que surge a hipótese de que o sujeito político é
aquele que possui condições e o empoderamento teórico e normativo ne-
cessários para, na arena de debates em busca dos seus direitos e garantias,
se posicionar, dialogar, propor, expor e defender, seus pontos de vista e
exigir a quem importar, os direitos que lhes são constitucionais, como por
exemplo, o respeito à diversidade, integridade, à moradia digna, à educa-
ção e saúde, enfim, à vida digna na sua totalidade.
A pesquisa é indutiva e de caráter exploratório. Baseia-se na Des-
crição Operacional dos Termos, no Referente e na Categorização. Quanto
ao referencial teórico, os autores aqui estudados não escrevem especifica-
mente sobre a “cidadania” do sujeito ribeirinho, mas servem como aporte
teórico do que se pretende no estudo.
O primeiro item aborda a descrição e a caracterização da cidadania,
com aporte do referencial teórico de Bauman, Sen, Santos, entre outros,
como uma liberdade positiva. Em seguida, trata-se da concepção da Ci-
dadania do Sujeito Político Ribeirinho, enquanto uma categoria popula-
cional dotada de direitos, em especial à territorialidade e a tudo o que im-
portar em interferência a esse direito, em uma dimensão multiculturalista,
para em seguida, teorizar sobre a como promover a Cidadania do Sujeito
Político Ribeirinho no Estado Democrático brasileiro.

Descrição conceitual da cidadania enquanto liberdade positiva e sua


afetação pelos empreendimentos hidrelétricos na Amazônia

Iniciamos a presente questão com o conceito de ‘liberdade positiva”


como um direito de cidadania essencial que se pode descrever como o po-
der de “influenciar as condições da própria existência, dar um significado

128
DEMOCRACIA E AGONISMO

para o ‘bem comum’ e fazer as instituições sociais se adequarem a esse


significado” (BAUMAN, 2000, p. 112).
As pessoas verdadeiramente livres são aquelas que instituem uma
sociedade que ao mesmo tempo proteja e promova a sua própria liberdade
(BAUMAN, 2000, p. 112), que possa influenciar também a formulação de
políticas públicas através de capacidades participativas decorrentes das
“oportunidades econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e por
condições habilitadoras” (boa saúde, educação básica, incentivo etc.) (SEN,
2010, p. 18).
Amartya Sen, em sua obra Desenvolvimento como Liberdade, expõe
a teoria de que se o indivíduo for carente dessas “condições habilitadoras”
e viver em “condições degradantes”, ele sofrerá uma limitação que recairá
sobre a sua liberdade, de forma que ele não será capaz de “alcançar ida-
des mais avançadas ou de participar de maneira atuante na política” (SEN,
2010, p. 18), como sugeriu Jürgen Habermas em sua proposta de cidada-
nia deliberativa, “no qual os atores sociais devem deliberar em conjunto
de maneira dialógica na elaboração e implantação das políticas públicas”
(MARQUES, 2010, p.121).1
[...] os enfoques que hoje em dia discutem o desenvolvimento
tentam aproximar-se do sentir, isto é, da população que vive
o(s) problema(s) a ser(em) solucionado(s) por meio de proces-
sos decisórios dialógicos e que garantam que o que há de vir
suporte as necessidades dos que virão. Processos decisórios
dialógicos, também conhecidos como gestão social, são ações
gerenciais cujos arranjos institucionais de implementação de
suas decisões, são compartidos entre os diversos atores da so-
ciedade determinante (TENÓRIO, 2012, p. 11).

A liberdade para Sen corresponde também ao envolvimento nos


“processos de tomada de decisão e às oportunidades de resultados con-
siderados valiosos” (SEN, 2010, p. 370). Os resultados a que ele se refere
correspondem não só ao mainstream econômico, mas a outros como a par-
ticipação política que é em sua visão uma parte constitutiva do “fim do
desenvolvimento” (SEN, 2010, p. 370). Em resumo, o que ele prega é que “A
questão da discussão pública e participação social é, portanto, central para
a elaboração de políticas em uma estrutura democrática” que se julgue
desenvolvida (SEN, 2010, p. 149).

1 - Nesta obra, Sen afirma que “a necessidade econômica amplia a necessidade política, através de: 1) Sua importância
direta para a vida humana associada a capacidades básicas (como a capacidade de participação política e social); 2) Seu
papel instrumental de aumentar o grau que as pessoas são ouvidas quando expressam e defendem suas reivindicações
de atenção política (como as reivindicações de necessidades econômicas); 3) Seu papel construtivo na conceituação de
“necessidades econômicas” (SANTOS, 2013, p. 41). Por isso é que o desenvolvimento, em seus intrincados processos
irá demandar “que a pessoa tenha o direito de participação pública” não sendo alijada dos seus direitos de cidadão
num “sistema democrático”. O desenvolvimento como liberdade não pode “deixar de levar em conta essas privações”
(SEN, 2010, p. 207; SANTOS, 2013, p. 41).

129
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

A liberdade de participação crítica é uma das liberdades mais


importantes na existência social, pois desta forma a escolha
social não pode estar contida apenas nas falas daqueles que
detém o poder, bem como a democracia e os direitos políticos
determinam-se como constituintes do processo de desenvolvi-
mento (SANTOS, 2013).

Santos afirma que as pessoas podem “exercer influência sobre o go-


verno exigindo seu direito de cidadão, e assim usufruindo de sua liberdade
a fim de gerar uma resposta política mais efetiva nas questões econômi-
cas” (2013). A política pública tem o papel de implementar as prioridades
que emergem de valores sociais, e gerar respostas para as mais diversas
questões através de discussões públicas auxiliadas pela
liberdade de imprensa e independência dos meios de comuni-
cação (incluindo ausência de censura), expansão da educação
básica e escolaridade (incluindo a educação das mulheres),
aumento da independência econômica (especialmente por
meio do emprego, incluindo o emprego feminino) e outras
[...] que ajudam os indivíduos a serem cidadãos participantes.
Essencial nessa abordagem é a ideia (sic) do público como
um participante ativo da mudança, em vez de recebedor dó-
cil e passivo de instruções ou de auxílio concedido (SEN,
2000, p. 318-319, grifo nosso).

A “garantia de discussão e debate crítico é formidável na formação


de valores e prioridades” (SANTOS, 2013), bem como promove um maior
envolvimento nas questões em que o poder público necessita da colabo-
ração da população, por exemplo, a política pública de Redução de Riscos
de Desastres ambientais em que é importante a compreensão do “modo
pelo qual a sociedade interage com a natureza, porque as interações esta-
belecidas são fundamentais para a sobrevivência dos seres humanos”. (DA-
-SILVA-ROSA et. al., 2015, p. 215).
Sen é enfático ao reafirmar que nos “momentos de prosperidade”,
a importância da democracia não é tão evidente quanto nos períodos de
crise porque nela, o consenso social ganha importância, abandonando as
decisões individuais e adotando as decisões sociais preferenciais na medi-
da em que “é preciso atribuir particular importância ao papel da discussão
e das interações públicas na emergência de valores e comprometimentos
comuns” (SEN, 2010, p. 323).
As liberdades positivas da população ribeirinha em Rondônia fo-
ram afetadas. Seja pela falta de conhecimento e conscientização sobre as
questões que permeiam a vivência das populações tradicionais ribeirinhas
enquanto Sujeito Político seja pela não garantia de participação ativa em
atividades que lhes afetam, especialmente na porção ocidental da região

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DEMOCRACIA E AGONISMO

amazônica, quando da elaboração de instrumentos socioambientais obser-


vadamente falhos, como o Estudo de Impacto Ambiental – EIA e Relatório
de Impacto Ambiental – RIMA que deram azo ao licenciamento conjunto da
construção de dois grandes empreendimentos hidrelétricos no Rio Madeira.
Desse licenciamento, resultaram danos efetivos às comunidades tra-
dicionais ribeirinhas, e afetaram suas liberdades. Busca-se determinar for-
mas de empoderamento dessa população principalmente diante da falta de
legislação protetiva interna que lhes assegure melhor os direitos à territo-
rialidade ancestralmente adquirida, certamente como um direito adquirido
pelos sujeitos existentes na região de interesse dos novos empreendimentos.
A questão das territorialidades, a da cultura e a da necessidade de re-
conhecimento do Sujeito Político Ribeirinho vieram à tona após o advento
desses grandes empreendimentos e obras de infraestrutura que passaram
a ser autorizadas na Amazônia Ocidental numa mudança de paradigmas
governamentais e da política pública energética do país.
Tomamos como exemplo de nossa atividade indutiva, na tentativa
de teorizar para casos de mesma proporção, na mesma região e mesmas
condições, o caso da população deslocada de Mutum-Paraná. Esta era uma
cidade composta de população eminentemente ribeirinha amazônida. A
pesca, o escambo e o lazer eram supridos pelo regime do Rio Madeira e
seus afluentes próximos.
Essa população foi desterritorializada, a população semianalfabeta
não foi devidamente incluída nos procedimentos de tomada de decisões. O
processo de designação de locais, de exploração de atividades econômicas
e de subsistência não foi transparente. As audiências públicas foram rea-
lizadas com apenas algumas pessoas eleitas pelo empreendimento como o
representante de todos sem assegurar o menor procedimento democrático
ou as condições para esse exercício. O antigo distrito de Mutum-Paraná se
transformou na barragem da Usina de Jirau e os antigos moradores foram
levados a um ambiente urbano, asfáltico, sem tratamento térmico e o prin-
cipal, para longe do rio. O exercício da cidadania foi alijado aos membros
de Mutum-Paraná.
Esse é assunto ao qual nos dedicaremos a partir de agora com a aná-
lise da cidadania como respeito ao multiculturalismo que desaguará na
discussão sobre o exercício fático da Cidadania do Sujeito Político Ribei-
rinho e seus problemas.

O exercício da cidadania do sujeito político ribeirinho e a discussão


sobre a dimensão multiculturalista dessa população

A cidadania exercida pelo sujeito ribeirinho como respeito ao mul-


ticulturalismo pressupõe que em primeiro lugar, se caracterize esse “ser

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

ribeirinho”. A população ribeirinha em Rondônia forjou-se pela agregação


à população local e indígena originária, de pessoas que se encontravam em
situação de vulnerabilidade social, de pobreza, de marginalização, explora-
ção e criminalização, vindas à região amazônica, e se agruparam, ou seja,
organizaram-se e com o passar do tempo, de geração em geração, tornando
esse caldo social e cultural preservado uma nova conformação de sujeitos
com identidade própria (LIRA; CHAVES, 2014). Sobre essas bases se discu-
te a possibilidade de se pensar sobre a concepção da cidadania do sujeito
político ribeirinho em uma dimensão multiculturalista.
Não é possível a existência de nações democráticas e modernas sem
o exercício da cidadania e também sem o sentimento de pertencimento,
de forma que sem ele, não se criam sociedades sustentáveis e pacíficas. O
pertencimento pressupõe o diálogo e a manifestação das discordâncias,
resistências e, em último caso, da revolução.
Mas, afinal, o que é uma sociedade democrática multicultural com-
posta por cidadãos? Seria ela uma sociedade “pacificada e harmoniosa
onde as divergências básicas foram superadas e onde se estabeleceu um
consenso imposto a partir de uma interpretação única dos valores co-
muns?” (DAL CASTEL, 2016; MOUFFE, 2003), ou uma sociedade com
uma “esfera pública vibrante onde muitas visões conflitantes podem se ex-
pressar e onde há uma possibilidade de escolha entre projetos alternativos
legítimos?” (MOUFFE, 2003, p. 11).
Reputa-se que a cidadania multicultural na sociedade democrática
sofre extrema vulnerabilidade quando há um consenso artificialmente fa-
bricado que asfixia o potencial de antagonismo das pessoas e de busca
por seu reconhecimento como sujeito político participante. O dissenso é
importante no multiculturalismo.
A questão é que o dissenso foi perdendo espaço para o con-
senso e isso vem a ser o grande mal das democracias atuais.
Mouffe cita uma das passagens centrais do pensamento de
Maquiavel ao menos em um dos seus trabalhos para somar
à sua ideia acerca do político, que vem a ser a questão dos
humores de povo e grandes: ‘Em el domínio de ‘lo político’,
aun vale la pena meditar acerca de la idea crucial de Ma-
quiavelo: ‘En cada ciudad podemos hallar estos dos deseos
diferentes [...]’ (2009, p.14). A autora conclui que a definição
da perspectiva pós-política é a afirmação de que entramos
em uma nova era onde este antagonismo potencial desapa-
receu e que isso pode colocar em risco o futuro da política
democrática (DAL CASTEL, 2014).

Se pensarmos na cidadania “tradicional”, a falta de garantias ao an-


tagonismo pode derradeiramente se transformar em batalhas “judicializa-
das” como um primeiro recurso entre tantas possibilidades. Os detentores

132
DEMOCRACIA E AGONISMO

do poder político da comunidade que se viu afetada por alguma ação pú-
blica ou privada podem, antes, lançar mão dos meios de instrumentos de
pressão tais como a mídia, as ouvidorias, as assembleias, audiências públi-
cas, agendamento de reuniões com comissões, articulação junto às insti-
tuições, abaixo-assinados. Enfim, há um leque de medidas além de simples
manifestações que serão estudadas para se encontrar a melhor forma de se
fazer ouvir e representar.
O multiculturalismo oferece em certa medida um suporte à cons-
trução da Cidadania do Sujeito Político Ribeirinho porque “valoriza a di-
versidade enquanto uma forma de interação entre culturas diferentes e
operacionalização dos direitos humanos através de políticas públicas de
reconhecimento da diferença” (MELO, 2015). A cidadania é “a sensação
de pertencer a uma comunidade, de participar de valores comuns, de uma
história comum”, de língua, religião, história e experiências, como conse-
quência, gera-se um “sentimento de identidade coletiva”. O multicultu-
ralismo permite as diferenças culturais, ao que parece, desde que não se
insurjam contra a dignidade humana.
As pessoas devem ter direito de desfrutar de suas tradições e da “cul-
tura que escolherem” – cabe apenas ao povo ter a liberdade de opção, e não
que sua escolha seja “influenciada por governantes, religiosos ou espe-
cialistas culturais” (SANTOS, 2013). A cidadania perpassa pela “sensação
de pertencer a uma comunidade, de participar de valores comuns, de uma
história comum”, de língua, religião, história e experiências. E como con-
sequência, gera-se um “sentimento de identidade coletiva”.
Um dos aspectos mais importante do multiculturalismo é o
reconhecimento e valorização da diversidade de culturas den-
tro de um mesmo espaço geográfico. Decorrência direta desta
concepção é a valorização e o respeito à cultura local.
O multiculturalismo caminha no sentido contrário, ao pregar
a convivência harmônica entre condutas divergentes, preocu-
pando-se mais com a sociedade local, principalmente aquela
parcela menos privilegiada, visando a manutenção de culturas
que se encontram fragilizadas frente ao poderio econômico de
outros grupos (SANTOS; ALVES JÚNIOR, 2016, p. 226).

A perspectiva multiculturalista é capaz de produzir consensos dialo-


gados, que envolvam no debate as diferentes concepções de vida – mas ain-
da assim, apenas essa dimensão pode ser insuficiente para atender à com-
plexidade e possibilitar o empoderamento das comunidades tradicionais
ribeirinhas da Amazônia. A noção tradicional de cidadania e nem mesmo
a cidadania multiculturalista de forma isolada seriam capazes de sustentar
as diferenças e peculiaridades dos ribeirinhos e sua vivência numa região
das mais isoladas existentes, como é a Amazônia e suas entranhas. Imer-

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

sos em uma situação de invisibilidade política, os chamados Povos das


Águas e da Floresta encontram-se pouco assistidos por serviços básicos.
Um contingente humano diferenciado surgido na Amazônia, após grande
miscigenação de raças e etnias, fruto das políticas migratórias sem plane-
jamento – que geraram além de frutos geracionais, muitos conflitos sociais
a persistirem até os dias de hoje na região.
Essa comunidade não conquistou ainda um status de reconhecimen-
to enquanto povos dotados de peculiaridades tais, que é difícil, senão im-
possível, para categorizá-la dentro dos padrões normais do exercício de
cidadania. Portanto, nos debruçamos sobre a criação do exercício da Cida-
dania do sujeito político ribeirinho a seguir.

A categorização da cidadania do sujeito político ribeirinho no Estado


Democrático de Direito

O presente item se destina a estabelecer as bases possíveis de exercício


da Cidadania do Sujeito Político Ribeirinho, como uma categoria conceitual
dentro das liberdades positivas existentes, mas com característica própria
que decorre de sua peculiar condição de vida e de cultura. A forma como o
ribeirinho lida com a territorialidade é diferente dos habitantes da comuni-
dade urbana, rural e de outras comunidades, por uma série de fatores.
A forma de exercício dessa cidadania amazônida é fruto de uma
construção humana, porque a ocupação de grande parte da região da Ama-
zônia Ocidental recebeu incentivo de governos militares que almejavam a
ocupação a qualquer custo do território sob a justificativa de proteger as
fronteiras desabitadas do país. Ela foi forjada artificialmente com pessoas
que se encontravam em situação de vulnerabilidade social, de pobreza, de
marginalização, exploração e criminalização, entre outras, que chegavam
e agrupavam-se, organizavam-se e, com o passar do tempo, de geração em
geração, esse caldo social ganhou novos contornos políticos, sociais, de
vivência e de identidade próprios, cuidadosamente preservados pelo corpo
social, que ora buscamos evidenciar tentando desviar-se de eventuais ar-
madilhas dos reducionistas. Leva-se, assim, em consideração que:
Apesar do incomensurável sofrimento, apesar da desagregação
ética e social, ainda há lugares no Brasil nos quais o povo conse-
gue preservar uma tessitura de símbolos, mitos e rituais, ainda
que fragilizada e fragmentária, expressa uma relação com a vida
que se dá para além dos marcos da racionalidade instrumental
e da dicotomia sujeito-objeto que marcam o modo de pensar
predominante hoje, como observamos nos povos ribeirinhos
[...] Fazer uma leitura desta cultura como primitiva é incorrer
em um reducionismo que não alcança o caráter originário desta
percepção da vida. Tal caráter não se reduz a uma teoria deter-

134
DEMOCRACIA E AGONISMO

minada, nem depende do saber acadêmico. Antes, diz respeito


a uma atitude do pensar. A sensibilidade poética, o sentimento
do sagrado, a capacidade de colocar-se à escuta da natureza,
correspondem a dimensões do ser humano que não dependem
do saber acadêmico e não se expressam de um modo único, po-
dendo eclodir tanto na palavra erudita quanto na linguagem
do povo simples (UNGER, 2009, p. 152, grifo nosso).

Em suas formas de vida mais tradicionais e rudimentares, na comu-


nidade ribeirinha não há um processo de acumulação de bens, ou um gran-
de armazenamento de alimentos para longos períodos. Em muitos lares
não há sequer energia, a ligação com a terra é ancestral e também pode
ser originária de territorializações e desterritorializações anteriores.2 E
a linguagem, muitas vezes, não é compreendida pelos “de fora”. A base
da segurança alimentar é a pesca e a produção de farinha de macaxeira.
Existem comunidades praticamente escondidas nos rios, onde só é possí-
vel chegar em embarcações fluviais. Na época de seca, apenas por meio de
embarcações “voadeiras” de “motor leve”.
Para receber um documento de identidade, em algumas localidades,
é necessário que o poder público se desloque em operações em “barcos de
cidadania” que fazem os mais primários atendimentos, desde emissão de
documentos, aos serviços básicos de saúde.
Essas pessoas não se preocupam com a acumulação porque prati-
camente todos os recursos de que necessitam estão ao alcance das mãos,
na floresta, no cultivo diário da terra e nos rios onde vivem. Aí formam
suas crenças, mitos e tradições, surgem os “diversos seres sobrenaturais”
que exercem “influência sobre as atividades de caça e da pesca ribeirinha”
(SCHERER, 2004, p. 4).
Elas não se inserem no ambiente da tomada de decisões fora de suas
comunidades. Sua cidadania não se reconhece apenas por meio do proces-
so eleitoral, ela está além, pelo dia a dia as comunidades estabelecem seus
escambos e suas atividades econômicas.
Para as pessoas não inseridas nesse modo de vida, e para o próprio
Estado, respeitar o sujeito político ribeirinho significa garantir não só a
concessão de direitos fundamentais, como o direito à personalidade es-
tampada em documentos formais, e no instrumental de acesso a esses di-
reitos – mas também pela elaboração de políticas públicas protetivas para
eventos que interfiram direta e indiretamente no exercício de suas liber-
dades positivas também, a exemplo da política energética e ambiental com

2 - A desterritorialização e a reterritorialização são fenômenos respectivamente explicados como: “à perda da relação


‘natural’ da cultura com os territórios geográficos e sociais e, ao mesmo tempo, certas relocalizações territoriais
relativas, parciais, das velhas e novas produções simbólicas” (CANCLINI, 2008, p. 309).

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

alguns aspectos de uma violação criminosa de Direitos Humanos, que afe-


tam suas vidas (SCHÜTTZ, 2012).
A perspectiva da cidadania multiculturalista não exclui possibili-
dade de se garantir o pertencimento de um sujeito em uma comunidade,
desde que não viole regras comuns de direitos humanos básicas. Assim,
não refoge à possibilidade de reconhecimento de um multiculturalismo,
o compartilhamento de valores comuns, de língua, religião, história e ex-
periências, e o sentimento de identidade coletiva que legitima essas vi-
vências como dignas de respeito e proteção no Estado Democrático.3 O
exercício da Cidadania do Sujeito Político Ribeirinho encontra validade e
justificação à sua proteção e reconhecimento, nessas mesmas bases e vér-
tices comuns (FREITAS, 2001) existentes como fundamentos republicanos
no Texto Constitucional. A democracia implica em cidadania. Elas estão
sofisticadamente enfeixadas uma com a outra. O respeito às diferentes
identidades que coexistem em um território e a promoção de sua cidadania
são capazes de manter a união do povo diante das crises (FREITAS, 2001).
Essa união mantém o Estado Democrático estável.
A cidadania do sujeito político ribeirinho se apresenta marcada por
características sui generis – de não acumulação, de escambo de subsistência,
de manutenção da união cultural por meio de tradições, costumes e festas,
por seu modo de exercer a comunicação social, sua relação de coexistência
com os rios, a mobilidade e busca de recursos de acordo com o regime dos
rios, seus modos geração de consenso, e manifestação de resiliência diante
dos conflitos e dificuldades, especialmente por sua interação com o meio
em que vive. Essa característica compõe a socioambientalidade. O corpo
social que se reconhece e se auto identifica em profunda ligação com o
meio natural onde vive.
Os vilarejos ribeirinhos nos fazem pensar a quão distinta é a vivên-
cia do sujeito político ribeirinho. Algumas comunidades além de distantes
das políticas públicas que permitem acesso ao exercício pleno dos direitos
constitucionais, vivem em exclusão social. O exemplo mais cabal é a ine-
xistência de documentos públicos, participação de censos e de exercício da
cidadania em eleições em parte pela inacessibilidade a essas comunidades.
Em primeiro lugar, sem uma identificação inexiste exercício de cidada-
nia, acesso aos serviços públicos de saúde, vacinação, educação, trabalho
etc. Nos dias de hoje ainda existem as localidades no interior do Estado,
por exemplo, ao longo do Rio Guaporé, que vivem em condições de semi-
-isolamento. Algumas comunidades, além da questão dos documentos, não

3 - O multiculturalismo, segundo os teóricos, se direciona para o “localismo, que, ao se fazer presente, dá sentido à
produção local, negando a ideia de homogeneidade, porquanto, embora se possa dizer que a cidade é aberta e cosmopolita,
ela também precisa fixar signos de identificação” que sejam entendidos de forma comum (COSTA, 2012, p. 32).

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DEMOCRACIA E AGONISMO

são alcançadas por um Atendimento de Assistência Social (LOAS) ou por


qualquer tipo de aposentadoria rural – quadro que pouco a pouco tem sido
modificado por operações judiciais e de promoção de cidadania nessas lo-
calidades, mas que certamente não são suficientes devido aos desafios or-
çamentários para atendimento de toda a vastidão da Amazônia. O quadro
é o mesmo em Estados como Acre, Amazonas, Roraima e Pará.
Frantz Fanon, em sua obra Os Condenados da Terra (1968), aborda
a colonização como projeto de desenvolvimento para a humanidade,4 que
impõe um ideal civilizatório aos colonizados, retirando destes a dignidade
sob o argumento de promessas de progresso e riqueza. A difusão dos con-
ceitos do colono propicia a exclusão do colonizado, desenraizando cultura
e hábitos diversos do pensamento colonizado, com a intenção de domina-
ção. Numa analogia à violência do colonizador, voltamos nosso olhar para
a realidade amazônica, enquanto colônia brasileira, que pouco a pouco
vem sendo transfigurada em celeiro agrosilvopastoril de larga escala em
detrimento do fomento à agricultura familiar sustentável e da preservação
das florestas nativas. Os instrumentos para a reversão desse quadro, inclu-
sive pela premiação aos que se portam se forma ambientalmente sustentá-
vel, estão à disposição das autoridades públicas, mas são ainda incipientes
(MAGANHINI, 2010, p. 232).
A supressão imposta aos colonizados fazem-nos permanecer nessa
dependência dos costumes do colonizador (FANON, 1968, p. 28). As di-
vergências nas “habitações” retratadas por Fanon nos fazem pensar no
exercício da cidadania do sujeito político ribeirinho como uma cidadania
derivada da tradicional, pela própria peculiaridade do modelo de cultura.
Não há como unir a cultura ribeirinha à cultura do “colonizador” capi-
talista, que desrespeita as individualidades existentes na população tra-
dicional e que despersonaliza seus modos de vida e produção social. Por
outro lado, ainda que um ribeirinho deixe o seu local de vivência e passe a
residir em outros locais, distantes da beira do rio e de suas comunidades,
sua essência não é perdida.
O exercício da Cidadania do Sujeito Político Ribeirinho tem como
seus elementos de pressão, quando é possível acessá-los, algumas vezes os
movimentos e organizações sociais, apoio de igrejas, de algumas entidades
não-governamentais e eventualmente de alguma representação de políti-
cos; mas o meio primordial de manifestação de suas reinvindicações e da
insustentabilidade de sua condição é o fechamento de rodovias, queima de
pneus, acampamentos em frente aos órgãos públicos.

4 - As afirmativas de Fanon (1968) advém da descolonização francesa da Argélia, numa guerra pelo domínio da
identidade e do direito de ser cidadão africano e não europeu, como lhes queria o colonizador francês, que ao difundir
a cultura da metrópole asfixia a humanidade da colônia do africano, homem do terceiro mundo.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Da mesma forma difere a forma de exercício da cidadania do Sujeito


Político Ribeirinho, em relação às manifestações das categorias trabalhis-
tas sindicalizadas e razoavelmente esclarecidas. Na própria Usina de Jirau,
os movimentos dos trabalhadores resultaram em maior atenção das auto-
ridades para com as condições de trabalho no canteiro de obras. O contin-
gente populacional da obra era basicamente de trabalhadores de fora do
Estado de Rondônia, possuidores de outra concepção de direitos, de modo
de vida, trabalho e sobrevivência.
Reputa-se que para os ribeirinhos, caboclos, isso é ainda mais perti-
nente. É preciso um verdadeiro movimento e união das massas no enfrenta-
mento do conflito para criar um consenso (em meio ao dissenso), de forma
democrática e que envolva a participação do cidadão ribeirinho (BOGO,
2011, p. 09), a fim de se debaterem as reconfigurações territoriais, as mu-
danças, conflitos e resistências (PEREIRA, 2013) daí advindas. Pelo menos,
que as decisões possam ser referendadas com legitimidade (LEYRIT, 2014),
sem subterfúgios para criar uma falsa roupagem de participação popular
(ARNESEN; BRODERSTAD; JOHANNESSON; LINDEA, 2017; IIZUKA;
GONCALVES-DIAS; AGUERRE, 2011; POLERE, 2007; SOARES, 2014).
Com atenção aos problemas dos deslocamentos forçados na Ama-
zônia, devido aos grandes empreendimentos que atingem e afetam a Ci-
dadania do sujeito político ribeirinho, retornamos ao pensamento decolo-
nialista de Fanon que trata das relações de dominação entre colonizador e
colonizado. A partir dele, estabelecemos a analogia em relação aos domi-
nadores e dominados no cenário amazônico.
A região norte do Brasil, em pleno século XXI, não se desvencilhou
do papel de colônia das metrópoles nacionais e estrangeiras. Isso fica pa-
tente uma vez que multinacionais do porte da transnacional francesa GDF
Suez tem a maior parte das ações da Usina de Jirau. O mesmo ocorre em
setores básicos no Brasil que continua primário exportador e recebe bens e
serviços manufaturados dos países desenvolvidos: telefonia, rodovias, for-
necimento de serviços eletrônicos e internet etc.
Infere-se que somente com o empoderamento do Sujeito Político Ri-
beirinho, com um arcabouço normativo e por meio dos debates sociais,
é que o exercício de sua cidadania pode ser garantido face às pressões e
emergências do capitalismo (CASTILLO, 2002; LETERRE, 1997). A ques-
tão identitária, a cultural e as vivências práticas e geográficas fazem do
ribeirinho uma categoria social que existe e resiste às transformações da
sociedade pós-moderna, enquanto sujeitos de transformações territoriais:
o ribeirinho é homem da cheia e da várzea.
Como colônia o pensamento de exploração faz do homem amazô-
nico, do ribeirinho, homem subjugado aos interesses dos metropolitanos

138
DEMOCRACIA E AGONISMO

que retiram sua soberania e os colocam sob a opressão de uma pequena


“burguesia de colonizados”. O mundo colonial é compartimentado, faz di-
visões entre colonos e colonizados, com configurações geográficas diver-
sas, permitindo o delineamento de uma atmosfera de submissão e inibição,
que propicia o controle desta burguesia e de toda a “massa” pelos países
colonizadores ricos com suas superestruturas econômico-empresariais.
O exercício de cidadania desses sujeitos deve ser garantido por tra-
tar-se de uma população singular, que não goza de uma legislação pro-
tetiva face às desterritorializações que sofrem por ocasião dos grandes
empreendimentos desenvolvimentistas e isso é ainda mais grave quando
se trata da Amazônia.

Considerações finais

O Sujeito Político Ribeirinho, a partir da experiência dos desloca-


mentos dos ribeirinhos de Mutum-Paraná para a Nova Mutum-Paraná,
não teve seus direitos à territorialidade respeitados (MADEIRA, 2015).
Dessa forma, o principal elemento de pressão e busca por direitos dessas
pessoas são consubstanciados nos movimentos e organizações sociais, e
também de apoio de instituições religiosas e de algumas entidades não-go-
vernamentais. Eventualmente alguma representação política existe, mas o
meio primordial de manifestação de suas reinvindicações e da insustenta-
bilidade de sua condição é o fechamento de rodovias, a queima de pneus,
os acampamentos em frente aos órgãos públicos, com maiores sacrifícios
do que acontece com a população urbana e demais comunidades, seja pelas
dificuldades de deslocamento, alimentação, seja pela produção em suas
terras que ficarão abandonadas nos locais de origem dessas pessoas no
período em que se engajam nestas manifestações. Portanto, há maiores
sacrifícios do que acontece para a reinvindicação das pautas da população
urbana e demais comunidades.
Também é preciso atentar-se para o fato de que o autorreconheci-
mento como Sujeito Político fica limitado pelo próprio isolamento das
populações ribeirinhas na Amazônia. Consequentemente, a elucidação, o
empoderamento, a troca de informações, a busca pelo acesso aos direitos
e pelo respeito à cultura tornam-se mais difíceis, ou seja, são fatores os-
tensivamente impeditivos de melhor condição de reinvindicação, pressão
social, exercício de sua cidadania, e reconhecimento de sua dignidade e
direitos. Há um obstáculo maior para a produção do dissenso e consen-
so das comunidades ribeirinhas em relação ao Estado, e no modo como a
comunidade resolverá as suas contendas internas, sem necessariamente
recorrer à violência entre os seus iguais.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Tem-se por certo, que a Cidadania do Sujeito Político Ribeirinho exis-


te, embora seu custo de exercício por este sujeito político seja mais elevado,
dispendioso do que comparada às demandas de outras populações rurais e
urbanas. A saída é, além da via do engajamento nas manifestações e orga-
nizações sociais, valer-se também da pressão política para a confecção de
normas concretas que lhes protejam dos efeitos da desterritorialização for-
çada e se lhes exijam o cumprimento aos atores públicos e privados que lhes
possa afetar no exercício de sua Cidadania do Sujeito Político Ribeirinho.

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142
6
Ensaio sobre a identidade
conservadora e o agonismo
democrático brasileiro
Carlos Alexandre Barros Trubiliano

Na última década, o campo político do Ocidente foi marcado pela


ascensão de governos conservadores. Políticos identificados com a di-
reita radical, o reacionarismo e o autoritarismo têm pautado as políticas
de Estado da maior parte da população global. Governantes como Modi
(Índia), Erdoğan (Turquia), Daesh (Estado Islâmico), Orbán (Hungria),
Salvini (Itália), Putin (Rússia), Andrzej Duda (Polônia), Duterte (Filipi-
nas), Netanyahu (Israel), Shinzō Abe (Japão), Ivan Duque (Colômbia) e Jair
Bolsonaro (Brasil) carregam em seus discursos a crítica à globalização, ao
pluralismo e à democracia.
Guardadas as características próprias de cada país, é possível ob-
servar narrativas similares baseadas no antagonismo nas nações governa-
das pelo conservadorismo. Nos países europeus e na Índia, o antagônico
são os muçulmanos (especialmente na condição de imigrantes). Nos países
mulçumanos, a condição antagônica é assumida pelas minorias religiosas
(cristãos, judeus e yazidis). Em alguns casos, como no Brasil, o antagônico
ganha forma discursiva contra os gays, o feminismo e o ódio pela esquer-
da. Em comum, as narrativas são autoritárias, nacionalistas e fundamenta-
listas. O lema nazista “Deutschland über alles” foi atualizado em versões
locais, como “America First”e “Brasil acima de tudo”.
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2015) compreenderam a categoria
antagônica como uma dualidade de negação da completude identitária, ou
seja, “a presença do outro impede-me de ser totalmente eu mesmo. A rela-

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

ção não surge de identidades plenas, mas da impossibilidade da constituição


das mesmas” (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 125). No discurso antagônico, a
condição do “outro” passa a ser identificada como uma ameaça, cuja respos-
ta é a intolerância étnica (racista) ou religiosa, sendo, portanto, a violência
policial ou militar justificada como única resposta possível à presença do
“outro”. Partindo do prisma identitário, surge a questão: como, em um país
de regime democrático representativo, foi possível eleger, pelo voto popular,
líderes conservadores com forte e notório discurso autoritário?
No século XIX, o marxismo nos forneceu um modelo explicativo das
distinções sociais no Ocidente (pobres versus ricos), cuja compreensão
estava calcada na lógica das relações sociais vinculadas ao antagonismo
capital versus trabalho. Entretanto, nos séculos XX-XXI, a teoria marxista
clássica não nos permite uma análise mais refinada dos múltiplos antago-
nismos sociais possíveis. Para Laclau e Mouffe (2015), no Ocidente con-
temporâneo marcado pela globalização e pluralização, existe efetivamente
uma complexa teia social que forma uma infinidade de redes de identida-
des e de identificações. As constituições dessas redes partem de relações
discursivas antagônicas que, por vezes, se identificam com a compreensão
marxista da luta de classes e, por outras, se diferenciam dela. Portanto, na
contemporaneidade, os antagonismos de classe são parte, e não partida, do
intrincado jogo discursivo de identidades e representações.
As construções identitárias, em suas diferentes dimensões, se pro-
cessam historicamente no âmbito das projeções simbólicas articuladas pe-
las práticas do cotidiano. No texto que segue, buscaremos compreender a
construção do discurso identitário conservador cujo recorte temporal parte
da década de 1970 – momento de crise econômica em que, nas principais
nações capitalistas, passou-se a questionar o modelo keynesiano (pós-Se-
gunda Guerra) e a exaltar o (neo)liberalismo. Embora não possamos esta-
belecer uma relação automática entre sistema de ideias e economia, não
é irrelevante o fato de que, nos principais governos neoliberais – no caso,
Ronald Reagan (presidente dos Estados Unidos entre 1981 e 1989) e Marga-
ret Thatcher (primeira-ministra do Reino Unido de 1979 a 1990) –, surgiram
questionamentos aos alicerces da democracia moderna construída no pós-
-guerra. Se “(...) durante a crise dos anos 30 parecia que era o capitalismo a
pôr em crise a democracia; agora, para aqueles novos liberais, parece ser a
democracia a pôr em crise o capitalismo” (BOBBIO, 1986, p. 124).
Os governos neoliberais de Reagan e Thatcher deram início ao capi-
talismo global como resposta à grande recessão da década de 1970. As ges-
tões neoliberais obtiveram êxito em indicadores macroeconômicos, como
superávit primário, elevação do produto interno bruto (PIB) e controle da
inflação, a despeito de um altíssimo custo social. Deste modo, ao longo das

144
DEMOCRACIA E AGONISMO

décadas de 1990-2000, o pensamento e os governos neoliberais sofreram


desgastes e críticas, especialmente em relação a indicadores sociais como
emprego e concentração de renda; contudo, não houve, necessariamente,
um resgate do keynesianismo.
Segundo o economista Michael Roberts (2016), a partir da crise do
subprime (2008), a economia capitalista global permaneceu estagnada, inca-
paz de recuperar não apenas as taxas de crescimento registradas antes da
recessão de 2008, mas também os indicadores da década de 1970.
Ao longo do período de estagnação (2010-20), as teses neoliberais de
Reagan e Thatcher foram revisitadas como proposição de modernização
econômica capaz de superar a crise. Politicamente, a estratégia discursi-
va vinculou o (neo)liberalismo a um “retorno ao passado” romantizado e
utópico. O discurso mítico da nação grande e próspera – como o “America
First” (EUA), “Take Back Control” (Brexit, Reino Unido) e “Brasil acima de
tudo” – propõe ao cidadão um virtual caminho à retomada do crescimento
econômico, cujo preço é a revisão dos valores democráticos.

Fé e conservadorismo: o caso Ronald Reagan

Não caberia neste texto fazer um resgate minucioso das origens do


fundamentalismo cristão que alicerça o neopentecostalismo brasileiro.
Contudo, devemos pontuar que as origens desse pensamento se encon-
tram nas primeiras décadas do século XX nos EUA. A crise do liberalismo,
com o crash da bolsa de Nova York em 1929 e os traumas das duas guer-
ras mundiais, formou terreno fértil para as bases dos “fundamentos da fé”
como resposta à crise político-econômica. Na retórica fundamentalista, a
crise no Ocidente era resultado da acelerada perda da identidade cristã;
era necessária a intervenção evangelizadora para salvar as nações. Atua-
ções como as do clérigo Abraham Vereide (a partir dos anos 1930), do reve-
rendo Douglas Evans Coe (na década de 1950) e do reverendo Jerry Falwell
(dos anos 1960 em diante) buscaram a fusão entre fé e Estado com vistas
à implementação de uma agenda conservadora não apenas nos EUA, mas
em todo o globo.
A guinada (neo)liberal das últimas décadas do século XX é um des-
dobramento da ressignificação da noção de liberalismo gestada nos gover-
nos Margaret Thatcher e Ronald Reagan, que combinaram a fusão entre o
fundamentalismo religioso (cristão) e o fundamentalismo de livre mercado.
Tal compreensão de Estado e de democracia calcada na política de desre-
gulação econômica e no reacionarismo moral gerou o hibridismo político
intitulado “liberal-conservador”, em que indivíduos defendem, na mesma
plataforma de reivindicações, pautas como o Estado mínimo, o criacio-

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

nismo, o “direito de ir e vir”, a condenação ao aborto, a defesa do porte de


armas e a exaltação da meritocracia.
No campo econômico, Margaret Thatcher e Ronald Reagan modifi-
caram a política econômica, que passou de social-democrata desenvolvi-
mentista para neoliberal. Desde o pós-guerra, Inglaterra e EUA, ancorados
na macroeconomia keynesiana, buscaram intervir diretamente na econo-
mia, evitando ou diminuindo as sistêmicas crises financeiras, sua duração
e severidade, uma vez que os efeitos de 1929 ainda refletiam no retrovisor.
Contudo, na década de 1980, as contas públicas superavam as receitas; o
cenário de inflação e desvalorização monetária foi motivador da adoção
da nova política econômica monetarista, que teve êxito no equilíbrio das
contas públicas e no controle da inflação, mas a um custo social elevado.
Nos EUA, os efeitos da crise financeira da década de 1970 (que co-
meçou com a crise do petróleo) fez com que a opinião pública, sobretudo a
classe média, buscasse respostas para a perda do poder aquisitivo. O dis-
curso conservador (entrincheirado nas alas conservadoras mais radicais
do Partido Republicano) ligou a crise econômica dos anos 1970 à conse-
quência da “degeneração social” resultante do New Deal, do avanço dos
movimentos sociais e das transformações, como um todo, dos anos 1960.
Muitos estadunidenses responderam ao chamado conservador e acredi-
taram na retórica de que era necessário “restaurar a sociedade” em busca
de cumprir seu “destino manifesto”. Logo, valores como a autonomia, o
progresso, a moral e o individualismo foram considerados algo nato ao
espírito norte-americano, em contraposição ao multiculturalismo, ao hu-
manismo e ao coletivismo, identificados como valores arcaicos.
Na retórica política norte-americana, o imaginário religioso é signi-
ficativo até mesmo para aqueles que não se consideram “pessoas de fé”. O
fundamentalismo religioso e o comportamento eleitoral na cultura políti-
ca estadunidense têm como marca
[…] an enduring need for the divine, whether it is the citizenry’s
need for the divine that provides political power for those who
capitalize upon it or a religious citizenry’s desire to absorb the
political community at large into a wider theological destiny
(WEED; VON HEYKING, 2010, p. 3).

Nos EUA dos anos 1970-80, o discurso conservador buscou no pro-


testantismo do século XIX dois “grandes despertares”: o livre-arbítrio como
redenção dos pecados e o progresso material como recompensa espiritual.
Religiosos radicais como o reverendo Jerry Falwell passaram a ter grande
visibilidade midiática.
O clérigo ganhou notoriedade pública na década de 1960, quando se
contrapôs a pastores liberais como Martin Luther King e a outros evange-

146
DEMOCRACIA E AGONISMO

lizadores que defendiam os direitos civis. A partir de 1976, Falwell empre-


endeu uma jornada por todos os estados americanos, realizando manifes-
tações chamadas de “Eu Amo a América”. Nestes encontros, discursava-se
sobre a decadência moral, espiritual, cultural e política que estava em cur-
so nos EUA (SILVA, 2016).
As conexões obtidas nas manifestações do “Eu Amo a América”
permitiram a Jerry Falwell reunir milhares de pastores, padres e rabinos
para fundar a organização “Moral Majority”, que teve como plataforma
discursiva a defesa da “família tradicional”, da “propriedade privada”, da
“segurança nacional” e do “Estado de Israel” e o “combate” ao aborto e ao
casamento de pessoas do mesmo sexo.
A “Moral Majority” e o reverendo Jerry Falwell se revelaram uma
importante força mobilizadora. Durante a campanha presidencial de 1980,
Ronald Reagan e o Partido Republicano compreenderam que consegui-
riam a vitória eleitoral se conseguissem agregar os votos de religiosos e de
outros conservadores. Para tanto, alinharam a retórica da campanha a uma
agenda política e cultural articulada em torno de valores religiosos e mo-
rais. Com o discurso de restauração moral da América e o apoio decisivo
da “Moral Majority”, Reagan elegeu-se presidente (SILVA, 2016).
O pensamento e a política liberal ressignificados (Thatcher e Rea-
gan) geraram uma noção de “individualismo exacerbado”, que impede a
compreensão da formação das entidades coletivas. Para Mouffe (1996), esse
pensamento é um campo estéril, em que os antagônicos negam um deno-
minador comum, o espaço simbólico de diálogo, e passam a não reconhe-
cer a legitimidade das demandas feitas pela outra parte.

Política econômica e conservadorismo: o caso Margaret Thatcher

Entre as décadas de 1960-70, a economia da Grã-Bretanha estava em


declínio: o PIB retraía e o avanço da inflação superava os dois dígitos – em
1975, o país alcançou o auge inflacionário, quando atingiu a máxima de
24,3. Nesse cenário de fraca atividade econômica, as eleições gerais ocor-
reram em 1979; os Conservadores conquistaram a maioria dos assentos
das câmaras e Margaret Thatcher foi eleita primeira-ministra. Em seus
três mandatos, o governo Thatcher, apoiado em diretrizes liberais, reali-
zou uma série de reformas e privatizações que representaram a quebra de
paradigmas do modelo keynesiano. O Reino Unido inaugurava a gestão do
Estado sob o prisma do neoliberalismo (GAMBLE, 1994).
O mundo ocidental pós-guerra, até a década de 1970, ancorou sua
política econômica nas diretrizes keynesianas, especialmente as descritas
em A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda (1936). Tentando
compreender a gravidade da Grande Depressão (1929), Keynes propôs uma

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

teoria econômica baseada no entroncamento entre o total de gastos e seus


efeitos na produção e na inflação. Para tanto, defendeu que o aumento dos
gastos do Estado combinado com a redução dos impostos geraria estímu-
los na demanda produtiva, dirimindo os efeitos da depressão.
O cenário desafiador da Depressão de 1929 e a orientação keynesiana
fizeram com que o presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt, interviesse
diretamente na economia por meio de grandes projetos de iniciativa esta-
tal – como a construção de hidrelétricas, rodovias, portos, barragens etc.
Em decorrência das empreitadas, milhares de trabalhadores foram empre-
gados; a oferta de empregos gerou demanda por bens e serviços que servi-
ram para reabilitar o setor empresarial.
A orientação econômica keynesiana de aquecimento da demanda
teve grande aceitação política entre as potências do Ocidente. Para tanto,
foi criado como marco regulatório o acordo de Bretton Woods (1944), por
meio do qual os países signatários estabeleceram, entre outras medidas, a
manutenção das taxas de câmbio e o dólar como moeda internacional lastre-
ada em ouro. Apenas em circunstâncias excepcionais os Estados poderiam
alterar o câmbio. As diretrizes de Bretton Woods permitiram relativa esta-
bilidade monetária nas décadas seguintes ao pós-guerra (GAMBLE, 1994).
Ancorada nas políticas macroeconômicas keynesianas, a Grã-Bre-
tanha obteve décadas de pleno emprego e passou a estruturar políticas de
bem-estar social. O cenário foi de convergência política, ao passo que o
Partido Conservador e o Partido Trabalhista britânicos fomentaram pro-
postas para aumentar a participação do Estado na economia.
Durante o ministério de Clement Richard Attlee (1945-51), as em-
presas de serviços – como as de transportes públicos e de fornecimento
de gás, água e eletricidade – e as indústrias de produção de carvão e aço
foram nacionalizadas. O programa de nacionalização da gestão Attlee foi
responsável pela promoção de aproximadamente dois milhões de empre-
gos diretos. Em termos quantitativos, o setor público respondia por 25% do
total dos postos de trabalho na Grã-Bretanha (MATTOS, 2011).
O ambiente social do pós-guerra promoveu uma pressão da opinião
pública britânica a favor do aumento da oferta e da abrangência dos ser-
viços públicos. O setor público relacionado a atividades como educação e
saúde teve uma “injeção” de investimentos que consolidaram o Estado de
bem-estar social (MATTOS, 2011).
Entretanto, a situação de prosperidade das potências ocidentais –
sobretudo as europeias – promovida pelas políticas keynesianas sofreu
abalos ao longo da década de 1970.
O primeiro choque ocorreu em 15 de agosto de 1971, quando o pre-
sidente Richard Nixon (EUA), de forma unilateral, determinou o fim da

148
DEMOCRACIA E AGONISMO

convertibilidade do dólar em ouro, tornando o dólar uma moeda fiduciá-


ria. Essa manobra colapsou o sistema monetário proposto pelo tratado de
Bretton Woods e criou uma situação em que os Estados nacionais adota-
ram o dólar americano como moeda de reserva e promoveram a flutuação
de suas moedas.
O segundo choque ocorreu em março de 1974, como desdobramento
da Guerra do Yom Kippur (guerra árabe-israelense de 1973), quando a Or-
ganização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) elevou em 400% o
preço do petróleo, subindo de três para 12 dólares o barril.
O terceiro choque ocorreu ao longo de 1979, com o desdobramento
da crise política no Irã (deposição do xá Reza Pahlevi), um dos principais
países produtores de petróleo: o preço do barril saltou de 13 para 34 dóla-
res (GAMBLE, 1994).
Estes choques promoveram um panorama macroeconômico até en-
tão desconhecido pelas potências europeias, devido ao cenário inflacioná-
rio e de desvalorização das moedas.
Com os desafios da manutenção do pleno emprego alcançado no pós-
-guerra e com a flutuação das taxas de câmbio, os países adotaram como
política econômica a desvalorização cambial. A depreciação das moedas
visava tornar os custos da indústria nacional mais competitivos no merca-
do global, ao mesmo tempo que, em tese, aqueceria a demanda interna. O
resultado dessa estratégia foi a elevação da inflação.
A década de 1970 foi marcada pela crise global. No caso britânico, o
sociólogo Harold Garfinkel (1987) explica que “as taxas de inflação e de-
semprego foram as mais elevadas da Europa e o crescimento econômico, o
mais baixo” (p. 39). Neste contexto, emerge a proposta reformista de Tha-
tcher cujo objetivo era controlar a inflação através de uma política mone-
tária essencialmente restritiva, bem como estabelecer metas decrescentes
de expansão da base monetária e da elevação da taxa básica de juros.
As reformas liberais propostas por Thatcher marcaram a redução
dos gastos públicos com a promoção da privatização das estatais. Através
da política da taxa de juros, conseguiu controlar a inflação e promoveu
um processo de apreciação da libra esterlina. Entretanto, o efeito social
foi o aumento da desigualdade, com “o crescimento de uma underclass.
A porcentagem de famílias britânicas (não-pensionistas) totalmente sem
trabalho – ou seja, nenhum de seus membros faz parte da economia pro-
dutiva – cresceu de 6,5% em 1975 para 16,4% em 1985” (GRAY, 1998, p.
42). A privatização dos ativos públicos, em especial o Serviço Nacional de
Saúde, das escolas politécnicas e das universidades desarticulou o Estado
de bem-estar social.

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Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Diametralmente contrária às políticas pós-guerra, que no Reino


Unido buscaram articular as políticas econômicas e sociais, a nova era
neoliberal enfraqueceu os elos entre o Estado e o welfare state. O foco da
gestão Thatcher estava na adoção de políticas econômicas para o contro-
le inflacionário e na redução da participação do Estado na economia – e,
consequentemente, dos gastos públicos. Destarte, o estabelecimento do
novo paradigma econômico alterou substancialmente as relações com as
políticas sociais: a esfera econômica passou a ser compreendida como an-
tagônica à esfera social, as políticas de bem-estar social deixaram de ser
entendidas como investimentos para serem consideradas custos e o con-
trole dos gastos sociais tornou-se parte de um receituário para a obtenção
do equilíbrio macroeconômico.
Diante de um cenário social marcado pela piora nas condições de
vida da população, com aumento da desigualdade de renda e do desempre-
go, ocorreram na Inglaterra manifestações e greves. Em resposta, o gover-
no emitiu uma série de medidas, os Employment Acts, visando restringir a
atuação política dos sindicatos.
Em 1980, o Employment Act determinava, entre outras restrições, que
os piquetes deveriam ocorrer somente no local de trabalho dos respectivos
grevistas e que as “greves de solidariedade” deveriam ser restritas apenas à
cadeia de produção e consumo ligada diretamente à fábrica em greve.
O Employment Act de 1982 tornava os sindicatos passíveis de pro-
cessos judiciais e de multas, caso se demonstrasse a inobservância à legis-
lação vigente. Diante da “contratualização do direito de greve”, para que
uma greve fosse considerada legal, ela deveria estar relacionada apenas
às questões trabalhistas, como carga horária, descanso ou salário. A nova
legislação visou erradicar da greve seu sentido político mais profundo, sua
capacidade de organização social e politização (EDELMAN, 2016).
Os Employment Acts podem ser entendidos como parte operante
do conservadorismo, ao aparelharem o Estado de instrumentos e de orien-
tação para eliminar e criminalizar qualquer tipo de manifestação que, de
alguma forma, conectasse trabalhadores de diferentes fábricas e áreas da
produção, mitigando a solidariedade de classe (DUNFORD, 2002).
Um dos momentos mais emblemáticos da gestão Thatcher foi a gre-
ve dos mineiros em 1984-85. O movimento se opôs ao fechamento das mi-
nas de carvão consideradas de baixa produtividade e à dispensa de mais
de 220 mil trabalhadores, com destaque para região de Yorkshire (EVANS,
2004). Ao governo conservador coube utilizar todos os recursos ao seu al-
cance para desarticular o principal sindicato britânico do pós-guerra, o
National Union of Mineworkers [União Nacional dos Mineiros] (NUM).

150
DEMOCRACIA E AGONISMO

Vale informar que o NUM somava 200 mil filiados espalhados por 130 mi-
nas de carvão por toda a Grã-Bretanha (DUNFORD, 2002).
Em 1983, Thatcher nomeia Ian MacGregor para presidir o National
Coal Board [Conselho Nacional do Carvão] (NCB). Coube ao novo gestor
implementar um programa de corte de custos, com dispensa de trabalha-
dores e fechamento das minas consideradas não lucrativas. Antecedendo
ao movimento grevista, o NCB gerou estoques preventivos de carvão; os
trabalhadores das minas consideradas lucrativas, como a Nottinghamshire
e as de Midlands, tiveram a garantia de manutenção de seus empregos caso
não apoiassem o NUM; o aparato policial recebeu treinamento para re-
pressão a práticas grevistas, e aos trabalhadores dispensados foi ofertado
um programa de indenização conforme o tempo de serviço (EVANS, 2004).
Mesmo com o planejamento da NCB, o NUM conseguiu por 16 me-
ses manter a greve; os grevistas fizeram piquetes e bloquearam as princi-
pais minas, dificultando o abastecimento de carvão. Entretanto, o cenário
de alta taxa de desemprego e de forte repressão estatal (policial e judiciária)
gerou medo na classe trabalhadora: o movimento, ao contrário de outras
décadas, não obteve o apoio de operários de outros setores. A recusa se
deu, sobretudo, devido às novas regras jurídicas que tornavam ilegal uma
categoria entrar em greve para apoiar outra (Employment Acts). Paulati-
namente, o movimento foi desarticulado – seus líderes foram processados
e vários deles, encarcerados (DUNFORD, 2002).
O triunfo do governo Thatcher sobre os grevistas foi além do êxito
de um programa de fechamento de minas com justificativa na lógica de
otimização mercadológica: derrotar o então mais poderoso sindicato do
país teve também um forte conteúdo simbólico. É importante informar
que o fim da greve ocorreu meses depois da vitória britânica na Guerra
das Malvinas; diante desses triunfos, Thatcher consolidou uma construção
imagética de força e liderança, fazendo valer a identificação da sua repre-
sentação como a “Dama de Ferro”. Pedagogicamente, a derrota do NUM
indicava aos outros sindicatos britânicos que era impraticável contestar
o governo, e que o neoliberalismo e o enfraquecimento dos direitos tra-
balhistas vinham como uma forte onda difícil de parar. Essa conjuntura
política não ficou restrita à Grã-Bretanha, mas influenciou todos os países
centrais do sistema capitalista global.
Governos da direita ideológica, comprometidos com uma for-
ma extrema de egoísmo comercial e laissez-faire, chegaram ao
poder em vários países por volta de 1980. Entre esses, Reagan e
a confiante e temível Sra. Thatcher na Grã-Bretanha (1979-90)
eram os mais destacados. Para essa nova direita, o capitalismo
assistencialista patrocinado pelo Estado nas décadas de 1950 e
1960, não mais escorado, desde 1973, pelo sucesso econômico,

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

sempre havia parecido uma subvariedade de socialismo (...).


A Guerra Fria reaganista era dirigida não contra o “Império
do Mal” no exterior, mas contra a lembrança de F. D. Roose-
velt em casa: contra o Estado do Bem-Estar Social, e contra
qualquer outro Estado interventor. Seu inimigo era tanto o li-
beralismo (a “palavra iniciada com L”, usada com bom efeito
em campanhas eleitorais presidenciais) quanto o comunismo
(HOBSBAWM, 1995, p. 245).

Ainda dialogando com o historiador Eric Hobsbawm, nos anos 1930-


40, se o fascismo não tivesse alcançado a Alemanha, possivelmente não
teria tido a mesma dimensão. Dessa forma, podemos pensar que, em que
pese o poderio militar e financeiro britânico, o avanço dos governos con-
servadores não teria tido a abrangência mundial sem a ação política de
Reagan (EUA).
Hoje, com certo recuo temporal, é possível afirmar que o conserva-
dorismo político (ou neoliberalismo) não foi uma resposta técnica à crise
econômica da década de 1970 – uma vez que os gastos estatais da era pós-
-keynesiana, não diminuíram; em alguns casos, como o britânico, aumen-
taram –, assim como não ocorreu a entrega de toda a economia ao merca-
do. O receituário econômico neoliberal também não replicou os índices de
crescimento do mesmo patamar da Era de Ouro (pós-guerra).
O conservadorismo político representou, portanto, uma nova visão de
mundo baseada no “racionalismo, individualismo e pelo universalismo abs-
trato” (MOUFFE, 1996, p. 2). O novo olhar sobre o liberalismo, diferente do
pensamento iluminista, pôde ser compreendido como efeito colateral da hi-
permodernidade – considerada um valor em que a soberania do indivíduo se
sobrepõe ao bem-estar coletivo. A apreensão do político se dá mediante uma
interpelação individualista e racionalista, reduzindo as relações políticas à
égide do econômico (neoliberalismo) ou ético (conservadorismo).
Antes de avançarmos no texto para o caso da democracia agônica
brasileira, cabe uma rápida reflexão sobre a origem do individualismo e
sua analogia com a monetarização das relações sociais.

Monetarização da vida e o individualismo

Na medida em que o vínculo representativo político está dado pelas


temáticas “morais”, a concepção do ideal de coletivo passa se deteriorar. O
aprofundamento das relações capitalistas tem como efeito a exaltação do
indivíduo, e este é um fenômeno relativamente novo. Para Simmel (2006),
nas sociedades pré-monetárias, o indivíduo dependia diretamente da co-
letividade para sua existência; após a monetarização, os indivíduos pas-
saram a exercer cada vez mais o individualismo, marcado por uma lógica
relacional de compra e venda do tempo, das relações sociais e do trabalho.

152
DEMOCRACIA E AGONISMO

Ainda segundo Simmel (2006), o processo de monetarização da vida


enfraquece os laços de solidariedade que uniam os indivíduos aos seus
grupos de pertencimento nas sociedades tradicionais. Com a economia
monetária, os indivíduos passaram a viver em uma espécie de fronteira
simbólico-social na qual os laços de solidariedade, as noções de integra-
ção, a identificação com suas raízes e até mesmo as diretrizes de direitos e
vínculos comunitários têm sido substituídos, alterados e redefinidos.
É possível identificar um ponto de intersecção entre Simmel (2006) e
Marx (1991) em que, para ambos, a modernidade intensificou a experiência
da alienação na relação dos indivíduos, tanto entre si como com os objetos.
Essa experiência é marcada pela coisificação e pela precificação; logo, a
incidência da monetarização sobre a cultura é uma característica inerente
à modernidade.
A monetarização da vida (SIMMEL, 2006) se presta à alienação das
relações, pois transforma a economia monetária em orientação nas rela-
ções do mundo e faz com que o humano seja objetificado e impersona-
lizado; o indivíduo se sente abandonado, na medida em que o dinheiro
substitui os laços de solidariedade. Assim, a modernidade, alimentada pela
monetarização da vida, cria as condições para o enraizamento da individu-
alidade exacerbada, que se sobrepõe às dimensões de afeto, coletividade e
solidariedade, essenciais para a sobrevivência das democracias.
Para uma compreensão das ressignifcações discursivas, partiremos
de casos concretos, de sujeitos sociais que teoricamente deveriam se dis-
tanciar do pensamento conservador, mas passaram não apenas a se identi-
ficar com ele, como também se tornaram representantes desse pensamento.

A identidade conservadora: o caso Alexandre Frota

Alexandre Frota de Andrade é carioca, nascido em 14 de outubro de


1963, e tornou-se figura pública na década de 1980 ao atuar em novelas
de grande audiência da Rede Globo de televisão: interpretou os persona-
gens Cecílio, em Livre para voar (1984); Luizão, em Roque Santeiro (1985);
Apolo, em Sassaricando (1986-87); e Raul, em Top Model (1989). Em 1986,
casou-se com Maria Cláudia Motta Raia, popularmente conhecida como
Claudia Raia, atriz com que fazia par romântico na novela Sassaricando.
O casal se divorciou em 1989.
Na década de 1990, atuou em novelas como Boca do Lixo (1990),
Perigosas Peruas (1992) e Cara e Coroa (1995). No início dos anos 2000,
radicou-se em Portugal, onde fez apresentações de strip-tease e esteve no
espetáculo Sex Fever. Participou de reality shows no Brasil e em Portugal.
Em 2001, tornou-se empresário do grupo de dançarinas Funk Sex; em
2004, assinou contrato para atuar em filmes pornográficos da produtora

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Brasileirinhas. Além disso, Frota posou nu para quatro edições da revista


G-Magazine e foi usuário de drogas ilícitas como cocaína, maconha e ecs-
tasy (PEIXOTO, 2013).
Em tese, esta breve biografia de Alexandre Frota em nada se parece
com uma vida conservadora (ao menos em público). Ainda que soe contra-
ditório, Alexandre Frota elegeu-se deputado federal por São Paulo com um
discurso de “paladino da moralidade”, combatente da “ditadura comunis-
ta” que o Partido dos Trabalhadores (PT) almejava instalar no Brasil.
Frota teve como mérito compreender a guinada conservadora bra-
sileira em meados da década de 2010. Em associação com o empresário
Vinicius Aquino, registrou a marca Movimento Brasil Livre (MBL)1. Nos
protestos pró-impeachment de Dilma Rousseff (PT), Alexandre Frota tor-
nou-se “notória” personalidade entre os adeptos dos grupos Vem Pra Rua,
Solidariedade, Endireita Brasil e Revoltados On Line. São recorrentes as
entrevistas e imagens do ator na Avenida Paulista fazendo discursos con-
tra o governo do PT, em defesa dos “valores antigos” e “tradicionais” e
denunciando a doutrinação ideológica nas escolas. Em entrevista à revista
Época, o recém-eleito deputado federal afirma:
Ninguém transitou mais no mundo LGBT do que eu – e sou
chamado de homofóbico, por incrível que pareça. Só não acei-
to que crianças sejam doutrinadas com pautas ideológicas. O
resto, está valendo tudo. Cada um sabe o que está fazendo com
sua vida (REVISTA ÉPOCA, 15 out. 2018).

Em importante reflexão, o pesquisador Luís Felipe Miguel, profes-


sor da Universidade de Brasília (2018), fornece elementos para compre-
endermos a paradoxalidade do recuo para o conservadorismo moral em
situações de refluxo nas conquistas sociais. Miguel elencou a insegurança
causada pela crise econômica vivida (2008) e a precarização e o desmonte
dos sistemas de bem-estar social como elementos que contribuíram para
a ascensão do discurso conservador como estabilidade. Em tese, os indiví-
duos em situação de vulnerabilidade (desempregados, que perderam o po-
der econômico ou passam por privações) apelam para os sistemas rígidos
que as crenças fornecem, como uma “espécie de compensação subjetiva
que é relevante para explicar a virulência renovada dos fundamentalismos
morais” (p. 42). Diante desse cenário, parte da direita política ocidental
instrumentalizou o conservadorismo moral como ferramenta de mobiliza-
ção. A produção do pânico moral surge como uma narrativa que busca dar
soluções e explicações para os problemas sociais.

1 - Também pertence a Aquino a marca do boneco inflável conhecido como Pixuleco, uma caricatura do ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva com roupas de presidiário.

154
DEMOCRACIA E AGONISMO

Alexandre Frota compreendeu o cenário e se posicionou como legí-


timo representante das temáticas morais; em seu discurso, se coloca como
indivíduo que conhece o “universo imoral”, uma vez que “ninguém tran-
sitou mais no mundo LGBT do que eu (...)”, e passa a assumir posições em
defesa dos “bons costumes” e dos “inocentes” – “só não aceito que crianças
sejam doutrinadas com pautas ideológicas” –, ao passo que ainda defende
os direitos individuais: “o resto, está valendo tudo. Cada um sabe o que
está fazendo com sua vida”.
Deste modo, a vida pregressa de Alexandre Frota – sua atuação em
filmes pornográficos gays, o histórico de dependência química, as polêmi-
cas com colegas de trabalho, a acusação de estupro de uma mãe de santo,
entre outros tantos desagravos – é, na ordem discursiva, ressignificada a
partir das lentes sobredeterminadas dos sujeitos. Frota passa, portanto,
a ser compreendido como alguém que possui know-how para combater o
avanço das imoralidades difundidas pela “esquerda”, tornando-se repre-
sentante legítimo do conservadorismo.
A aceitação de Alexandre Frota neste papel se assenta na ressignifi-
cação de “salvação cristã” propagada pelo neopentecostalismo brasileiro.
No catolicismo, o arrependimento dos pecados, de modo geral, envolve
etapas que vão do reconhecimento à confissão e à renúncia, até chegar
ao perdão divino pelas faltas cometidas – que se efetiva no sacramento da
penitência e da reconciliação, em que o pecador busca auxílio da instituição
(igreja/padre) como meio para salvação. Enquanto no catolicismo a sal-
vação é coletivizada, envolvendo o padre e, dependendo da gravidade do
pecado, penitências com a exposição do pecador aos demais fiéis, no ne-
opentecostalismo brasileiro a experiência da “graça da salvação” é priva-
tizada e se caracteriza por uma espiritualidade de consciência individual:
“a salvação não é um empreendimento de uma coletividade de fé, mas uma
realização pessoal e individual” (FIEGENBAUM, 2017, p. 284).
Alexandre Frota “despertou para a salvação” após uma experiên-
cia espiritual em 2006, quando ficou internado por dez dias devido a uma
broncopneumonia; nesse período, segundo o ator, ele teve um “encontro
com Deus” – desde então, abandonou a indústria pornográfica e passou
a frequentar igrejas evangélicas, especialmente a Igreja Bola de Neve no
bairro de Perdizes, em São Paulo (PEIXOTO, 2013). Frota, portanto, alcan-
çou a salvação e se purificou da vida pregressa e mundana, alcançando a
legitimidade para defender o conservadorismo.
Uma das razões para o crescimento do neopentecostalismo brasilei-
ro é sua plasticidade e adaptabilidade aos princípios capitalistas. O misti-
cismo e a espiritualidade ofertados pelo neopentecostalismo não primam
pela ação social e pelo coletivismo, mas pela valorização da potencialidade

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

individual. O progresso material é visto como recompensa divina e os va-


lores conservadores são compreendidos como elementos de estabilidade.
O neopentecostalismo brasileiro é o desdobramento de um sistema
complexo de ideias e visões de mundo em que fé e Estado deveriam andar
juntos. Nos regimes democráticos, pressupõem-se pluralidades e diversi-
dades de opiniões, sexualidades, credos e comportamentos. O fundamen-
talismo cristão torna-se elemento agônico dos regimes democráticos, uma
vez que nega o antagônico, classifica o outro como “mundano” de com-
portamentos nocivos e busca a homogeneização de hábitos como forma de
salvar os indivíduos da degeneração moral.

A identidade conservadora: os traficantes

O fundamentalismo tem por base a ideia de certeza, de posse da


verdade absoluta. As interpretações das práticas fundamentalistas comu-
mente geram a intolerância e a violência. Na história da humanidade, são
incontáveis os casos de violência e intolerância religiosas.
No Brasil, nas últimas décadas, notoriamente se constata a expan-
são das religiões neopentecostais nas periferias das cidades. A cosmolo-
gia adotada pelos pastores remete às “batalhas espirituais” entre Deus e o
diabo, do bem contra o mal. Na retórica discursiva, emprega-se uma ideia
de “combate ao inimigo”, de “exército do senhor”, de “guardiões da fé”. O
linguajar bélico foi bem recebido na comunicação das igrejas com os fiéis
das zonas urbanas mais pobres. Segundo Alba Zaluar (2004), a construção
no senso comum de uma visão do mal e da crença no demônio tornou-se
uma “forma primitiva” de bodes expiatórios para os problemas cotidianos.
Quando são os outros os culpados pelo mal que nos atinge
e quando as crenças são transcendentes ou absolutizadas, a
ideia do mal vem associada à demonologia e à classificação
dos inimigos, dos rivais, dos estranhos e dos diferentes como
agentes do demônio. Muitas vezes, nesses casos, os inimigos
não passam de bodes expiatórios que devem ser sacrificados
para que a ordem ameaçada, supostamente pela presença de-
les, possa vigorar novamente (ZALUAR, 2004, p. 38).

Outro aspecto importante a ser destacado na popularização das igre-


jas neopentecostais é a promoção do acolhimento: os “irmãos de fé” criam
uma rede de solidariedade e proteção, envolvendo afetividade e confiança
entre seus membros. Em geral, as zonas periféricas são ambientes hostis,
cuja presença do Estado está mais ligada à repressão do que à promoção de
bem-estar social. O periférico, geralmente habituado ao ambiente violento
e inseguro, se vê às voltas com um novo habitat, mais acolhedor. As igre-
jas, portanto, geram círculos de reciprocidade que favorecem não apenas

156
DEMOCRACIA E AGONISMO

as relações afetivas, mas também materiais. O fiel passa a experienciar a


igreja não só no seu sentido espiritual, como também no aspecto familiar
e econômico (CUNHA, 2009).
Neste contexto, até mesmo agentes sociais que, por seu estereótipo,
estariam distantes da religiosidade evangélica neopentecostal são abarca-
dos pela “nova fé”, a exemplo dos traficantes nas favelas do Rio de Janeiro.
A partir da década de 1990, o Estado passou a intervir com maior
rigor nas periferias brasileiras, com destaque para as favelas cariocas. No
contexto da política de “guerra às drogas”, houve inúmeras ocupações po-
liciais.2 A intervenção na favela de Acari, ocorrida em 1995, foi tema de
estudo da antropóloga Christina Vital da Cunha (2009), que nos traz ele-
mentos para pensarmos a complexa relação entre a religiosidade neopen-
tecostal e traficantes de drogas nas favelas cariocas.
Durante a ocupação da favela de Acari, os policiais não ignoraram
a importância dos muros, portões e outdoors, que serviam como instru-
mentos privilegiados para a comunicação entre os traficantes e a comu-
nidade. Nesse espaço, assim como os traficantes faziam, os agentes da lei
passaram a registrar mensagens para organizar as atividades rotineiras
da localidade (como coleta de lixo, divulgação de festividades, etc.), ho-
menagear os “manos” e demarcar posicionamentos de crenças e valores.
Com a intervenção da “nova ordem local”, os policiais destruíram pintu-
ras e altares de santos e, em seu lugar, colocaram imagens de Jesus Cristo
e de versículos bíblicos (CUNHA, 2009).
Em um novo contexto, o das favelas cariocas, mais especifica-
mente o da favela de Acari na década de 1990, o enfrentamento
dos “marginais” do momento, os traficantes de drogas, passava
pela desfiguração e destruição de diferentes símbolos religiosos
da umbanda, do candomblé e do catolicismo popular por eles
idealizados e/ou financiados. Essas destruições promovidas por
policiais pareciam comunicar que o domínio armado exercido
nos limites daquela favela passara dos traficantes de drogas aos
policiais, ao Estado e, conforme sugeriam os novos símbolos
impostos pelos policiais, a Jesus (CUNHA, 2014, p. 71).

Para Cunha (2014), foi possível observar como estratégia do Estado a


associação dos “bandidos” às entidades afro e a dos “mocinhos” a Jesus; a
ocupação seria uma “intervenção divina” e pacificadora, tudo “em nome de

2 - No início dos anos 1970, o governo Richard Nixon (EUA) lançou um conjunto de políticas de combate aos narcóticos
e ao narcotráfico que iam de reformas na legislação até ajuda e intervenção militar em países da América Latina. Tais
medidas ficaram conhecidas como “Guerra às Drogas”. Essa doutrina foi responsável por políticas de intervenção nas
favelas de todo Brasil, em especial no Rio de Janeiro e em São Paulo, e por balizar a Lei de Drogas (Lei 11.343/2006).
Segundo o relatório do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), em 2017, só os estados de São Paulo e Rio
de Janeiro gastaram, juntos, R$ 5,2 bilhões para aplicarem a Lei de Drogas. Disponível em: https://cesecseguranca.com.
br/wp-content/uploads/2018/04/ObservatorioInterve%C3%A7ao-PPT-26.04.2018-compressed.pdf.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Deus”. Entretanto, ao longo dos anos 1990, “os bandidos voltaram ao controle
ostensivo do território; a ocupação policial acabou, mas Jesus ficou” (p. 71).
A pesquisadora não associa a atuação dos policiais como responsá-
vel direta pelo crescimento evangélico neopentecostal na favela. Todavia,
a imposição simbólica da religiosidade cristã em detrimento das práticas
religiosas outrora presentes e a associação dos traficantes às religiões de
matriz africana marcaram, de modo emblemático, uma mudança significa-
tiva nas mentalidades. Quanto à dominação do neopentecostalismo sobre
as demais religiosidades, o fenômeno se observa ao longo das primeiras
décadas do século XXI.
Ainda em referência à pesquisa de Cunha (2009, 2014), para os tra-
ficantes convertidos, estar na igreja, frequentar os cultos e participar das
campanhas religiosas modernizou as práticas sociais e pecuniárias. A
“nova fé” estimulava o controle dos impulsos violentos e a programação
financeira. Observou-se entre os “traficantes evangélicos” o progresso ma-
terial (individual); a mudança no comportamento mais capitalista estimu-
lou o acúmulo e a aquisição de bens fora da favela. Aos “novos cristãos”, os
pastores orientavam “guardar e largar essa vida”; a “teologia do domínio”
e da “batalha espiritual” transformaram os traficantes em “soldados do
senhor”, com a possibilidade de “redenção dos pecados”, ao mesmo tempo
que poderiam “mudar de vida” com acumulação de capital – essas benesses
seriam recompensas aos serviços prestados na “cruzada evangelizadora”.
Nesse cenário, estabeleceu-se uma relação de interesses e recipro-
cidades entre o neopentecostalismo e os traficantes. De um lado, a igreja
oferecia conforto moral e uma rede de contatos e proteção por meio dos
irmãos de fé. O discurso beligerante de “guerra santa” passou a conferir
respaldo moral aos traficantes convertidos, que embora ainda exercessem
atividades ilícitas, em tese incompatíveis com a vida cristã, estariam a ca-
minho da redenção e, portanto, da salvação. Por outro lado, a autoridade
dos traficantes dentro das favelas conferia aos pastores poder e influência
junto à comunidade. Neste contexto, por meio dessas alianças, as lideran-
ças evangélicas se tornaram expressiva força religiosa e política, seja no
âmbito das favelas, seja no âmbito municipal (CUNHA, 2009).
Capítulo à parte da aliança, os traficantes convertidos em “guerrei-
ros de Jesus” passaram a compreender a cosmologia das religiões de ma-
triz africana como o “mal encarnado”. Logo, com vistas à redenção dos
seus atos e em busca da purificação, os traficantes passaram a exercer coa-
ção sobre os terreiros, expulsando das comunidades mães e pais de santo e
proibindo qualquer manifestação religiosa que não fosse a cristã.
Compreendemos a guinada conservadora do deputado Alexandre
Frota e a conversão dos traficantes em “guerreiros de Jesus” como exem-

158
DEMOCRACIA E AGONISMO

plos – entre outras questões – do aprofundamento da identidade conser-


vadora nas democracias. O recrudescimento do engajamento conservador
pode ser compreendido, também, como reação ao avanço das pautas pro-
gressistas identitárias ocorrido ao longo das duas primeiras décadas do
século XXI. Em geral, o engajamento do indivíduo (ou de seus grupos) com
o discurso conservador nasce de um ambiente social violento, que rejeita o
debate público e exalta os aspectos do privado. Esse desapego em relação
à vida política é um sinal claro “de uma perigosa erosão dos valores demo-
cráticos” (MOUFFE, 1996, p. 157).
Voltando o olhar para o caso macropolítico brasileiro, a polarização
entre PT e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), a partir da
década de 1990 até 2018, e, consequentemente, a divisão entre “esquerda”
e “direita” giravam em torno das identidades políticas de apoio ou não
à agenda econômica neoliberal; a pauta de costumes, muitas vezes, con-
vergia entre os polos. Posições mais autoritárias, como a volta do regime
militar e o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Fe-
deral, bem como a adoção de uma agenda moralizadora, eram discussões
marginalizadas que, em episódios isolados, tomavam conta do debate da
opinião pública.
Especificamente no campo da “direita”, do partido governista duran-
te o regime militar – a Aliança Renovadora Nacional (Arena) – surgiram o
Partido Progressista (PP) e o Partido da Frente Liberal (PFL), renomeado
em 2007 como Democratas (DEM). Os herdeiros da Arena tiveram um pa-
pel de partidos auxiliares, tanto na gestão do governo Fernando Collor de
Mello (1990-92) como nos governos tucanos de Itamar Franco e Fernando
Henrique Cardoso (1992-2002). Em tese, a direita, com uma agenda mais
conservadora e autoritária, parecia ter ficado “velha” e “escanteada” em
detrimento de uma “nova” direita, mais identificada com os princípios
democráticos e liberais, consolidada no PSDB – partido que nasceu em
1988 como dissidência do Partido do Movimento Democrático Brasileiro
(PMDB), que foi oposição à Arena.
Compreendemos que a cooperação entre a “velha” e a “nova” direita
acabou sendo instrumento de sobrevivência eleitoral para os “caciques” do
PFL/DEM e do PP; em contrapartida, garantiu a governabilidade das gestões
do PSDB. Ao mesmo tempo, a esquerda brasileira passou a crescer progres-
sivamente no campo político eleitoral desde as eleições municipais de 1988,
com vitórias em grandes cidades como São Paulo (SP), Porto Alegre (RS) e
Vitória (ES); posteriormente, registrou sua expansão por toda a região Nor-
deste, que tradicionalmente era controlada pela “velha” direita, culminando
em 2002 com a vitória de Luís Inácio Lula da Silva na eleição presidencial.

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Leno Francisco Danner
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A reorganização do campo da direita política ocorreu como reação


ao progressivo crescimento institucional da esquerda. O discurso “mode-
rado” tucano foi suplantado por uma “direita radical” que resgatou as di-
mensões do autoritarismo e do neoliberalismo, temas que até então esta-
vam adormecidos no debate público.

Bolsonaro, conservadorismo e neoliberalismo

Ao pensar as raízes do Brasil, o historiador Sérgio Buarque de Holanda


escreveu que a “democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-enten-
dido”. Em perspectiva histórica, a cultura política brasileira carrega como
características o autoritarismo e o pouco apreço aos valores democráticos.
No Brasil Republicano (a partir de 1889), a pacificação da gestão do
Estado ocorreu após a arquitetura política de Campos Salles, conhecida
como política dos governadores, que, basicamente, era um acordo centra-
do no compromisso presidencial com as oligarquias dominantes nos esta-
dos, estabelecendo troca de favores e privilégios por votos.
Ao longo da história, nossas elites políticas têm governado autori-
tariamente, por meio de inúmeras estratégias de perpetuação do poder –
do controle e da manipulação de eleições por intermédio dos “coronéis” e
suas relações clientelistas até a convocação das forças armadas com vistas
à suposta manutenção da ordem. À medida que o pensamento autoritário
se faz presente nos mais variados aspectos do cotidiano, passou a ser na-
turalizado e reproduzido. O autoritarismo está de tal forma enraizado na
cultura política brasileira que até mesmo o modo como a sociedade conce-
beu a cidadania foi à base do “porrete”.
A cidadania inglesa, na conhecida análise de E. P Thomp-
son, foi construída em cima de um profundo sentimento de
liberdade; a francesa assentou nos princípios da liberdade, da
igualdade, da fraternidade; a norte-americana emergiu das
comunidades livres da nova Inglaterra. A Brasileira foi im-
plantada a porrete. O cidadão brasileiro é o indivíduo que, na
expressão de Ferreirinha, tem o gênio quebrado a paulada, é
o indivíduo dobrado, amansado, moldado, enquadrado, ajus-
tado ao seu lugar. O bom cidadão não é o que se sente livre
e igual, é o que se encaixa na hierarquia que lhe é prescrita
(CARVALHO, 1999, p. 307).

No Brasil, o conceito de “bom cidadão” não está necessariamen-


te ligado à noção de liberdade e igualdade, mas àquele indivíduo que se
encaixa à força na hierarquia que lhe é prescrita, aceitando docilmente
sua posição social. Florestan Fernandes (1979) defendeu a tese de que o
autoritarismo brasileiro se configurou a partir do imbricamento de rela-
ções de submissão-dominação que foram sistematicamente incorporadas

160
DEMOCRACIA E AGONISMO

às instituições, às estruturas e aos sistemas de pensamento. A manifes-


tação de sua força ocorre em conjunturas adversas (momentos de crises);
quando os interesses socioeconômicos e políticos das classes dominantes
sofrem algum tipo de ameaça, automaticamente o autoritarismo se sobre-
põe como forma de autodefesa.
Analistas como D. Harvey (2008), P. Mirowski (2013), P. Dardot e
C. Laval (2016) se debruçaram sobre os mais variados casos e tempos das
crises do capitalismo. Em comum, é possível notar um padrão de com-
portamento autodefensivo capitalista quando suas contradições saem do
controle e ameaçam a ordem vigente. Os agentes econômicos (mercado)
intervêm no Estado para a manutenção do sistema, e não para sanar as
graves questões sociais; foi assim na crise de 1929, com o New Deal, ou
na crise do subprime, em 2008 – quando o Estado operou transferências de
recursos públicos para nichos privados por meio de estímulos à produção
e ao consumo. Ou seja: através de empréstimos a bancos e diversas corpo-
rações, coube ao Estado evitar a falência do sistema financeiro.
É interessante notar que as intervenções não ocorrem somente no
campo das macroestruturas econômicas: a disputa também se dá em re-
lação ao imaginário social. O capitalismo em crise opera na difusão retó-
rica do mercado como mecanismo impessoal de regulação social e eco-
nômica, na medida em que, em tese, todos os indivíduos estão sujeitos à
lei do valor; ou seja, no próprio mercado estaria a solução para as crises
criadas por ele mesmo.
Os impactos da crise econômica e financeira de 2008 geraram no
Brasil um discurso híbrido entre o modelo neoliberal e o protofascismo.
Suas primeiras manifestações aconteceram nas jornadas de junho de 2013.
Inicialmente, os protestos ocorreram na cidade de São Paulo contra o au-
mento de R$ 0,20 nas tarifas do transporte público; contudo, as manifesta-
ções se avolumaram em todo país e a pauta se expandiu de maneira amor-
fa. As contestações não eram mais apenas pelos “20 centavos”, mas contra
os casos de corrupção e o abandono dos serviços públicos. Embora o movi-
mento nascesse de uma justa reivindicação, fora “sequestrado” por grupos
minoritários neoconservadores que demonizavam a política, o Estado e
seus agentes públicos. Logo, as marchas passaram a exigir o impeachment
da então presidente Dilma (do PT, um partido de “esquerda”) e a implanta-
ção de um governo baseado na meritocracia e no individualismo.
Ao longo de quase duas décadas, os governos petistas implantaram a
estratégia de “conciliação de classes”, cujos alicerces estavam num contexto
macroeconômico marcado pelo crescimento com estabilidade monetária e
de inflação controlada. Socialmente, observou-se a geração de empregos e
a diminuição da desigualdade pessoal e de renda. No campo político, des-

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Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

tacou-se a retomada do papel do Estado como coordenador de planos de


investimento (DE BRITO, 2019, p. 254). Entretanto, no terceiro trimestre de
2008, a crise financeira internacional do subprime atingiu a economia brasi-
leira, desarticulando a arquitetura da “conciliação de classes”.
A economia brasileira foi impactada primeiramente nas suas
contas externas, causando queda tanto na quantidade como no
valor das exportações e levando também a uma grande saída
de capitais. Isso resultou em uma forte desvalorização cam-
bial. Frente a esse cenário, grandes empresas e bancos foram
negativamente afetados, pois encontravam-se alavancados
financeiramente e, assim, vulneráveis, sobretudo, em relação
a uma grande desvalorização cambial. Em seguida, os bancos
privados brasileiros contraíram a oferta de crédito e as expec-
tativas se deterioraram, principalmente a desconfiança sobre
os desdobramentos da crise, fazendo com que os agentes eco-
nômicos brasileiros adiassem decisões de consumo, produção
e investimento (RAMOS, 2015, p. 14).

Entre os impactos da crise, destacamos a queda na produção indus-


trial e o consequente aumento da taxa de desemprego. Após décadas de
estabilidade monetária, parte do setor industrial nacional aportou em con-
tratos de derivativos ligados à cotação do dólar em relação ao real. Desde
2004, a moeda americana vinha se desvalorizando, chegando a valer R$ 1,57
no terceiro trimestre de 2008. Contudo, com a crise, em agosto do mesmo
ano, o dólar apreciou-se fortemente, saltando para R$ 2,60 em apenas um
mês. A desvalorização do real frente à moeda estadunidense fez com que
as empresas que possuíam contratos de derivativos atrelados ao preço do
dólar fossem impactadas negativamente – a exemplo da Sadia, empresa
do ramo alimentício, que registrou prejuízo de R$ 2,5 bilhões em apenas
um trimestre, o que provocou o fechamento de várias de suas unidades de
produção (BUSNARDO, 2012).
Os efeitos da crise de 2008 perduraram por mais de uma década, e
foram agravados em 2020 com a pandemia de covid-19. A retração da ati-
vidade econômica e o desemprego geraram um cenário político de iden-
tificação da opinião pública com o discurso conservador/neoliberal como
saída para a crise. As eleições presidenciais de 2018 foram marcadas pelo
recrudescimento do conservadorismo. A campanha vitoriosa de Jair Mes-
sias Bolsonaro recebeu apoio do mercado financeiro e do setor empresa-
rial, especialmente do agronegócio, convencidos pelas promessas de Paulo
Guedes de realizar a reforma da Previdência e de “reduzir” a participação
do Estado na economia.
Durante a campanha eleitoral, em agosto de 2018, o então candidato
do Partido Social Liberal (PSL, ao qual foi filiado até 2019) apresentou o
documento chamado O caminho da prosperidade, que ao longo de suas

162
DEMOCRACIA E AGONISMO

81 páginas prometia salvar o Brasil da “corrupção” e da “ineficiência”. O


programa de governo era marcado pela junção dos pensamentos (neo)libe-
ral, conservador e autoritário. Entre as propostas, destacavam-se a reforma
previdenciária, a flexibilização das leis trabalhistas com a “carteira verde
e amarela”, a redução da dívida pública, a realização de privatizações, a
constituição de novos acordos bilaterais – especialmente com os EUA –,
a redução da maioridade penal, a legalização do porte de armas de fogo, a
tipificação como terrorismo da tomada de propriedades rurais (por Traba-
lhadores Sem Terra) e a expansão das escolas militares.
A vitória eleitoral de Bolsonaro foi o resultado de circunstâncias
conjunturais e de processos estruturais: economicamente, o desdobra-
mento da crise de 2008; socialmente, os protestos de 2013; e politicamen-
te, a polarização entre esquerda e direita nas eleições de 2014, aprofunda-
da com o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, cujo desdobramento
mais recente foi a eleição de 2018 – não apenas do presidente da Repú-
blica, mas de governadores, deputados e senadores identificados com a
pauta conservadora.
A gestão de Bolsonaro, assim como a de outros governantes latino-
-americanos, tem como marca a tríade de valores: privatização, militari-
zação e teocratização política. Compreendo o conservadorismo como a
principal resultante de diferentes forças políticas que atuam no cenário
da crise. Numa tomada mais geral, a crise brasileira se aprofundou com a
pandemia de covid-19; estamos diante não apenas de uma crise política,
que em parte decorreu da crise econômica, mas de uma crise que ques-
tiona os principais valores democráticos. Portanto, estamos diante tam-
bém de uma crise moral e identitária. Parafraseando a canção da Legião
Urbana, “que país é esse?”.

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7
Criticismo social como práxis
política: teoria social crítica,
participação política e transformação
social-institucional
Leno Francisco Danner
Fernando Danner
Agemir Bavaresco

O objeto, a práxis e o sujeito da crítica

A indissolúvel ligação entre teoria e prática é a base a partir da qual


a abordagem em ciências humanas e sociais é estruturada, dinamizada e
definida. Isso significa que se teoriza para politizar e se politiza para te-
orizar, em um movimento imbricado e mutuamente dependente que não
admite um estilo de objetividade científica muito comum – mas também
muito problemático – no que diz respeito à constituição e ao funcionamen-
to do campo das ciências naturais e por parte delas. No caso, a profunda
politização da teoria social e a profunda teorização da política cotidiana
demonstram o quanto, para além daquele pouco claro ideal de objetividade
científica próprio às ciências da natureza, é importante e necessário poli-
tizar-se radicalmente o exercício teórico de enquadramento, interpretação
e fundamentação da Realpolitik, ao mesmo tempo em que se a teoriza efe-
tivamente, posto que ela não é um exercício espontâneo, desinteressado e
irreflexivo, sua constituição, legitimação e dinamização ao longo do tempo

167
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

não acontecem por acaso, senão que são resultado de ação reflexiva e in-
tencionada, de uma práxis que possui carnalidade e politicidade. Ora, isso
nos leva a percebermos a centralidade dos três momentos fundamentais,
dos três passos metodológico-programáticos basilares para a constituição
e para a realização do criticismo social enquanto práxis política: o objeto da
crítica, a práxis da crítica e o sujeito da crítica, que são (a) o campo do polí-
tico, isto é, a esfera da reprodução sociocultural, (b) o tipo de ação e/ou ca-
minho assumido politicamente para tal (e certamente o tipo de política que
poderia enquadrar, interpretar e transformar o horizonte da reprodução
sociocultural, a assim chamada Realpolitik) e (c) o sujeito epistemológico-
-político da práxis política, da transformação social. A tematização desses
três momentos imbricados e mutuamente dependentes também pressupõe
e implica no fato de que o âmbito teórico-político das ciências humanas
e sociais é normativo, ético-político, não cabendo aqui neutralidade, for-
malidade, imparcialidade e impessoalidade, muito menos tecnicalidade –
trata-se de um ideal regulador, este da neutralidade axiológica, da técnica
pura em termos de pesquisa e da impessoalidade do sujeito epistêmico-
-político, que não se coaduna com a pungência e a dramaticidade das lutas
sociais e dos sujeitos políticos em termos de Realpolitik, que não faz jus à
politicidade-carnalidade dos sujeitos epistemológico-políticos e de suas
lutas sociais em termos de Realpolitik.
O primeiro ponto central para entendermos o sentido, a constituição
e a dinamização do criticismo social, portanto, consiste na intrínseca cor-
relação e mútua dependência entre epistemologia e política, entre teoria e
prática, conforme dissemos acima, correlação e dependência entre teoria e
prática que representam uma já clássica noção na filosofia e na sociologia
acadêmicas desenvolvidas na Europa entre os séculos XIX e XX, e assumi-
das ainda hoje como mote basilar das investigações sociais e da fundamen-
tação-dinamização do campo do político por posições como a Escola de
Frankfurt (Adorno, Horkheimer, Marcuse, Habermas, Honneth, Forst, Ja-
eggi, Brunkhorst etc.) e a filosofia francesa contemporânea (Bataille, Fou-
cault, Derrida, Sartre etc.), principalmente quando se fala na continuação
daquela tradição filosófico-sociológica, profundamente imbricada com
movimentos políticos e revoluções sociais (pense-se na correlação esta-
belecida entre a filosofia francesa do século XVIII e a Revolução Francesa
de 1789, assim como na profunda conexão entre marxismo e movimentos
proletários desde meados do século XIX em diante ou mesmo o mútuo
suporte entre marxismo e Revolução Russa de 1917, ou o maio de 1968 e a
filosofia franco-alemã), assim como teorias pós-coloniais e decoloniais e
os movimentos de emancipação latino-americanos e africanos, e as teorias
ligadas às minorias – feministas, queer – e as lutas de grupos marginaliza-

168
DEMOCRACIA E AGONISMO

dos que elas embasam, representam, assume, como mulheres e LGBTTs).


Por outro lado, não podemos nos esquecer que criticismo social e atua-
ção epistemológico-política cotidiana engajados fazem parte de qualquer
sociedade-comunidade: um exemplo, explicitado de passagem logo acima,
pode ser percebido nos movimentos emancipatórios latino-americanos e
africanos e, mais especificamente no âmbito da filosofia, na vasta e muito
profícua tradição da filosofia latino-americana e africana em termos de
tematização-entendimento da situação-sujeito periférico e colonizado, in-
clusive como uma reação às posições epistemológico-políticas produzidas
no âmbito da filosofia e da sociologia europeias (cf.: BONDY, 1968; DUS-
SEL, 1993, 1998; FANON, 1968; MBEMBE, 2001, 2014). Outro exemplo, já
comentado acima, é o das mulheres e dos grupos LGBTTs, que se utilizam
de teorias feministas e queer para fundamentar sua voz-práxis (cf.: BENHA-
BIB; CORNELL, 1987; BUTLER, 2003, 2004; BUTLER; CORNELL, 1998;
FRASER, 2013; HAGGERTY; IRIGARAY, 1992; MCGARRY, 2007; RILEY,
1988; SCOTT, 1992; YOUNG, 1990). De todo modo, estes exemplos querem
ressaltar exatamente o fato de que epistemologia e política, o teorizar e o
agir se assim se quiser, se fazem como práxis cotidiana e por sujeitos epis-
temológico-políticos cotidianos em suas lutas por hegemonia e a partir
dos contrapontos gerados por estas, em todos os lugares e sob todas as formas
e a partir de múltiplos sujeitos epistemológico-políticos.
Ora, com isso surge um segundo ponto importante em termos de
criticismo social, que é o fato de que, para utilizar um termo de Thomas
Piketty em seu magnífico O capital no século XXI, tudo é político, tudo é
política (PIKETTY, 2014, p. 27). Com efeito, como vimos dizendo, o âmbi-
to, a dinâmica e o sujeito da atuação crítica situa-se na práxis que tem sua
gênese e sua incidência e seu mote na Realpolitik, a partir da tematização-
-participação de sujeitos epistemológico-políticos que questionam formas
de status quo, estruturações institucionais e práticas sociais intersubjetivas
consideradas injustas – daí o sentido político-normativo da Realpolitik, da
práxis teórico-política e, evidentemente, dos sujeitos epistemológico-polí-
ticos dessa mesma Realpolitik. Aqui, o fundamento de todo e qualquer cri-
ticismo social consiste na politização efetiva, total por assim dizer, de todo
o campo societal-cultural-institucional, de suas dinâmicas e de seus sujei-
tos epistemológico-políticos. Só se pode criticar algo porque ele é político
(e não técnico e/ou essencialista e naturalizado), assim como só se pode
criticar e agir teórico-politicamente ao reconhecer-se tanto a existência de
sujeitos epistemológico-políticos que constroem-dinamizam-determinam
designs institucionais e rumos da evolução social quanto o fato de que, por
causa disso, esse campo societal-cultural-institucional é construção coti-
diana não-neutra, não-imparcial e não-impessoal, dependente das lutas

169
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

sociais entre sujeitos epistemológico-políticos com alcance macro, com


sentido estrutural, superdimensionado. Portanto, aqui, a politização plena
da sociedade, das instituições e dos sujeitos epistemológico-políticos recusa
diretamente a evolução-constituição espontânea da sociedade, a impessoa-
lidade-formalidade-neutralidade dos sujeitos epistemológico-políticos e o
sentido lógico-técnico, não-político e não-normativo das instituições – re-
cusa, inclusive, qualquer sentido essencialista e naturalizado dessas insti-
tuições, dos sujeitos epistemológico-políticos e da constituição-evolução da
sociedade. Em princípio, a evolução social, as lutas sociopolíticas e a estru-
turação das instituições podem ser explicadas-enquadradas-transformadas
pelas lutas sociais e seus contrapontos entre classes sociais antagônicas,
entre sujeitos epistemológico-políticos antagônicos, ou seja, ela pode ser
explicada-transformada teórico-politicamente porque ela é uma construção
dos sujeitos epistemológico-políticos da práxis enquanto sujeitos que agem
e lutam em um sentido estrutural como classes sociais. Isso quer dizer que
a evolução social e a estruturação institucional não acontecem do nada, não
são espontâneas e nem neutras e nem impessoais relativamente às classes
sociais e suas lutas por poder e por hegemonia.
Com isso, já temos alguns pontos fundamentais para pensarmos so-
bre a questão do criticismo social como imbricação e mútua dependência
entre epistemologia e política: a) ele pressupõe e aponta para a politização
total da sociedade, das instituições e dos sujeitos epistemológico-políticos,
recusando uma compreensão lógico-técnica ou instrumental das institui-
ções; b) ele concebe a compreensão, fundamentação e transformação social
como práxis teórico-política encarnada e atuante, recusando a despoliti-
zação, a espontaneidade e tecnicalidade da evolução social; c) ele afirma
que as lutas sociais entre classes sociais antagônicas são respectivamente a
arena-dinâmica e o sujeito epistemológico-político fundamental da evolu-
ção social e da estruturação institucional, recusando, como consequência, o
institucionalismo forte como arena despolitizada e impessoal para a cons-
tituição-legitimação-realização da evolução social e as elites institucionais
enquanto sujeitos imparciais, neutros, formais e impessoais basilares da
estruturação e dinamização das instituições em primeiro lugar e da evolu-
ção social em segundo; d) e ele parte da dramaticidade e da pungência tanto
dos processos de constituição-legitimação-evolução social e institucional
quanto dos sujeitos epistemológico-políticos e de seus confrontos, recu-
sando certas noções idílicas de ativismo e de representação políticos, bem
como, para utilizar um termo de Herbert Marcuse, de tolerância pura em
termos de práxis teórico-política (MARCUSE, 1970). As situações de mar-
ginalização e de opressão sociais, assim como a participação ativa dos su-
jeitos epistemológico-políticos dentro do horizonte da práxis e sob a forma

170
DEMOCRACIA E AGONISMO

de luta por poder-hegemonia, são pungentes, dramáticas e decidem sobre


as dinâmicas de evolução social e as formas de estruturação institucional,
moldando, portanto, a sociedade, suas instituições, seus códigos e suas re-
lações. Nesse sentido, o criticismo social enquanto práxis política necessi-
ta politizar a interpretação-ação, deve buscar tematizar-legitimar sujeitos
epistemológico-políticos e precisa orientar-projetar a luta-hegemonia.
Há mais uma característica fundamental do criticismo social que se
ramifica em uma dupla dinâmica: a interpretação da Realpolitik e sua con-
sequente aplicação-atuação política. Toda ação político-normativa (assim
como a ação como um todo) parte de uma interpretação do cotidiano, da
Realpolitik. Essa interpretação assume-se como verdadeira, como objetiva
em relação ao fato social patológico, ao problema político e ao sujeito epis-
temológico-político injusto ou totalitário. Da mesma forma, seu diagnósti-
co e sua proposição, assim como os sujeitos epistemológico-políticos que
esse criticismo social legitima, assumem, a partir daquela interpretação
objetiva inicial do problema e dos responsáveis pelo problema, legitimida-
de para serem impostos e realizados e, naturalmente, para agirem na práxis.
A rigor, a crítica e sua consequente ação política emancipatória creditam-
-se como justificadas seja por causa da capacidade objetiva e verdadeira do
diagnóstico, seja por causa da proposição que projeta e realiza. Da mesma
forma, o sujeito epistemológico-político da crítica-ação concebe-se como
legitimado a reivindicar-lutar contra a situação de injustiça diagnosticada,
que certamente lhe afeta ou afeta alguém do cotidiano. Ora, a interpre-
tação objetiva do fato-problema sociopolítico, a construção do diagnós-
tico e das proposições em torno a ele, além da legitimação dos sujeitos
epistemológico-políticos construtores desse diagnóstico e realizadores da
ação político-emancipatória, tudo isso constitui um dos grandes desafios
– e certamente o mais excitante dos desafios – assumido pela teoria social
e pela filosofia política, mas também pela ação cotidiana em termos de
Realpolitik ao longo do tempo. Isso abre espaço, por exemplo, conforme re-
fletiremos mais adiante, para um ideal de objetividade teórico-política que
possa ser aplicado socialmente para além da neutralidade, imparcialidade
e impessoalidade científicas em particular e institucionais de um modo
mais geral. Não por acaso, o ideal de objetividade teórico-política das lutas
sociais contrapõe-se diretamente àquele caricato método imparcial, neu-
tro, formal e impessoal próprio das ciências da natureza, assim como se
choca diretamente com um modelo político e com um paradigma normati-
vo definidos-dinamizados enquanto procedimentalismo institucional im-
parcial, neutro, formal e impessoal frente aos sujeitos sociopolíticos como
classes sociais e suas lutas por hegemonia.

171
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Ora, falamos, no parágrafo anterior, que há uma interpretação teóri-


co-política de certos problemas sociais e de certos sujeitos epistemológi-
co-políticos não-emancipatórios, por assim dizer, presentes na Realpolitik,
o que enseja, como consequência, uma ação política emancipatória dina-
mizada por sujeitos epistemológico-políticos emancipatórios – a ação é
emancipatória porque, correlatamente, como condição disso, interpreta de
maneira objetiva o fato social e os sujeitos políticos problemáticos, assim
como, enquanto consequência, legitima sujeitos epistemológico-políticos
críticos a transformarem politicamente essa mesma situação de injustiça
por meio do enfrentamento em relação aos sujeitos epistemológico-polí-
ticos não-emancipatórios. Nesse sentido, quem é o sujeito que tematiza-
-intepreta? Quem é o sujeito da crítica? O sujeito que interpreta é o mes-
mo sujeito que age politicamente? O que ele possui de especial em termos
normativos que lhe permite assumir uma interpretação crítica (porque ob-
jetiva) e realizar uma ação emancipatória e transformadora (porque moral
e normativamente justificada) em relação às patologias sociais e aos sujei-
tos epistemológico-políticos não-emancipatórios?
Primeiro: o sujeito da crítica e da emancipação é marginalizado e
violentado por estruturas societais-culturais-institucionais de opressão e
de exclusão, assim como deslegitimado por paradigmas epistemológico-
-políticos oficiais, em geral institucionalizados, por assim dizer. Dentro
destas estruturas societais-culturais-institucionais e a partir destes para-
digmas epistemológico-políticos institucionalizados, as vítimas sempre
serão vítimas, os excluídos sempre serão excluídos e a marginalização, de
um modo geral, sempre será marginalização: eles deslegitimam quaisquer
críticas, participação e transformação incisivas exatamente por apagarem
a politicidade radical e as lutas de classe próprias a cada contexto vital,
societal, cultural, institucional. Não por acaso, nesse sentido, o sujeito da
crítica é ou está compromissado diretamente com o oprimido, com o mar-
ginalizado, com o excluído, assumindo diretamente uma postura de refor-
mulação epistemológica e de oposição-luta política em relação aos grupos
sociais não-emancipatórios e aos paradigmas epistemológico-políticos
não-críticos, despolitizadores. Segundo: o excluído, marginalizado e opri-
mido apresenta, como característica especial que lhe garante potencial
de crítica e de emancipação (pelo menos para si mesmo, para seu grupo)
exatamente essa sua situação de marginalização, opressão e exclusão, que
permite um duplo passo: perceber quais estruturas institucionais, para-
digmas epistemológico-políticos e classes sociais sustentam-geram-legi-
timam tal situação de injustiça; e assumir, por causa dessa sensibilidade,
dessa carnalidade-politicidade da própria situação de injustiça, o papel de
sujeito que fala e luta teórico-politicamente contra tais estruturas institu-

172
DEMOCRACIA E AGONISMO

cionais, paradigmas epistemológico-políticos e classes sociais. O margi-


nalizado fala a partir de uma situação fática que é legitimada e realizada a
partir da Realpolitik e desde uma fundamentação epistemológico-política
assumida e realizada por classes sociais, por sujeitos epistemológico-po-
líticos de carne e osso, vivos (mais uma vez, isso prova a ligação intrín-
seca entre teoria e prática). E esse mesmo marginalizado luta a partir de
uma situação fática de opressão e de violência contra aquelas estruturas
institucionais, paradigmas epistemológico-políticos e classes sociais não-
-emancipatórios, despolitizadores.
Aqui, a objetividade e a justificação são dadas, pelo menos ao mar-
ginalizado, por causa de sua condição epistemológico-política de vítima
da marginalização, mas ao mesmo tempo de denunciante dela; de objeto
de exploração e de marginalização, mas ao mesmo tempo de sujeito da
resolução desses problemas; de sujeito epistemológico-político negado e
violentado, mas ao mesmo tempo como sujeito epistemológico-político
efetivo – provavelmente o sujeito epistemológico-político par excellence
da práxis – do criticismo e da transformação sociopolíticas. É por estar
submetido a uma situação de negação, de marginalização e de exclusão
que ele pode interpretar objetivamente, denunciar criticamente e agir po-
liticamente em relação ao contexto, ao paradigma epistemológico-político
e aos sujeitos epistemológico-políticos legitimadores, geradores e dina-
mizadores da exclusão. Isso prova novamente a necessidade que a crítica
social tem de politizar tudo radicalmente, desde estruturas institucionais
e paradigmas epistemológico-políticos institucionalizados chegando-se às
classes sociais e sua Realpolitik. E isso prova o quanto a crítica social e a
práxis política emancipatória são o discurso-práxis das vítimas da exclusão
e da marginalização, a base paradigmática que lhes possibilita expressa-
rem-se, interpretarem e agirem sobre sua situação e como contraposição
aos grupos sociopolíticos não-emancipatórios e a seus paradigmas episte-
mológico-políticos institucionalizados acríticos. Somente essa localização
e esse comprometimento com o contexto e o papel normativo-políticos
dos marginalizados e como discurso-práxis deles sobre eles mesmos po-
dem permitir-possibilitar à crítica social efetivamente reverter-se em prá-
xis política emancipatória, rompendo com e desconstruindo paradigmas
epistemológico-políticos não-emancipatórios, despolitizadores da situa-
ção do excluído-marginalizado-oprimido.
É importante salientar-se, ainda, que, conforme já delineado de pas-
sagem no início desse texto, o criticismo social enquanto práxis política
ocorre em todos os lugares e sob variadas formas, o que significa que o
sujeito da crítica enquanto sujeito da ação assume diferentes localização
sociopolíticas e se manifesta-age de múltiplos prismas: muitas vezes, a crí-

173
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

tica social é baseada em e dinamizada por convicções religiosas (por exem-


plo: Mahatma Gandhi, Martin Luther King, teologia da libertação etc.);
outras vezes, ela é uma crítica de cunho cultural (movimentos feministas
e LGBTT, maio de 68, movimentos de descolonização); e outras tantas ela
é diretamente política (pensemos na Revolução Chinesa, na Revolução
Cubana ou nas já citadas Revolução Russa e Revolução Francesa etc.). Ora,
a multiplicidade dos sujeitos epistemológico-políticos da práxis e como
práxis significa, consequentemente, a multiplicidade de caminhos e de es-
tratégias programático-políticas no que diz respeito à fundamentação e à
realização correlata e mutuamente dependente da crítica social e da ação
política. Múltiplos são os caminhos do enquadramento crítico das situa-
ções de injustiça e dos sujeitos epistemológico-políticos não-emancipató-
rios, variadas são as lutas sociais, heterogêneas são as formas de fala-ação
dos excluídos. Essa dupla e imbricada condição – pluralidade de sujeitos
epistemológico-políticos e de sua práxis crítico-emancipatória – foi com
razão explicitada por muitas posições filosófico-sociológicas contemporâ-
neas, desde as já citadas Escola de Frankfurt e filosofia francesa contem-
porânea e teologia da libertação e filosofias latino-americana e africana,
passando-se pela filosofia feminista e pela teoria queer e chegando-se ao
liberalismo político contemporâneo, com sua controvérsia em torno ao co-
munitarismo e ao individualismo. Nota-se, aqui, que a crítica social é plu-
ral por causa da multiplicidade de sujeitos epistemológico-políticos e de
suas manifestações, o que significa um poderoso incremento no que tange
a se constituir teorias sociais críticas e ações políticas emancipatórias, que
já não encontram mais apenas um sujeito epistemológico-político como
seu destinatário e nem se processam-dinamizam apenas de um modo. O
sujeito epistemológico-político excluído é plural, suas vozes são plurais,
assim como suas lutas – talvez aqui esteja, diga-se de passagem, uma das
estratégias fundamentais das lutas sociais contemporâneas, no sentido de
que poderiam buscar com cada vez mais intensidade a aglutinação desses
múltiplos sujeitos epistemológico-políticos excluídos, com seus contextos
plurais seja de exclusão, seja como potencial de crítica e de libertação,
possibilitando-se um concerto entre suas lutas mais particularizadas.
Essas observações nos permitem perceber mais dois elementos im-
portantes pressupostos-assumidos pelo criticismo social, uma herança
fundamental da filosofia e da sociologia, a saber, de que tanto a socieda-
de e suas instituições quanto os sujeitos epistemológico-políticos da Re-
alpolitik possuem um sentido macroestrutural, uma orientação, alcance e
influência macroestruturais. Em outras palavras, são superinstituições e
supersujeitos que, a partir de seu funcionamento e de sua luta, influen-
ciam dinâmicas sociais de amplo alcance, que perpassam a sociedade e

174
DEMOCRACIA E AGONISMO

seus sujeitos epistemológico-políticos como um todo. A primeira e funda-


mental consequência dessa constatação está exatamente em desconstruir
a impessoalidade, a neutralidade e a individualização tanto das institui-
ções sociais quanto, mais ainda, dos sujeitos epistemológico-políticos. A
atuação das instituições, na medida em que elas são superestruturas que
coordenam todo um campo da reprodução social, influindo diretamente
em outros (pense-se nas duas grandes instituições da modernização oci-
dental, o mercado capitalista e o Estado burocrático-administrativo) e de-
finindo seus contornos e resultados basilares, tem consequências direta-
mente políticas e implica na orientação da constituição do status quo de
amplos sujeitos epistemológico-políticos e na dinamização da balança de
poder entre eles. Da mesma forma, aqui, é exatamente pelo fato de que a
sociedade e suas instituições são macroestruturas às quais se é possível
constatar objetivamente e avaliar-se e enquadrar-se normativamente que
se pode construir uma teoria social crítica que é crítica do social, da Real-
politik, fundamentando-se, legitimando-se, como consequência, uma prá-
xis política que é emancipatória e transformadora em relação ao social, às
patologias psicossociais, à Realpolitik. Aqui, a causa dos problemas sociais
não está no indivíduo fracassado ou patológico, pura e simplesmente, ou
mesmo em estruturas-sujeitos anônimos e impessoais que atuam em um
sentido não-estrutural, não-intersubjetivo, mas sim em instituições e em
sujeitos epistemológico-políticos superdimensionados, capazes de deter-
minar configurações sociopolíticas abrangentes e de agir coletivamente. É
nesse sentido, aliás, que o grosso das teorias políticas liberais não possui
teoria social como seu substrato, posto que partem teoricamente e centram
suas análises politicamente na correlação entre individualismo metodoló-
gico e impessoalidade-imparcialidade institucional, pontos esses que não
fazem jus tanto à noção de instituição como macroestrutura axiológica e
programático-operacional que gerencia e determina a configuração e a di-
nâmica de campos específicos da evolução social quanto à noção de classe
social enquanto macrossujeito epistemológico-político que, em suas lutas
por hegemonia, configura a atuação objetiva das instituições, tornando-
-se, essa classe mesma, em sujeito epistemológico-político objetivo, com
carnalidade-politicidade, rompendo com o individualismo metodológico e
com a impessoalidade-imparcialidade institucional.
A noção de sujeito epistemológico-político da constituição-trans-
formação social como classe social em sentido coletivo, macroestrutural,
em verdade, é o segundo elemento fundamental assumido-utilizado pelo
criticismo social em suas leituras e proposições relativamente à socie-
dade e suas instituições como macroestruturas, assim como aos sujeitos
epistemológico-políticos presentes na sociedade, na práxis. Primeiro de

175
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

tudo, a classe social dá a ideia de uma ação coletiva, que aglutina dife-
rentes indivíduos e grupos sociais desde um objetivo normativo-político
e metodológico-programático comum, o que lhes confere, utilizando ter-
mos já clássicos para se compreender o conceito de classe social, vontade
e consciência comum, minimamente unitária em termos de ação episte-
mológico-política. A transformação social necessita de ação coletiva, de
amplo aspecto, exatamente pelo sentido macroestrutural da sociedade e
de suas instituições. Aquele ditado clássico, de que uma andorinha só não
faz verão, certamente possui muito sentido quando falamos em transfor-
mação social desde a práxis política, desde a participação política. As múl-
tiplas vozes e ações precisam assumir um ponto comum, uma dinâmica
comum: somente assim elas mudam comportamentos, direcionam sujeitos
epistemológico-políticos e, com isso, reorientam a constituição-atuação
das instituições. Segundo, a noção de classe social enquanto macrossujeito
epistemológico-político nos parece interessante por suas duas contrapo-
sições básicas. (a) Ela ataca diretamente a individualização e o anonima-
to dos sujeitos epistemológico-políticos, assim como sua consequência, a
impessoalidade e imparcialidade das instituições sociopolíticas. E (b) ela
recusa o caráter lógico-técnico, não-político e não-normativo dessas mes-
mas instituições sociopolíticas, de sua constituição, de seu funcionamen-
to, de sua programação e de sua administração ao longo do tempo. Ora,
tanto a individualização-anonimato dos sujeitos epistemológico-políticos
quanto o sentido lógico-técnico das instituições sociopolíticas levam a
uma poderosa – às vezes a uma definitiva – despolitização seja dos sujeitos
epistemológico-políticos, seja dessas instituições sociopolíticas, no senti-
do de que existiriam amplos campos e dinâmicas da reprodução social que,
por serem particularizados e impessoais, não poderiam ser enquadrados
político-normativamente, na medida em que são apenas lógico-técnicos e
particulares. Com isso, em se afirmando a individualização-anonimato dos
sujeitos epistemológico-políticos constituintes de uma dada sociedade e
a impessoalidade-imparcialidade das instituições dinamizadoras dessa
mesma sociedade, pode-se apontar – como o faz, por exemplo, o conserva-
dorismo – para o fato de que não se pode politizar totalmente a constitui-
ção, a legitimação e a evolução das instituições sociopolíticas e o enten-
dimento-atuação dos sujeitos epistemológico-políticos. Aqui, nem tudo é
político, nem tudo é política. Ora, mas quem determina o que é e o que não
é político, o que é e o que não é política? Esse é o ponto nodal: somente
de modo político-normativo e como luta-hegemonia baseada em motivos
político-normativos se pode definir o que é e o que não é político, o que é
e o que não é política. Não existe um fundamento essencialista e naturali-
zado que determine isso, e certamente os fundamentos – essencialistas e

176
DEMOCRACIA E AGONISMO

naturalizados ou não – dependem exatamente da práxis dos sujeitos epis-


temológico-políticos. Da mesma forma, até fundamentos essencialistas e
naturalizados são políticos e apontam para consequências, ações e sujei-
tos políticos. Na história da filosofia e da teologia, por exemplo, o sentido
e as consequências político-normativas dos fundamentos essencialistas e
naturalizados são claros e diretos, inquestionáveis – ao contrário de apon-
tarem para uma esfera de neutralidade, impessoalidade e tecnicalidade,
eles enfatizam-legitimam exatamente a politicidade e a normatividade dos
valores, das ações e dos sujeitos epistemológico-políticos. De todo modo, o
que queremos significar é que tudo é político, tudo é política, de forma que
somente se pode definir o que e quem é ou não é político e o que e como se
é ou não é política por meio da politização, da ação política, da imposição-
-hegemonia política. É nesse sentido que falamos, no texto, de teoria social
como politizando fortemente as instituições, suas dinâmicas, seus valores,
suas relações, os processos sociais e os sujeitos epistemológico-políticos.
E a pergunta acima – “Quem define-determina o que é e o que não é polí-
tico, o que é e o que não é política?” – aponta exatamente para esse senti-
do superdimensionado e abrangente dos sujeitos epistemológico-políticos
como classe social, que constroem, dinamizam e orientam, desde uma
práxis epistemológico-política estrutural, as instituições e o tipo de vin-
culação social que elas estabelecem-geram ao longo do tempo. Sem esses
sujeitos políticos superdimensionados como classes sociais seria muito
difícil pensar-se transformações ou pelo menos contrapontos aos grupos e
posições institucionais hegemônicos em uma dada sociedade e mais além.
Note-se, aliás, que, conforme pensamos, os dois grandes desafios te-
órico-políticos fundamentais para uma teoria social crítica que é a voz-prá-
xis normativo-política dos excluídos e por parte desses mesmos excluídos
são exatamente a individualização-anonimato dos sujeitos epistemológi-
co-políticos e a impessoalidade-imparcialidade das instituições sociopolí-
ticas, assumidos pelo conservadorismo em ascensão na contemporaneida-
de como pontos programático-metodológicos e normativos fundantes em
termos teórico-políticos, pois, como já dissemos de passagem acima, esses
dois pontos, correlatos e mutuamente imbricados, levam à despolitização
dos sujeitos epistemológico-políticos e à tecnicalidade-instrumentalida-
de-apoliticidade das instituições sociopolíticas. Nesse sentido, no primei-
ro caso, os sujeitos epistemológico-políticos perdem a capacidade de agir
coletivo, assim como não podem ser entendidos em sentido estrito como
artífices da evolução social e da configuração institucional, a não ser indi-
retamente e em um sentido não-messiânico; no segundo caso, as institui-
ções são estruturas lógico-técnicas imparciais, neutras, formais e impes-
soais que centralizam e monopolizam campões específicos da reprodução

177
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

social, autonomizando-os (porque tecnicizando-os e instrumentalizando-


-os) relativamente ao restante da sociedade, com isso despolitizando-os.
Ainda no primeiro caso, o individualismo metodológico coloca sob os
ombros do indivíduo particular, incapaz de uma práxis política estrutural
e não-possuidor de uma perspectiva messiânica em relação à sociedade
como totalidade, o seu próprio destino pessoal, mas desligado das orienta-
ções estruturais dadas pelas instituições; já no segundo caso, instituições
lógico-técnicas não possuem nenhum cunho normativo-político e nem ca-
pacidade de ações estruturais para além de seu campo, não podendo ser
responsabilizadas político-normativamente e nem transformadas a partir
de critérios e práxis político-normativos. Impessoalidade, imparcialidade,
neutralidade, formalidade, anonimato e espontaneidade são termos fun-
damentais assumidos a partir dessa dupla afirmação do conservadorismo
relativamente aos sujeitos epistemológico-políticos individualizados-anô-
nimos e às instituições lógico-técnicas. Com isso, o ideal regulador e pro-
gramático-metodológico de tal posição aponta sempre para a afirmação da
avaliação lógico-técnica e meritocrática seja da estruturação institucional,
seja da avaliação do status quo, o que lhes retira a politização e o enqua-
dramento normativos necessários para a realização do criticismo social. Da
mesma forma, a individualização-anonimato dos sujeitos epistemológico-
-políticos lhes retira a capacidade de assumirem-dinamizarem como clas-
se social uma práxis política com contornos intersubjetivos e estruturais,
substituindo essa noção de classe social pelo individualismo metodológico
como o sujeito epistemológico-político por excelência. Aqui, a teoria social
crítica ficaria sem o sujeito epistemológico-político da crítica e da emanci-
pação (a classe social), sem o objeto da crítica-transformação (a sociedade e
suas instituições como macroestruturas) e sem a práxis da crítica-transfor-
mação (a ação política). Não por acaso, como vimos dizendo, há um retorno
daqueles conceitos acima mencionados – impessoalidade, imparcialidade,
neutralidade, formalidade, anonimato e espontaneidade – na teoria políti-
ca e econômica à direita e mesmo à esquerda como base da minimização
da política e superestimação tanto do individualismo metodológico quan-
to do entendimento lógico-técnico das instituições sociopolíticas próprios
às sociedades complexas contemporâneas e à globalização de um modo
mais geral, e como herança da modernização ocidental e do entendimento
dessa mesma modernização ocidental desenvolvido-assumido por teorias
políticas liberais e social-democratas hodiernas.
É por isso que para o criticismo social enquanto práxis política é ques-
tão de vida e de morte o assumir três noções teórico-políticas fundamen-
tais, como o são (a) a de sociedade como totalidade político-normativa, (b)
a de instituições como estrutura-práxis político-normativa e (c) a de classe

178
DEMOCRACIA E AGONISMO

social como macrossujeito epistemológico-político gerador-dinamizador


da evolução social e da constituição-legitimação institucional. Trata-se de
uma reação fundamental a uma noção de modernização ocidental e a uma
compreensão das instituições sociopolíticas e dos sujeitos epistemológi-
co-políticos muito em voga da filosofia política liberal e social-democra-
ta e na teoria social de hoje, tanto à direita (Hayek, Friedman e Nozick,
por exemplo) quanto na nova esquerda (Rawls, Habermas e Giddens, por
exemplo), que as compartilham como um todo ou pelo menos partes dela.
Primeiro, a noção de modernização ocidental como autodiferenciação,
autorreferencialidade, autossubsistência e autonomia de sistemas sociais
ou instituições lógico-técnicos, não-normativos e não-políticos, que se
emancipam da sociedade civil e de seus sujeitos epistemológico-políticos,
adquirindo exatamente esse cunho lógico-técnico ou instrumental marca-
do por um procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal que
é basicamente interno aos próprios sistemas sociais, assumido por seus
técnicos e elites institucionais. Aqui, as instituições centralizam, monopo-
lizam e administram campos específicos da evolução social desde dentro
delas mesmas, como uma prática-dinâmica-procedimento fundamental-
mente interno a elas mesmas e de prisma lógico-técnico, não-político e
não-normativo, fechando-se à politização desses mesmos sistemas sociais
desde fora, por sujeitos e práticas epistemológico-políticos que questio-
nam tanto a autorreferencialdidade e a autossubsistência quanto a des-
politização e a tecnicalidade desses mesmos sistemas sociais. Nessa no-
ção conservadora de modernização ocidental desenvolvida em termos de
teoria de sistemas, as instituições ou sistemas sociais modernos não são,
em primeira mão, estruturas-sujeitos-práxis político-normativa, mas sim
lógico-técnica. Da mesma forma, esses sistemas sociais não fazem par-
te de um todo socioinstitucional maior, de base político-normativa, senão
que são independentes da sociedade como totalidade político-normativa,
diferenciados e mesmo opostos em relação a ela, recusando, por isso mes-
mo, sua intervenção-enquadramento desde fora e a partir de fundamentos
político-normativos, por sujeitos não-institucionais.
Segundo, a noção de sujeito epistemológico-político individualizado
e anônimo compartilhada pelo liberalismo político à esquerda e à direta
(Hayek, Nozick e Rawls) e pela social-democracia representada pela nova
esquerda (Habermas e sua retomada de uma social-democracia reflexiva e
Giddens e sua defesa da terceira via enquanto correlação entre neolibera-
lismo e social-democracia). Para ambos, liberalismo e social-democracia,
liberalismo conservador e nova esquerda, as sociedades complexas contem-
porâneas são marcadas, como vimos dizendo, pela individualização e pelo
anonimato dos sujeitos epistemológico-políticos, que já não podem mais

179
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

ser concebidos ao estilo de classes sociais enquanto macrossujeitos episte-


mológico-políticos que, através de suas lutas por hegemonia, dinamizam
a constituição institucional e dão contornos estruturais aos processos de
evolução social. Os sujeitos epistemológico-políticos das sociedades de-
mocráticas complexas contemporâneas são totalmente individualizados
e anônimos, incapazes de agir em sentido estrutural, incapazes, por isso
mesmo, de assumir uma noção crítico-emancipatória de normatividade
social em nome da sociedade como um todo e, como consequência, de
realizar uma práxis política emancipatória que, fundada na e dinamizada
pela luta de classes, enquadra as instituições sociopolíticas e suas elites
institucionais, principalmente no sentido de pôr em xeque aquela que
pensamos ser a mais perigosa correlação e mútua dependência da política
conservadora hodierna (acriticamente assumida pela nova esquerda), a sa-
ber, a correlação e mútuo suporte entre institucionalismo forte (sistemas
sociais ou instituições autorreferenciais e autossubsistentes de cunho
lógico-técnico, não-político e não-normativo, que, desde uma dinâmica
fundamentalmente interna assumida por elites e técnicos institucionais,
centralizam e monopolizam a constituição, a legitimação e a evolução de
campos específicos da evolução social, despolitizando-os e tornando-os
autônomos em relação à crítica social e à práxis política, e deslegitimando
os sujeitos epistemológico-políticos emancipatórios e suas lutas desde a
sociedade civil), partidos políticos e oligarquias econômicas afirmadores
da teoria de sistemas como base para a compreensão da sociedade, de
suas instituições, do funcionamento dessas instituições e da correlação
entre sistemas sociais e sociedade civil.
Em suma, o criticismo social enquanto práxis política necessita,
como contraposição ao liberalismo político e à social-democracia, (a) afir-
mar a completa politicidade das instituições e dos sujeitos epistemológi-
co-políticos, assim como (b) sua férrea imbricação a uma noção político-
-normativa de sociedade enquanto totalidade social, de modo a superar
a noção lógico-técnica de modernização ocidental, marcada por sistemas
sociais não-políticos e não-normativos, fundamentalmente autorreferen-
ciais, autossubsistentes e autônomos em relação à crítica social e à práxis
política escoradas em e dependentes de uma noção vinculante de normati-
vidade social; de modo a superar também, por meio do entendimento des-
ses sujeitos epistemológico-políticos da evolução social e da dinamização
institucional como classes sociais enquanto supersujeitos políticos, uma
noção de procedimentalismo jurídico-político imparcial, neutro, formal e
impessoal que serve tanto para fundamentar o tipo de práxis política demo-
crática efetivo para as sociedades complexas contemporâneas, de moder-
nização burocrático-capitalista, quanto para entender-se e enquadrar-se o

180
DEMOCRACIA E AGONISMO

funcionamento dos próprios sistemas sociais modernos, no caso o Estado


e o mercado. Os sujeitos epistemológico-políticos enquanto classes sociais
apontam diretamente para a politização da evolução social e da estrutu-
ração institucional, imbricando fortemente sociedade civil e instituições,
desconstruindo aquele sentido lógico-técnico, imparcial, neutro, formal e
impessoal, anônimo e espontâneo atribuído pelo conservadorismo àquelas
instituições modernas. Isso evitaria, por conseguinte, a sobreposição e a
independência dos sistemas sociais em relação às classes sociais e suas
lutas político-normativas por hegemonia.
Como vimos dizendo, entender-se as instituições modernas como
autorreferenciais e autossubsistentes, como sendo constituídas por um
procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal que é basica-
mente interno e lógico-técnico, não-político e não-normativo, assumido
e centralizado por técnicos e elites institucionais, equivale a despolitizar
esses mesmos sistemas sociais, tornando-os autônomos e sobrepostos à
sociedade civil, às classes sociais e suas lutas. Aqui, as instituições apa-
receriam como estruturas-sujeitos-dinâmicas puras, basicamente instru-
mentais, técnicas, sem qualquer politicidade-carnalidade. Ora, como é
possível criticismo social e práxis política emancipatória – que estão base-
ados em normatividade social e que politizam esses mesmos sistemas so-
ciais – relativamente a sistemas sociais lógico-técnicos, autorreferenciais
e autossubsistentes, não-políticos e não-normativos? Como é possível que
a crítica social e a práxis política possam enquadrar e transformar de fora
(das instituições) para dentro (das instituições) sistemas sociais lógico-
-técnicos dotados de um procedimentalismo imparcial, impessoal, neutro
e formal? Por fim, como é possível conceber-se sujeitos epistemológico-
-políticos institucionais sem constituição político-normativa, realizadores
daquele procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal como
base-dinâmica da evolução social e da constituição-legitimação institu-
cional? Em ambos os casos – sistemas sociais lógico-técnicos, autorrefe-
renciais e autossubsistentes e sujeitos epistemológico-políticos anônimos
e individualizados, com o consequente procedimentalismo imparcial, neu-
tro, formal e impessoal como dinâmica fundamental do autofuncionamen-
to e da autojustificação dos sistemas sociais – a política perde qualquer
possibilidade de enquadrar-transformar esses mesmos sistemas sociais,
assim como os sujeitos epistemológico-políticos advenientes da sociedade
civil são deslegitimados em sua práxis informal e alternativa em relação
àquele procedimentalismo institucional autorreferencial, interno e lógico-
-técnico. Aqui, sobra espaço apenas para o institucionalismo forte, esco-
rado no argumento do anonimato e da espontaneidade do funcionamento

181
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

de cada instituição, assim como da espontaneidade da evolução social de


um modo mais geral.
Ora, essas três assunções teórico-políticas fundamentais do libe-
ralismo político e da social-democracia – novamente: (a) sistemas sociais
lógico-técnicos, não-políticos e não-normativos, de dinâmica interna, au-
torreferencial e autossubsistente; (b) anonimato e individualização dos su-
jeitos políticos, que já não podem mais ser entendidos como classes sociais
enquanto sujeitos epistemológico-políticos superdimensionados; e (c) um
procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal como dinâmica
fundamental de legitimação institucional e da relação entre instituições e
sociedade civil – incapacitam uma teoria social crítica e sua consequente prá-
xis política tanto de diagnosticarem político-normativamente a estruturação
e o funcionamento das instituições ou sistemas sociais quanto de localiza-
rem e especificarem os sujeitos epistemológico-políticos enquanto classes
sociais que efetivamente lutam por hegemonia social-política-institucional.
É nesse sentido em que falamos que o anonimato e a espontaneidade dos
processos de constituição institucional e de evolução social acabam sendo
uma consequência daquelas teorias sociais e políticas, porque elas já não
têm em vista, como foco central de sua análise e práxis, a tematização dos
sujeitos epistemológico-políticos presentes na Realpolitik, a tematização-
-legitimação dos sujeitos epistemológico-políticos da práxis e como práxis.
Um exemplo contundente disso pode ser percebido na compreen-
são de globalização econômica por parte da nova esquerda. A globaliza-
ção econômica, em verdade, pelo menos na versão que dela dão o libera-
lismo político e a social-democracia, parece ter assumido em cheio essa
impessoalidade, neutralidade, imparcialidade, formalismo, neutralidade e
espontaneidade geradas pela correlação e mútua dependência entre ins-
tituições lógico-técnicas, autorreferenciais e autossubsistentes, procedi-
mentalismo impessoal e político e anonimato e individualização dos sujei-
tos epistemológico-políticos. Com efeito, quando observamos os escritos
de Jürgen Habermas e de Anthony Giddens sobre globalização e crise do
Estado-nação, vemos uma constante totalmente problemática em suas in-
terpretações, posicionamentos e proposições, a saber: a ideia de que o hoje
capitalismo internacionalizado-mundializado é caracterizado-dinamizado
por capitais transnacionais que não apenas não possuem fronteiras e li-
mitação, senão que também não possuem raízes nacionais e políticas etc.,
como se fossem capitais sem sujeito e sem contexto, sem vínculos e sem
raízes. Nesse sentido, seriam capitais transnacionais de caráter anônimo
e impessoal (cf.: GIDDENS, 1996, p. 95, p. 175; HABERMAS, 2000, p. 76,
2002a, p. 190). Qual a consequência disso? A consequência que considera-
mos mais impactante consiste em que, por causa desse anonimato e dessa

182
DEMOCRACIA E AGONISMO

impessoalidade desses capitais transnacionais, pelo fato de não possuírem


raízes em um país específico e nem serem dinamizados-geridos por sujei-
tos epistemológico-políticos específicos, localizados e encarnados, todos
os países são igualmente afetados pela atuação e pelas pressões desses capitais
transnacionais (tanto especulativos quanto produtivos), de modo que todos
os países estariam no mesmo barco, todos eles como vítimas no mesmo
grau daqueles capitais impessoais, anônimos e sem raízes. Quer dizer,
aqui, perdeu-se totalmente do foco de análise a correlação centros e peri-
ferias, a imbricação e mútua dependência entre desenvolvimento e subde-
senvolvimento, bem como a herança colonial que está por trás desse tipo
de globalização enquanto trasnacionalização do capital e da exploração
do trabalho, porque se perdeu a ligação desses capitais e dessas dinâmicas
econômicas com sujeitos epistemológico-políticos da práxis e como classes
sociais. Nesse sentido, como vimos propondo, a recuperação das noções de
sociedade enquanto totalidade normativo-política, de instituição enquan-
to práxis político-normativa, de sujeito epistemológico-político enquanto
classe social, enquanto macrossujeito epistemológico-político, bem como
de lutas de classe enquanto práxis basilar para a constituição institucional
e para a dinamização da evolução social, permitem superar o anonima-
to e individualização dos sujeitos políticos, o procedimentalismo impar-
cial, neutro, formal e impessoal enquanto arena-dinâmica de constituição,
funcionamento e legitimação institucional e, por fim, a noção de sistemas
sociais lógico-técnicos, autorreferenciais, autossubsistentes, autônomos,
anônimos, impessoais e sobrepostos em relação às classes sociais e suas
lutas, em relação à politicidade-carnalidade-normatividade da práxis e de
seus sujeitos epistemológico-políticos.

A práxis como o lugar da crítica e o sujeito político da práxis como o


sujeito da transformação social-institucional

As nossas considerações precedentes apontam exatamente para a


intrínseca correlação entre epistemologia e política, entre criticismo so-
cial como práxis política, de modo que haveria essa mútua dependência e
ligação, já enfatizada como ponto fundamental da transformação social
do e pelo marxismo, entre teoria e prática, entre o teorizar da política e
o politizar da teoria. No âmbito das ciências humanas e sociais, na es-
fera da Realpolitik, que é efetivamente o campo das ciências humanas e
sociais, essa ligação umbilical é quem determina o sentido da crítica so-
cial e o alcance da práxis política. Dito de outro modo, fazemos teoria da
vida cotidiana, sobre ela e a partir dela, de suas lutas, dinâmicas e sujeitos
epistemológico-políticos; em verdade, fazemos teoria desde a participação
política, como sujeitos epistemológico-políticos engajados que interpre-

183
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

tam, questionam e agem na sociedade e frente aos demais sujeitos episte-


mológico-políticos. Nesse sentido, em primeiro lugar e fundamentalmen-
te, a crítica social é práxis política, posto que parte e emerge do cotidiano
da Realpolitik e objetiva seu enquadramento e transformação, da mesma
forma como, em segundo lugar e ainda fundamentalmente, esse mesmo
criticismo social como práxis política é realizado-dinamizado por sujeitos
epistemológico-políticos encarnados-politizados, que interpretam (episte-
mologia) e agem (política) desde o dia a dia dessa Realpolitik junto a outros
sujeitos epistemológico-políticos. Ora, o fato social básico do qual o criti-
cismo social como práxis política parte consiste exatamente na percepção
de que a sociedade é construída, legitimada e dinamizada a partir da ação
cotidiana em termos de Realpolitik, ação essa que, marcada pela interação
e pelo conflito entre sujeitos epistemológico-políticos múltiplos em ter-
mos da imposição de suas interpretações de mundo uns frente aos outros
e em relação às instituições sociopolíticas e mesmo à noção hegemônica
de normatividade social vinculante em uma dada sociedade, é intencional
e encarnada, consciente e querente, portanto totalmente politizada e nor-
mativa. Ela não é anônima, impessoal e lógico-técnica, senão que exata-
mente político-normativa, encarnada, intencional, como vimos dizendo.
Por isso, é extremamente importante ao criticismo social como práxis
política ou à práxis política como criticismo social a ênfase na práxis e nos
sujeitos epistemológico-políticos constituintes de uma dada sociedade e
mais além, com suas posições epistemológico-políticas e lutas consequen-
tes. Isso também significa que é extremamente importante a consideração
das instituições sociopolíticas como práxis político-normativa, a partir da
recusa, seja no primeiro caso, seja no segundo, tanto do sentido lógico-
-técnico, autossubsistente e autorreferencial delas e da afirmação de sua
dinâmica de constituição e de funcionamento como procedimentalismo
imparcial, neutro, formal e impessoal quanto do entendimento-fundamen-
tação dos sujeitos epistemológico-políticos como anônimos e individuali-
zados. Conforme pensamos, a individualização e o anonimato dos sujeitos
epistemológico-políticos, a compreensão lógico-técnica, autorreferencial
e autossubsistente das instituições ou sistemas sociais e, por fim, a práxis
político-institucional como procedimentalismo imparcial, neutro, formal
e impessoal representam o fim da participação política ampliada e direta
dos sujeitos epistemológico-políticos da sociedade civil frente a si mes-
mos e frente às instituições, na medida em que essas mesmas instituições
lógico-técnicas, por meio de uma dinâmica de funcionamento e de legi-
timação não-política e não-normativa (que, a nosso ver, é a consequência
daquele procedimentalismo jurídico-político imparcial, neutro, formal e
impessoal), tornam-se sobrepostas e autônomas em relação à práxis polí-

184
DEMOCRACIA E AGONISMO

tica como crítica social e participação política ampliada, baseadas em ar-


gumentos normativos, no entendimento normativo das instituições e dos
sujeitos epistemológico-políticos.
Nessa correlação entre (a) instituições lógico-técnicas, autorreferen-
ciais e autossubsistentes, (b) procedimentalismo institucional imparcial,
neutro, formal e impessoal e (c) individualização e anonimato dos sujeitos
epistemológico-políticos desaparece a imbricação entre criticismo social
e práxis política, posto que os sistemas sociais ou instituições modernos
e os sujeitos epistemológico-políticos são grandemente despolitizados e
tecnicizados no primeiro caso, e reduzidos ao individualismo metodoló-
gico egoísta e apolítico e incapaz de interpretação-ação epistemológico-
-política estrutural, no segundo. Com isso, a práxis normativo-política, que
a rigor estaria situada na sociedade civil e sob a forma de lutas de classe
entre classes sociais ou sujeitos epistemológico-políticos superdimensio-
nados em conflito por hegemonia epistemológico-política, é centralizada,
monopolizada e dinamizada pelas próprias instituições autorreferenciais e
autossubsistentes, assumindo um sentido lógico-técnico que, como vimos
dizendo, é não-político e não-normativo. Aqui, emerge e se consolida uma
forma conservadora de se pensar-fundamentar tanto a constituição-legiti-
mação-evolução institucional internamente a si mesma quanto suas rela-
ções com a esfera política representada pela sociedade civil e em particular
sua ligação com classes sociais e suas lutas que é altamente institucionalis-
ta, que na verdade instaura uma forma de institucionalismo forte em que
instituições lógico-técnicas de procedimentalismo basicamente interno,
como se fossem sujeitos-estruturas puras, não-políticas e não-normativas,
assumem a guarda da normatividade social e o papel epistemológico-polí-
tico basilar tanto em termos de constituição interna quanto no que se refere
à condução da evolução social, minimizando e, em última instância, anu-
lando os sujeitos epistemológico-políticos da sociedade civil e suas lutas,
assim como a arena normativo-política representada pela sociedade civil –
aqui, repetimos novamente, instituições lógico-técnicas, autorreferenciais
e autossubsistentes, de procedimentalismo apolítico interno, tornam-se
independentes, sobrepostas e despolitizadas em relação às classes sociais,
às lutas de classe e à sociedade civil. Essa forma teórico-política conser-
vadora de se conceber as instituições, os sujeitos epistemológico-políticos
e a própria política, marcada pelo institucionalismo forte, pela apolitici-
dade e tecnicalidade do procedimentalismo institucional e pela tecnocra-
cia política, se reflete na afirmação da não-politicidade, não-carnalidade e
não-normatividade dos sistemas sociais, assim como na recusa, por parte
do conservadorismo, em afirmar uma práxis político-normativa ampliada,
direta e inclusiva em relação à dinâmica institucional autorreferencial e

185
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

autossubsistente e frente aos técnicos e às elites institucionais (partidos


políticos, oligarquias econômicas, tecnocracia etc.). Esta é a razão porque
tanto a teoria de sistemas utilizada por teorias sociais críticas contem-
porâneas (como é o caso de Habermas e Giddens) quanto o procedimen-
talismo jurídico-político imparcial, neutro, formal e impessoal utilizado
por teorias políticas liberais hodiernas (Rawls e Habermas, por exemplo)
simplesmente não conseguem dar conta de correlacionar criticismo social
e práxis política radical – eles que efetivamente intentam fundamentar-
-construir um modelo de crítica social e de práxis política radical para as
sociedades democráticas complexas contemporâneas.
Essa correlação entre crítica social e práxis política somente é possí-
vel quando abandonamos seja a compreensão lógico-técnica de sistemas
sociais autorreferenciais e autossubsistentes, seja o procedimentalismo
imparcial, neutro, formal e impessoal como base da legitimação-funciona-
mento-administração das instituições ou sistemas sociais e, por fim, como
complemento, o anonimato e a individualização dos sujeitos epistemológi-
co-políticos. Essa correlação entre crítica social e práxis política, por con-
seguinte, somente é possível efetivamente de ser sustentada, legitimada
e aplicada quando politizamos completamente as instituições e os sujei-
tos epistemológico-políticos, localizando-os dentro do contexto político-
-normativo representado pela sociedade civil e dinamizado pelas classes
sociais e por suas lutas por hegemonia. Isso significa, em primeiro lugar,
a recusa de uma posição epistemológico-política fundamental própria à
teoria política contemporânea, especialmente de índole liberal e social-
-democrata, e tanto à direita (Hayek, Friedman, Nozick) quanto à esquerda
(Rawls, Habermas e Giddens), a saber, a centralidade do institucionalismo
como objeto e sujeito da práxis política, um forma de entendimento do
institucionalismo – esta como objeto das teorias da justiça e sujeito-arena
da dinâmica política democrática – que é construída a partir da correlação
entre teoria de sistemas e procedimentalismo jurídico-político. No caso da
teoria de sistemas, como vimos dizendo, está a ideia de que as instituições
sociopolíticas possuem uma constituição que é, sim, normativo-política,
mas que também é, no mesmo diapasão, lógico-técnica, no sentido de que
ela possui constituição, dinâmica e legitimação internas que somente são
entendidas, constituídas e orientadas desde dentro, por meio de um traba-
lho técnico, objetivo – no sentido de neutro e impessoal – referentemente
às classes sociais e suas lutas políticas (GIDDENS, 2000, p. 109-110, 2001,
p. 123-134; HABERMAS, 1997, p. 163, 2012a, p. 588-591, 2012b, p. 275-288,
p. 365,). Aqui, aparece o procedimentalismo jurídico-político enquanto
dinâmica de constituição, legitimação e evolução institucional que é im-
parcial, neutra, formal e impessoal frente às classes sociais e suas lutas:

186
DEMOCRACIA E AGONISMO

somente ele faz jus seja à individualização e ao anonimato dos sujeitos


epistemológico-políticos, seja ao sentido sistêmico das instituições. Por
causa de ambos os pontos, tem-se o institucionalismo como objeto das te-
orias da justiça e sujeito-arena da Realpolitik, para além dos – e ignorando
teórica e politicamente os – sujeitos epistemológico-políticos da socieda-
de civil e suas lutas por hegemonia, que seriam secundários e periféricos
em relação a esse mesmo institucionalismo (HABERMAS, 2003a, p. 20, p.
61, 2003b, p. 21-23; RAWLS, 2000a, §§ 1-2, p. 03-12, § 4, p. 19-24, 2000b, p.
01-42, 2003, § 4, p. 13-17, §§ 23-23-25, p. 113-125).
Ora, o institucionalismo, e um tipo de institucionalismo forte e apo-
lítico, como consequência das teorias liberais e social-democratas con-
temporâneas, é justificado por um triplo e imbricado modo de análise do
processo de constituição e de evolução da modernização ocidental: (a) a
compreensão da modernização ocidental como emergência e consolidação
de sistemas sociais ou instituições lógico-técnicos, não-políticos e não-
-normativos, de procedimentalismo basicamente interno e instrumental,
autorreferenciais, autossubsistentes, autônomas e sobrepostas em relação
às classes sociais e suas lutas político-normativas, como se esses sistemas
sociais fossem sujeitos-estruturas puras, apenas lógico-técnicas e aces-
síveis por um tipo de cientificismo apolítico, imparcial, neutro, formal e
impessoal assumido por técnicos e elites institucionais; (b) a afirmação do
anonimato e da individualização dos sujeitos políticos, que, por não se-
rem mais constituídos e dinamizados como macrossujeitos, como sujeitos
epistemológico-políticos superdimensionados, já não conseguiriam mais
agir como corpo coletivo e em sentido estrutural, de modo a influenciar-
-modificar dinâmicas socioinstitucionais de nível macro, o que significa
que essas dinâmicas socioinstitucionais de nível estrutural e com alcance
macro, se são possíveis, o são exatamente por causa das instituições so-
ciopolíticas, e não por causa das classes sociais como supersujeitos epis-
temológico-políticos da práxis; (c) um conceito de normatividade social,
se é possível de ser construído e dinamizado social e institucionalmente,
o é a partir das instituições como centralizadoras, guardadoras e dinami-
zadoras dessa mesma normatividade social, o que significa que a consti-
tuição, legitimação e fomento de uma noção vinculante de normatividade
social passa a ser uma função-ação institucional, de modo que, em um po-
deroso sentido, essa mesma normatividade social – enquanto concepção
epistemológico-política hegemônica em dado contexto socioinstitucional
– torna-se sobreposta e independente tanto dos sujeitos epistemológico-
-políticos quanto de suas lutas por hegemonia em termos de sociedade
civil e dali para as instituições, e vice-versa.

187
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Vamos refletir mais um pouco sobre essa forma de institucionalis-


mo direta ou indiretamente desenvolvida e legitimada pelas teorias polí-
ticas liberais e social-democratas contemporâneas. No momento em que
a sociedade já não se constitui mais como totalidade político-normativa,
mas sim por sistemas sociais lógico-técnicos privados, autorreferenciais
e autossubsistentes, instituições ou sistemas sociais particularizados, se
por um lado ainda potencializam e dinamizam consequências estruturais,
por outro já não podem ser enquadrados política e normativamente por
suas consequências totalizantes – eles determinam configurações sociais
e status quo, é verdade, mas não de modo férreo e muito menos de modo
político (senão que a partir de fatores e de movimentos técnicos), posto
que cada sistema social (pensemos no Estado burocrático-administrativo
e no mercado capitalista, que são os dois sistemas sociais básicos da mo-
dernização ocidental) centraliza e monopoliza (e despolitiza) um campo
específico da vida social, e não todos os campos, de modo que sua atuação
é localizada, pontual, não-totalizante. Logo, não existe politização total,
assim como não é possível uma práxis política total, isto é, que politize
tudo e que incida sobre todos os pontos da sociedade. Aqui, existem cer-
tos campos, práticas e sujeitos epistemológico-políticos que não são po-
líticos e nem agem politicamente. Esse é o caso, como vimos dizendo, da
concepção lógico-técnica dos sistemas sociais, que pressupõe que eles não
são práxis e sujeitos epistemológico-políticos, mas sim fundamentalmen-
te estruturas-sujeitos instrumentais, lógico-técnicos, não-políticos e não-
-normativos que, por serem autorreferenciais e autossubsistentes, também
são particularizados em relação ao resto da sociedade e, com isso, possuin-
do consequências relativas apenas ao seu próprio entorno, ao seu contexto
muito específico. Nesse sentido, o ativismo e a transformação políticas são
possíveis, mas já não possuem incidência macroestrutural, já não podem
politizar tudo e querer transformar tudo por meio da própria práxis políti-
ca, enquanto práxis política, como sujeitos epistemológico-políticos. Cer-
tas estruturas, práticas e sujeitos socioinstitucionais não são estruturas,
práticas e sujeitos normativo-políticos, senão que apenas lógico-técnicos,
e é desse modo – lógico-técnico, não-político e não-normativo – que de-
vem ser entendidos e enquadrados. É por isso que, nessas teorias políticas
liberais e social-democratas, a política é um sistema social entre outros,
não o centro da sociedade-práxis e nem a maior instituição social, o que
também significa que ela está lado a lado e em competição com estes ou-
tros sistemas e certamente restringida por eles, conforme insiste Haber-
mas com veemência em seu Direito e Democracia: entre Facticidade e Va-
lidade (HABERMAS, 2003b, p. 25, 2002b, p. 501). Existem várias formas de
poder sócio-institucional, cada um dotado de sua legitimidade, e a política

188
DEMOCRACIA E AGONISMO

é somente mais um, quando pensamos na constituição e na evolução das


sociedades complexas contemporâneas, de modernização ocidental. Esta
especificidade, ensinada-desenvolvida pela teoria de sistemas, não pode
ser esquecida pelos sujeitos epistemológico-políticos em termos de criti-
cismo social e de práxis política.
Da mesma forma, no momento em que existem sistemas sociais
lógico-técnicos, instrumentais, de dinâmica basicamente interna, autor-
referencial e autossubsistente, e com funcionamento, constituição e legi-
timação não-políticos e não-normativos, esses mesmos sistemas sociais
tornam-se, em grande medida, despolitizados, enquanto estruturas-sujei-
tos técnicos acessíveis por meio de técnica de administração e de geren-
ciamento, objetivamente neutra e metodologicamente guiada, lógica, sem
qualquer possibilidade – ou com pouca possibilidade – de politização e de
espontaneidade. Com isso, o ponto arquimédico para avaliação, enquadra-
mento e administração de sistemas sociais ou instituições particulariza-
das, autorreferenciais, não-políticas e não-normativas é constituído pela
sua própria dinâmica lógico-técnica de funcionamento e de legitimação
e de constituição, que é interna ao próprio sistema social e assumida por
seus técnicos e elites internos. Da mesma forma, e como condição para
isso, o fato de um sistema social ser autossubsistente significa que suas
condições de funcionamento, de programação e de legitimação são inter-
nas a ele mesmo, como vimos dizendo, o que implica em que somente se
acessa-entende-transforma um sistema social desde dentro, desde seus
próprios meios lógico-técnicos e por seu próprio pessoal interno, pelo seu
staff autorizado, legitimado pelo sistema social em questão. Desse modo,
um sistema social lógico-técnico, autorreferencial e autossubsistente não
apenas torna-se despolitizado e sobreposto relativamente à práxis política
como luta social e autônomo em relação às classes sociais como sujeitos
epistemológico-políticos, senão que constitui-se no seu próprio paradig-
ma para constituição, legitimação e evolução internas, eliminando de si
mesmo qualquer politicidade-carnalidade, qualquer resquício de sujeito
epistemológico-político e de contato com a sociedade civil, com a práxis de
um modo mais geral. Aqui, a práxis política é negada e, na verdade, trans-
formada em procedimentalismo institucional lógico-técnico, imparcial,
neutro, formal e impessoal exatamente por causa do fato de que o sistema
social autorreferencial e autossubsistente é o sujeito por excelência de sua
própria constituição-legitimação-transformação. A política como norma-
tividade já não seria mais o critério-paradigma a partir do qual os sistemas
sociais, tanto em sua constituição-legitimação-funcionamento interno
quanto em termos de sua relação com o entorno sociopolítico mais geral,
seriam avaliados, enquadrados e orientados, pelo menos não em todos os

189
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

casos. De todo modo, quem definiria em quais casos poder-se-ia pensar-


-enquadrar-orientar política e normativamente esses mesmos sistemas
sociais, seu funcionamento e sua legitimação, assim como suas relações?
Ora, os próprios sistemas sociais, por seus técnicos e desde uma perspec-
tiva lógico-técnica, desde um decisionismo lógico-técnico!
Por fim, no momento em que não existem mais classes sociais como
sujeitos epistemológico-políticos superdimensionados da transformação
social e da configuração institucional, neste momento, portanto, em que as
sociedades democráticas complexas contemporâneas são marcadas pelos
consolidados anonimato e individualização dos sujeitos epistemológico-
-políticos da práxis, incapazes de uma ação estrutural regida-dinamizada
por consciência de classe, o que sobra são as instituições de um modo geral
e as instituições jurídico-políticas em particular como a base da constitui-
ção, da legitimação e da evolução tanto da sociedade em geral quanto da
esfera público-política em particular. É aqui, e como consequência tam-
bém dos dois pontos acima desenvolvidos, que podemos situar a ideia de
que o institucionalismo é, nas teorias políticas liberais e social-democra-
tas contemporâneas, o objeto da teoria da justiça e o sujeito-arena político
da Realpolitik. Com efeito, o primeiro ponto de chama a atenção consiste
exatamente na substituição, em termos de tematização-entendimento da
modernização ocidental, das classes sociais, dos sujeitos epistemológico-
-políticos, pelos próprios sistemas ou instituições sociais modernas. De
fato, o grosso das teorias sociológicas contemporâneas – nós citaríamos,
aqui, Parsons, Luhmann, Habermas e Giddens – já não utiliza mais, como
chave-de-leitura epistemológico-política a tematização da práxis e dos su-
jeitos epistemológico-políticos como classes sociais em termos de com-
preensão e de enquadramento desse processo de modernização ocidental,
dando ênfase central, em termos teórico-políticos, àquelas instituições ou
sistemas sociais lógico-técnicos, autorreferenciais e autossubsistentes de
que falamos acima (cf.: GIDDENS, 1996, 2000, 2001; HABERMAS, 2012a,
2012b, 2002b, 2003a, 2003b; LUHMANN, 2006; PARSONS, 1991, 2010a,
2010b). Eles efetivamente dinamizariam seja sua própria esfera interna,
seja a evolução social de um modo mais geral, permitindo o diagnósti-
co sociológico e o ativismo político, ainda que não mais em um sentido
radical, direto, dada aquela constituição lógico-técnica, autorreferencial
e auto-subsistente dos sistemas sociais modernos. As instituições são o
objeto das teorias da justiça por esse fato óbvio, isto é, porque elas gera-
riam efeitos estruturais mínimos, objetivos que, por sua vez, dinamizariam
a consolidação do status quo e a dinâmica da evolução social. No mesmo
diapasão, o abandono da tematização-utilização da noção de sujeito epis-
temológico-político como classe social como base para o entendimento-

190
DEMOCRACIA E AGONISMO

-enquadramento-orientação do processo de modernização ocidental tan-


to em termos institucionais quanto em termos de sociedade civil e como
práxis política, na medida em que tais sujeitos já não representariam mais
atores superdimensionados da evolução societal-institucional (ao passo
que as instituições seriam, sim, arenas-sujeitos de ação estrutural), esse
abandono aponta exatamente para o fato de que o institucionalismo tam-
bém é o sujeito da evolução sociopolítica, posto que o procedimentalis-
mo institucional dinamizado a partir de regras, práticas, valores e sujeitos
neutros, formais, imparciais e impessoais – e somente esse procedimenta-
lismo sistêmico-institucional neutro e formal e esse tipo de sujeito epis-
temológico-político impessoal e imparcial institucionalizado – faria jus
de modo efetivo à e representaria de modo competente a pluralidade de
sujeitos anônimos e individualizados da sociedade civil, sem prejuízo ou
favorecimento de alguém em particular (cf.: FORST, 2010; HABERMAS,
2003a, 2003b; RAWLS, 2000c, 2003).
Dito de outro modo, a noção de classe social partia do pressuposto
de que haveria sujeitos epistemológico-políticos especiais em termos de
crítica e transformação sócio-institucionais. Haveria, por outras palavras,
um sujeito epistemológico-político crítico-emancipatório que, por isso
mesmo, teria a missão de enquadrar-criticar-transformar as instituições e,
ao cabo, a própria sociedade como um todo. Porém, no momento em que já
não existe mais essa noção de classe social como super-sujeito político, no
momento, portanto, em que se tem um anonimato e uma individualização
consolidados dos sujeitos epistemológico-políticos, nenhum sujeito epis-
temológico-político particular pode assumir aquele sentido messiânico,
crítico-emancipatório que o conceito de classe social como sujeito epis-
temológico-político superdimensionado e estrutural havia centralizado e
monopolizado. Não existe o sujeito epistemológico-político da salvação
social-institucional, não existe um sujeito epistemológico-político messi-
ânico dessa mesma evolução social-institucional. Doravante, a evolução
social-institucional é representativo-participativa e baseada no reformis-
mo político guiado, centralizado e dinamizado pelas instituições jurídico-
-políticas. Ora, como única forma de adequação a este fato básico da vida
sociocultural e institucional contemporânea, a saber, o anonimato e a indi-
vidualização dos sujeitos epistemológico-políticos (cf.: GIDDENS, 2000, p.
38-43, 2001, p. 144-154; HABERMAS, 2003a, p. 83; 2003b, p. 72), como única
forma, ainda, de adequação ao fato do pluralismo axiológico-normativo
(cf.: FORST, 2010, p. 334-345; HABERMAS, 2002a, p. 19-41, 2003b, p. 24-25;
RAWLS, 2000c, p. 180-220), estas instituições jurídico-políticas democráti-
cas necessitam assumir como sua base-dinâmica de constituição-legitima-
ção-evolução interna e como ponte frente à sociedade civil e seus sujeitos

191
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

epistemológico-políticos particulares, um procedimentalismo institucio-


nal que é neutro, imparcial, formal e impessoal relativamente às classes
sociais e às lutas de classe. Ora, o procedimentalismo jurídico-político,
ao assumir estes qualificativos-características de imparcial, neutro, formal
e impessoal significa e implica em uma dinâmica de funcionamento, de
constituição, de legitimação e de evolução que adquire contornos apolíti-
cos, não-políticos e não-normativos, como a forma epistemológico-políti-
ca mais adequada para a igual representação de todos os sujeitos sociais.
Nesse sentido, o caminho programático-político assumido, desenvolvido e
representado pelas instituições sob a forma desse procedimentalismo jurí-
dico-político impessoal, imparcial, neutro e formal é, como vimos dizendo,
um caminho apolítico e despolitizador, que pressupõe que uma arena e
um ponto de partida não-políticos, assumidos por sujeitos que deixam de
lado sua politicidade e sua vinculação político-normativa (pense-se, nesse
caso, no modelo da posição original e de seu véu da ignorância, conforme
tematizado por John Rawls), poderiam efetivamente gerar um paradigma
epistemológico-político-normativo institucional para a participação polí-
tica e a crítica social por parte dos sujeitos epistemológico-políticos da
sociedade civil em relação a si mesmos, às instituições jurídico-políticas
e aos sistemas sociais, bem como para o ativismo político-normativo das
instituições internamente a si mesmas, frente à sociedade civil e seus su-
jeitos epistemológico-políticos e fazendo o elo entre sistemas sociais e
sociedade civil, elo esse, médium esse que seria constituído-dinamizado
pelas próprias instituições jurídico-políticas e como procedimentalismo
imparcial, neutro, formal e impessoal.
Note-se o argumento central que justifica o procedimentalismo
jurídico-político imparcial, neutro, formal e impessoal como base para o
criticismo social e a participação política, como base ainda para a corre-
lação entre sociedade civil e sistemas sociais, nas sociedades democráti-
cas complexas contemporâneas, de modernização burocrático-capitalista:
somente um ponto de partida não-político institucionalizado, sustenta-
do e realizado desde as instituições, permite a construção de uma noção
objetiva, universal e vinculante de normatividade social que, depois, será
utilizada pelas instituições e pelos sujeitos epistemológico-políticos como
base de suas lutas, de seu criticismo e de suas reivindicações. Novamen-
te: um ponto de partida e um procedimento institucional apolíticos são
condições epistemológico-políticas fundamentais, são estratégias pro-
gramático-propositivas fundamentais para fundar-se um ponto de vista
político tanto em termos institucionais quanto em termos de práxis! No
mesmo sentido, apenas sujeitos epistemológico-políticos neutros e des-
politizados, apolíticos e cegos politicamente em seu sentido mais pleno

192
DEMOCRACIA E AGONISMO

e pungente, conforme pressuposto-assunção-mote pelas-das teorias do


contrato social sob a forma de procedimentalismo neutro, formal, impar-
cial e impessoal, teriam condições de fundar uma práxis político-normativa
que oferece um paradigma crítico-emancipatório para o criticismo social
como práxis política! Com isso, as classes sociais e as lutas de classe não
apenas passam para segundo plano em termos de construção desse para-
digma político-normativo institucional, senão que são apagadas seja dessa
construção paradigmática, seja, mais ainda, da própria compreensão-gê-
nese do processo de modernização ocidental, de sua dinâmica evolutiva e da
constituição-dinamização de seus sistemas sociais, como se eles fossem pro-
cessos e estruturas sem sujeitos epistemológico-políticos, sem politicidade,
carnalidade e normatividade. Aqui, um paradigma político sem política, dina-
mizado por instituições jurídico-políticas técnicas e realizado-sustentado por
sujeitos epistemológico-políticos apolíticos descamba para a imparcialidade,
neutralidade, formalidade e impessoalidade como os critérios normativo-
-programáticos basilares para a realização da crítica social, da participação
política e da atuação das instituições. Assim, correlatamente, tem-se a mini-
mização do alcance e do sentido da crítica social, a grande despolitização e a
sensível perda de intensidade da participação política frente às instituições
e, finalmente, mas não menos importante, a sobreposição e autonomização
das instituições jurídico-políticas em particular e dos sistemas sociais em
geral frente à práxis política como criticismo social e politização ampliados
dos movimentos sociais e das iniciativas cidadãs relativamente aos sistemas
sociais lógico-técnicos, que seguem mantendo praticamente inquestionado
e intocado seu sentido lógico-técnico, autorreferencial e autossubsistente,
gerando o institucionalismo forte – centralização e monopolização da cons-
tituição-legitimação-evolução das instituições pelas próprias instituições e
seus técnicos, desde uma perspectiva não-política, não-normativa e lógico-
-técnica que é autorreferencial e autossubsistente, autônoma e sobreposta
em relação à sociedade civil, às classes sociais e às lutas de classe.
Da correlação entre instituições lógico-técnicas, autorreferenciais e
auto-subsistentes, com um procedimentalismo imparcial, neutro, formal
e impessoal como base do funcionamento-legitimação das instituições e
como forma paradigmática de orientação normativa das lutas sociais e dos
sujeitos epistemológico-políticas, tem-se a centralidade do instituciona-
lismo, conforme vimos argumentando, e de um institucionalismo forte
que concebe exatamente as instituições como objeto da teoria da justiça e
sujeitos da práxis política. Ora, esse institucionalismo, na medida em que
tecniciza e despolitiza os sistemas sociais, tornando-os fechados, autôno-
mos e sobrepostos em relação às classes sociais e às suas lutas, e na me-
dida em que afirma-exige um procedimentalismo apolítico e sem sujeito,

193
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

gera alguns problemas fundamentais para a realização do criticismo social


como práxis política: primeiramente, o institucionalismo acaba sendo efe-
tivamente o sujeito epistemológico-político central, para além dos sujeitos
epistemológico-políticos da sociedade civil, minimizando-os e, em verda-
de, submetendo-os à dinâmica de funcionamento e de legitimação assu-
mida, centralizada e dinamizada pelas elites institucionais, tais como os
técnicos dos sistemas sociais e os partidos políticos; esse mesmo institu-
cionalismo, com base em uma dinâmica autorreferencial, auto-subsistente
e lógico-técnica que é interna às próprias instituições, torna-se também
a base paradigmática, normativa – apolítica, despolitizadora – para o en-
quadramento-legitimação-validação dos sujeitos epistemológico-políticos
não-institucionalizados e das lutas sociais, o que significa dizer-se que o
criticismo social como práxis política, realizado desde a sociedade civil por
sujeitos epistemológico-políticos não-institucionalizados, é enquadrado
pelas e dependente das elites-técnicos institucionais, devendo assumir
uma correlação estreita com o institucionalismo e, mais ainda, sendo cana-
lizado por este, guiado por este – assim, as lutas sociais e os sujeitos epis-
temológico-políticos informais, não-institucionalizados, podem alcançar
no máximo as escadas das instituições, mas a palavra final, o decisionismo
final é dado desde a dinâmica lógico-técnica, imparcial, impessoal institu-
cional e pela atuação das elites-técnicos institucionais; por fim, o institu-
cionalismo torna-se o médium que liga os sistemas sociais lógico-técnicos
e os sujeitos epistemológico-políticos não-institucionalizados e suas lutas
desde a sociedade civil, de modo que o criticismo social como práxis po-
lítica, dirigido aos sistemas sociais autorreferenciais, auto-subsistentes e
lógico-técnicos com vistas à sua politização, acaba sendo freado e minado
pelo institucionalismo, de modo que o institucionalismo acaba assumindo
essa função de crítica social e de transformação política, legitimando ou
deslegitimando qualquer forma de práxis política e de sujeito epistemológi-
co-político. Aqui, o institucionalismo torna-se a arena, o procedimentalis-
mo e o sujeito de sua própria constituição, legitimação e evolução ao longo
do tempo, ligando os demais sistemas sociais e a sociedade civil, as elites
institucionais e os sujeitos epistemológico-políticos não-institucionaliza-
dos, mas de um modo tal que a institucionalização é o ponto de partida, a
dinâmica e o ponto de chegada de qualquer práxis crítico-emancipatória.
Desse modo, sem institucionalização, não haveria crítica social e práxis po-
lítica, pelo menos não em seu sentido efetivo, transformador, legitimado
(cf.: HABERMAS, 2003b, p. 22-23; RAWLS, 2000a, § 53, p. 388-395). E sem
o ativismo institucional e como ativismo institucional não haveria sujeito
epistemológico-político efetivo e legítimo para a construção-dinamização
institucional e transformação social (cf.: HABERMAS, 2003b, p. 104-106).

194
DEMOCRACIA E AGONISMO

O tipo de institucionalismo surgido a partir da correlação entre (a)


a compreensão lógico-técnica, não-política e não-normativa dos siste-
mas sociais modernos, (b) a noção de modernização ocidental como auto-
-diferenciação, autorreferencialidade, auto-subsistência e autonomia de
sistemas sociais lógico-técnicos frente à práxis política, à normatividade
social, às classes sociais e suas lutas, e (c) o procedimentalismo jurídico-
-político imparcial, neutro, formal e impessoal como base da constituição-
-legitimação-evolução das instituições de um modo geral e das institui-
ções jurídico-políticas em particular, assim como, evidentemente, como
base normativa para a orientação do criticismo social como práxis política,
da participação política de movimentos sociais e de iniciativas cidadãs
frente às instituições, esse institucionalismo dali surgido caracteriza-se
pelo fato de ser sem politicidade, carnalidade e normatividade. É uma for-
ma de institucionalismo que aponta para o fato de que os sistemas sociais
são estruturas-sujeitos puramente técnicos, instrumentais, ou basicamen-
te técnicos e instrumentais, em que a técnica fria e objetiva, definível e
mensurável cientificamente, define a constituição-legitimação-evolução
institucional e a relação das instituições com a sociedade civil. Obviamen-
te, as teorias sociais críticas e as filosofias políticas liberais que usam a
teoria de sistemas e o procedimentalismo jurídico-político apolítico como
fundamento para o criticismo social como práxis política tentam conciliar
teoria de sistemas (instituições lógico-técnicas autorreferenciais e autos-
subsistentes) com normatividade social (a sociedade civil como substrato
cultural-normativo e epistemológico-político das instituições), de modo
que, se por um lado as instituições teriam essa estruturação e esse funcio-
namento lógico-técnicos, por outro elas também dependeriam – e depen-
deriam fundamentalmente – seja da participação política, seja do substra-
to normativo que somente seria dado pela participação social permanente,
pelo criticismo social tornado prática corriqueira por movimentos sociais
e por iniciativas cidadãs em termos de sociedade civil e sob a forma de
esfera público-política, o que significa dizer que, nessas teorias sociais crí-
ticas e filosofias políticas liberais e social-democratas (as já citadas acima),
a correlação entre institucionalização e espontaneidade, política formal
e política informal, sujeitos epistemológico-políticos institucionalizados
e sujeitos epistemológico-políticos não-institucionalizados, instituições e
sociedade civil, procedimentalismo institucional interno e esfera público-
-política, é que permitiria o controle e a reorientação das instituições, de
modo a evitar-se uma sua tecnicização e despolitização estritas e seu con-
sequente institucionalismo forte e apolítico (cf.: GIDDENS, 2000, p. 47-48;
HABERMAS, 2003a, p. 25, 2003b, p. 24, p. 104-106; RAWLS, 2000a, § 53, p.
388-395). Entretanto, como vimos dizendo, a correlação de teoria de siste-

195
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

mas (instituições lógico-técnicas autorreferenciais e autossubsistentes, de


funcionamento e dinâmica internos) e de procedimentalismo institucional
(institucionalização como procedimentalismo imparcial, neutro, formal e
impessoal) leva a que a sociedade civil como arena político-normativa e
os sujeitos epistemológico-políticos não-institucionalizados como classes
sociais sejam colocados em segundo plano pela centralidade do institucio-
nalismo como objeto das teorias da justiça e como sujeito da práxis políti-
ca. Aqui, a práxis política democrática primeiro está limitada pelo sentido
lógico-técnico, autorreferencial, autossubsistente, autônomo e fechado
das instituições em relação a uma politização direta, abrangente e inclu-
siva, o que significa, conforme falamos acima, que nem tudo é política e
político; segundo, ela está orientada e dinamizada pelo institucionalismo,
no sentido de que (a) a institucionalização é o começo, o caminho e o fim
do criticismo social como práxis política, (b) os sujeitos epistemológico-
-políticos institucionalizados são o sujeito político por excelência da cons-
tituição-legitimação institucional e da realização da transformação social,
representando e assumindo as pautas e a participação político-normativas
dos sujeitos epistemológico-políticos e da práxis política não-instituciona-
lizados, e (c) necessita assumir um sentido e uma dinâmica imparcial, neu-
tra, formal e impessoal relativamente às instituições, de modo que os su-
jeitos epistemológico-políticos da sociedade civil têm apagada sua atuação
como classe social e como práxis política espontânea. Por fim, (d) a práxis
política estaria limitada, orientada e definida pelo institucionalismo e pe-
las autoridades institucionais no sentido de que a sociedade civil e a esfe-
ra público-política seriam secundárias – não obstante representarem, nas
teorias sociais críticas e nas filosofias políticas liberais, o núcleo político-
-normativo das instituições – frente à arena institucional, seja no sentido
de que as instituições são lógico-técnicas, de procedimentalismo interno,
autorreferencial e autossubsistente em grande medida, seja no fato de que
os sujeitos epistemológico-políticos institucionais por excelência são as
elites-técnicos institucionais, e não as classe sociais, seja, por fim, no fato
de que a dinâmica institucional é caracterizada por aquele procedimenta-
lismo imparcial, neutro, formal e impessoal apolítico de que vimos falan-
do, e não pelas lutas de classe dinamizadas desde a sociedade civil. De uma
só tacada, portanto, a correlação de instituições lógico-técnicas, sistemas
sociais autorreferenciais e autossubsistentes e procedimentalismo apolíti-
co permite a despolitização e a sobreposição institucionais em relação às
classes sociais e às lutas de classe, possibilitando também o fechamento
e a autonomização dos sistemas sociais em relação à participação social
ampliada e inclusiva, à sua politização abrangente por parte dessa parti-
cipação política ampliada e inclusiva. No mesmo diapasão, e como conse-

196
DEMOCRACIA E AGONISMO

quência daquela correlação, o criticismo social como práxis política sai das
ruas e dos sujeitos epistemológico-políticos não-institucionais e é assu-
mido, centralizado e monopolizado pelas próprias instituições desde essa
perspectiva lógico-técnica, autorreferencial, autossubsistente, autônoma
e sobreposta em relação às ruas. Com isso, o institucionalismo torna-se
a arena político-programática, o paradigma crítico-normativo e o sujeito
epistemológico-político de si mesmo, da legitimação e do enquadramento
das classes sociais e de suas lutas e, por fim, de qualquer possível relação-
-ligação entre sistemas sociais e sociedade civil, elites-técnicos institucio-
nais e sujeitos epistemológico-políticos não-institucionalizados.
Essa forma de institucionalismo também elide, minimiza e apaga,
em grande medida, o papel da esfera público-política como lugar da práxis
epistemológico-política, ao tornar as instituições em autorreferenciais e
autossubsistentes, como estruturas-sujeitos lógico-técnicos que se auto-
nomizam e se sobrepõem a essa mesma esfera público-política, seus sujei-
tos epistemológico-políticos e suas lutas sociais. Essa forma de institucio-
nalismo, ainda aqui, solapa a práxis política espontânea e contraposta às
instituições constituída e dinamizada pela sociedade civil exatamente por
colocar o procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal interno
às instituições como a arena-práxis seja para a constituição-legitimação-
-evolução institucional, seja para, a partir daqui, pensar-se e problematizar-
-se a constituição-evolução social de um modo mais geral. Em ambos os
casos, a esfera público-política, enquanto arena e práxis político-normativa,
é enquadrada, periferizada e, ao cabo, substituída pelo institucionalismo
lógico-técnico, não-político e não-normativo, com seu procedimentalismo
apolítico, sem carnalidade. Nesse sentido, e ainda como consequência, as
classes sociais e suas lutas, próprias da esfera público-política, são mini-
mizadas e mesmo deletadas do horizonte do institucionalismo, que se con-
cebe exatamente como uma área-estrutura-sujeito puro, imparcial, impes-
soal, formal e neutro em relação a tais classes e suas lutas por hegemonia.
Desse modo, em primeiro lugar, os sujeitos epistemológico-políticos ins-
titucionalizados, com base naquele procedimento lógico-técnico objetivo
e apolítico, podem decidir em nome de todos e representando todos, para
além das classes sociais e de suas lutas. E, em segundo lugar, a esfera do
institucionalismo, sua constituição lógico-técnica, sua dinâmica procedu-
ral e seus sujeitos epistemológico-políticos neutros e impessoais aparecem
sobrepostos e autônomos em relação às classes sociais e suas lutas, com
capacidade para assumir – e, assim, prescindir – delas, periferizando-as,
suas pautas e sua luta, de forma a negá-las, minimizá-las. Nesse sentido, a
correlação entre instituições lógico-técnicas, procedimentalismo apolítico
e sujeitos epistemológico-políticos imparciais, neutros e impessoais leva

197
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

a uma dicotomia entre institucionalismo e esfera público-política que não


apenas não pode ser superada – por parte das teorias políticas liberais e seu
modelo de procedimentalismo político enquanto correlação entre política
formal e política informal – pela afirmação teórico-política desta separa-
ção, mas ao mesmo tempo pela inserção-dependência do institucionalis-
mo em relação à sociedade civil, senão que conduz diretamente ao institu-
cionalismo forte próprio do conservadorismo, a saber: de um lado, temos
a esfera público-política e a sociedade civil com suas classes sociais e suas
lutas por poder e hegemonia; e, de outro, temos a esfera institucional com
sua constituição-legitimação-evolução lógico-técnica, apolítica, desde um
procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal administrado e
utilizado por técnicos baseados em análise instrumental objetiva. Aqui,
nessa dicotomia, a sociedade civil e a esfera público-política, com suas
classes sociais antagônicas e suas lutas por poder e hegemonia, aparece-
riam como uma esfera de caos, anomia e vinculação político-normativa, ao
passo que, na esfera dos sistemas sociais ou instituições, a arena, a dinâmi-
ca e os sujeitos epistemológico-políticos institucionalizados ou sistêmicos
apareceriam como ordenados, objetivos, neutros, impessoais e imparciais,
de modo não apenas a representar equitativamente os interesses de todos
os sujeitos epistemológico-políticos da sociedade civil, mas também de ca-
nalizar a anomia e a barbárie destes dentro dos trilhos pacíficos e ordeiros
– porque lógico-técnicos, imparciais, neutros, formais e impessoais – das
próprias instituições e por seus técnicos. A esfera público-política e a so-
ciedade civil, portanto, nessa visão e como consequência dela, apareceria
como excessivamente política e politizadora, ao passo que o instituciona-
lismo seria caracterizado exatamente pela correlação na dosagem certa,
moderada, entre politização e tecnização.
É por isso que estamos enfatizando que uma teoria social crítica
como práxis política necessita minar, enfraquecer e deslegitimar a imbrica-
da correlação, própria de teorias políticas contemporâneas, entre teoria de
sistemas, procedimentalismo e institucionalismo, isto é, entre (a) uma con-
cepção lógico-técnica das instituições ou sistemas sociais, enquanto estru-
turas-sujeitos puros, fundamentalmente instrumentais, temperada com (b)
uma noção de modernização ocidental enquanto auto-diferenciação, au-
torreferencialidade, auto-subsistência e autonomia desses sistemas sociais
lógico-técnicos, dinamizados por (c) um procedimentalismo institucional
que é imparcial, neutro, formal e impessoal relativamente às classes sociais
e suas lutas por poder, que (d) institui um tipo de instituição ou sistema
social que é autônomo, fechado e sobreposto em relação à sociedade civil
e à esfera público-política, seus sujeitos epistemológico-políticos não-
-institucionalizados e suas lutas, (e) consolidando uma barreira bastante

198
DEMOCRACIA E AGONISMO

intransponível entre institucionalismo e espontaneidade, sistemas sociais


e sociedade civil, procedimentalismo apolítico e práxis política como luta
social, tecnocracia e criticismo social, sujeitos epistemológico-políticos
institucionalizados e classes sociais. É necessária, portanto, uma forma de
criticismo social como práxis política que, correlatamente, (1) ofereça um
modelo político-normativo de modernização ocidental de um modo ge-
ral e dos sistemas sociais ou instituições modernos em particular, modelo
político-normativo esse que negue o caráter lógico-técnico, autorreferen-
cial e auto-subsistente dessas mesmas instituições; (2) desloque os pesos
do institucionalismo para a sociedade civil e para a esfera público-política
enquanto esfera-práxis fundamentalmente político-normativa; (3) substi-
tua o procedimentalismo jurídico-político imparcial, neutro, formal e im-
pessoal enquanto arena-práxis institucional e paradigma normativo tanto
para a constituição-legitimação-evolução dos sistemas sociais e para a re-
lação entre instituições e sociedade civil quanto para a própria realização
do criticismo social enquanto práxis política pela noção de lutas de classe
enquanto efetivamente caracterizando-dinamizando a práxis política coti-
diana; e, finalmente, (4) substitua os sujeitos epistemológico-políticos ins-
titucionalizados, de cunho lógico-técnico e apolítico, e baseados naquele
procedimentalismo lógico-técnico e apolítico acima especificado, pelas
classes sociais enquanto sujeitos epistemológicos-políticos-normativos da
constituição institucional e da transformação social que, por meio de suas
lutas por hegemonia teórico-política, efetivamente dinamizam e orientam
a estruturação das instituições e o caminho da evolução social. Nesse caso,
a noção de classe social enquanto macrossujeito epistemológico-político
da evolução social-institucional permitiria, concomitante e imbricada-
mente, a superação do anonimato e da individualização dos sujeitos epis-
temológico-políticos assumida e enfatizada por teorias políticas liberais e
social-democratas contemporâneas e da tecnicização e da apoliticidade do
procedimentalismo institucional de autoconstituição, autofundamentação
e autoevolução. Com isso, o criticismo social como práxis política faria vol-
tar às ruas e sob a forma de lutas sociais entre sujeitos epistemológico-
-políticos não-institucionalizados, a constituição-legitimação-evolução
das instituições e a construção dos possíveis caminhos da transformação
social, tornando as instituições e esses caminhos totalmente politizados
– criticismo social como práxis política, transformação social como práxis
política direta, inclusiva e participativa. Por fim, o criticismo social como
práxis política, fundado na e dinamizado pela politização abrangente, dire-
ta e radical das instituições, da práxis institucional-societal e dos sujeitos
epistemológico-políticos permite romper-se a barreira entre instituições
lógico-técnicas, autorreferenciais e autossubsistentes e sociedade civil e

199
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

esfera público-política enquanto arena-práxis político-normativa, assim


como, em consequência, a contraposição e sobreposição entre técnicos e
elites institucionais versus classes sociais, entre procedimentalismo insti-
tucional apolítico e lógico-técnico versus práxis política como luta social,
como crítica e participação social.

Crítica social e práxis política: questões e desafios


epistemológico-políticos programáticos

Pensar o criticismo social como práxis política – isto é, defender-le-


gitimar que a realização da crítica social tem como condição de possibili-
dade e como fundamento normativo a politização e a participação política
permanentes, portanto acontecendo apenas como politização e participa-
ção diretas dos excluídos por eles mesmos e para eles mesmos, para além
de certo modelo de objetividade e de neutralidade teóricas que, ao estilo
do procedimentalismo institucional, separa o que é propriamente teoria
e o que é propriamente práxis política, Realpolitik, como se separa políti-
ca institucional-formal e participação política espontânea-informal com
seus atores respectivos – apresenta certas questões e certos desafios epis-
temológico-políticos que queremos refletir a partir de agora. Em primeiro
lugar, insistimos novamente, o criticismo social somente é possível como
práxis política, o que exige politização permanente das lutas sociais, dos
arranjos institucionais e dos sujeitos epistemológico-políticos, de modo
a evitar-se e a desconstruir-se o institucionalismo forte em política que
se baseia na e que leva à correlação entre instituições lógico-técnicas, de
cunho autorreferencial e autossubsistente, ao procedimentalismo institu-
cional marcado por uma dinâmica de funcionamento e de legitimação e de
constituição que é imparcial, neutral, formal e impessoal, e à tecnocracia
política, no sentido de que instituições lógico-técnicas, autorreferenciais e
autossubsistentes, são estruturas-sujeitos-dinâmicas não-políticas e não-
-normativas, administradas, geridas e legitimadas apenas por técnicos e
elites institucionais e desde uma perspectiva eminentemente interna, fe-
chada, autônoma e sobreposta à sociedade civil, à esfera público-política,
suas classes sociais e suas lutas por hegemonia.
A politização permanente dos sujeitos epistemológico-políticos,
das dinâmicas-estruturações institucionais e dos sujeitos epistemológico-
-políticos institucionais e não-institucionais tem como consequência a
politização das instituições, seu procedimentalismo e seus sujeitos epis-
temológico-políticos, evitando-se, aqui, sua despolitização e tecnicização,
contribuindo, assim, para deslocar o peso da legitimação institucional e da
evolução social para a sociedade civil, a esfera público-política, canalizada
e dinamizada pelas classes sociais como macrossujeitos epistemológico-

200
DEMOCRACIA E AGONISMO

-políticos de alcance e sentido estrutural, com suas lutas por hegemonia


(cf.: MORAÑA; DUSSEL; JÁUREGUI, 2008; RANCIÈRE, 2014). Nesse sen-
tido, em uma situação de politização direta das instituições, de seu proce-
dimentalismo e de seus sujeitos epistemológico-políticos, bem como, cor-
relatamente, no momento em que se situa essas mesmas instituições, seus
sujeitos epistemológico-políticos e suas dinâmicas de funcionamento, de
legitimação e de evolução dentro do horizonte político-normativo consti-
tuído pela sociedade civil e, aqui, pela esfera público-política, orientada
e dinamizada e definida pelas lutas sociais por hegemonia entre sujeitos
epistemológico-políticos antagônicos, tem-se a desconstrução daquela
imagem, herdada da teoria de sistemas, de que as instituições são estrutu-
ras-sujeitos puros, basicamente instrumentais, de constituição e dinâmica
lógico-técnica individualizada, autossubsistente, fechada, autorreferen-
cial, estruturas-sujeitos puros que em rigor seriam-apareceriam como au-
tônomos em relação às lutas de classe e à hegemonia de classe. Da mesma
forma, assumindo-se a politização das instituições, de suas dinâmicas e de
seus sujeitos epistemológico-políticos formais, situando-os, portanto, no
horizonte político-normativo da sociedade civil, de suas classes sociais e
de suas lutas políticas por hegemonia, possibilita-se ao criticismo social
como práxis política recusar o procedimentalismo institucional imparcial,
neutro, formal e impessoal como práxis político-institucional para a orien-
tação-enquadramento das instituições, de suas relações com a sociedade
civil e mesmo do modo como os sujeitos epistemológico-políticos da so-
ciedade civil interagem com essas mesmas instituições e suas elites. Nesse
sentido, o procedimentalismo institucional apolítico deixa de ser a base
paradigmática para o criticismo social e para a participação política da
sociedade civil e de seus sujeitos epistemológico-políticos frente ao insti-
tucionalismo, de modo que, a partir de agora, a práxis política passa a ser
percebida como luta política, como participação-problematização política
abrangenge, direta e inclusiva em relação aos sistemas sociais de um modo
geral e às instituições jurídico-políticas em particular.
A politização permanente, abrangente e direta dos sistemas sociais,
de suas dinâmicas procedimentais e de seus sujeitos epistemológico-polí-
ticos técnicos-formais possibilita, ainda e como consequência do que foi
exposto acima, a superação de qualquer ranço de tecnicalidade e de objeti-
vidade puras relativamente ao entendimento-fundamentação do funciona-
mento e da constituição das instituições, à atuação de suas elites políticas
e, finalmente, ao tipo de práxis política que pode legitimamente ser assumi-
do pelos sujeitos epistemológico-políticos da sociedade civil e como sujei-
tos epistemológico-políticos não-institucionais. Como estamos dizendo, a
dinâmica de constituição, legitimação e funcionamento das instituições, a

201
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

própria noção de instituição ou de sistema social, o institucionalismo de


um modo mais geral não pode ser explicado e muito menos transformado a
partir da assunção da perspectiva lógico-técnica e, principalmente, a par-
tir da aceitação de sua própria autorreferencialidade, de sua própria autos-
subsistência, de seu sentido interno e autônomo em relação à politização
direta e abrangente. Isto quer dizer, em outras palavras, que a perspectiva
crítico-emancipatória paradigmática para compreender-se a estruturação
das instituições, sua dinâmica e elites internas e sua relação-vinculação
com a sociedade civil, seus sujeitos epistemológico-políticos e suas lu-
tas não reside no institucionalismo como um fim em si mesmo, autôno-
mo e sobreposto em relação a essa mesma sociedade civil, seus sujeitos
epistemológico-políticos e suas lutas. Ora, as instituições, suas dinâmicas
procedimentais e seus sujeitos epistemológico-políticos formais somente
podem ser explicados a partir da tematização e da referência à sociedade
civil, à esfera público-política, às classes sociais, suas lutas, hegemonia e
contrapontos, posto que não existe um institucionalismo puro, lógico-técni-
co, autônomo, autorreferencial e autossubsistente em relação à politização
permanente possibilitada-realizada pelas classes sociais, suas lutas e con-
trapontos. É nesse sentido que somente pode haver criticismo social como
práxis política radical, abrangente, permanente e inclusiva. É nesse sentido,
inclusive, que não pode haver procedimentalismo institucional puro, apo-
lítico, neutro, imparcial, formal e impessoal relativamente às lutas sociais
entre-pelos sujeitos epistemológico-políticos da sociedade civil e em termos
de esfera público-política. Aqui, como já dissemos de passagem acima, é
uma questão de vida e de morte para o criticismo social como práxis política,
para os sujeitos epistemológico-políticos marginalizados, excluídos e, por
isso, crítico-emancipatórios da sociedade civil o evitar a tecnicização e a
apoliticidade e a impessoalidade das instituições, de suas dinâmicas proce-
dimentais e de seus sujeitos epistemológico-políticos informais.
Em segundo lugar, e como consequência do que vem sendo desen-
volvido neste texto, o criticismo social como práxis política, como politi-
zação permanente, direta, radical e abrangente das instituições, de suas
dinâmicas procedimentais e de seus sujeitos epistemológico-político for-
mais por meio de sua localização dentro do e dependente do horizonte
político-normativo constituído pela sociedade civil e em termos de esfera
público-política, por meio de sua ligação direta às classes sociais, suas lu-
tas por hegemonia e os contrapontos daqui advindos, esse mesmo criti-
cismo social como práxis política direta e politizadora deve romper com
a separação entre teoria e prática que está por trás de um modelo de ob-
jetividade teórica pura e, como consequência, de práxis política asséptica
que, como vimos dizendo, descamba diretamente para o institucionalis-

202
DEMOCRACIA E AGONISMO

mo forte, apolítico e lógico-técnico, autorreferencial e autossubsisten-


te, autônomo e sobreposto em relação às classes sociais e suas lutas. O
criticismo social como práxis política deve estar para além, em confronto
com esse ideal de objetividade teórica pura, o que também significa que
ele deve enfrentar e superar o procedimentalismo institucional apolítico,
imparcial, neutro, formal e impessoal como base paradigmática para o
funcionamento-legitimação das instituições em relação a si mesmas, das
instituições frente à sociedade civil e, finalmente, como base normativa,
crítico-emancipatória para a atuação-enquadramento dos sujeitos episte-
mológico-políticos da sociedade civil frente a si mesmos e em sua relação
com as instituições e suas elites formais. A voz das vítimas, dos excluídos
e dos marginalizados, nesse sentido, não admite tal pureza, formalismo
e neutralidade teóricas, assim como não pode ser ouvida-realizada como
procedimentalismo institucional-paradigmático de cunho impessoal e im-
parcial, senão que somente por meio da própria participação-fala-luta do
oprimido contra complexos institucionais lógico-técnicos e instrumentais
que despolitizam a vinculação social-política-normativa das instituições e
sua ligação e dependência para com sujeitos epistemológico-políticos em
termos de Realpolitik (cf.: FREIRE, 1987, p. 16-32, 1981, p. 31-35, 2001, p.
31-52; RANCIÈRE, 2014, p. 63-66). A voz das vítimas-excluídos-margina-
lizados é práxis política direta, inclusiva, participativa e politizadora, voz-
-práxis que vincula as instituições, suas dinâmicas procedimentais e seus
sujeitos epistemológico-políticos formais às lutas de classe, aos sujeitos
epistemológico-políticos da Realpolitik, da sociedade civil. Com isso, ar-
gumentamos que o criticismo social enquanto práxis política direta, per-
manente, participativa e inclusiva, politizadora das instituições e de seus
sujeitos epistemológico-políticos, ao estar baseado na assunção da luta de
classes e entre classes, permite superar a tradição platônica da objetivida-
de a todo custo, ainda hoje assumida pelo e utilizada no procedimentalis-
mo institucional jurídico-político imparcial, neutro, formal e impessoal
das teorias sociais e filosofias políticas liberais e social-democratas. Essa
objetividade apenas se dá por meio da práxis política e desde a voz-parti-
cipação-luta dos oprimidos e marginalizados, por parte deles e para eles,
não a partir de um paradigma normativo genérico ao estilo do mundo da
vida ou da linguagem ou do trabalho. Esse mesmo criticismo social como
práxis política direta, participativa, inclusiva e abrangente, ao eliminar a
tecnicização e despolitização das instituições, de suas dinâmicas proce-
dimentais e de seus sujeitos epistemológico-políticos formais, permite a
localização, a encarnação e a politização – assim como a intencionalidade
– das classes sociais como sujeitos epistemológico-políticos, de suas lutas
e de seus contrapontos, apontando para essa encarnação, intencionalidade

203
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

e politização como os pontos centrais de qualquer análise social que já é


e que já se manifesta como práxis política. Isso certamente elide qualquer
perspectiva de objetividade pura, neutra e formal que se confunde com
tecnicalidade, assim como de procedimentalização imparcial e impessoal
das instituições, da práxis política e das classes sociais que se confunde
com e descamba para o institucionalismo forte.
Em terceiro lugar, a perspectiva-desafio central do criticismo social
como práxis política direta, inclusiva e participativa consiste exatamente
em tornar-se a voz-interpretação-ação das vítimas e pelas próprias víti-
mas. Como as vítimas podem lutar? Quem são elas? Primeiro, as vítimas
podem lutar desde uma perspectiva marginal, como práxis político-norma-
tiva marginal e como sujeitos epistemológico-políticos marginais, isto é,
antissistêmicos e anti-institucionalistas. Com efeito, talvez a mais básica
definição de vítima ou excluído ou marginalizado, pelo menos quando se
pensa em aspectos epistemológicos-políticos-normativos, consiste na per-
cepção de que as vítimas estão às margens das instituições, portanto exclu-
ídas do sistema social. Nesse sentido, sua luta pode ser antissistêmica em
um duplo aspecto: pode buscar a subversão do sistema social, a reestrutu-
ração das instituições como um todo e em perspectiva estrutural, ou pode
integrar-se aos sistemas sociais ou instituições hegemônicos em um senti-
do reformista. Para nós, o criticismo social como práxis política emancipa-
tória, participativa, direta e inclusiva tem lugar efetivamente como práxis
política antissistêmica por sujeitos epistemológico-políticos não-institu-
cionalizados, em que a luta social ganha centralidade e primazia frente
ao procedimentalismo apolítico e imparcial enquanto institucionalismo
forte, despolitizado e despolitizador, de modo que, da mesma forma, as
classes sociais e suas lutas, como respectivamente sujeitos epistemológi-
co-políticos não-institucionalizados e arena-práxis político-normativa in-
formal, passam a primeiro plano em termos de dinamização e construção
dos designs institucionais e de orientação dos processos de evolução social.
De todo modo, esse sentido antissistêmico e anti-institucionalista da práxis
política emancipatória como criticismo social, dos sujeitos epistemológi-
co-políticos marginalizados e de sua luta sociopolítica aponta exatamente
para a reconversão-desestruturação sistêmica que somente pode aconte-
cer desde fora dos sistemas sociais autorreferenciais e autossubsistentes,
e como práxis político-normativa que supera, que desconstrói o sentido
lógico-técnico e o procedimentalismo institucional apolítico que cons-
tituem o fundamento da dinâmica de constituição-legitimação-evolução
dos sistemas sociais. Aqui reside o sentido primário das nossas afirmações
sobre a práxis política de cunho crítico-emancipatório como participação-
-transformação antissistêmica e do sujeito epistemológico-político da

204
DEMOCRACIA E AGONISMO

práxis como o sujeito marginalizado, não-institucionalizado, alijado epis-


temológica, política e normativamente frente aos sistemas sociais e suas
elites: as correlações entre sujeitos epistemológico-políticos marginaliza-
dos como sujeitos epistemológico-políticos não-institucionalizados, as-
sim como da práxis político-normativa emancipatória com-como trans-
formação desde as margens dos sistemas sociais e contra eles, significam
que a transformação sistêmica, que é práxis político-normativa, ataca di-
retamente a dinâmica lógico-técnica, autorreferencial e autossubsistente
desses sistemas sociais, o que significa sua desestruturação-derrubada
como estruturas-sujeitos-instituições puros, basicamente instrumentais,
sem qualquer carnalidade-politicidade-normatividade; no mesmo diapa-
são, ela ataca também a tecnicização, a impessoalidade e a imparciali-
dade, o que significa a despolitização, do sujeito epistemológico-políti-
co dos sistemas sociais, das instituições, substituindo esse sujeito sem
politicidade-carnalidade-intencionalidade-normatividade, basicamente
lógico-técnico, pelas classes sociais e suas lutas, totalmente politizadas e
politizantes. Isso significa também, como a afirmação anterior já salien-
tou, que o procedimentalismo apolítico, imparcial e impessoal, que nega
a práxis político-normativa como participação e ativismo inclusivo, direto
e radical, que legitima a organização autorreferencial, autossubsistente
e lógico-técnica das instituições, é substituído pela luta de classes como
a dinâmica balizadora e definidora daqueles designs institucionais e da-
queles processos de evolução social. Aqui, a política e a crítica social – a
política como crítica social, a crítica social como participação-ativismo
político – retornam à práxis, como práxis, assumida e dinamizada pelas
classes sociais e definida-orientada por suas lutas.
Note-se, reafirmamos mais uma vez, o sentido antissistêmico e anti-
-institucionalista do criticismo social como práxis política emancipatória
dos excluídos e pelos excluídos: primeiro, ele se contrapõe diretamente à
noção de institucionalismo forte, lógico-técnico e apolítico, recusando a
autorreferencialidade, a auto-subsistência, a autonomia e a sobreposição
desses mesmos sistemas sociais em relação às classes sociais e suas lutas,
em relação à práxis política fundada em normatividade social; segundo, ele
se contrapõe ao sentido lógico-técnico da constituição, da legitimação e da
evolução dos sistemas sociais em relação a si mesmos e desde uma pers-
pectiva interna, em um triplo sentido, (a) de que são instituições político-
-normativas, de dinamização-funcionamento-legitimação profundamente
interligado, dependente e definido pela sociedade civil e como esfera pú-
blico-política, (b) de que os sujeitos epistemológico-políticos da dinamiza-
ção institucional-societal não são apolíticos, imparciais e impessoais, não
são estruturas-sujeitos-arenas puramente lógico-técnicos, instrumentais,

205
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

senão que fundamentalmente políticos e externos às próprias instituições,


enquanto classes sociais sediadas na e agindo desde a sociedade civil e
sob a forma de esfera público-política, e (c) de que o procedimentalismo
imparcial apolítico, lógico-técnico, autorreferencial e autossubsistente
não faz jus à politicidade-carnalidade-intencionalidade dos sujeitos epis-
temológico-políticos e de suas lutas sociais por hegemonia. Com isso, o
criticismo social como a voz-práxis político-normativa das vítimas e pelas
vítimas adquire esse sentido antissistêmico e anti-institucionalista exata-
mente por colocar em xeque a própria viabilidade de sistemas sociais ou
instituições apolíticos e despolitizadores, autorreferenciais, autossubsis-
tentes, autônomos e sobrepostos que instauram uma férrea, despolitizada
e impessoal barreira entre instituições e sociedade civil, entre dinâmica
interna dos sistemas sociais e esfera público-política, entre elites-técni-
cos institucionais e classes sociais, entre procedimentalismo institucional
apolítico-imparcial-impessoal e lutas sociopolíticas de classe. Ora, o criti-
cismo social como práxis político-normativa dos excluídos-marginalizados
por eles mesmos é antissistêmico e anti-institucionalista, no mesmo senti-
do, porque a tudo politiza e publiciza, colocando a esfera público-política
e a participação-crítica política ampliada, inclusiva e direta como a arena
e a práxis político-normativas basilares para a legitimação-constituição-
-evolução institucional-societal, rompendo com a autorreferencialidade, a
autonomia, a autossubsistência, a sobreposição e o fechamento estrutural
dos sistemas sociais a partir da afirmação de sua estruturação lógico-téc-
nica, não-política e não-normativa.
De todo modo, como queremos enfatizar aqui, o criticismo social
como práxis político-normativa das vítimas e pelas vítimas – o que liga,
imbrica ferreamente teoria e prática – é antissistêmico e anti-institucio-
nalista por um motivo e por uma condição epistemológico-políticos ainda
mais fundamentais, que é o próprio sentido e o próprio tipo de atuação
dos excluídos-marginalizados. Com efeito, sob o conceito de excluído-
-marginalizado desenha-se não apenas o tipo de estruturação institucional
lógico-técnica, não-política e não-normativa que despolitiza e tecniciza
grandes campos da evolução social e sua constituição-dinâmica institucio-
nalizada, que também despolitiza e tecniciza a vida-dinâmica interna des-
ses mesmos sistemas sociais, seus procedimentos e seu pessoal autorizado;
sob o conceito de excluído-marginalizado apresenta-se também a condição
desse excluído-marginalizado frente aos sistemas sociais ou instituições,
seu papel nulo e marginal em relação a elas, o fato de que eles são des-
cartáveis ou inúteis a esses mesmos sistemas sociais, bem como o tipo de
práxis crítico-emancipatória que esses mesmos excluídos-marginalizados
efetivamente instituem como contraponto às instituições. Comecemos por

206
DEMOCRACIA E AGONISMO

esse segundo ponto. De fato, a atuação crítico-emancipatória dos excluí-


dos-marginalizados somente pode acontecer como práxis político-norma-
tiva que, portanto, politiza os focos estruturais-institucionais e os sujeitos
epistemológico-políticos formais-institucionalizados responsáveis pela
exclusão-marginalização, ligando, portanto, os sistemas sociais ao todo
político-normativo constituído pela sociedade civil e em termos de esfe-
ra público-política, retomando, assim, um modelo de sociedade enquanto
totalidade político-normativa que efetivamente concebe os processos de
evolução sócio-institucional desde um prisma holístico, estrutural, e com
cunho político-normativo. A práxis político-normativa, crítico-emancipa-
tória dos excluídos-marginalizados não pode tecnicizar, despolitizar e in-
dividualizar os sistemas sociais; ela não pode torná-los autorreferenciais e
autossubsistentes, nem concebê-los em um sentido não-estrutural, como
se uma instituição tivesse apenas efeitos de curto alcance, e não efeitos em
nível macro geradores de dinâmicas sócio-institucionais e configuradores
do status quo socialmente vigente. Da mesma forma, a práxis político-nor-
mativa e crítico-emancipatória dos excluídos-marginalizados não pode
anonimizar, impessoalizar e imparcializar, sequer individualizar, os sujei-
tos epistemológico-políticos que, enquanto classes sociais, situam-se fora
das instituições, na sociedade civil e sob a forma de lutas por hegemonia
na esfera público-política, o que significa, nesse caso, que as instituições
ou sistemas sociais são uma consequência daquelas lutas sociopolíticas
entre classes sociais antagônicas por hegemonia.
Nesse sentido, a práxis político-normativa dos excluídos-marginali-
zados é não-técnica e política por excelência, na medida em que contra-
põe-se e põe por terra a despolitização e a instrumentalização dos sistemas
sociais e dos campos da reprodução humana que eles centralizam, mono-
polizam, tecnicizam e despolitizam; da mesma forma, a práxis político-nor-
mativa dos excluídos é política e intencional exatamente por contrapor-se
à impessoalidade-imparcialidade-neutralidade dos técnicos sistêmicos e
dos sujeitos políticos formais, institucionalizados. A práxis político-nor-
mativa dos excluídos, em verdade, como vimos dizendo, acontece desde as
margens das instituições ou dos sistemas sociais e como criticismo social
e participação política diretos, radicais, inclusivos, o que coloca em xeque
a autorreferencialidade e a autossubsistência sistêmicas, o sentido lógico-
-técnico das instituições, o procedimentalismo institucional formal, neu-
tro e apolítico, assim como a constituição-atuação imparcial e impessoal
dos sujeitos epistemológico-políticos institucionalizados. Isso também
significa que a práxis político-normativa dos excluídos-marginalizados é
antissistêmica exatamente por recusar e desconstruir a autonomia, o fe-
chamento e a sobreposição estruturais desses mesmos sistemas sociais, de

207
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

seus procedimentos e de seus técnicos-elites em relação à sociedade civil,


à práxis político-normativa direta e politizante, às classes sociais e suas
lutas. Em verdade, a própria condição sócio-política do excluído-margina-
lizado não admite outra alternativa que não a politização total das insti-
tuições e dos sujeitos epistemológico-políticos formais, a centralidade da
práxis político-normativa marginal em relação ao institucionalismo e, por
fim, o caráter crítico-emancipatório dos excluídos-marginalizados frente
aos sujeitos institucionalizados, às elites-técnicos sistêmicos. É também
nesse sentido, portanto, que o criticismo social como práxis política in-
clusiva e direta dos excluídos-marginalizados e por parte deles também é
anti-sistêmico e anti-institucionalista.
A nosso ver aqui está o grande desafio do criticismo social como
práxis política direta e inclusiva dos excluídos e pelos excluídos, um desafio
que se ramifica em alguns pontos programático-metodológico fundamen-
tais, de todo modo imbricados e mutuamente dependentes. Em primei-
ro lugar, o desafio-tarefa de construir uma teoria social crítica que pos-
sa efetivamente contribuir na politização das instituições e dos sujeitos
epistemológico-políticos formais a partir da sua localização em termos de
sociedade civil e de esfera público-política, com sua vinculação às classes
sociais enquanto sujeitos epistemológico-políticos e suas lutas por hege-
monia como a arena-dinâmica da constituição-legitimação-evolução insti-
tucional-societal. A construção de uma teoria social crítica dos excluídos-
-marginalizados, para eles e por eles é, acreditamos nós, o ponto nodal de
qualquer práxis política emancipatória – já Paulo Freire, no caso brasileiro,
por exemplo, insistiu em uma noção de pedagogia do oprimido que fosse
construída por esse mesmo oprimido a partir de suas especificidades, es-
forço e posição epistemológica-política-normativa (cf.: Freire, 1987). Ora,
tanto o academicismo exagerado quanto suas consequentes objetividade,
neutralidade, impessoalidade e logicismo, quando se trata das ciências hu-
manas e sociais (cuja função é exatamente a construção dessa teoria social
crítica dos oprimidos-excluídos-marginalizados, para eles, por eles) são
minimizados e, ao cabo, superados exatamente pela correlação entre cri-
ticismo social e práxis política antissistêmica e anti-institucionalista dos
oprimidos e por eles mesmos, posto que tal práxis encarnada, intencionada
e politizada, fundamentalmente normativa, recoloca o exercício teórico de
interpretação, de crítica e de transformação da Realpolitik no seu devido lu-
gar, a esfera público-política cotidiana própria à sociedade civil, e aos seus
efetivos sujeitos epistemológico-políticos, as classes sociopolíticas, com
suas lutas, contrapontos e posições epistemológico-políticas conflitantes,
conflitivas. Aqui, a participação-ativismo, a voz-práxis dos excluídos-mar-
ginalizados pelo sistema, pelas instituições, é que efetivamente permite o

208
DEMOCRACIA E AGONISMO

enquadramento, a crítica e a reorientação sistêmico-institucional. A cons-


trução de uma teoria social crítica como práxis política dos oprimidos-
-marginalizados-excluídos e para eles, portanto, permite-possibita e deve
permitir-possibilitar a politização dos sistemas sociais, de sua dinâmica
institucional e de seus sujeitos epistemológico-políticos, retirando-lhes
o sentido lógico-técnico, apolítico, impessoal e imparcial relativamente à
sociedade civil e à esfera público-política, às classes sociais e suas lutas.
Como o próprio Paulo Freire bem reconheceu, o criticismo social enquan-
to pedagogia-práxis do oprimido precisa ser realizado por ele e para ele, e
de modo antissistêmico e anti-institucional, vale dizer, de modo politiza-
dor, participativo e intencional, como práxis política direta e inclusiva.
O segundo desafio importante de uma teoria social crítica enquan-
to práxis político-normativa dos oprimidos-marginalizados e para eles
consiste em retomar e enfatizar a centralidade epistemológica, política e
normativa, assim como metodológico-programática, da práxis cotidiana,
da Realpolitik e, aqui, a tematização direta, como argumentaremos mais
adiante, das classes sociais e de suas lutas como a base de fundamentação-
-dinamização-legitimação institucional. É somente pela retomada-ênfase
da práxis político-normativa como o fundamento de onde toda a dinâmica
societal-institucional parte e de onde e para onde os sujeitos epistemoló-
gico-políticos, por meio de suas lutas e contrapontos, sempre se movimen-
tam que é possível superar-se o institucionalismo forte em teoria social e
filosofia política, rompendo-se, correlatamente, com a separação entre te-
oria e prática, instituições e vida social, sujeitos epistemológico-políticos
institucionalizados e sujeitos epistemológico-políticos não-institucionali-
zados, ligando-os indelevelmente e vinculando-os político-normativamen-
te. Somente a práxis político-normativa dos oprimidos e por eles mesmos,
para eles mesmos, tem a importante contribuição epistemológico-política
e programático-metodológica de superar o sentido lógico-técnico, autor-
referencial e autossubsistente dos sistemas sociais e, como consequência,
a imparcialidade, impessoalidade, neutralidade e formalismo dos sujeitos
epistemológico-políticos institucionalizados, politizando a tudo e a todos.
Por meio da práxis e como práxis, os oprimidos-marginalizados-excluídos
superam a apoliticidade dos sistemas sociais, suas dinâmicas e elites-téc-
nicos, assim como sua (dos oprimidos-marginalizados-excluídos) configura-
ção epistemológico-política marginal, assumindo protagonismo frente aos
sistemas sociais, suas dinâmicas institucionais e elites políticas – e isso cer-
tamente não significa integração e despolitização, mas, como vimos dizen-
do, práxis político-normativa antissistêmica e anti-institucional que rompe
com a lógica neutra, impessoal e imparcial e com a apoliticidade sistêmicas.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

O terceiro desafio fundamental para uma teoria social crítica como


práxis político-normativa direta e inclusiva dos oprimidos-excluídos-mar-
ginalizados e por eles, que leva à politização radical dos sistemas sociais,
de suas dinâmicas e de seus sujeitos epistemológico-políticos formais, as-
sim como à centralidade da práxis, das classes sociais e de suas lutas em
termos de legitimação-dinamização-orientação dos designs institucionais
e dos caminhos da evolução social, consiste em re-enfatizar e trabalhar
novamente os conceitos de classe social, de oprimido-excluído-margina-
lizado e de lutas de classe. Ora, em primeiro lugar, é importante ressal-
tar que, a partir da utilização dos conceitos de classe social e de lutas de
classe, está-se significando uma contraposição ao sentido lógico-técnico,
autorreferencial e autossubsistente, autônomo e sobreposto dos sistemas
sociais em relação à práxis político-normativa e às classes sociais e suas
lutas. Por conseguinte, aqui, os conceitos de classe social e de lutas de
classe querem enfatizar a politicidade-carnalidade-intencionalidade das
instituições, de seus sujeitos epistemológico-políticos, de suas dinâmicas
e configurações, retomando, finalmente, a ligação dessas instituições e de
seus sujeitos epistemológico-políticos com a sociedade civil e sob a forma
de esfera público-política dinamizada pelas lutas sociais entre macrossu-
jeitos epistemológico-políticos – não existem, nesse sentido, instituições
autorreferenciais, autossubsistentes e lógico-técnicas, não políticas e não-
-normativas. Da mesma forma, ao se utilizar esses conceitos de classe
social e de lutas de classe como contraponto à despolitização e à tecni-
cização dos sistemas sociais, de suas dinâmicas de funcionamento e de
legitimação, bem como de seus técnicos, elites e relações com a sociedade
civil, está-se apontando para um enfrentamento e para uma contraposi-
ção diretos seja ao procedimentalismo institucional apolítico, impessoal,
imparcial, neutro e formal, seja ao anonimato e à individualização dos su-
jeitos epistemológico-políticos das sociedades democráticas complexas
contemporâneas – não existem arena-práxis e sujeitos institucionais apolí-
ticos, lógico-técnicos, mas sim exatamente político-normativos. Ora, nos
três casos – instituições lógico-técnicas, procedimentalismo institucional
apolítico e sujeitos epistemológico-políticos anônimos e individualizados
– descamba-se direta ou indiretamente para o institucionalismo forte e
apolítico, caracterizado pela centralização e monopolização institucional,
e desde uma dinâmica interna e por meio de um sentido lógico-técnico,
da própria constituição-legitimação-evolução das instituições e, depois,
como consequência, para a própria orientação da evolução social, para o
correto enquadramento-justificação das lutas sociais e dos sujeitos episte-
mológico-políticos da sociedade civil. Os conceitos de classe social e de
lutas de classe, portanto, têm por objetivo (a) a politização dos sistemas

210
DEMOCRACIA E AGONISMO

sociais, suas dinâmicas impessoais e seus sujeitos epistemológico-políti-


cos formais, (b) a ligação entre institucionalização e práxis política, com a
localização do institucionalismo dentro do horizonte político-normativo
constituído pela sociedade civil e como esfera público-política e, por fim,
(c) a recolocação dos sujeitos epistemológico-políticos como macrossujei-
tos, como classes sociais de ação estrutural em termos de constituição-di-
namização institucional-societal. Nos três casos, tem-se uma politização
abrangente das instituições, de suas dinâmicas e dos sujeitos epistemoló-
gico-políticos, que perdem qualquer noção de tecnicalidade, anonimato,
impessoalidade e formalismo – características-chave das propostas con-
servadoras de cunho sistêmico, institucionalista e apolítico.
No mesmo diapasão, podemos conceber o conceito de excluído-
-marginalizado-oprimido a partir do seu sentido e práxis antissistêmicos,
anti-institucionalistas. O excluído-marginalizado-oprimido é um sujeito
político-normativo que, enquanto tal, confronta e põe por terra tanto a
configuração supostamente lógico-técnica dos sistemas sociais quanto
sua dinâmica autorreferencial e autossubsistente, basicamente interna.
Da mesma forma, enquanto sujeito político dotado de carnalidade-pes-
soalidade-intencionalidade, o excluído-marginalizado-oprimido permite
denunciar e superar a impessoalidade, imparcialidade, autonomia e sobre-
posição seja dos sistemas sociais em relação à sociedade civil, seja seu pro-
cedimentalismo imparcial e impessoal e neutro em relação à práxis política
como lutas de classe, seja, além disso, a apoliticidade-impessoalidade-
-imparcialidade-neutralidade do sujeito epistemológico-político sistêmi-
co, formal, institucionalizado. O excluído-marginalizado-oprimido está às
margens do sistema, como uma peça inútil e sem valor, como um sujeito
epistemológico-político que, por não ter se adequado e sobrevivido à selva
institucional, permite perceber, como antítese, o núcleo duro do sistema,
a selvageria de suas dinâmicas e a impessoalidade-insensibilidade de suas
elites – além disso, ele é excluído-marginalizado frente aos sistemas so-
ciais e suas elites pelo fato de não entendê-los, pelo fato de não saber como
administrar, gerenciar e fundamentar esses mesmos sistemas sociais des-
de um prisma lógico-técnico. Por isso, o excluído-marginalizado-oprimido
nunca é – e nunca pode ser – tecnicalidade, impessoalidade, imparciali-
dade. Ele é práxis político-normativa encarnada, pessoal e intencional, e
somente pode constituir-se como crítica social na medida em que se trans-
forma em sujeito da práxis, na medida em que é práxis político-normativa.
No mesmo sentido, a práxis político-normativa do excluído, como
participação-luta política direta e inclusiva, apresenta outro ponto nodal
que rompe com o institucionalismo lógico-técnico e com a impessoali-
dade, imparcialidade, neutralidade e formalismo seja do procedimenta-

211
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

lismo institucional apolítico, seja dos sujeitos epistemológico-políticos


institucionalizados-formais, que é exatamente a solidariedade. Com efeito,
a solidariedade social é a conditio sine qua non primeiramente para a so-
brevivência do excluído-marginalizado-oprimido: ele precisa de auxílio e
deve auxiliar, ele precisa construir uma rede de mutualidade e de ajuda que
religa, sob a forma de responsabilidade e de comprometimento, a comple-
xa e político-normativa rede de relações sócio-institucionais e de sujeitos
epistemológico-políticos informais; em segundo lugar, a solidariedade é
o médium que interliga os excluídos-marginalizados-oprimidos como ma-
crossujeito epistemológico-político da crítica social enquanto práxis política
inclusiva, direta e participativa, posto que nenhuma luta social antissistê-
mica e anti-institucionalista consegue ter condições de êxito sem aglutinar
a massa dos espoliados desde uma perspectiva-postura de solidariedade e
cuidado recíproco, de atuação como classe com consciência de classe. A
solidariedade social é antissistêmica e anti-institucionalista porque coloca
o foco da crítica social como luta política na inclusão, na politização e na
participação, rompendo com a centralidade da lógica sistêmica de autossub-
sistência a todo custo das instituições, para além das necessidades sociais e
dos sujeitos epistemológico-políticos. Em suma, o excluído-marginalizado-
-oprimido somente pode reerguer-se por meio da ajuda mútua, do reconhe-
cimento mútuo, da solidariedade entre esses mesmos excluídos-marginali-
zados-oprimidos, que os leva a concertarem uma práxis político-normativa
como classe que, dotada de consciência de classe, a tudo enquadra desde
uma perspectiva e de um sentido político-normativos. Ora, contrariamente
a isso, um sistema social lógico-técnico, autorreferencial e autossubsistente,
de procedimentalismo interno que é impessoal, imparcial, neutro e formal,
possui como dinâmica de funcionamento-legitimação-evolução basilar sua
própria constituição lógico-técnica, não-política e não-normativa: como
estrutura-sujeito puro, seu funcionamento e programação obedecem a um
cunho lógico-técnico e são orientados à realização de objetivos lógico-téc-
nicos por sujeitos lógico-técnicos que estão sobrepostos às exigências nor-
mativas e à práxis política dos valores de uso e, aqui, em termos de denúncia,
confronto e superação da exclusão-marginalização-opressão. Um sistema
social lógico-técnico, portanto, tem como única meta sua autossubsistência
ao longo do tempo por meio da afirmação de sua autorreferencialidade, de
seu sentido e dinâmica internos.

Considerações finais

À guisa de conclusão, o criticismo social como práxis político-nor-


mativa direta, inclusiva, participativa e solidária dos excluídos-margina-
lizados-oprimidos por eles mesmos deve afirmar exatamente seu sentido

212
DEMOCRACIA E AGONISMO

antissistêmico e anti-institucionalista, isto é, totalmente político e politi-


zante, que supera o tecnicismo e a despolitização assumidos diretamente
pelo conservadorismo político e indiretamente pela teoria social e pela filo-
sofia política de cunho liberal e social-democrata, contrapondo-se ao pro-
cedimentalismo institucional apolítico, formal e neutro frente às classes
sociopolíticas e às lutas sociais, rompendo também com a impessoalidade
e imparcialidade dos sujeitos epistemológico-políticos institucionalizados
em termos de constituição-legitimação-evolução institucional e societal.
O institucionalismo lógico-técnico, o procedimentalismo apolítico e o su-
jeito epistemológico-político formal-institucionalizado não servem como
base paradigmática para pensar-se o criticismo social como práxis política
que, pelo contrário, está fundado na e dependente da politização total, da
participação política direta, inclusive e solidária dos excluídos-marginali-
zados-oprimidos desde a sociedade civil e como práxis político-normativa
antissistêmica e anti-institucionalista. Nesse sentido, é preciso combater
sem tréguas aquela correlação desenvolvida acima como base da atuação
do conservadorismo político e como consequência do uso da teoria de sis-
temas e do procedimentalismo institucional apolítico por teorias sociais
e filosofias políticas liberais e social-democratas, a saber: compreensão
lógico-técnica de sistemas sociais autorreferenciais, autossubsistentes,
autônomos e sobrepostos, além de individualizados, em relação à socieda-
de civil, às classes sociais e suas lutas político-normativas por hegemonia;
o procedimentalismo institucional apolítico, formal e neutro como base
paradigmática para a orientação da dinâmica institucional e para o enqua-
dramento e dinamização dos sujeitos epistemológico-políticos informais,
não-institucionalizados; e, ainda, o sujeito epistemológico-político insti-
tucionalizado ou sistêmico enquanto imparcialidade e impessoalidade. É
preciso, por conseguinte, situar e ligar de modo efetivo instituições e socie-
dade civil, dinâmica institucional e práxis política como luta social e sujei-
tos epistemológico-políticos institucionalizados com classes sociais. Aqui,
a crítica e a emancipação, que somente acontecem como práxis político-
-normativa que é politizante e inclusiva, colocam exatamente a politização
e a participação-ação política permanentes, dinamizadas por solidarieda-
de social, como o elemento fundamental de denúncia, combate e supe-
ração da opressão, da marginalização e da exclusão geradas por sistemas
sociais lógico-técnicos administrados e geridos por sujeitos epistemológi-
co-políticos impessoais e imparciais desde um caminho institucional for-
mal e neutro. As lutas sociais devem ser agudizadas, tornar-se pungentes,
permanentes, se queremos superar a situação atual, em que percebemos
a reafirmação do institucionalismo forte, lógico-técnico e apolítico por
parte do conservadorismo político, uma forma de institucionalismo forte,

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lógico-técnico, apolítico, autorreferencial e auto-subsistente que deslegi-


tima e nega a centralidade da práxis, dos sujeitos epistemológico-políticos
da sociedade civil e em termos de esfera público-política, correlatamente
levando à sobreposição e autonomização das instituições em relação à so-
ciedade civil e à esfera público-política, à despolitização da práxis com sua
consequente institucionalização neutra e formal, e à tecnicização, impes-
soalidade e imparcialidade dos sujeitos epistemológicos-políticos-institu-
cionais, por meio da negação da politicidade das classes sociais e de suas
lutas, bem como da vinculação daqueles a estes.

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216
8
O conceito de vida boa nas filosofias
aristotélica e ricoeriana como uma
ferramenta para viver bem em
sociedade
Deborah Christina Biet de Oliveira

Introdução

O presente trabalho é uma continuação do texto O conceito de phró-


nesis em Aristóteles como etapa para conhecer sua influência no pensa-
mento de Ricouer, apresentado no livro Direito Internacional e (sua) filo-
sofia, quando se discorreu sobre os caminhos percorridos por Aristóteles
para que se possa alcançar a Eudaimonia, a Felicidade, porém, tendo maior
enfoque no que vem a ser a Phrónesis. O estagirita demonstra um caminho
que se inicia na Práxis (ações práticas), nas virtudes, passa pela Phrónesis
(sabedoria prática) e por fim chega-se à Eudaimonia, que é a felicidade má-
xima que todo homem pode desejar por si mesmo, sendo este o fim último a
que todo homem deve percorrer. Porém, esse caminho envolve muito mais
do que a realização de ações que forneçam sabedoria prática, nos tornando
virtuosos, pois há outras coisas que fazem parte da caminhada do homem
rumo à Eudaimonia. Assim, o intuito deste trabalho é não somente falar um
pouco mais sobre o pensamento de Aristóteles, mas também demonstrar
como Paul Ricoeur o reinterpreta para torná-lo um conceito atual.

217
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

A vida Boa como ferramenta para viver bem em Aristóteles

Ricoeur usa de conceitos basilares da filosofia de Aristóteles, porém


sua visão contemporânea o permite ter uma análise que abrange não so-
mente as teorias aristotélicas, mas também todo o desenvolvimento que
sofreram ao serem integradas às teorias dos filósofos que procederam
Aristóteles. A visão contemporânea de Ricoeur é um prisma que faz com
que ele possa promover uma visão atualizada e remodelada dos conceitos
aristotélicos, integrando-os à sua própria filosofia, “Ricoeur que promove
um diálogo e mediação muito produtivas desses diversos conceitos com
diversas linhas filosóficas contemporâneas” (NASCIMENTO, 2009, p. 10).
Para entender essa visão contemporânea de Ricoeur, é necessário
voltar nas teorias aristotélicas para então compreendê-las na contempo-
raneidade. A Vida Boa para Aristóteles é alcançada quando o indivíduo
age de forma virtuosa, para que isso possa ocorrer, seria necessário que
este indivíduo fosse criado com exemplos de pessoas virtuosas e nos bons
costumes, bons hábitos, para que assim suas ações fossem justas e tempe-
rantes. Entretanto, o próprio Aristóteles encontra um problema, e afirma
que alguns acreditam que o homem se torna bom, virtuoso, por três moti-
vos. O primeiro sendo por natureza, mas Aristóteles esclarece: ”A contri-
buição da natureza evidentemente não depende de nós, mas, em resultado
de certas causas divinas” (ARISTÓTELES, 1991, p. 239). Melhor dizendo,
são raros os casos em que o indivíduo é bom por natureza, somente causas
divinas são capazes de promover esse indivíduo à capacidade de ser justo
naturalmente, estes indivíduos “são verdadeiramente afortunados” (ARIS-
TÓTELES, 1991, p. 239-240).
O segundo motivo é o ensino. Neste sentido Aristóteles afirma:
“Suspeitamos de que não tenham uma influência poderosa em todos os
homens” (ARISTÓTELES, 1991, p. 240). Assim, não basta apenas ensinar
os bons hábitos, é necessário algo a mais. O terceiro e último motivo é o
hábito. É aquele que Aristóteles afirma ser o correto, pois devem ser culti-
vados na alma: “É preciso cultivar primeiro a alma do estudioso por meio
de hábitos, tornando-a capaz de nobres alegrias e nobres aversões” (ARIS-
TÓTELES, 1991, p. 240). Em resumo, o ensino somado aos hábitos é a re-
ceita para que os indivíduos sejam virtuosos. Entretanto, antes do ensino,
é necessário que a alma deste indivíduo esteja preparada para recebê-lo,
“como se prepara a terra que deve nutrir a semente” (ARISTÓTELES, 1991,
p. 240). Todavia, e se mesmo assim existirem indivíduos que se deixam le-
var por suas paixões? Pois o próprio Aristóteles responde: “A paixão não
parece ceder ao argumento, mas à força” (ARISTÓTELES, 1991, p. 240).

218
DEMOCRACIA E AGONISMO

Mas o que vem ser essa força? Os argumentos e as palavras não são
suficientes para causar mudança neste indivíduo que se deixa levar pelas
suas paixões.
Ora, se os argumentos bastassem em si mesmos para tornar
os homens bons, eles teriam feito jus a grandes recompen-
sas, como diz Teógnis, e as recompensas não faltariam. Mas
a verdade é que, embora pareçam ter o poder de encorajar e
estimular os jovens de espírito generoso, e preparar um cará-
ter bem-nascido e genuinamente amigo de tudo o que é nobre
para receber a virtude, eles não conseguem incutir nobreza e
bondade na multidão (ARISTÓTELES, 1991, p. 239).

Então o que deveria ser feito para que essa dureza ceda? O que é essa
força? Segundo o próprio Aristóteles, o homem só é capaz de mudar a si
mesmo quando está sob pressão: “O homem comum não obedece por natu-
reza ao sentimento de pudor, mas unicamente ao medo, e não se abstém de
praticar más ações porque elas são vis, mas pelo temor ao castigo” (ARIS-
TÓTELES, 1991, p. 239). O homem comum somente possui a capacidade
de agir diferente de sua natureza quando submetido às leis, pois não está
no homem praticar boas ações por vontade própria,
[...] pois levar uma vida temperante e esforçada não seduz a
maioria das pessoas, especialmente quando são jovens. Por
essa razão, tanto a maneira de criá-los como as suas ocupa-
ções deveriam ser fixadas pela lei; pois essas coisas deixam
de ser penosas quando se tornaram habituais. Mas não basta,
certamente, que recebam a criação e os cuidados adequados
quando são jovens; já que mesmo em adultos devem praticá-
-las e estar habituados a elas, precisamos de leis que cubram
também essa idade e, de modo geral, a vida inteira; porque a
maioria das pessoas obedece mais à necessidade do que aos
argumentos, e aos castigos mais do que ao sentimento nobre.

Em razão de sua natureza que não realiza atos virtuosos espontane-


amente, é que se faz necessário a criação das leis. Porém, não são criadas
com o objetivo de serem coercitivas, desagradáveis, odiosas ou abominá-
veis. As leis devem ser vistas como algo onde aqueles que possuem difi-
culdade de abandonar suas paixões possam buscar alicerce: “A lei é criada
com a finalidade de ajudar o homem a evitar o erro, com o passar do tempo
vai sendo internalizada, tornando-se ‘naturalmente’ um hábito. Quando
a lei se torna um hábito, deixa de ser uma coisa penosa para o homem”
(SILVA, 2017, p. 5).
A lei é o estímulo que obrigará este indivíduo agir de forma correta,
motivado pelo medo da punição, “o medo de punição é necessário para
que alguns ajam corretamente” (SILVA, 2017, p. 6). Aqueles que legislam

219
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

deveriam ser aqueles que estimulam os homens a agir de maneira virtuosa,


incitando-os a fazer aquilo que é bom e agradável por vontade própria e a
partir dos ensinamentos ocasionados pelas leis.
[...] partindo do princípio de que aqueles que já fizeram consi-
deráveis progressos, mercê da formação de hábitos, serão sensí-
veis a tais influências; e que conviria impor castigos e penas aos
que fossem de natureza inferior, enquanto os incuravelmente
maus seriam banidos de todo (ARISTÓTELES, 1991, p. 240).

Homens que são bons, que vivem com os pensamentos fixos no


que é bom, aceitam melhor a argumentação. Quanto aos homens maus
são aqueles que desejam somente o prazer, estes serão corrigidos pela dor
(ARISTÓTELES, 1991, p. 240) e “as dores infligidas devem ser as [...] mais
contrárias aos prazeres que esses homens amam” (ARISTÓTELES, 1991,
p. 241). Mas, mesmo que esses homens sejam forçados a viver de forma
boa, honrada, a lei não tem o objetivo de ser opressiva e retoma-se o que
no texto anterior foi exposto sobre mediania, que é a base para os atos vir-
tuosos. A lei, que é aquilo que auxilia o homem mais fraco a agir de forma
honrada e virtuosa, é a medida. Para isso deve ser boa e equilibrada. Mas
esse homem se torna bom quando:
[...] bem adestrado e acostumado, passando depois o seu tem-
po em ocupações dignas e não praticando ações más nem vo-
luntária, nem involuntariamente, e se isso se pode conseguir
quando os homens vivem de acordo com uma espécie de reta
razão e ordem, contanto que esta tenha força – se assim é, o
governo paterno em verdade não tem a força ou o poder co-
ercitivo necessários (nem, em geral, os tem o governo de um
homem só, a menos que se trate de um rei ou algo semelhante);
mas a lei tem esse poder coercitivo, ao mesmo tempo que é
uma regra baseada numa espécie de sabedoria e razão prática.
E, embora o comum das pessoas detestem os homens que con-
trariam os seus impulsos, ainda que com razão, a lei não lhes é
pesada ao ordenar o que é bom (ARISTÓTELES, 1991, p. 241).

Logo é possível compreender que o principal objetivo da lei a qual


Aristóteles nos mostra, não é punir os homens, e sim auxiliá-los para que
se tornem melhores. Aristóteles afirma: “É pelas leis que podemos nos
tornar bons, seguramente o que se empenha em melhorar homens, sejam
estes muitos ou poucos, deve ser capaz de legislar”. A lei quando bem ela-
borada possui implicações positivas na vida dos indivíduos, e para que isso
possa acontecer é necessário que ela tenha caráter ativo na vida desses
homens, para que eles possam compreendê-las bem e vivenciá-las, são os
hábitos essenciais para viver uma vida virtuosa.

220
DEMOCRACIA E AGONISMO

Para Aristóteles, a lei possui caráter educativo e contribui também


para a formação do caráter dos homens. É a lei que impõem limites, mes-
mo que muitas vezes ela vá contra os desejos desses indivíduos, mas é pela
lei e o medo da punição que estes agem corretamente. O papel da lei é
auxiliar os mais fracos na busca de uma boa vida para si, pois aquele que
legisla sobre as leis deve ser um homem dotado de sabedoria prática e
aquele que deseja uma boa vida. A sabedoria prática é que o auxilia a tomar
decisões, fazer deliberações, consideremos aqui as leis como deliberações.
No início de seu livro Ética a Nicômaco, Aristóteles traz uma ques-
tão1 em que afirma que alguns identificam a felicidade como uma vida boa,
outros como boa ação, outros como virtude, como sabedoria prática ou
sabedoria filosófica. Para Aristóteles é o conjunto de todas essas coisas,
alcançar felicidade é quando se vive de maneira virtuosa, fazendo boas
ações, possuindo sabedoria prática que auxilia a deliberar e assim a viver
bem; e, no final de tudo isso, ter uma Vida Boa, à qual não se deve desejar
apenas para si mesmo, mas para os outros também.

A vida Boa como ferramenta para viver bem em Ricoeur

Ricoeur também nos tem algo a dizer sobre a Vida Boa e ela está
totalmente ligada à sua perspectiva ética. Ricoeur utiliza-se de muitos con-
ceitos aristotélicos dentro de sua filosofia, e no sétimo capítulo de O Si-
-Mesmo como Outro, fragmenta a ética aristotélica dentro de sua Tríplice
estrutura da perspectiva ética que consiste na seguinte frase: viver bem
com e para os outros em instituições justas. Caracterizando-se, assim, sua
ética por finalidade e por objetivo a ser atingido, que é o Viver Bem, alcan-
çar a Vida Boa. Percebe-se aqui neste ponto que é o aspecto teleológico
de Aristóteles que se manifesta. O objetivo é que todos tenham uma Vida
Boa, e “Alcançar a realização pessoal significará o coroamento e o fim úl-
timo das ações” (GUBERT, 2014, p. 82).
Na filosofia de Ricoeur o Eu e o Outro detêm grande importância,
mas não se encontram apenas na filosofia do filósofo francês. O Outro
está presente também na filosofia de Aristóteles, nos livros VIII e IX da
Ética a Nicômaco. Outro possui o caráter mediador, dessa forma, Ricoeur
denomina a Amizade em Aristóteles como sendo o Tratado da Amizade.
Sobre a amizade, o próprio Aristóteles afirma: “É uma virtude ou implica

1 - Outra crença que se harmoniza com a nossa concepção é a de que o homem feliz vive bem e age bem; pois
definimos praticamente a felicidade como uma espécie de boa vida e boa ação. As características que se costuma
buscar na felicidade também parecem pertencer todas à definição que temos dela. Com efeito, alguns identificam a
felicidade com a virtude, outros com a sabedoria prática, outros com uma espécie de sabedoria filosófica, outros com
estas, ou uma destas, acompanhadas ou não de prazer; e outros ainda também incluem a prosperidade exterior. Ora,
algumas destas opiniões têm tido muitos e antigos defensores, enquanto outras foram sustentadas por poucas, mas
eminentes pessoas. E não é provável que qualquer delas esteja inteiramente equivocada, mas sim que tenham razão
pelo menos a algum respeito, ou mesmo a quase todos os respeitos (ARISTÓTELES, 1991, p. 17-18).

221
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

virtude, sendo, além disso, sumamente necessária à vida” (ARISTÓTELES,


1991, p. 170). O homem é um ser social, por isso a amizade é importante, é
ela que garante ao homem virtuoso uma relação com outros; no momento
que a amizade é concretizada, esses homens virtuosos passam a ser e de-
sejar bem um ao outro.
A amizade perfeita é a dos homens que são bons e afins na vir-
tude, pois esses desejam igualmente bem um ao outro enquanto
bons, e são bons em si mesmos. Ora, os que desejam bem aos
seus amigos por eles mesmos são os mais verdadeiramente ami-
gos, porque o fazem em razão da sua própria natureza e não aci-
dentalmente. Por isso sua amizade dura enquanto são bons — e
a bondade é uma coisa muito durável. E cada um é bom em si
mesmo e para o seu amigo, pois os bons são bons em absoluto e
úteis um ao outro. E da mesma forma são agradáveis, porquanto
os bons o são tanto em si mesmos como um para o outro, visto
que a cada um agradam as suas próprias atividades e outras que
lhes sejam semelhantes, e as ações dos bons são as mesmas ou
semelhantes (ARISTÓTELES, 1991, p. 174).

Amizade implica em mutualidade e bondade. “Nesse sentido, o


maior bem que um amigo desejará ao outro será, justamente, que ele per-
maneça sendo como ele é, ou seja, que continue sendo um homem bom”
(GUBERT, 2014, p. 83). Ricoeur encontra três motivos para aprofundar-se
sobre a amizade em Aristóteles:
Em primeiro lugar, no próprio Aristóteles, a amizade estabele-
ce a transição entre a visada “vida boa”, que vimos refletir-se na
estima de si mesmo, virtude solitária na aparência, e na justiça,
virtude de caráter político de uma pluralidade humana. Em se-
gundo lugar, a amizade não é primordialmente da alçada de uma
psicologia dos sentimentos de afeição e apego dos outros (o que
o tratado aristotélico é também em muitos aspectos), mas sim
de uma ética: a amizade é uma virtude – uma excelência –, em
ação em deliberação escolhidas e capaz de elevar-se à categoria
de habitus, sem deixar de exigir um exercício efetivo, sem o que
ela deixaria de ser uma atividade. Por fim, e principalmente, o
tratado, que durante muito tempo parece dar espaço àquilo que
dá a impressão de ser uma forma refinada de egoísmo, com o
título de philautia, acaba por desembocar, de modo quase ines-
perado, a ideia de que “o homem feliz tem a necessidade de ami-
gos” (RICOUER, 2014, p. 199).

Ricoeur segue demonstrando mais sobre a amizade e afirma que “é


preciso apoiar-se com solidez na definição por meio da qual Aristóteles
pretende distinguir-se, justamente no plano ético de seus predecessores e
concorrentes” (RICOUER, 2014, p. 200). Nesse ponto o filósofo francês co-
meça a apresentar a amizade como ela é apresentada por Aristóteles, isto é,
afirmar que a amizade não é de uma única espécie, ela é de uma noção obs-

222
DEMOCRACIA E AGONISMO

cura, assim é imprescindível distinguir os três tipos de amizade: Amizade


“segundo o bom, segundo o útil, segundo o agradável” (RICOUER, 2014, p.
200). Sobre os tipos de amizade Aristóteles afirma:
Talvez possamos deslindar as espécies de amizade se come-
çarmos por tomar conhecimento do objeto do amor. Ora, nem
tudo parece ser amado, mas apenas o estimável, e este é bom,
agradável ou útil. Mas o útil, em suma, é aquilo que produz
algo de bom ou agradável, de modo que são o bom e o útil que
são estimáveis como fins. Os homens amam, então, o que é
bom em si ou o que é bom para eles? Os dois entram por vezes
em conflito. E o mesmo pode-se dizer no tocante ao agradável.
Ora, pensa-se que cada um ama o que é bom para ele, e o que
é bom é estimável em si mesmo, enquanto o que é bom para
cada um é estimável para ele; mas cada homem ama não o que
é bom para ele, e sim o que parece bom. Isso, contudo, não
vem ao caso; limitar-nos-emos a dizer que ele é “o que parece
estimável” (ARISTÓTELES, 1991, p. 172).

E continua:
[...] o útil não é permanente, mas muda constantemente. E as-
sim, quando desaparece o motivo da amizade, esta se dissolve,
pois que existia apenas para os fins de que falamos. Essa es-
pécie de amizade parece existir principalmente entre velhos
(pois na velhice as pessoas buscam não o agradável, mas o útil)
e, dos jovens e dos que estão no vigor dos anos, entre os que
buscam a utilidade. E tampouco tais pessoas convivem muito
umas com as outras, pois às vezes nem sequer se veem com
agrado, e por isso não sentem necessidade de tal companhia, a
menos que sejam mutuamente úteis: o convívio só lhes é agra-
dável na medida em que despertam uma na outra a esperança
de algum bem futuro (ARISTÓTELES, 1991, p. 173).

A única forma da amizade ser perfeita é quando os homens são bons


e desejam bem uns aos outros. Mas dentro deste conceito de amizade es-
tabelecido por Aristóteles, Ricoeur encontra uma fragilidade, que está li-
gada à alteridade. Para solucionar essa fragilidade, Ricoeur nos traz outro
conceito: a solicitude que se relaciona com a estima de si2. Gubert afirma
que a estima de si necessita estar ligada à solicitude, pois “a estima de si
é reflexiva e parece fechar-se em si mesma” (GUBERT, 2014, p. 83). É a
solicitude que garante a mutualidade entre o eu e o outro: “O conceito de
solicitude indica uma relação de reciprocidade, pois ele se fundamenta na
troca, entre dar e receber” (GUBERT, 2014, p. 83). A solicitude será o auxí-

2 - Solicitude e estima de si são conceitos basilares na filosofia de Ricouer. Solicitude é a característica de quem está
disposto a ajudar, daquele que é solícito. Enquanto a estima de si é mais que estimar a si mesmo, nesse conceito
apresentado por Ricoeur encontramos incorporados as três pessoas gramaticais: “eu”, “tu”, “nós”, de maneira que
estimar de si é na verdade estimar ao Tu e ao Nós.

223
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

lio para resolver a dissimetria encontrada pelo filósofo francês, que seria a
passividade entre o si e o outro:
Neste sentido, partir do polo do si significa afirmar que ele
toma a iniciativa de poder-fazer e o faz por meio do desejo
de partilhar da dor dos outros. Neste caso, o outro se reduz à
condição de alguém que somente recebe a partir da iniciativa
de um si que é beneficente. Por outro lado, a mesma dinâ-
mica pode também ser percebida no movimento inverso do
outro para o si. Em ambos os casos, permanece um elemen-
to de passividade, pois não se verifica nenhuma troca mútua
(GUBERT, 2014, p. 83).

A solicitude é quem vai garantir o sentimento de simpatia entre o si


e o outro, fazendo com que o si possa se colocar no lugar do outro e vice e
versa. É a solicitude que garante igualdade entre estes dois, dessa forma, o
autor entende que para que os homens vivam bem, tenham uma vida boa,
é necessário que haja instituições e que estas sejam justas, dessa forma
garantindo que a interação saia do plano Eu e Tu (outro), e passa a ser um
Eu, Tu e Nós. Ricoeur compreende a instituição como aquilo que garantirá
a aplicação da justiça.
Mas isso não é suficiente para proporcionar a Vida Boa, pois não
é apenas a justiça que irá garantir uma Vida Boa, mas a igualdade entre
os homens. Há a necessidade de uma sabedoria para que essa igualdade
seja concretizada, essa sabedoria auxiliará os homens a deliberarem sobre
decisões corretas e justas. Em seu nono capítulo de O Si-Mesmo como
Outro, o filósofo francês demonstra que esta sabedoria deveria ser a sa-
bedoria prática, pois é ela quem garante que a promessa seja cumprida.
A promessa está associada à Sustentação de Si, este um conceito carde-
al da filosofia ricœuriana, pois abrange duas dimensões, sendo estas a
identidade e a ética. A Sustentação de si trabalha com dois conceitos im-
portantes para compreender mais sobre identidade: Identidade-Idem3 e
Identidade-Ipse4. A Sustentação de Si quando relacionada “na dimensão
de formação de identidade pessoal, a capacidade de mantermos nossas
promessas, característica fulcral da Sustentação de Si, é, em grande me-
dida, o que define nossa identidade pessoal” (NASCIMENTO, 2015, p.
103). Enquanto o papel da Sustentação de Si na dimensão ética é garantir
“as possibilidades éticas do si - mesmo. É exatamente por conta dessa
capacidade do si - mesmo de sustentar seus compromissos que ele pode
ser reconhecido como um sujeito ético” (NASCIMENTO, 2015, p. 104).
Mas surge uma questão, o que é essa promessa?

3 - São as características fixas: personalidade, caráter, aspectos genéticos.


4 - “[...] está fortemente ligado à capacidade pessoal de projetar e sustentar a identidade ao longo do tempo mediante
escolhas existenciais” (NASCIMENTO, 2015, p. 103).

224
DEMOCRACIA E AGONISMO

Fernando Luiz do Nascimento conceitua a promessa da seguinte ma-


neira: “É na promessa que o si coloca em jogo sua capacidade de manter-se
o mesmo diante das dificuldades da vida e das mudanças de sua situação
no mundo” (NASCIMENTO, 2009, p. 25). É a promessa que irá garantir a
fidelidade entre duas pessoas, pois aquele que promete será obrigado a
cumprir a promessa pelo outro a quem esta foi feita.
De dentro da sabedoria prática, “brota uma solicitude crítica, mas
que continua centrada na alteridade do ser humano” (GUBERT, 2014, p.
89), e mais uma vez a solicitude vem ao auxílio. É a solicitude, junto da
Sustentação de Si, que irá garantir que a promessa seja cumprida. Sobre
este aspecto, a sabedoria prática atingirá as relações interpessoais, pois até
então ela está apenas agindo dentro da relação entre o Eu e o Tu (outro);
ela agora passa a agir dentro das relações entre Eu, Tu e Nós, abrangendo
assim toda a perspectiva ética de Ricoeur: viver bem (Eu) com e para os
outros (Tu, Outro) em instituições Justas (nós).
Em ambos os filósofos, a sabedoria prática auxilia o homem em sua
caminhada para alcançar a vida boa. Em Aristóteles, o homem, ao alcançar
a vida boa, alcança também a Eudaimonia, de maneira que ele irá desejar
essa felicidade, o Sumo Bem ao próximo. Em Ricoeur, quando o homem
alcança a vida boa, este mesmo homem alcançará de forma completa todos
os aspectos que a perspectiva ética de Ricoeur tange; e da mesma forma
que em Aristóteles, esse homem desejará isso ao outro, a solicitude irá ga-
rantir isso. As duas filosofias são carregadas de mutualidade, e se avaliar-
mos bem, sabedoria prática carrega bondade e mutualidade, pois somente
praticando as boas ações é que podemos alcançá-la.

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Sobre os Autores

Afonso Maria das Chagas


Doutor em Ciência Política (UFRGS). Docente do Departamento de Ciên-
cias Sociais da Universidade Federal de Rondônia.
E-mail: afonso.chagas@unir.br

Agemir Bavaresco
Doutor em Filosofia pela Sorbonne. Professor de Ética e Filosofia Política
no Departamento de Filosofia e no Programa de Pós-Graduação em Filo-
sofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
E-mail: abavaresco@pucrs.br

Aparecida Luzia Alzira Zuin


Pós-Doutorado em Direito, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
– UERJ e Pós-Doutorado em Estudos Culturais pelo Programa Avançado
de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ). Doutora e Mestra em Comu-
nicação e Semiótica (PUC-SP). Realizou estágio de pós-doutoramento na
Università del Salento, Facoltà di Giurisprudenza (Filosofia del Diritto),
Lecce-Itália. Professora visitante no Programa de Pós-graduação Estudos
em Direitos Humanos, do Ius Gentium Conimbrigae/Centro Universitário de
ensino e investigação na área de Direitos Humanos, da Faculdade de Di-
reito - Universidade de Coimbra (Portugal). Docente dos Programa de Pós-
-Graduação Mestrado Profissional Interdisciplinar em Direitos Humanos e
Desenvolvimento da Justiça (DHJUS) e Mestrado Acadêmico em Educação
(PPGE/UNIR); curso de Direito.
E-mail: alazuin@gmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-5838-2123

227
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Carlos Alexandre Barros Trubiliano


Mestre e Doutor em História. Professor de História lotado no Departa-
mento de Educação Intercultural da Universidade Federal de Rondônia
(UNIR). Membro do Jus Gentium – Grupo de Estudos e Pesquisas em Direi-
to Internacional.
E-mail: carlos.trubiliano@unir.br

César Augusto Bubolz Queirós


Possui Doutorado em História pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (2012). É professor Adjunto da Universidade Federal do Amazonas
(UFAM), atuando tanto no Departamento de História quanto no Programa
de Pós-Graduação em História. É docente permanente do Programa de
Pós-Graduação em História da UNIFAP. Atualmente é Coordenador do
Laboratório de Estudos sobre História Política e do Trabalho na Amazônia
(LABUHTA) e é Coordenador do Curso de História do PARFOR/UFAM.
E-mail: cesardequeiros@gmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5752-6148

Deborah Christina Biet de Oliveira


Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal de Rondônia. Mestran-
da pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal
de Rondônia. Pesquisadora do Jus Gentium - Grupo de Estudos e Pesquisas
em Direito Internacional, UNIR/CNPq, em que desenvolve pesquisas na
área de Direito ao Reconhecimento e à Memória nos casos de genocídio
indígena na Amazônia.
E-mail: deborahbiet@gmail.com

Delamar José Volpato Dutra


Doutor em Filosofia (UFRGS/Univeristé Catholique de Louvain). Professor
titular de Ética e Filosofia Política na UFSC e Pesquisador Produtividade
1B do CNPq.
E-mail: djvdutra@yahoo.com.br

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DEMOCRACIA E AGONISMO

Fernando Danner
Doutor em Filosofia pela PUCRS. Professor de Ética e Filosofia Política no
Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia
da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).
E-mail: fernando.danner@gmail.com.

Karina Rocha Prado


Especialista em Direito Civil e Processual Civil. Advogada.
E-mail: karina_prado_100@hotmail.com

Layde Lana Borges da Silva


Doutora em Ciência Política pela UFRGS/FCR. Mestre em Direito Pro-
cessual. Professora da Universidade Federal de Rondônia-UNIR. Líder
do Projeto de Pesquisa NODIRDES e PPDHGSEX. Membro do Grupo
de Pesquisa Direito Constitucional, Acesso à Justiça e Sustentabilidade.
DCOAJUDS – UNIR.
E-mail: laydelana@hotmail.com

Leno Francisco Danner


Doutor em Filosofia pela PUCRS. Professor de Teoria Política Contempo-
rânea no Departamento de Filosofia e no Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).
E-mail: leno_danner@yahoo.com.br

Marcus Vinícius Xavier de Oliveira


Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal
de Rondônia. Mestre (UFSC) e Doutor (UERJ) em Direito, Líder do Jus Gen-
tium – Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Internacional, Advogado.
E-mail: marcusoliveira@unir.br

229
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Patrícia Mara Cabral de Vasconcellos


Doutora em Relações Internacionais (UnB). Docente do Departamento de
Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia. Líder do grupo de
pesquisa Centro de Estudos em Fronteiras Amazônicas e Desigualdades
Sociais (Cefads).
E-mail: pvasconcellos@unir.br

Thais Bernardes Maghanini


Doutora em Direito Difuso e Coletivo pela PUC-SP, mestre em Direito
Econômico pela Universidade de Marília-UNIMAR. Professora do Mes-
trado Profissional Interdisciplinar em Direitos Humanos e Desenvolvi-
mento da Justiça DHJUS - Unir/Emeron (TJ-RO). Professora da Universi-
dade Federal de Rondônia-UNIR. Bolsista do Mestrado DHJUS. Líder do
Grupo de Pesquisa Direito Constitucional, Acesso à Justiça e Sustentabili-
dade. DCOAJUDS- UNIR.
E-mail: tbmaga2@yahoo.com.br

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