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Nos candomblé de nação angola, há um toque de atabaque que se chama muzenza e a coreografia que os
filhos de santo desenvolvem ao som deste ritmo é muito peculiar. Os braços formando um ângulo de 90
graus se agitam fazendo subir e descer os cotovelos, enquanto os pés, um de cada vez, sem se levantarem
do chão se arrastam em movimentos rápidos e repetitivos para os lados. Essa dança sugere uma galinha
de angola ciscando no chão ao mesmo tempo em que abre e fecha suas asas, reproduzindo um gracioso
balé.
Este trabalho teve apoio financeiro de CNPq
Para Heitor Barbosa Previtalli.
Agradecimentos
paciência e dedicação, ensinou-me a pesquisar nestes anos que estivemos juntas desde
Ao meu filho Amílcar pela colaboração com as questões das leis em tempo de
escravidão.
Ao meu filho Daniel pelo suporte em informática que em muitas horas fez-me
perder a razão.
Ao Walter pela paciente leitura preliminar, pelos achados nas bibliotecas e por
À Lajara Correa amiga que sempre solícita acudiu-me com as mais diversas
À Letícia Reis Vidor, doutora, antropóloga, filha de santo e amiga, que nos
À Maria José Sanches makota de minha casa de candomblé que ajudou-me com
os textos em francês.
À Melissa Barreti que muitas vezes acolheu-me em sua casa.
Aos meus pais em especial à minha mãe que nunca deixou de me estimular
Ao tateto dia inquice Ubiacylê, à maeto dia inquice Corajacy, ao tateto dia
meus trabalhos.
A todos aqueles que comigo tem caminhado e que de alguma forma ajudaram-
.
Resumo
Esta pesquisa trata dos candomblés de nação angola de Campinas, e analisa-os sob a
perspectiva do sincretismo religioso e do ideal de pureza. Entre os aspectos analisados
encontram-se: a observação do espaço que revela a passagem da umbanda para o
candomblé além da acomodação de novos ritos que foram absorvidos por um dos
terreiros pesquisados; a formação do parentesco que se estrutura conforme a proibição
do incesto e também como as características da família moderna são encontradas
atualmente na família de santo inclusive o transito de seu filhos; a Lavagem do adro da
Catedral Metropolitana de Campinas que se constitui em uma festa de rua, apesar de se
revelar como uma manifestação de uma linhagem, não deixa de proporcionar
visibilidade para o candomblé campineiro independente da nação a que pertence. Além
disso, torna o negro visível numa sociedade racista, pois atrai para a praça ativistas e as
mais diversas manifestações culturais afro-brasileiras.
Abstract
This research is about candomblés of the Angola Nation from Campinas, and analyze
them under the perspective of religious syncretism and the ideal of purity. Among the
analyzed aspects are: the observation of space that reveals the transition from umbanda
to candomblé besides the accommodation of new rites that were absorbed by one of the
studied terreiros; the constitution of relashionships that are structured according to the
forbiddance of incest and also how the characteristics of the modern family are
currently found in the família de santo including the transit of its followers; the
Lavagem of Campinas Metropolitan Cathedral´s steps, which is a street festivity and
even though it reveals itself as a lineage´s manisfestation, it still provides visibility for
the candomblé of Campinas independent of the nation to which it belongs. Besides, it
makes the black people stand out in a racist society, because it atracts to the public eye
activists and the most diverse afro-brazilian cultural manifestations.
Sumário
INTRODUÇÃO 1
CAPÍTULO I:
Campinas 21
CAPÍTULO II:
As casas de angola 41
O Recanto da Umbanda. 73
CAPÍTULO III:
A aliança 105
CAPÍTULO IV:
A Festa 112
do ideal de pureza.
candomblé há na região de Campinas nem a que nações pertencem, pude perceber que
são os terreiros de nação angola os que têm mais visibilidade, os que são mais
só por pessoas anônimas, mas também por ativistas do movimento negro e por políticos
que participam dos congressos sobre religiões de matrizes africanas1, dos encontros de
valorização da cultura banta e de atos públicos, como o que ocorre nos sábados de
aleluia, desde 1985, isto é, a lavagem das escadarias da igreja Nossa Senhora da
1
Entre as religiões de matrizes africanas encontram-se as diversas nações de candomblé, os batuques, os
tambores de mina, os xangôs, a umbanda, o candomblé de caboclo, e todas as manifestações religiosas
que têm em sua composição teológica elementos advindos de religiões que os diversos grupos africanos
trouxeram para o Brasil.
1
O meu interesse por essa expressão religiosa data de algum tempo, mais
principalmente dos grupos de negros bantos e dos sudaneses que chegaram ao Brasil,
através da diáspora africana. Edson Carneiro escreve que os escravos que vieram para o
Brasil provinham de muitas tribos e que cada uma delas tinha sua religião em particular.
A diversidade era tanta que, segundo Carneiro, “O conde dos Arcos achava prudente
“proibir o único ato de desunião entre os negros vem a ser o mesmo que promover o
Porém, parece que o Conde se equivocou, uma vez que da união de todas essas
Brasil, que se assemelham “ao menos pelas suas características essenciais.” (Carneiro;
1991)
culturas africanas foram trazidas para o Brasil e ressignificadas. Além disso, vale
lembrar o tráfico interno, após 1850, que trouxe escravos de todas as regiões do país
2
Edson Carneiro escreveu que “a mineração absorveu, indistintamente, todo braço escravo ocioso nas
antigas plantações de açúcar do litoral; muitos negros da Costa da Mina, quando a corrida do ouro
arrefeceu, ficaram na Bahia, outros foram vendidos para Pernambuco e para o Maranhão; a maioria dos
2
Do intercâmbio cultural dos escravos e ex-escravos surgiram as diversas
tradicionais, que ensinaram a norma dos ritos e o corpo doutrinário para as comunidades
263). Conforme Vivaldo da Costa Lima, as nações foram “aos poucos perdendo sua
Nação passou a ser, desse modo, o padrão ideológico e ritual...” ( 2003; p. 29) dos
africanos no Brasil surgem na primeira metade do século XX. Em 1906, Nina Rodrigues
escreveu “Os Africanos no Brasil”, publicado em 1933. Mais tarde, Artur Ramos e
Edson Carneiro também se voltaram para os estudos das manifestações culturais afro-
brasileiras, dentre elas as diversas nações de candomblé, gerando obras que até hoje são
Nota-se, porém, que, quando havia alguma referência sobre o angola, era sempre
alguma observação pejorativa e, ainda hoje, essa expressão religiosa, quando comparada
escravos antes empregados na minas serviu às culturas de café e do algodão ou aos novos
empreendimentos pecuários do Sul; as cidades reuniram elementos de todas as tribos, quer agregados à
camuflagem do senhor, quer alugados a particulares, quer trabalhando por conta própria, quer engajados
em explorações de tipo industrial.” (1991, p.18)
3
Tais estudos posicionavam as manifestações religiosas oriundas dos bantos
nagô, além de serem sincréticos, pois misturavam às suas crenças qualquer elemento
contudo, sem dar maior atenção ao de origem banta, prestigiando mais os candomblés
queto.
candomblé, fizeram apenas algumas observações sobre os de nação banta e, por causa
3
Falando sobre os cambindas, Luciano Gallet escreve que: “considerados pelos outros, inferiores,
imitadores e ignorantes. Desconhecem até o próprio idioma, complicado e difícil, e o misturam com
termos portugueses. Adoram as pedras, os paralelepípedos e as lascas de pedra.” (Gallet, Luciano.
Estudos de Folclore. Edt. Carlos Wehrs & Ltda. Rio de Janeiro, R.J. 1934. p.58). Ainda sobre os
negros bantos, Nina Rodrigues afirma que: “decorrido meio século após a total extinção do tráfico, o
fetichismo africano constituído em culto apenas se reduz ao da mitologia jeje-iorubana. Angolas,
guruncis, minas, haussás, etc., que conservam suas divindades africanas, da mesma sorte que os negros
crioulos, mulatos e caboclos fetichistas, possuem todos, à moda dos nagôs, terreiros e candomblés em
que as suas divindades ou fetiches particulares recebem, ao lado dos orixás iorubanos e dos santos
católicos, um culto externo mais ou menos copiado das práticas nagôs.”( Rodrigues, Nina. Os africanos
no Brasil. Edita. UnB ,Brasília, D.F. 7a edição, 1988, p. 216).
Por outro lado, Arthur Ramos embora considerasse também que as “sobrevivências religiosas e
mágicas de origens bantu existiam deturpadas e transformadas” (1961: p. 361), escreveu um capítulo
intitulado:“sobre as culturas bantu”, no 1o volume da coleção de sua obra chamada “Introdução à
antropologia brasileira”. Nesse capítulo faz uma ressalva à afirmação de Nina Rodrigues quanto à
quantidade de negros bantos existentes na Bahia, que para Nina não passavam de “uns três Congos e
alguns angolas”. Já para Ramos os bantos eram encontrados em grande número, mesmo na Bahia (1961:
p. 357).
Outro autor, Edson Carneiro, refere-se aos candomblés angola e congo tanto no livro
Candomblés da Bahia, quanto no Religiões Negras. Carneiro escreveu que: “Pode-se dizer que, na Bahia,
os negros bantos esqueceram os seus próprios orixás.” (1991, p,134). E quando escreve sobre a
formação dos candomblés de caboclo, diz que : “foi a mítica pobríssima dos negros bantos que,
fusionando-se com a mítica igualmente pobre do selvagem ameríndio, produziu os chamados candomblés
de caboclo na Bahia.” ( 1991, p. 62).
Carneiro, Edson. Religiões Negras. Negros Bantos. Edita . Civilização Brasileira , 3a edição.
Rio de Janeiro, R.J. 1991. Candomblés da Bahia. Edita. Civilização Brasileira, 8a edição. Rio de
Janeiro, R.J. 1991.
Ver ainda: Carneiro Édison. Cartas de Édson Carneiro a Artur Ramos. Edita . Corrupio, São
Paulo. S.P. 1987.
Querino, Manoel. Costumes Africanos no Brasil.Edita Massangana, 2a edição.
Recife. Pernambuco. 1988.
4
da baixa qualificação dada a esta cultura, os trabalhos posteriores trataram dos
prestígio, com muitas fontes escritas brasileiras, além de uma etnografia produzida
sobre o culto dos orixás da Nigéria e do Benin. Nada semelhante existe para o
Federal da Bahia”. (Prandi, 1991; p. 20). O mesmo autor comenta o discurso feito por
centro de estudos, para que pesquisem o angola. Não há livros sobre o angola. E tem
mais terreiros de angola na Bahia do que de queto, de jeje, de qualquer nação” (Lima
casas de candomblé queto da Bahia, que foram preferidas por preencherem os critérios
necessários de pureza que as tornavam melhores que as outras ditas mais miscigenadas
4
Prandi quando fala de candomblé nagô se refere à nação queto.
5
A pureza, nesse sentido, presume que haja um estoque original de bens
dos puros”. É lógico que as origens existem, porém numa África distante no tempo e,
portanto mítica. O candomblé foi composto por diversos povos, por isso, não tem uma
origem única, embora preserve mais traços de uma ou outra cultura originária.
Desta forma, mesmo que esses terreiros baianos tenham nascido de mães
africanas ou de seus descendentes, não foi somente este fator que os caracterizou como
analítica, prática” que cristalizou traços culturais que passaram a ser representações
etnográfica sobre estes candomblés prestigiados por sua publicidade passou também,
em anos recentes, a oferecer modelos legitimamente puros da religião dos orixás para
1991,17)
(Prandi; 1991. Wagner; 1995) e, por isso, muitas casas se servem dos modelos baianos
para se espelharem.
de autoria da Dra Teresinha Bernardo, para o qual realizei a coleta de histórias de vida
6
das mães-de-santo mais velhas de São Paulo, percebi, ainda em uma observação
preliminar, que o candomblé paulista procura uma legitimidade que vai ser encontrada
por meio da descendência a uma destas casas antigas de queto ou pela proximidade
Por outro lado, em Campinas, os terreiros angolas são fortes representantes das
ainda hoje tem muito peso entre os adeptos do candomblé; ao contrário do que se
angola elaborou uma reação à soberania nagô, que começou com a delimitação das
para definir a pureza nagô, definida por Beatriz Góis Dantas, é a que o candomblé
angola de Campinas está utilizando, a fim de marcar suas diferenças e de firmar sua
identidade.
Campinas, e numa observação preliminar, pude averiguar que, também em São Paulo,
5
Isso pode ser percebido em algumas casas de candomblé angola de Campinas pela preocupação em,
por exemplo, repercutir os atabaques apenas em toques que são reconhecidos da nação angola, em
somente cantar nas festas em alguma língua banta, em separar os inquices (divindades bantas) dos orixás
(divindades queto)., mediante também dos vocabulários em banto colados nos murais dos terreiros e que
servem para o aprendizado dos filhos-de-santo, os nomes das casas que foram transformados de nomes
em língua ioruba para nomes bantos, entre outras evidências que têm o sentido de delimitar as fronteiras e
o fortalecimento da identidade.
7
surge um segundo movimento que se caracteriza, utilizando as palavras de Hall, como
que a nação angola está interessada em firmar as diferenças. Porém não se trata de uma
específico, que o torna diferente, mas não pode deixar intactas as formas antigas
ser algo fixo, mas que busca um diálogo com o passado e a comunidade e este diálogo
conduz à afirmação da identidade. Contudo, isto não se dará sem conflitos e acordos,
Para designar este tipo de diferença, Hall utiliza o termo Derrida “ différance
que tanto pode ser “marcar diferença” [to differ], quanto “diferir” [ to defer]. O
Conforme observei, há nos quatro terreiros que fizeram parte de minha pesquisa
8
recuperar as marcas autênticas do angola e, em alguns casos, retirar elementos estranhos
à nação.
existe um estoque original de bens simbólicos, que hoje está numa África mítica, uma
vez que a diáspora transformou os elementos africanos constitutivos desta nação. Desta
forma, dicionários de língua banta são muito comuns a estas comunidades, sugerindo
instrumento que mobiliza e justifica a nação angola, podendo ainda agregar, no sentido
que minha condição de iniciada gerou para a de pesquisadora. Ao mesmo tempo em que
candomblé, causou-me algumas dificuldades, quando tive que olhar de fora para essa
expressão religiosa da qual faço parte. A questão foi tornar estranho aquilo que já há
9
(como simpatizantes, freqüentadores ocasionais ou adeptos) em
do grupo ele conhece, por outro, seu esforço será redobrado para
(2000; p. 69)6
suas regras, por outro lado, dificultou a observação mais atenta de detalhes que
pudessem ser importantes para uma descrição minuciosa e interpretativa. Além disso,
tive que tomar cuidado com o “jeito de olhar”, já que o olhar curioso de observador
casa”. Destarte, procurei voltar diversas vezes em cada casa, para que pudesse observar
de antropóloga e procurava mostrar isso indo às visitas com roupas ocidentais e sem
6
Silva, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia. Edusp, São Paulo, SP. 2000,
10
utilizar símbolos que pudessem me associar ao candomblé. Deixei claro para os pais e
sobre o candomblé de Campinas, proposta aceita por todos. Apesar disso, jamais
deixaram de me tratar como uma “de dentro”, ora chamando-me pela “dijina" 7, ora
tão-somente pelo abandono dos símbolos religiosos afro-brasileiros, não foi assim tão
simples, quando das idas às festas. Em tais ocasiões, não foi possível participar sem a
vestimenta típica de baiana, o que me causou alguns constrangimentos para tirar fotos,
porque eu era vista ali, antes de tudo, como sacerdotisa vestida com roupas incômodas
que tolhiam meus movimentos; ao mesmo tempo, era estranho estar paramentada com a
Catedral e terminou com o mesmo evento, em 2005. Durante esse período, fui às
7
Nome religioso recebido por aquele que é iniciado no candomblé angola
8
No candomblé de rito angola-congo, filha-de-santo.
9
Cargo feminino correspondente ao cargo de equeji no candomblé queto. Acolita dos orixás, quando
descem nas filhas-de-santo.
10
Cargo masculino no candomblé de rito angola correspondente ao ogã no candomblé queto.
11
Irmã mais velha, com mais de sete anos de feita.
12
Cerimônia de dar de comer à cabeça.
11
A minha pesquisa se concentrou em quatro terreiros que foram selecionados,
Terreiro 1
Terreiro 2
Terreiro 3
12
Terreiro 4
A teoria escolhida para interpretar os dados selecionados das histórias de vida dos
Halbwachs:
segundo Halbwachs,
13
outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a
Neste sentido, a memória é viva, uma vez que o ato de lembrar dispõe de um
movimento que sai do presente, vai para o passado, retornando novamente para o
presente. Deste modo, trabalhar com a memória é trabalhar com reconstrução que se
efetiva mediante este movimento de ir e vir tal qual uma lançadeira, isto é, tem-se
também tem que ser considerado, visto que por meio dele podemos identificar a
presença de conflitos. Tais conflitos são muitas vezes revelados por intermédio de
lacunas nas histórias de vida que surgem como esquecimentos de algumas situações ou
de épocas da vida.
A memória das minorias tem tanto continuidades quanto rupturas. A estas últimas,
Pollak vai chamá-las de memórias subterrâneas, porque é uma memória que não pode
ser revelada, por causa do preconceito e das perseguições; fica, pois, restrita à
comunidade afetiva.
14
Uma característica da memória subterrânea é que ela somente vem à tona
quando surge uma brecha nas relações sociais, especialmente as políticas, e por ela ser
Segundo Pollak,
p.5).
racismo que se impinge contra esta população também se estende aos elementos de sua
cultura.
Uma das formas de localizar a memória subterrânea é por meio da história oral.
minorias” diz que “para poder relatar seus sofrimentos, uma pessoa precisa antes de
mais nada encontrar uma escuta.” (Pollak, 1989; p. 6). Desta forma, a história oral
qual o sujeito vai sempre retornar. Nas de longa duração, conforme Pollak:
15
história de vida. Essas características de todas as histórias de
candomblé angola campineiro que hoje luta contra o preconceito que o próprio povo do
santo, aliado a alguns intelectuais, possui em relação a este tipo de expressão religiosa.
Neste sentido, a história de vida transforma-se numa técnica excelente para realização
deste trabalho.
coletadas foi aquele conhecido como “bola de neve”, isto é, foram os entrevistados do
primeiro grupo que indicaram os outros que os sucederam até que se repetiram as
indicações, terminando assim as entrevistas. Além disso, muitos dados foram frutos da
candomblé campineiro, por intermédio da citação de seus nomes nas histórias orais já
Para registrar as histórias de vida, optei pelo uso do gravador que foi bem aceito
foram obtidas em conversas informais, nos fins das festas, nos dias de sacrifícios, nas
16
gravador não estava presente. Estas revelações feitas pelos pais, mães-de-santo e filhos-
É importante mencionar uma outra questão relevante para quem pesquisa esta
expressão religiosa: aquela relacionada aos conflitos e rivalidades. Como nem sempre
fosse possível ficar neutra, no momento da pesquisa, era importante saber a que
Quando comuniquei aos pais e mães-de-santo selecionados para este meu estudo
que estaria nos próximos anos fazendo uma pesquisa e escrevendo sobre o candomblé
de Campinas, a notícia se espalhou como rastro de pólvora. Numa reunião com aquela
na legalização da construção de suas casas, percebi uma conversa paralela, que não era
comigo, mas que se fazia bem ao meu lado para que eu pudesse ouvi-la. O assunto desta
havia percebido o quanto era importante para a comunidade ser notada, isto é, ser
Na realidade, para esta expressão religiosa, seja queto, seja angola, ser o
primeiro significa ter prestígio, pois quer dizer que, no mínimo, os que vêm depois
13
Discussão, litígio. Confusão, barulho, tumulto. Fofoca.
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Ouvi estas conversas paralelas sem me intrometer durante vários encontros, até
que um dia, a discussão entre alguns dos envolvidos veio à tona. Embora o recado fosse
para mim, a conversa se passou como se eu não estivesse ali. Por fim, depois de alguns
acertos, ficou resolvido, com muita habilidade, que a casa de candomblé mais antiga,
“registrada” era a de pai Toloji; a primeira mãe-de-santo com casa aberta de candomblé
angola em Campinas, porém sem registro, fora mãe Nanjerecy; o barracão mais antigo,
isto é, o primeiro que tinha sido construído, era o que pertence hoje ao pai Ubiacyle,
Portanto, ficou evidente para mim que o que eu fosse escrever deveria estar de
instituído na região, que deve ser levado em conta para se entenderem as características
como uma das casas de candomblé pesquisada se diferencia das demais, na ocupação e
18
No quarto capítulo, será analisada a lavagem das escadarias da Catedral
19
CAPÍTULO I
Nascimento e estabelecimento dos terreiros.
20
Campinas
pequeno comércio se desenvolveu naquele local para suprir as necessidades das tropas
que transitavam entre Santos, Minas Gerais, Goiás e Cuiabá e atendiam à economia
categoria de vila, "Vila de São Carlos". A cultura de cana de açúcar fora introduzida na
populacional da região. 15
cuja maioria era formada de negros provenientes do grupo lingüístico banto, filhos das
14
No dia 14 de julho de 1774, em uma capela de sapê e paus roliços, foi celebrada a primeira missa por
Frei Antônio de Pádua, primeiro vigário da paróquia. Essa ficou sendo a data oficial da fundação da
cidade, na época Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Campinas do Mato Grosso de Jundiaí.
Nessa fase, o Governador da Capitania cumpria expressas ordens do Rei de Portugal para povoar e
implantar agricultura sólida no território paulista, pois a mineração estava em queda e os preços do açúcar
anunciavam alta
15
. Em 1797, a freguesia foi elevada à condição de vila, mantendo até 1842 o nome de Vila São Carlos. O
período do açúcar marcou a fase de construção da cidade, havendo ainda ruas com pouquíssimas casas.
Site www.campinas.sp.gov.br
21
para o sudeste e (estou convencido) boa parte da matriz cultural da
açúcar. A expansão da cultura da cana gerou uma expansão econômica que, por sua
Conforme Baeninger,
Estado”.(1992; p. 23)
entrou em decadência. Porém, o ciclo econômico do açúcar gerou capital suficiente para
a introdução da cultura cafeeira que veio como alternativa econômica para a queda do
16
O domínio colonial (no Haiti) foi seriamente abalado pelos acontecimentos que culminaram com a
Revolução Francesa. Os antigos escravos da ilha rebelaram-se contra o jugo francês em 1791 e o grande
líder abolicionista Pierre-Dominique Toussaint L'Ouverture tomou o poder. Em 1794, Napoleão
Bonaparte enviou uma expedição para combater os rebeldes. Após meses de resistência, Toussaint aceitou
os termos de paz e foi enviado para a França onde, contra os termos da paz negociada, morreu na prisão
em 1803. www.ufrs.br/cdron.
22
prosperidade da cultura açucareira, foi somente em 1835 que houve a substituição de
como o Sudeste.19
mostrou que “Campinas tinha 14.000 cativos, ou a maior população escrava de todos
externo20 a mão-de-obra escrava foi suprida pelo tráfico inter-regional. Embora a mão-
17
Em 1867, com capital derivado essencialmente de cafeicultores, fundou-se a Ferrovia Paulista que entra
em operação em 1872. www.campinas.sp.gov.br
18
Período e economia fortemente escravagistas, entre 1854 e 1886, a população cativa estava em 50%.
www.campinas.sp.gov.br
19
Conforme Baeninger: A migração de escravos provenientes de regiões onde as lavouras canavieiras
entravam em decadência, como as do Nordeste, contribuiu para o crescimento populacional das
províncias do Sul (Prado, 1983). De fato, nos jornais da época, encontravam-se anúncios como este:
"vende-se(sic) 12 bonitos escravos de 12 a 20 anos, todos do Ceará" ( gazeta de Campinas, 22-6-1878;
apud Lapa, 1991) - (Baeninger. 1992; p. 21)
20
Leis Abolicionistas :
* 1815 - Tratado anglo-português, na qual Portugal concorda em restringir o tráfico ao sul do Equador;
* 1826 - Brasil compromete em acabar com o tráfico dentro de 3 anos
* 1831 - Tentativa de proibição do tráfico no Brasil, sob pressão da Inglaterra.
* 1838 - Abolição da escravidão nas colônias inglesas
* 1843 - Os ingleses são proibidos de comprar e vender escravos em qualquer parte do mundo
* 1845 - A Inglaterra aprova o Bill Abeerden, que dá à Inglaterra o poder de apreender os navios
negreiros com destino ao Brasil.
* 1850 - É aprovada sob pressão inglesa a lei Eusébio de Queirós, que proíbe o tráfico negreiro no Brasil.
* 1865 - A escravidão é abolida nos Estados Unidos (13a. Emenda Constitucional) 1869 - Manifesto
Liberal propõe a emancipação gradual dos escravos no Brasil.
* 1871 - Lei do Ventre Livre ou Lei Rio Branco 1885 - Lei dos Sexagenários ou Lei Saraiva-Cotejipe
* 1888 - Lei Áurea.
23
brasileiro, esses escravos poderiam não ser mais africanos, mas já terem nascido em
terras brasileiras, contudo observa-se que "a população cativa de Campinas na primeira
escravos que desorganizavam a produção nas fazendas. Nesta mesma época, idéias
também na constituição da sua identidade nacional, uma vez que com o branqueamento
A lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel em 13 de Maio de 1888, além de ter
a retirada de um entrave para o trabalho assalariado no país, visto que muitos dos
21
A hipótese de que a proibição do tráfico negreiro gerara um déficit de mão-de-obra disponível para
trabalhar na agricultura do café, é refutada no livro de Petrônio Domingues, Uma História Não Contada –
negro racismo e branqueamento em São Paulo na pós-abolição (Editora Senac, SP) que foi resultado da
dissertação de mestrado desenvolvida pelo autor na USP. Segundo Petrônio, não havia falta de mão-de-
obra em São Paulo, mas uma concreta intenção da elite, do governo e dos intelectuais paulistas em
branquear a cidade.
24
que justificava a degradação do liberto na nova realidade social pela superioridade do
branco sobre o negro. Além disso, os libertos tiveram que disputar no mercado de
que este último era o preferido. Com isso, o ex-escravo alforriado ou aquele que mais
tarde obteria a liberdade, eram colocados inteiramente à margem da nova ordem social,
Estado de São Paulo data de 1847 e foi realizada na fazenda Ibicaba, na região de
No entanto, essa primeira tentativa de imigração européia não foi bem sucedida.
Os imigrantes que chegaram ao sudeste vinham para trabalhar como meeiros, parceria
que não deu certo, por um lado, porque as condições de trabalho eram péssimas e nesse
com a imigração, ficando vinculados a ele até saudarem a dívida. Por outro lado, o
regime escravista ainda vigente também se tornou um entrave para a imigração, uma
vez que esse sistema não era bem aceito pelos governos europeus da época.
Em 1886, uma nova experiência imigratória se iniciou, mas, desta vez, com
outro sistema de trabalho que não era mais o de "parceria" como fora nas décadas
25
anteriores, mas o de "colonato". Inaugurou-se, então, o sistema de trabalho livre, em
Conforme Baeninger,
p. 29)
Em São Paulo, a febre amarela adentrou por Santos, que era a porta de entrada
dos imigrantes que vinham trabalhar nas lavouras de café. A doença alastrou-se
22
Segundo os registros da hospedaria dos imigrantes do Estado de São Paulo, " foram enviados para as
lavouras de café do Município, de 1882 a 1900, 140631 imigrantes estrangeiros, dos quais 75% eram
italianos; 11,3% portugueses; 7,9% espanhóis; 3,9% alemães e 1,8% de outras nacionalidades."
(Baeninger. 1992: 31, 32)
23
Segundo Baeninger,: Os historiadores locais afirmam que durante a epidemia quase 75% da população
emigrou do Município (Brito, 1969; Pupo, 1969). "A cidade é abandonada; a população reduziu-se de 20
mil para 5 mil moradores; a morte rondava a cidade." (Figueira de Mello, 1991:23). Estabelecimentos
comerciais, escritórios de indústrias e até algumas indústrias transferiram-se para São Paulo e Jundiaí.
(Semeghini, 1988). (1992: 35)
26
primeiramente pela região portuária e, como não havia casos no interior paulista, a
medicina acreditava que era uma doença típica das regiões litorâneas. Porém, em 1889,
houve uma forte epidemia em Santos que subiu a serra através da ferrovia e chegou a
Campinas. Foram vários surtos que assolaram a região nos anos de 1889, 1890, 1892,
que a febre amarela era contagiosa e, num consenso geral, originária de eflúvios
da vida cotidiana. Nesse sentido, foi a população mais pobre, constituída de imigrantes
cidade. Segundo Figueira Mello “libertos e imigrantes em 1888 e1889, afluíram para a
fortes demandas contra suas manifestações religiosas, pois do mesmo modo que a raça
negra foi considerada inferior, sua religiosidade também foi encarada como mais
Embora Slenes afirme que "a maioria dos escravos de Campinas, mesmo em
1888, estava próxima no tempo às fontes africanas de sua cultura" (Slenes, 1999; p.
24
Dados obtidos na Biblioteca Virtual Adolph Lutz.
http://www.bvsalutz.coc.fiocruz.br/html/pt/home.html
25
FIGUEIRA MELLO, F. Formação histórica de Campinas: Breve Panaroma. Subsídios para a
Discussão do Plano Diretor. Prefeitura Municipal de Campinas, 1991.
27
72), seus cultos foram escondidos, parecendo desta forma não terem se estruturado ou
mesmo desaparecido, mas, pode ser que tenham se tornado subterrâneos por causa das
Apesar de Campinas ter passado por muitos surtos de febre amarela, a cidade
introduziram o cultivo do algodão, que trouxe consigo novas técnicas de plantio, além
Conforme Baeninger:
26
Um estudo realizado por Rita Amaral sobre a coleção etnográfica de cultura religiosa afro-brasileira
do MAE , curiosamente revela a Coleção Registro Sertanejo que apresenta um candomblé banto datado
do começo do século XX. De acordo com o artigo, Rita divulga que: “Foram encontradas 187 das 252
peças listadas, datadas do princípio do século, de cultos afro-brasileiros sediados principalmente no
interior de São Paulo.
Segundo informações contidas nesta listagem, algumas peças foram levadas ao Museu Paulista, em 1914.
Outras, em 1938 e outras ainda, em 1943. São originárias de cultos do interior de São Paulo (Tietê,
Pirapora, Araraquara, Jundiaí) e foram doadas ao Museu Paulista pela Secretaria de Segurança Pública, o
que indica que devam ter sido apreendidas durante o período de repressão policial ao culto. Essa coleção
é extremamente valiosa, não apenas por representar aspectos múltiplos do culto, como por seu caráter
artesanal, constituindo peças únicas.”, 26 Amaral, Rita. A coleção etnográfica de cultura religiosa afro-
brasileira do museu de arqueologia e etnologia da universidade de São Paulo, In Revista do Museu de
Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, no. 10, 2000, p266. Isso significa que houve um
candomblé anterior a este que hoje existe em Campinas e que, possivelmente, desapareceu em virtude da
perseguição policial.
28
demográfico, o perfil populacional econômico e as formas de
conforme Baeninger,
p.50)
originária não só de outros Estados, como também do êxodo rural. (Baeninger, 1992)
Campinas era uma cidade que reforçava o papel da migração, uma vez que isto era
A partir dos anos 60, o fluxo migratório para a região de Campinas aumentou
29
do Estado de Minas Gerais e 5% da própria região de governo
área de procedência dos migrantes, porém de uma maneira geral é de Minas Gerais que
que se deu a chegada dos pais e mães-de-santo que fazem parte desta pesquisa e, por
Por sua vez, o candomblé que já havia se estabilizado em São Paulo nos anos 60,
chega a Campinas na década de 80, confirmando o que nos afirma Boaventura de Souza
abriu caminho para o candomblé em São Paulo, podemos assegurar que o mesmo
27
Beaninger considera como migrante o indivíduo residente há menos de dez anos no município de
residência atual.
30
”aparece, pois como um solução original; ela vem
p.48) 28
28
Ortiz, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. Umbanda e sociedade brasileira. Editora
Brasiliense, São Paulo. 1a reimpressão, 1999.
31
resultado é a ausência de gastos no sacrifício de
(1999; p.154).
(1999; p.155)
29
Ortiz, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. Umbanda e sociedade brasileira. Editora
brasiliense, São Paulo.1a reimpressão, 1999.
32
candomblé, mas começa sua carreira religiosa em São Paulo
década de 80 do século XX, edificado por dois pais-de-santo brancos e duas mães-de-
santo negras, todos provenientes de outras cidades do Estado de São Paulo e de outros
30
Pai Ubiacylê é proveniente de Limeira, pai Gitalangunage de Catanduva, mãe Corajacy da Bahia, mas
já morava em Minas Gerais quando migrou para Campinas e Mãe Dangoroméia é oriunda de Minas
Gerais. A expansão do pólo industrial de Campinas atraiu grande quantidade de migrantes originários do
interior de São Paulo assim como de outros Estados. Estes pais e mães-de-santo vieram com esse
movimento migratório que muito se intensificou depois de 1960.
31
Vagner Gonçalves nota que: A importância do candomblé litorâneo em São Paulo também pode ser
atestada na relação dos mais antigos pais-de-santo em São Paulo, elaborada pela Comissão de Candomblé
formada por algumas lideranças religiosas paulistas, a partir da Assessoria para Assuntos Afro-brasileiros
da Secretaria do Estado da Cultura do Governo Franco Montoro, em 1983. Dos vinte e sete babalorixás e
ialorixás citados, quinze se localizam na capital e doze em Santos; deste total, onze pertencem à nação
angola e três à sua variável ameríndia – o xambá; do queto são seis, o mesmo número para sua variável
efon. ( obs.: um dos terreiros não tem definida a nação) (Vagner, 1995: p.82)
33
CAPÍTULO II
34
É no espaço que encontramos todas as marcas das épocas em que um
Nos terreiros pesquisados, isso é visível nas novas edificações, nas imagens dos
inquices pintadas nas paredes, nas imagens de gesso dos santos católicos colocados em
suportes, nos assentamentos distribuídos pelos canteiros, nos odus assentados nos
cantos da casa, nos símbolos da umbanda que se encontram distribuídos pela casa ou
reunidos num só recanto, nos centros dos salões, enfim, todo espaço é provido de
símbolos cujos significados estão ali mostrando as relações com os deuses e como o
àquele grupo.
32
Halbwachs, Maurice. A Memória Coletiva. Vértice, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo. 1990
33
Sobre o trânsito dos terreiros paulistas da umbanda para o candomblé existe vasta bibliografia a
respeito. Ver: Bernardo, S. Teresinha. A mulher no candomblé e na umbanda. Dissertação de mestrado
apresentada ao programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais – PUCSP, 1986. Prandi,
Reginaldo.Os candomblés de São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo,1991. Silva,
Wagner Gonçalves da. Orixás da Metrópole. Editora Vozes Ltda. Petrópolis, R.J. 1995.
35
Situados em bairros periféricos de Campinas, os terreiros de candomblé podem
ser identificados, externamente, pela presença de alguns elementos simbólicos que são
portões e muros frontais. Sempre circundados por muros altos que não permitem a visão
interior do pátio das casas, a fachada revela, por seu recato, a inquietação perante o
preconceito que ainda hoje persiste contra as religiões de matrizes africanas. Desta
indicação mais contundente sobre a razão daquela construção. Num muro lateral que dá
para a rua de maior movimento pode-se ler o nome “Inzo Muzambo dia
Hongolomenha,” escrito em grandes letras azuis sobre a parede branca, que significa
aquisitiva do grupo, uma vez que os terrenos nessas regiões possuem um valor mais
baixo do que outros em localidades nobres. Além disso, encontrar-se num bairro
retirado significa estar num nicho da sociedade onde as regras da vida social são mais
34
Até 1953, com o nome de Jacuba, a atual Hortolândia pertencia ao município de Campinas. A partir
desta data, o povoado de Jacuba foi elevado a Distrito de Jacuba do município de Sumaré emancipado
nesta mesma época . Em 1958, Jacuba passa a ser conhecida como Hortolândia, distrito de Sumaré. Trinta
e três anos depois, em 19 de maio de 1991, Hortolândia se emancipa de Sumaré, passando a ter uma
identidade própria no processo de desenvolvimento da região. www.hortolandia.sp.gv.br
36
estavam mais presentes. Vale notar, ainda, que ali estão os mais pobres e a maioria dos
afrodescendentes.
Governo de Campinas (ver fonte IBGE, censo demográfico de 1980) teve como eixo
35
Fonte IBGE, Censo Demográfico de 1980
37
O terreiro de mameto Corajacy é o que fica num bairro mais afastado e de mais
fundos de sua casa que ficava num bairro de casas populares em Campinas. Hoje, o
terreiro está localizado num bairro periférico de Monte Mor, com ruas sem
Por ocasião da entrevista, tive dificuldade para encontrá-lo, uma vez que as
Depois de errar diversas vezes e vagar por muitas ruas do bairro, eu pude chegar
ao terreiro, ainda assim mameto Corajacy precisou me enviar um de seus filhos para
que me guiasse até lá. Essa procura me fez recordar as histórias míticas contadas nos
candomblés, em que os caminhos eram indicados aos que saiam em jornada na terra,
por transeuntes ou moradores encontrados pelos caminhos. Foi exatamente assim que
transeuntes. Somente depois de tantos erros, de diversos ir e vir que atinei ao mito de
partida faziam-se ofertas votivas a Exu, o orixá dos caminhos e das encruzilhadas, que
Nas minhas voltas pelo bairro à procura do terreiro da mameto Corajacy, olhava
para os portais das chácaras na esperança de ver uma quartinha, um alguidar e por
intermédio destes objetos tão comuns nas entradas dos terreiros, encontrar a chácara
certa. Se minha busca tivesse dependido destes símbolos para identificar o terreiro, eu
não o teria achado, uma vez que seus assentamentos de portão estavam cuidadosamente
camuflados entre as folhagens que eram abundantes sobre o portal. Apenas ao longe, a
38
bandeira branca do Tempo, atada a um alto mastro, surgia por sobre a vegetação e a
cerca viva.
asfaltadas e com uma disponibilidade de espaço muito menor que a chácara onde está
Todos esses terreiros foram construídos na formação desses bairros, e por isso,
localidades. Essa referência tem sido constantemente utilizada como atributo legalizador
das atividades do candomblé nos dias de hoje, pois que, com o crescimento da cidade,
galinhas, ou ainda o barulho dos atabaques nos dias de festa, além da convivência com
as diferenças religiosas, fazem com que os terreiros sejam muitas vezes espezinhados
pela vizinhança. Embora esses candomblés possam declarar que estão ali há mais tempo
despachados cada vez mais longe, e as criações de animais destinados ao sacrifício estão
cidade, esses terreiros acabaram ficando circundados de residências, exigindo por isso
uma nova organização das atividades, a fim de facilitar a convivência com o outro.
porque esperam ser aceitos na vizinhança. Embora o intuito das mudanças seja obter a
interagir socialmente, nem sempre é isso que acontece. É bastante comum os terreiros
terem que lidar com atos de rejeição, como apedrejamentos, realizados por
39
fundamentalistas de outras religiões, principalmente neopentecostais, ou por crianças e
religiões afro-brasileiras.
Campinas tem uma história em que a ação repressora sempre esteve presente na
vida dos negros. Desta forma, o preconceito contra o candomblé, que é uma religião
irmão que são mais velhos na religião, mas tudo era muito
Dangoroméia)
hoje são datados dos anos 70, do século XX, foram fundados por pais e
36
Pano enrolado cobre a cabeça das mulheres do candomblé angola.
40
tenha recebido um grande contingente de negros escravos, seus
Diferente dos antigos terreiros de Salvador, onde há uma comunidade que vive
tanto nas imediações quanto dentro da própria “roça” 37, os terreiros em Campinas são
menores e são poucos os adeptos que residem nas proximidades, de forma que a maioria
As casas de angola
O primeiro terreiro campineiro de angola de que se tem notícia, data do final dos
anos 70 e era dirigido por uma mãe-de-santo chamada Nanjerecy. Hoje não existe mais,
porém foi nesta casa que se iniciou tateto Gitalanguange, um dos pais-de-santo que faz
Localizado na rua João Sulinski, nº 390, no Jardim São Pedro, este terreiro tem
uma história peculiar, pois o barracão havia pertencido, originalmente, a uma mãe de
37
Bernardo descreve um terreiro baiano dizendo que: “A “roça” surpreende, desde o início, pela sua
construção. Parece um pequeno bairro, todo cercado de grades brancas com um portão central. Ao
atravessá-lo, entra-se em uma pequena praça que dá origem a curtas e estreitas ruas asfaltadas e
arborizadas com casas antigas e bem cuidadas. Em uma das vielas, vê-se um armazém e, em outra, uma
capela toda branca.As crianças brincam despreocupadas dispondo daquele espaço como verdadeiros
‘donos’, diferentemente das brincadeiras infantis que se vêem nas ruas de São Paulo e da própria
Bahia”. Bernardo, Teresinha. A mulher no candomblé e na umbanda. Dissertação de mestrado
apresentada ao programa de Estudos Pós Graduados em Ciências Sociais da PUCsp- 1986. São Paulo.
41
umbanda, depois foi vendido a um sacerdote de nação queto que, posteriormente, o
vendeu ao tateto Ubiacylê. Além disso, é o espaço mais antigo dentre todos os outros,
“Ogum Rompe Mato” foi o primeiro nome que esse barracão recebeu de uma
Paulo que estava se estabelecendo em Campinas, chamado baba Toloji. Ele conta:
Pela narrativa do baba Tologi podemos observar que, na concepção dos adeptos
do candomblé, Ogum fundou seu chão sem se importar se era inicialmente um terreiro
interessa é que foi o mesmo “santo” que tomou aquele lugar para si, não se importando
de ser São Jorge, como é sincretizado na umbanda paulista, ou o Ogum Rompe Mato da
38
Altar onde são colocadas imagens de santos católicos, orixás, velas, nos terreiros de umbanda.
39
Pai Tologi é um sacerdote da nação queto que começou em Campinas batendo para caboclo, no
barracão onde hoje funciona a casa de pai Ubiacylê.
42
umbanda, ou simplesmente Ogum como é no queto, ou finalmente como Roxi
ioruba ou banto. Nesse momento, Ogum deixa de ser santo, orixá, inquice ou vodum
para ser uma “única” divindade que tem ali uma terra que tomou para si e a sacralizou.
ali apenas um barracão, sem banheiro e sem luz elétrica, construído no fundo do terreno
“Eu acrescentei uma porta no centro, fiz uma porta lateral, fiz um
quartinho que são colocados os assentamentos de santo e também onde vão ser
43
ela não exige sacrifícios e assentamentos, portanto, para o culto bastam uma imagem e
Do barracão simples no fundo do terreno, baba Tologi também fez uma cozinha
mediante a relação com outras casas, com amigos, com os livros e com os próprios
quarto de santo, uma dispensa, o roncó, banheiros, quartos de vestir e, aqui e ali, nos
“Bonidê, foi feita lá. Então ela foi feita lá... Foi a rombona da
44
4 5
O primeiro barracão - 1980- foto cedida por Baba Tologi
6 7
Interior do salão- 1980 Lembrança da abertura
casa em Campinas, comprou este barracão e está nele até hoje. As reformas que já
sacerdote e do candomblé que, de uma vez por todas, se estabilizaram naquele local.
45
As primeiras construções foram conservadas com pequenas alterações e no
Esta casa, assim como a maioria dos terreiros de candomblé de Campinas, são
branca do Tempo pode ser vista ao longe, atada ao mastro de bambu, tal qual pequena
Exceto esse marco, um vaso com folhas de peregum41 e uma quartinha branca,
uma casa de candomblé. Fora isso, um muro alto e um grande portão de ferro pintado de
telha de amianto margeada por uma folha de palmeira desfiada protege um tufo de
40
Zara Ktembo , como também é conhecido o inquice Tempo
41
Dracaena fragans Gawl, AGAVACEAE,. Fonte: Barros, José F. Pessoa de. O segredo das folhas
.Sistema de classificação de vegetais no Candomblé jêje-nagô do Brasil. Pallas; UERJ, Rio de Janeiro,
R.J. 1993.
42
Corresponde ao orixá nagô Ogum. Também conhecido nos candomblés angola como:
Incossimucumbe,Iincossi, Mungongo. Roximucumbe, Sumbo, Cangira, Nkossi- Mukumbe, (Roxi-
mucumbe, Nkossi, Tabalajo, Roxi-marinho); Mucumbe (rossi Biolê, Incossi, Rossi Mocumbo, Kitaguaze,
Minicimgo, congo mocongo, Naguê, Mugomessá, Jambá, Ngo, Mavalutango, Katembo, Rucongo,
Alunda, Dagolonan, Kitongo); Roxo Mucumbe, Incôssi Mucumbe, Ncôsse; Kossimburé, Roximucumbi,
Inkossi, Sumbo, Mugongo e Nkosi, Hoji Mukumbi .- Giroto, Ismael. Universo Mágico-religioso negro-
africano e afro-brasileiro: Bantu e Nagô. Tese apresentada ao9 departamento de Antropologia da FFCH
da USP. São Paulo. 1999. p. 278/279
43
Giroto na sua tese de doutorado expõe: “Considerando os terreiros Nagô e Bantu de maneira genérica,
é quase homogênea a representação, material dos orixás e inquices, isto é, dos seus assentamentos,
elementos simbólicos depositários de energias. As variações consistem, no geral, em enfeitar mais ou
menos.
Nos terreiros Bantu, Roximucumbe, Mutacalambo e Katende, via de regra, são cimentados, enquanto
Ògún, Òsóòsì e Òsanyìn não o são... Wunje tem seus elementos simbólicos sobre a areia que cobre o
alguidar, Ìbejì os tem soltos e dificilmente é representado por esculturas de crianças, como na África.
Ambos se aproximam muito do conceito de erê, espíritos infantis.
46
ferramentas feitas de ferro. Posso deduzir, pelo estado em que se encontram os ferros, a
quantidade de sacrifícios que foram ali realizados. Ao seu lado, um porrão44 de barro
À direita, há uma casinhola que está sempre fechada, que é a casa das almas;
mais atrás, há um viveiro, com pombos, galinhas de angola e frangos caipiras. É muito
comum encontrar criação de bichos nos candomblés em Campinas, pois esse tipo de
criação, além de facilitar a aquisição de animais para realização de ebós, também ajuda
a gerar alguma renda para o criador, que geralmente está ligado à casa.
assentamento do Exu de rua45. Deixando-se ver através de um portão de ferro, este Exu
é representado por um vaso encimado por um arranjo em ferro, onde se vêem tridentes,
facas e chifres de animais, parafernália que significa seu próprio corpo. Neste local, são
feitos os pedidos e colocadas as oferendas. É o Exu que tem como objetivo cuidar da
primeiro é aquele que representa o papel de guardião, que fica na entrada dos terreiros a
fim de proteger a casa de candomblé das demandas, além de atender aos caprichos dos
homens que vão ao seu encontro para que ele os ajude a resolver os mais diversos
problemas do dia-a-dia. Isso pode se dar através de oferendas que muitas vezes são
depositadas diretamente aos pés de seu assentamento. Este Exu é concebido pelos
Assentamentos de Bombonjira e Èsù, sempre os vi fixos (cimentados ou com tabatinga), enquanto para os
Nàgó, em África, segundo depoimento verbal de Síkírù Sàlámì, são soltos.
As representações dos demais Orixás/inquices se assemelham no Brasil e se distanciam ora mais ora
menos das africanas.” Giroto, Ismael. Universo Mágico-religioso negro-africano e afro-brasileiro:
Bantu e Nagô.Tese apresentada ao departamento de Antropologia da FFCH da USP. São Paulo. 1999.
p.288.
44
Pote ou vasilha de barro, comumente bojuda e de boca e fundo estreitos:
45
Exu que guarda a casa de candomblé.
47
adeptos tal qual o Exu de umbanda cujas casas são construídas a frente dos terreiros e
Conhecido também como Exu pagão, Companheiro, Exu de ronda, entre outras
denominações, que têm sempre certo grau de intimidade, carinho e respeito por essa
dificuldades da vida, tanto por meio de pedidos que podem ser realizados ao pé de seus
“trabalhos” especiais.
Giroto, refletindo sobre a perspectiva reelaborada de Exu no Brasil, uma vez que
ele foge à concepção Nagô original que o tem como orixá, escreve:
48
de angola é assimilado ao espírito de um morto que sofreu morte
“Os adeptos consideram Exu como uma entidade boa, uma vez
em homenagem a Exu. Nestas ocasiões, os Exus que incorporam são aqueles que, nas
casas, estão assentados perto da porta dos terreiros. Eles vêm receber as homenagens,
comem, bebem, fumam, dançam e, muitas vezes, dão consultas. Segundo Liana
Trindade ele “fornece não somente a proteção diante do sentimento de insegurança dos
indivíduos, mas também permite – através do processo de demanda – uma forma dos
49
Mavambo, conhecido também como Exu do santo, Exu escravo do orixá, porque,
santo se manifestam nos rituais de candomblé realizados nos terreiros, porém somente
em adeptos iniciados para ele, embora não seja muito comum esse tipo de iniciação. Ele
vem como inquice, vestido com roupas de festa e seus filhos passam pelo mesmo
O Exu do santo normalmente fica em uma casa mais reservada e o acesso não é
permitido a qualquer pessoa. Ele “trabalha” somente para o inquice e a única pessoa que
santo, também chamado de Bombonjira, o ouvi explicar que o ouvi explicar que:
“Bombonjira não é Exu mulher e que não tem nada a ver com ”Pomba-Gira” que é
67)
Exu da seguinte maneira: “... a eles dão os nomes que querem, ou eles já trazem os
nomes... Fulano é de Ogum, o Exu é tal. O outro é também de Ogum, e o Exu é outro. É
difícil dizer para “santo” tal, tal, porque ele se apresenta lá como quer.” (1984; p. 41).
50
Embora os assentamentos tanto do Exu de rua quanto do Exu do santo sejam
elementos utilizados para assentar os Exus de rua são diferentes dos utilizados nos
ver com o mundo em que vivem os homens e alguns elementos representam a proteção,
outros a defesa, ou mesmo um potencial de ataque, que resultam por meio da magia
incorporados nos assentamentos do Exu de rua que tem a ver com a característica
do-santo que são aqueles relacionados com o inquice com o qual este Exu estabelece
ligação.
Os Exus são muito importantes nos candomblés, qualquer que seja a nação,
porque são eles que dão proteção aos terreiros contra qualquer tipo de malefício, ao
mesmo tempo em que, se tratados de maneira adequada, serão muito benevolentes com
a casa e seus adeptos, trazendo bênção e prosperidade. Além do mais são os primeiros a
receber as oferendas, são eles que transportam o moyo que é a força vital47 e nada se
46
Argila sedimentar, mole, untuosa, e com certo teor de matéria orgânica.
47
Segundo Temples : “Pour les bantous, tous les êtres de l'univers possèdent leur force vitale propre;
humaine, animale, végétative ou inanimée. Chaque être a été doté par Dieu d'une certaine force,
susceptible de renforcer l'énergie vitale de l'être le plus fort de la création: l'homme.
La félicité suprême, la seule forme du bonheur est pour le bantou la possession de la plus grande
puissance vitale; la pire adversité et en vérité le seul aspect du malheur est pour lui la diminution de cette
puissance.
Toute maladie, plaie ou contrariété, toute souffrance, dépression ou fatigue, toute injustice ou tout échec,
cela est considéré et désigné par le bantou comme diminution de force vitale’’. Placide Tempels - La
Philoshophie Bantoue 1945 Lovania -Placide Tempels« LA PHILOSOPHIE BANTOUE. Traduit du
néerlandais par A. Rubbens » Lovania (Elisabethville) 1945 .Texte intégral digitalisé et présenté par le
Centre Aequatoria. Full text digitalised and presented by the Centre Aequatoria
http://www.aequatoria.be/tempels/Melang2.html
Esta foça vital que é chamada de moyo tem conforme o texto acima uma concepção muito parecida com a
concepção de axé dos iorubá ou dos candomblés de nação queto.
51
Mais adiante da casa de Exu há duas construções, uma à direita e outra à
esquerda, separadas por um estreito corredor coberto por telhas de amianto. Este
corredor, além de fazer a ligação entre a parte da frente do terreiro e o domínio interno,
alvenaria de ponta a ponta beirando a construção da direita que, nos dias de festa e no
assentamentos do tateto dia inquice e dos filhos da casa, uma dispensa, um banheiro e o
vestiário que é um quarto amplo, com inúmeras roupas de baianas penduradas num ferro
que vai de um lado a outro deste cômodo. No fundo, à esquerda, um estreito corredor
conduz para uma pequena área de circulação. Uma porta permite o acesso para a área
interna.. Do lado esquerdo fica a cozinha, na qual há várias prateleiras nas quais se
industrial bem amplo e, apoiado à parede lateral, ainda há um outro fogão, pouco
menor.
comidas para alimentar os inquices e os homens. Nos dias de festa quando são
48
Vaso de barro ou de metal, baixo, em forma de tronco de cone invertido, e com diversos usos
domésticos; oberó, alquidar
52
sacrificados muitos bichos, são os filhos da casa que se encarregam de limpar as carnes
e cozinhá-las. A cozinha, em cujo centro há uma grande mesa ladeada por cadeiras, tem
transformados os alimentos que são servidos aos inquices e ali também são preparadas
as refeições que fortalecem os homens para que eles possam continuar a cultuar seus
deuses.
A luminosidade entra por três janelas que estão assim dispostas: uma para o
corredor lateral, outra, para a área interna que fica ao lado da porta de entrada e uma
Toda essa parte do complexo do terreiro foi construída pelo sacerdote atual.
Na área interna há um pequeno pátio ocupado por dois canteiros separados por
uma escada que conduz a uma varanda, que precede o barracão de festas. Esses
canteiros são circundados por caminhos cimentados que dão acesso, de um lado, à
cozinha e a dois tanques, que estão dispostos lado a lado e encostados ao muro lateral, e
As moradias anexas aos terreiros procuram ter uma entrada lateral ou serem
construídas sobre algumas alas do terreiro, preocupando-se sempre em não estar sobre
as “casas dos inquices”, a fim de que não se “pisem” sobre os assentamentos. Certa
reserva com a entrada da casa do sacerdote está relacionada com a possibilidade de eles
em Campinas, uma vez que as matas estão cada vez mais longe e cada vez mais
privadas, dificultando a colheita das plantas sagradas utilizadas para preparo de banhos
53
e, em diversas ocasiões, nos ritos de iniciação49. Todos os tatetos e mametos
entrevistados orgulham-se muito das espécies que possuem em suas próprias casas,
inclusive porque muitas delas são difíceis de se achar nas matas da região e só é
em ferro, uma grelha, mesa, cadeiras, garrafinhas de bebidas, uma mão com o indicador
inquices, além de outros objetos que fazem parte do dia-a-dia das pessoas.
duas cobras entrelaçadas que se erguem para o céu e seu assentamento repousa sobre
uma coluna que sai de uma pequena poça d‘água coberta por alfaces d’água52.
translúcidas protege as quartinhas dos caboclos, as quais são rodeadas por pequenos
49
Série de processos de natureza ritual, que efetivam e marcam a promoção de indivíduos ao acesso a
determinadas funções religiosas no candomblé.
50
Pepelê é uma construção de alvenaria onde são colocados os assentamentos dos inquices. O pepelê tem
a função de colocar o inquice num pedestal demonstrando sua soberania e sobre os homens, sugerindo
respeito e reverência dos adeptos.
51
Segundo Giroto: “Tempo Possui mastro e bandeira branca e seus símbolos ligam-no mais ao elemento
terra, aproximando-a de Obalúayé enquanto [com quem muitas vezes é sincretizado( grifado por mim)]
Ìrókò está relacionado mais ao fogo, cultuando como Sàngó próximo a gameleira.” Giroto, Ismael.
Universo Mágico-religioso negro-africano e afro-brasileiro: Bantu e Nagô. Tese apresentada ao
departamento de Antropologia da FFCH da USP. São Paulo. 1999. p.288.
52
Erva aquática, ornamental, da família das aráceas (Pistia stratiotes), acaule, estolonífera, com inúmeras
raízes imersas, folhas emergentes, esponjosas, sésseis e polimorfas, flores pequenas, amarelo-pálidas,
dispostas em espádice e protegidas por espata pequena e alvacenta, e cujo fruto é baga ovóide, com
pericarpo fino; alface-d'água, erva-de-santa-luzia. Dicionário Aurélio Século XXI
54
Esses caboclos são os representantes do Brasil e, segundo os adeptos, a “boca
dos santos”.
Catendê, o inquice das ervas mágicas e das plantas medicinais. São sete hastes de ferro
Ao final dessa escada, está o barracão de festa, em cuja entrada há uma varanda,
tendo ao lado direito uma pia e ao esquerdo um corredor, que separa a construção
principal de uma outra menor e mais estreita que está encostada ao muro lateral onde
estão uma casa de Aluvaiá que é, segundo os adeptos, o Exu-do-santo, uma pequena
No fundo do corredor, há um portão de ferro que separa uma pequena área que é
usada nos dias de oferendas para guardar os bichos de quatro patas que serão usados nos
sacrifícios.
1. Pepelê
2. Casa das almas
3. Viveiro.
4. Casa de santo
5. Exu de rua
6. Cozinha.
7. Vestiário
8. Dispensa
9. Banheiro·.
10. Caboclo
11. Casa do pai-de-santo
12.Casa de Aluvaiá
13. Área coberta
14. Salão de festa.
15. Lavanderia.
16. Banho.
17. Banho
18. Roncó
55
Privilegiando esta área, ao centro, está o barracão que para a leitura dos
terreiro. Isto porque sua especificidade é ser um lugar público onde ocorrem as festas
nas quais dançam os homens e os inquices, reproduzindo os mitos, além de que certas
transparente aos olhos dos de fora, pois é ali que os lugares estão bem definidos, a fim
pessoas que estão na frente, com roupas mais luxuosas, colares de contas
novos da casa.
56
Ter muitos amigos "mais velhos" no candomblé significa
ancestral religioso.
conseqüentemente, poder.
uma norma, com poucas variações dentro das casas de candomblé, sejam
O barracão pode ser dividido em duas partes, segundo os espaços que são
designados para os de dentro e para os de fora. Alguns são de fora porque, embora
sejam iguais na crença aos mesmos deuses, não passaram pela feitura do santo ou por
53
Força vital. Axé
57
qualquer outro processo que anteceda à iniciação, mas que introduza o sujeito na família
de santo. A primeira parte do barracão, que fica próxima à entrada, mais perto do lado
Todo o resto do salão, que é a sua maior parte, é destinado aos atabaques, aos
É nessa segunda parte que fica o centro do barracão, marcado por um ladrilho
diferente dos demais e que nos dias comuns está sempre enfeitado com flores, acaçás e
Podemos ver do lado esquerdo deste salão uma outra porta que dá passagem para
dia inquice e uma velha cadeira de encosto de couro, já corroído pelo tempo, que é a
Por causa do modo como foram sendo ampliados, esses terreiros nem sempre
para uma iniciação ou para as diversas obrigações no decorrer da vida religiosa. Assim,
o barracão, por ser maior que as outras acomodações das casas de candomblé de
Campinas, muitas vezes é utilizado para a realização dos atos propiciatórios nas
candomblé, antes que seja construída a camarinha. Nesta condição, o barracão vai servir
54
Corresponde ao orixá nagô Exu
55
Lugar reservado nos candomblés onde os iniciandos passam dias recebendo lições de culto e praticando
sacrifícios para merecerem a confiança do orixá a que se dedicam; camarinha; ronco.
58
de espaço privado onde serão recolhidos os “filhos-de-santo” que, porventura, estejam
de “obrigação”.
mais ilustres, nas ocasiões festivas. Mais próximo da cadeira de Roxi há uma outra
cadeira de braços, para que em dias de festa se assente um convidado mais velho dentro
Do lado esquerdo, uma porta vai dar ao roncó, que também é a sala de jogo de
de Caiá59 que são semelhantes às imagens dos orixás que correspondem a esses
inquices. Atualmente, as paredes estão pintadas de branco e não há mais as imagens dos
inquices, pois já estavam bem desgastadas pelo tempo. A parede dos fundos foi
revestida por uma cerâmica que dá a ilusão de ser um muro de pedras. No centro da
sala, pendurado no teto, há uma quartinha e uma tigela branca, rodeadas por folhas de
palmeira desfiadas.
56
Corresponde ao orixá nagô Oxalufã. Este inquice também é denominado Gangarumbanda,
Gangaunfaramá, Lembafurama, Jafurama e Lembafulama. Giroto, Ismael. Universo Mágico-religioso
negro-africano e afro-brasileiro: Bantu e Nagô. Tese apresentada ao departamento de Antropologia da
FFCH da USP. São Paulo. 1999.p. 283.
Esmeraldo Emérito de Santana fala que “... Oxaguiã no angola, que chamamos Cassuté [também
denominado de Lemba-dilê ( observação acrescentada por mim)]; o Oxalufã que é Gangarumbanda,
Gangaumnfaramã; o Oxalá mais velho é o Caocô... Xicaramgomo,” Esmeraldo Emetério de Santana.
Encontro de nações-de-candomblé. Centro de Estudos Afro-Orientais 1984. Salvador, Bahia; p. 41.
57
Corresponde ao orixá nagô Ogum. Também denominado no angola como: Incossimucumbe,
Mungongo, Roximucumbe, Sumbo, Munganga, Roximucumbe, Sumbo, Cangira, Tabalanjo, Roxi-
Marinho Kitaguaze, Minicongo, Mucongo, Naguê, Mugomessá, Jamba,Ngo, Mavalutango, Katembo,
Rucongo, Alunda, Dagolonan, Kitongo. Giroto, Ismael. Universo Mágico-religioso negro-africano e
afro-brasileiro: Bantu e Nagô. Tese apresentada ao departamento de Antropologia da FFCH da USP. São
Paulo. 1999.p.279
58
Corresponde ao orixá nagô Omolu. Também denominado no angola Quingongo, Camafunge, Cafunge.
Kaviungo.
59
Corresponde ao Orixá nagô Iemanjá. Também denominado no angola como: Quissimbe, Caiala,
Micaia, Aiocá, Inaê, Calunga, Janaina, Mameto Caiatumbá.
59
Alguns ventiladores estão distribuídos nas paredes, para dar um pouco de
ventilação quando a casa está cheia, porque o teto não é muito alto e há apenas duas
janelas e duas portas que dão para o exterior. Nas prateleiras vêem-se santos católicos,
a exemplo de São Jorge e São Benedito. Nas paredes do barracão, se espalham laços de
tecidos coloridos.
60
Entrada do barracão. Foto Ivete M. Previtalli 11
12 13
Parte interna do barracão. Foto: Ivete M. Previtalli
14
Casa de caboclo. Foto Ivete M. Previtalli
61
15
Assentamento do Inquice Tempo e inquice Angorô. Foto Ivete M.P.
encruzilhadas, os terreiros hoje estão cada vez mais enfronhados nos espaços urbanos.
Por isso, os terrenos não são muito grandes e a construção do complexo religioso, em
sua maioria, ocupa quase toda a área disponível. Os sacerdotes procuram comprar os
são plantadas em canteiros, uma vez que as matas estão cada vez mais distantes e
privadas. As encruzilhadas vão sendo asfaltadas e Exu que antes só recebia ebó em rua
deles não possui seu próprio "chão". Embora esses espaços sejam conseguidos com o
sacrifício dos pais e mães-de-santo, tateto Ubiacylê fala com satisfação sobre sua
conquista:
não é para mim, é para o meu santo... Eu acho que isso é muito
orixás, sei lá, a Exu. Porque muitas pessoas queriam ter o que eu
62
tenho, porque tem muita gente que toca candomblé em casa de
O segundo terreiro mais antigo que realiza atividades ainda hoje no município de
Campinas é o Inzo Muzambo dia Hongolo, situado na Rua Sérgio Sidney de Souza, no
notícia é Inzo dia Musambu Kaingo n´boti Ofulá, situado à Rua 6, nº 1783, no
município de Monte Mor e data de janeiro de 1983. O quarto terreiro, segundo a data
de fundação, é o Ile Axé Arolê, situado à Rua Joaquim da Silva Arieiro, nº 374, em
exceção do Ile Axé Arolê que tem seu nome em nagô, foram introduzidas recentemente
Diria mesmo que este fato é de importância inconteste para estes terreiros. Em outras
Olhando com atenção cada um dos quatro terreiros selecionados, pude perceber
fisicamente, de maneira muito semelhante em todos eles. Entretanto, o terreiro Ilê Axé
Arolê revela uma nova faceta, pois as permanências e rupturas aconteceram com a
63
OUTROS USOS DO ESPAÇO
O espaço do terreiro Ilê Axé Arolê que passou por mudanças em conseqüência da
introdução do candomblé, hoje processa uma nova fase de alterações determinadas pela
construção de novos nichos, exigidos pelo acréscimo de ritos da nação queto e de culto
cada uma delas, definidas por ele mesmo. Quanto ao espaço, são estabelecidos lugares
para a umbanda, para o candomblé de nação angola, para o de nação queto e outro ainda
espaço.
decoração das paredes de um tom verde muito claro, que é dado pelo efeito de uma
textura que lhe foi aplicada, revelando uma estética moderna diferente dos outros
terreiros que são mais rústicos. No centro, tateto Gitalanguange mostra Onilê61, que é a
divindade da terra cultuada pelos candomblés queto. Embora esse espaço central seja
semelhante aos outros terreiros, o que o diferencia dos demais é o significado que lhe é
atribuído, ou seja, a morada do orixá Onilê, uma divindade que não pertence ao panteão
angola.
60
Em alguns candomblés iorubas, espírito de antepassado que recebe oferendas e é invocado em certas
cerimônias especiais [p. ex., no axexé (q. v.)] ; egungum.
61
Orixá dono da terra, ou a própria terra. Giroto fala em sua tese de Doutorado que o inquice
correspondente a Onilê é Tateto Kisanga Ria – Incungo, porém em Campinas não ouvi falar sobre esse
inquice apesar de todos os terreiros angola possuírem um marco central no chão do barracão que também
pode receber sacrifício em tempos propícios.
64
Uma grande coluna circular branca de paredes frisadas em alto relevo, que
lembra as colunas dos antigos templos gregos, marca o centro do salão. Sobre a parte
superior desta coluna descansam uma quartinha e uma alguidar, ambas de barro,
decoração das paredes, revelam as infinitas possibilidades que esse pai-de-santo permite
65
As Casas de Santo e a Casa de Egungum.
casas de santo que estão divididas conforme a nação a que pertencem. O pai-de-santo
separa os orixás dos inquices, mas possui ambos em seu candomblé e justifica essa
separação: : “A minha rumbona é de Ewá, então não tem como fazer em angola, então
a gente faz em queto e toca em queto as coisas de Ewá, de Obá, de Logum.” ( tateto
Gitalanguange)
quartos em que estão divididas as duas construções que se localizam uma de cada lado
do terreno.
62
O culto de egungum é o culto de ancestral ligado à cultura nagô. 62 Em alguns candomblés iorubas,
espírito de antepassado que recebe oferendas e é invocado em certas cerimônias especiais [p. ex., no
axexé (q. v.)] ; egungum.Segundo Juana Elbien, “ O objeto primordial do culto de Égúngún consiste em
tornar visíveis os espíritos ancestrais, em manipular o poder que emana deles e em atuar como veículo
entre os vivos e os mortos. Ao mesmo tempo que mantém a continuidade entre os vida e morte, o culto de
Egúngún também mantém estrito controle das relações entre vivos e mortos, estabelecendo uma distinção
muito clara entre os dois mundos: o dos vivos e o dos mortos (os dois níveis de existência).
Com efeito, os Baba trazem para seus descendentes e fiéis o benefício de sua bênção e de seus conselhos,
mas eles não podem ser tocados e ficam sempre isolados dos vivos. Sua presença é rigorosamente
controlada pelos Òjè e ninguém pode aproximar-se dos Egúngún.
Os Egúngún, Baba Égún, ou simplesmente Baba, espíritos daqueles mortos do sexo masculino
especialmente preparados para ser invocados, aparecem de maneira característica, inteiramente
recobertos de panos coloridos, que permitem aos espectadores perceber vagamente formas humanas de
diferentes alturas e corpo. Acredita-se que sob as tiras de pano que cobrem essas formas encontra-se o
Égún de um morto, um ancestre conhecido ou, se a forma não é reconhecível, qualquer aspecto
associado à morte. Esses ancestres coletivos são os mais respeitados e temidos entre todos os Egúngún,
guardiães que são da ética e da disciplina moral do grupo “( 1993; p. 120)
66
O pai-de-santo justifica a introdução do culto de egungum em decorrência de
Embora ele afirme isto, convém lembrar que nos terreiros de angola já existe a casa das
almas, e o culto de ancestrais é marca preponderante das religiões bantas das quais se
Afirmar que os bantus cultuavam ancestrais pode simplificar muito sua filosofia.
preservação da força vital chamada pelo autor de ‘’dom de Deus’’. Acreditando que a
força vital do homem pode, por um lado, se enfraquecer ontologicamente e, por outro,
ser reforçada, o negro banto não media esforços para preservá-la e recompô-la, sempre
condizentes com suas normas sociais, tais como o respeito à hierarquia que organizava
todos os níveis de seres viventes e também após a morte. O principal intuito era jamais
preocupar-se, principalmente, com a vida, muito mais do que com a existência de tal
Uma das maneiras da energia vital ser fortificada era pela relação com certos
viventes, e de espíritos de pessoas que tinham sido boas em vida, apesar de pessoas
comuns.
67
expressão Kukomesya Bumi que significa « fortalecer a vida » 63.
(tradução livre)
Além disso, também Deus era considerado pelos bantos, conforme Temples,
como um morto ou um ancestral igual a outro qualquer, além de que outras qualidade
Desta forma, uma preocupação essencial entre os bantos era cuidar bem de seus
ancestrais, a fim de que a vida pudesse andar positivamente. Sobre isto Temples escreve
que
63
Tempels escreve :« Il existe des termes positifs qui signifient: "raffermir la vie" kukomesya
bumi. On dit des défunts, surtout des pères de clan spiritualisés, des bavidye, qu'ils "protègent,
sauvegardent" les vivants bafu betunama. On dit de Dieu, d'un vidye ou d'un défunt ordinaire vidye
bampe, mfumwami ampe, Dieu, ou notre esprit, mon défunt, me donnait ceci ou cela, m'accordait
positivement l'un ou l'autre bonheur...
Il y a des manga pour avoir de la chance, dyese, maese..., pour la fécondité, pour la chasse, etc.
La négligence, l'abandon des défunts, des ancêtres, des esprits, apporte nécessairement du
malheur. Si les vivants ne posent pas d'obstacle (ontologique, moral, juridique), les êtres invisibles sont,
per se, des aides, des protecteurs et soutiens de la force de vie des vivants(...).
La Philosophie bantu (capitulo II : 6. La force de la vie peut-elle être raffermie?) .
68
seres invisíveis são por si só ajudas, protetores, e sustentam a
nefastas, se não tiverem o hábito de maldizer, ela será vigorosa e passará esse vigor aos
seus filhos.
reestruturado e reintrepretado.
Inzo Yombeta, Cruzuê das almas, Casa das almas ou Cruzeiro da almas, são
alguns dos nomes que recebe a moradia dos ‘’ancestrais’’ nos candomblés angola.
ebós ; as almas que realizam benefícios são cultuadas na Casa das almas, além de
estas almas para que elas estejam presentes e tenham relações amistosas com o
69
Ademais, o culto de egungum, que tem ligação com os candomblés de origem
ancestral comum que tenha fundado o culto e se constitui através de seus descendentes,
Desta forma são duas práticas diferenciadas e segundo Juana Elbien, constituem
fundação são totalmente diferentes, assim como os “assentos” de égún são diferentes
No terreiro onde se cultua orixá, pode haver uma casa dedicada aos eguns que se
chama ilé-ibo-aku, local onde os mortos (adósù66 falecidas) serão cultuados e que,
segundo Elbien, nunca deve ser confundida com o Ilé-ìgbàlè que é a casa do culto de
ègún .Ainda segundo a autora, no Ilé-ibo , são venerados os espíritos das adósù,
64
Expressão usada para designar terreiros que trabalham somente com egungum ; pisar no culto de
egungum
65
Expressão usada para designar terreiros que trabalham somente com orixá; pisar no culto aos Orixás.
66
Pessoas iniciados no candomblé nagô, queto.
70
sacerdotisas iniciadas no culto dos òrìsà. No Ilé-`gbàlè, são adorados os ará-òrun, em
O que podemos perceber é que, embora tateto Gitalanguange tenha construído uma
casa para egum, seu terreiro não traduz o que Julio Braga descreve como um terreiro
Afastada das demais dependências, a casa de Egun é chamada pelo sacerdote de Ilé-
ibo, porém, na pesquisa de campo, ele me revelou o desejo de vestir baba egum que
fora, segundo o sacerdote, assentado nesta casa por sacerdotes de culto de baba-egum
de Itaparica.
67
Ver; Braga Júlio. Ancestralidade Afro-brasileira. O culto de babá egum. Centro de estudos Afro-
Orientais da Universidade Federal da Bahia e Edições Iananmá. Salvador Bahia.1992
71
casa de Budjó, lá da ilha... das amoreiras.. O que eu
ele já tem posto, ele já tem roupa. Mais para frente, vou
à casa das almas como a casa de egungum. Neste caso, o pai-de-santo optou por chamar
Isso separa as almas do candomblé angola dos eguns do candomblé queto de tal forma
status superior ao culto das almas, embora hoje acolha “almas” e “eguns” sob o mesmo
teto.
68
Provavelmente, o sacerdote esteja se referindo aos segredos do culto de Egungum . Júlio Braga explica
que os segredos do culto são muito bem guardados: “ Os ojés são auxiliados pelos Amuixãs, que
passaram à condição de Ojé após o primeiro estágio de iniciação. Formam eles um grupo de extrema
importância para a permanência da comunidade sagrada, além de exercerem diferentes serviços durante
a cerimônia. Embora situados no primeiro grau de iniciação, já conhecem os elementos essenciais dos
rituais sem, contudo, terem acesso ao Ilê auô e aos segredos da seita.” (1995: p.43)
72
Num outro terreno vizinho, um ano após minha primeira visita, foi construída
egunguns do culto nagô, a fim de separar tais ritos dos demais. Além disso, conta com
orgulho que plantou, naquele espaço recentemente adquirido, duas árvores de Iroco69, a
O Recanto da Umbanda.
Coberto por telhas de barro e circundado por meias paredes, se localiza do lado direito
69
Orixá nagô cuja morada e epifania é a gameleira-branca, árvore que se costuma adornar com laços de
pano e, em cujas raízes, recebe oferendas de alimentos.
73
Neste pequeno espaço, há um altar de santos católicos, imagens de pretos-velhos
Esse mesmo sacerdote nos revelou por ocasião da entrevista que, além do
Exu, preto-velho, caboclo e baiano. Disse, ainda, que "bate” umbanda, mas, quando faz
74
O Arranjo Entre As Diversas Nações.
egungum.
Quando a umbanda ocupa a sala, o candomblé fica afastado, para que os orixás e
inquices fiquem longe das almas dos pretos-velhos, dos caboclos, dos baianos e exus
pagãos. Nas festas do candomblé, esta casa celebra tanto queto quanto angola no mesmo
dia.
e por outro lado, pertencem à nação queto: Logum, Oxumarê, Omolu, Ewa e Obá.”
(Tateto Gitalanguange)
70
Inquice correspondente ao orixá nagô Exu - Aluvaiá
71
Corresponde ao orixá nagô Ossaim
72
Corresponde ao orixá nagô Oxumarê
73
Inquice da justiça, que gera o poder da política/ Loango corresponde ao orixá nagô Xangô
74
Corresponde ao orixá nagô Iansã
75
Inquice correspondente ao orixá nagô Oxum
75
A comunidade campineira do candomblé angola não aceita de bom grado
elaborações:
“Ah você virou sua casa para queto (dizem os outros)! Eu não
todos meus ebós79 e meu bori80, toda a situação foi feita dentro de
embora já tenha acontecido de uma mãe-de-santo de angola se retirar com toda a família
76
Cada um dos cânticos com que se chamam a descer os inquices. Estes cânticos são realizados nas festas
do candomblé angola e os inquices dançam conforme são realizados pelos adeptos.
77
Cada um dos cânticos com que se chamam a descer os orixás; são os cânticos realizados nas festas
públicas quando os orixás vêm e dançam ao som dessas músicas-orações.
78
Dança movimentada. Festa pública no candomblé de nação angola.
79
Oferenda ou sacrifício de animal votivo a um orixá realizado para receber um benefício, para melhorar
a energia vital, para purificar o ser antes de entrar nas obrigações iniciáticas.
80
No candomblé e em outros cultos afins, rito penitencial e purificatório ao fim do qual se banha a cabeça
do crente com sangue do animal sacrificado.
81
No opelé-ifá, o valor de cada uma das metades de sementes ou de búzios.
82
Antigo terreiro de origem banta da Bahia
76
O que parece uma arbitrariedade do pai-de-santo, ao juntar diversas nações de
candomblé, umbanda e o culto de egungun, pode ser interpretado como uma disputa no
25
Assentamento do inquice Tempo. Foto: Ivete M. P
83
As ìyàmi Osòròngà também denominada de eleye ( dona dos pássaros) representam o poder místico da
mulher em seu aspecto mais perigoso e destrutivo. Verger expõe que embora as àjé ( como também são
conhecidas) sejam feiticeiras, “as àjé não são execradas pela sociedade, da qual ... constituem um dos
pilares essenciais” (16). Porém deve-se ser prudente ao falar delas e, se falar bem pode trazer transtornos,
falar mal é atrair para si sua força destrutiva, portanto, “uma atitude de prudente reserva diante de uma
potência estabelecida, malevolente e atuante... o que acarreta, em relação a elas, uma discrição que não
facilita a tarefa dos pesquisadores.” Verger, Pierre. A grandeza e Decadência do Culto de Ìyàmi
òsòròngà ( minha mãe feiticeira) entre os Yorùbá. In: As Senhoras do Pássaro da Noite. Org. Carlos
Eugênio de Moura. Edusp. São Paulo. S.P. 1993; p. 16.
77
Na realidade, o sacerdote tem conhecimento de que nem sempre o candomblé angola
“agrada” o cliente; desta forma, na disputa pelo mercado de bens simbólicos, ele incorpora
Gitalanguange, com o objetivo de justificar a existência dessa variedade de ritos em sua casa,
ainda que esteja sempre voltado para suas necessidades espirituais, revela outra realidade,
quando fala:
você vive disso, como eu, a gente tem que se adequar dentro de
também. Então a gente tem isso aí, para poder atender essas
instabilidade para essa casa de candomblé por meio das rupturas que eles possam
causar, ao se contrastarem uns com os outros, a permanência dos ritos mais antigos de
equilíbrio do grupo.
84
Uma das nações do candomblé.
78
Esse arranjo é elaborado de tal forma que um adepto pode escolher entre as
diversas modalidades religiosas afro-brasileiras a que prefira freqüentar, sem que seja
obrigado a participar das outras. Isto quer dizer que, se por acaso o filho quiser
freqüentar somente os trabalhos de umbanda, não será obrigado a estar presente nos dias
em que são cultuados os inquices ou orixás com ritos de candomblé. Se por um lado,
essa atitude exclui, por outro lado, ela inclui todos no contexto mais amplo do grupo,
torna possível este jogo de relações, muitas vezes antagônicas, quando universaliza a
idéia de Deus: “Não tem diferença. Deus é igual, só muda o nome". (Tateto
Gitalanguange)
Apesar desse terreiro realizar tantos rituais, de possuir espaços específicos para
cada um, parece que o pai-de-santo carrega consigo a idéia monoteísta cristã de ver um
só Deus.
85
Halbwachs, Maurice. A Memória coletiva. Editora Vértice, Revista dos Tribunais, São Paulo, SP.
1990; p.133.
79
Desta maneira, o espaço deste terreiro revela como esse pai-de-santo se
relaciona com a religião, o que ele e sua comunidade valorizam como sagrado, e os
espaços que são cedidos separadamente a cada rito denota uma preocupação em
nesta casa ele se modernizou, adquiriu novas formas e não perdeu sua beleza e
80
CAPÍTULO III
26
81
O candomblé, conforme Vivaldo da Costa Lima, “é um grupo pequeno, na
medida em que sua estrutura, e não sua extensão, é que define e o situa como tal”.
(2003; p.58)
do pai ou mãe-de-santo, respectivamente, tateto dia inquice ou mameto dia inquice, nos
candomblés de angola.
82
Desta forma, com base na relação dos líderes dos terreiros com seus filhos
espirituais, e dos filhos entre si, é que se organiza a família-de-santo, de modo que,
(2003; p. 60)
ainda muito discutida nas Ciências Sociais, Vivaldo da Costa Lima explica que “a
com seus filhos, resultando daí os diversos níveis de parentescos que vão sendo
corresponde ao conceito de família nuclear que é formada por pai, mãe e filhos. No
mesmo tempo) e seus filhos, é suficiente para fundar uma família-de-santo. Também a
família religiosa não estanca no núcleo familiar, mas se expande envolvendo irmãos,
tios, primos de diversos graus, avós, bisavós, inclusive todos os ancestrais conhecidos,
Essa rede de relações não se esgota nas unidades-terreiros, mas se amplia a todos
pelo parentesco entre seus membros. Pode também se dar por agregação mediante
83
compromissos sociais assumidos publicamente, como no caso de padrinho e madrinha
que podem ser pessoas de família e até de nações diferentes, mas que apadrinham algum
filho de uma casa no momento dos ritos religiosos públicos, dentre os quais, a tirada do
nome e o recebimento do decá.86 O pertencimento a uma família de santo pode ainda ser
grupo familiar socialmente reconhecido que lhe confere algum status. (Vivaldo da Costa
Lima: 2003)
"povo do santo", porque, uma vez que o candomblé tem uma tradição oral, conhecer e
recitar sua ancestralidade significa saber sua origem, a que linhagem pertence, onde é
seu lugar na rede de relações familiares e desta forma, ser ao mesmo tempo detentor e
campineiro, sempre são saudados pelos adeptos ao iniciarem um jogo de búzios, nos
pedidos de bênção ao chegarem aos terreiros, antes e depois das refeições, assim como
86
As cerimônias de tirada do nome consistem numa fase da festa de saída de muzenza (iniciação no
candomblé angola) em que um sacerdote visitante é convidado pelo tateto ou mameto protagonista da
festa para perguntar a dijina ( nome de iniciação) ao novo inquice que está saindo na sala. O sacerdote
que apadrinhará o iniciado dá algumas voltas na sala de braços dados com o inquice. Num determinado
momento ambos param e o padrinho pergunta ao inquice qual é a dijina do recém iniciado. O inquice
responde baixo, porém o padrinho insiste no questionamento a fim de que todos possam ouvir o nome do
novo membro da família. Neste instante o inquice gira em volta de si mesmo, dá um salto e grita o nome
pelo qual a muzenza será conhecida a partir de sua iniciação.
87
O novo nome recebido após a iniciação do candomblé tem a ver com a perda dos laços familiares na
diáspora. Quando o escravo descia do navio negreiro, deixava para traz a sua família, os seus ancestrais,
até o próprio nome, porque muitas vezes era batizado ainda com o pé entre a água do mar e a areia. No
candomblé quando se passa efetivamente a fazer parte da família de santo e torna-se uma muzenza,
recebe um nome africano que tem significado para o grupo.
84
O grupo familiar se organiza fundamentado numa regra de obediência geral
relacionada ao parentesco, que é a proibição do incesto88. Isto significa que não se pode
fazer o que se quer, quando o que está em pauta é a vida sexual. Deste modo, a
pela natureza. Assim, essa interdição determina um jogo de trocas que, conforme Levi-
1976).
marido não pode iniciar sua esposa ou companheira e vice-versa, tampouco o pai-de-
santo de uma filha pode ser ao mesmo tempo pai de seu parceiro(a) sexual. Os filhos
biológicos também não devem ser iniciados por seus pais biológicos, embora neste caso
não haja uma norma muito rígida. Nesta última circunstância, pode acontecer uma
iniciação que é chamada de meia cabeça, isto é tanto o pai ou mãe biológica, desde que
sejam sacerdotes, dividem a raspagem da cabeça do filho com outro sacerdote que se
tampouco a participação deste em qualquer uma das fases dos ritos, mesmo que seja
apenas na preparação das comidas sagradas, a fim de que o casal não sofra, futuramente,
88
Vivaldo da Costa Lima escreve que nos terreiros baianos há o interdito de casamento para aqueles que
são filhos de um mesmo orixá, porque se tornam, desta forma, irmãos. Melhor dizendo, se um homem e
uma mulher são ambos filhos de Ogum , esta seria uma união proibida porque por serem de um mesmo
orixá tornam-se irmãos. Em Campinas, não encontrei esta proibição. Ao perguntar sobre este tipo de
interdito, ouvi de um sacerdote: “Nunca ouvi falar disso”. Ouvi também de uma filha de santo: “Já ouvi
minha mãe falar disso uma vez, mas ela disse que é bobagem.” Na verdade, Vivaldo explica que essa
interdição não é muito respeitada também nos terreiros pesquisados por ele na Bahia.
85
com desavenças ou a repulsa sexual, que poderá resultar numa separação. Neste caso, o
parceiro sexual daquele que está "recolhido" permanece, na maioria das vezes, afastado
dentro da casa para fora, quanto de fora para dentro da "camarinha”,89 de maneira que
A regra determina, ainda, que parceiros sexuais não podem ser irmãos de santo,
nem filho-de-santo um do outro, mas podem ser primos, tios, sobrinhos, assim por
diante.
parceiros sexuais o obriga a dar um dos cônjuges a outro sacerdote; além disso, cria um
direito sobre outro parceiro sexual de algum filho ou filha de santo que pertença à outra
família e que lhe será dado (a) em troca. A proibição do incesto, ao fundar a troca, vai
além da interdição, uma vez que se converte numa regra de reciprocidade e por meio
Nos quadros abaixo, podemos observar como é elaborado o sábio jogo de trocas
que, segundo Levi-Strauss, garante e previne contra os riscos no duplo sentido das
89
Lugar reservado nos candomblés onde os iniciandos passam meses, recebendo lições de culto e
praticando sacrifícios para merecerem a confiança do orixá a que se dedicam; Roncó.
86
Grupos aparentados de A (Iniciado no candomblé)
Avô ou avó-de-santo
Sobrinho- sobrinha-de-
santo
27
incesto.
Avô ou avó-de-santo
28
87
Em vermelho estão relacionados os casos em que a proibição do incesto
não permite que “B” esteja localizado na organização familiar por causa
Avô ou avó-de-santo
Sobrinho- sobrinha-de-
santo
29
É importante notar que o parceiro sexual “B” será introduzido no grupo por meio de
filiação a algum parente de “A”. Neste caso, o pai ou a mãe de “A” não pode tomá-lo
como filho, a fim de que “B” não se torne irmão de “A”, além de que o próprio “A”
também não poderá ser pai ou mãe-de-santo de “B” a fim de que “B” não se torne filho
de “A”, que tornaria um interdito o relacionamento sexual entre eles. Outra questão
importante é que, embora haja a regra da proibição do incesto entre irmãos de santo e
entre pais e filhos, “B” não é excluído totalmente do grupo familiar de “A”.
Respeitando o interdito, serão elaborados arranjos para que “B” permaneça na mesma
forma, o núcleo parental com mais uma nova aliança. Assim, há uma preferência para
88
que a filiação de “B” se dê entre os irmãos de “A”, não excluindo as outras
possibilidades.90
Strauss:
Para que a relação dos parceiros sexuais não resulte numa “quizila”92 entre eles, um dos
ao inquice, passará para uma nova filiação para desfazer a relação incestuosa e,
portanto, o interdito.
Por ser o candomblé de Campinas bastante jovem, comparado aos terreiros mais
antigos da Bahia e do Rio de Janeiro, ainda hoje procura fincar suas raízes e criar
tradição em solo do interior paulista. Assim, diferente do candomblé baiano cujos laços
90
A respeito do tabu do incesto na organização do parentesco no candomblé, Vivalado da Costa Lima
fala que nos candomblés da Bahia há além da proibição de pais e irmãos–de-santo serem parceiros
sexuais também há o interdito para filhos de um mesmo orixá. Não encontrei este interdito nos
candomblés angolas de Campinas, permanecendo a proibição do incesto somente para os casos de pais
com filhos e entre irmãos.
91
Claude Lévi-Strauss. As Estruturas Elementares Do Parentesco, tradução Mariano Ferreria. Editora
Vozes, São Paulo, 1976.
92
Repugnância, antipatia, aborrecimento, chateação, desavença, zanga, inimizade, desinteligência, rixa,
briga.
93
Alimentos considerados sagrados que são passados pelo corpo da pessoa, com o intuito de cura ou
retirada do mal acompanhados de rezas e que podem vir ou não seguidos de sacrifício animal.
94
Literalmente “dar de comer à cabeça”. Cerimônia em que muitas comidas sagradas são ofertadas à
cabeceira do ofertante seguidas de rezas e sacrifício de galinhas e pombos.
89
consangüíneos designam, muitas vezes, a herança de casas e cargos, apenas muito
iniciada nos candomblés angola de Campinas, o que aponta para uma continuidade
família biológica serão, ou pelo menos se espera que sejam, os herdeiros do axé.
ordenações que o candomblé lhes dá, podemos perceber tanto essa nova geração sendo
Por exemplo, mameto Dangoroméia tem um filho de nome Kassumbê que foi
além de outras duas filhas, Omindewá e Kauselê, “raspadas” por mãe Munukaya, e tem
também duas netas: Imbomazaletambo e Kiximugombê, a primeira feita por Kauselê (tia
Dangoroméia
Mãe biológica
Kiximugombê Imbomazaletambo
(neta biológica) (neta biológica)
95
Os parentescos relacionados neste trabalho foram obtidos através da memória dos entrevistados, uma
vez que não existem documentos que comprovem as filiações.
90
30
Munukaya Ogogê
Mãe-de-santo (Irmão- de- santo
de Munukaya)
Kiximugombê Imbomazaletambo
31
biológicas e tia de suas netas, além de passar a ser prima de seu próprio filho.
Também mameto Corajacy tem uma filha, Omijewa, que foi “raspada” por
Munukaya, sua mãe de santo, tornando-se desta forma irmã de santo de sua filha.
Munukaya
(Mãe de santo)
Corajacy Omijewá
32
91
Da mesma forma, tateto Ubiacylê também tem uma sobrinha biológica,
Iyalodemim, que foi raspada por ele próprio juntamente com Omolewá (uma filha-de-
Ubiacylê
(pai de santo)
Omolewá
(mãe de santo) Iyalodemim
33
Por sua vez, Kafulavunjê que é filho biológico de tateto Gitalanguange foi
“feito” por Toigilá, irmão de mãe Somenegué que é avó de pai Gitalanguange. Desta
forma, Gitalanguange passa de pai biológico para primo de santo de segundo grau de
seu filho.
Somenegue Toigilá
Kafulavunje
Nanjerecy
Gitalanguanji
34
92
Como pudemos observar, através dos esquemas, as famílias de santo reorganizam o
parentesco biológico de tal forma que, no candomblé, uma mãe pode se tornar irmã de
suas filhas, como no caso de mameto Dangoroméia e mameto Corajacy, ou ainda como
grupo de "feitos no santo" diferente dos primeiros sacerdotes e filhos que vieram de
outras religiões e se iniciaram em idade mais avançada do que estes descendentes que
Por outro lado, o candomblé campineiro cresce também por meio de sacerdotes de
candomblé angola em suas casas e, na maioria das vezes, não abandonam os “trabalhos”
de umbanda.
candomblé angola. De um lado, temos tateto Ubiacylê e tateto Gitalanguange que são
de Miguel Grosso; de outro lado, mameto Dangoroméia e mameto Corajacy, que são
96
A ancestralidade e a descendência destas famílias foram coletadas nas histórias de vida dos tatetos e
mametos que fizeram parte da pesquisa, uma vez que devido a tradição oral do candomblé não há
documentos que registrem os parentescos. Além disso, houve nos relatos dos sacerdotes uma
congruência na revelação dos dados.
93
I- Diagrama da família de santo de Tateto dya N’kisse Gitalanguange
Miguel Grosso
Obamim
Somenegué
Nanjerecy
Gitalanguange
Nitobi
35
Miguel Grosso
Obamim
Nambuazaze
Ubiacylê
Mazamkaya
Alamussangi
Omolewa
Dandaiworô
Onisatoju
Gebelonan
Oluanganji
Lembazukala
Kimulengi
36
94
III - Diagrama da família de santo de Mameto dya N’kisse Dangoroméia
Menakenã
Munukaya
Dangoroméia
Kayagodelecy
Coromimm
Kayalodomim
Kayangolaborecy
Toluãnamborecy
Kayangokecy
Diamonoya
Indakeolegi
37
Menakenã
Raismarê Munukaya
(queto) (angola)
Corajacy
38
95
É importante notar que, no diagrama IV, mameto Corajacy já havia sido
iniciada por uma mãe da nação queto (Raismarê) e mais tarde deu uma obrigação com
refiliações que já vêm desde a Bahia.” (1991, p.107) Como já havia comprovado Prandi
santo vai permanecer neste núcleo familiar até, ao menos, completar sete anos de
for de sua vontade constituir casa própria de candomblé. A conquista deste patamar
inquices, além de fazer os serviços mais rudes na faxina da casa, que a muzenza98
completa sete anos de iniciação e pode através de uma cerimônia propiciatória se tornar
uma cota99. Na família tradicional, o tempo é o recurso que o neófito tem para galgar os
97
As mulheres quando passam por esse processo tornam-se de cota, e de um modo geral, homens e
mulheres serão reconhecidos, após a obrigação de sete anos, como ebômi.
98
Muzenza é a filha-de-santo que é iniciada para um inquice no candomblé angola. Depois que ela
completa sete anos e faz os ritos propiciatórios e a cerimônia pública de recebimento do decá (ou cuia),
no qual lhe será outorgado o direito de iniciar filhos-de-santo, ela não mais será uma muzenza e passará a
ser uma “cota”.
99
Ver nota 6
96
Ele terá como seu maior objetivo dentro da religião servir a família de santo e ao seu
inquice, e contará, para resistir às adversidades do sistema, como sua maior aliada, a
candomblé que existia antigamente na Bahia. Muitos filhos violam o lugar que lhes foi
familiar religioso do qual faz parte, com o evento da mobilidade dos filhos entre as
sociais, afrouxados, resultando daí uma nova relação mais prática na qual os valores
muitos de seus descendentes, pois ela legaliza a família negra matrifocal, uma vez que
relações capitalistas que se tornaram cada vez mais de curto prazo, no decorrer da
última metade do século XX. Este capitalismo de "curto prazo”, segundo Sennet, tem a
97
Se antes num capitalismo organizado, o mercado era menos dinâmico e as relações de
competitivo e dinâmico e, por isso, não há mais lealdade, nem perspectivas em longo
prazo.
atender à demanda do "cliente" que passa cada vez mais a exigir inovações que possam
neste contexto, é falar em uma virtude abstrata, pois que ela não se encontra em nenhum
entre pais e filhos desenvolvia uma confiança mútua que se enraizava lentamente. Com
a mudança para um novo padrão cultural mais adaptado às condições sociais modernas,
as relações familiares vão se traduzir em uma reação mais descomprometida entre pais e
98
Como exposto anteriormente, desde os anos 70 do século XX, Campinas passou
temos que levar em conta o contexto socioeconômico em que ele foi inserido, uma vez
que, segundo Rita Amaral, "... o "povo de santo" fala a mesma linguagem que o resto
candomblé, podemos pensar que isto pode corresponder a uma "liberdade" pessoal, isto
é, a um descompromisso que tem a ver com os novos padrões familiares que vigoram na
A pesquisa de campo mostrou como essa nova relação familiar se contrapõe aos
mútuo. Isto aparece muito claro no momento em que um pai-de-santo relata sua história
gera:
no ano que ela morreu é que trouxe meus ibás; e hoje... Não sei.
100
Assentamento do "santo". Ser, ou objeto onde assenta a energia sagrada de qualquer entidade religiosa
afro-brasileira; assento.
99
Tem gente que faz o santo... Depois abandona, vai para outra
Ubiacylê)
Neste relato o pai-de-santo revela o fosso que separa a geração mais velha da mais
nova, o que nos leva a verificar que as relações de “curto prazo” nas famílias da
Se as relações mais voláteis causam mágoas entre pais e filhos, também podem gerar
conflitos entre os sacerdotes, já que é muito comum uma mãe ou pai-de-santo dizerem
que o santo do filho que rompeu com a antiga casa, fora “feito” errado.
vou jogar para você? Cadê sua mãe? Não... Eles vão logo
“talvez a corrosão de caracteres seja uma conseqüência inevitável . Não há mais longo
101
No candomblé angola-congo nome por que a filha-de-santo ou o filho-de-santo passa a ser ritualmente
conhecido(a), ao fim de sua iniciação.
100
Uma vez que o trânsito de filhos entre as casas é comum e intenso, novos
acordos são elaborados a fim de que os recentes padrões de comportamento não venham
a desintegrar a rede de relações sociais mais amplas que é fundamental para que o
exemplo, mesmo que um filho não queira que o antigo pai ou mãe-de-santo seja
convidado para sua festa de recebimento de decá,102 ele será convidado e muito
constrangimentos, ele pode, por outro lado, ampliar a rede de relações porque, conforme
migra para outra família, incorpora na sua genealogia religiosa outro pai ou mãe, novos
irmãos, tios, avós, etc. sem descartar completamente a antiga família. Neste caso,
quando o filho for declarar sua ancestralidade, ele começará pelo pai ou mãe que o
iniciou, depois proclamará os outros sacerdotes que por ventura lhe deram obrigação,
até chegar ao último sacerdote ou sacerdotisa que o adotou como filho de santo e a
família a que pertence. Quando o trânsito foi intenso, a declaração da ancestralidade fica
um mesmo indivíduo.
102
No candomblé investidura de um ou de uma ebômi no cargo de babalorixá, ou ialorixá, quando é de
sua intenção abrir uma nova casa de culto. Cerimônia que se faz por ocasião dos sete anos de feitura, em
que se alcança um patamar superior na hierarquia do candomblé. O conjunto dos paramentos (filá e colar)
e a bandeja com material consagrante usado nessa cerimônia.
101
decorrência de meu envolvimento com essa manifestação religiosa e ao meu trânsito
entre as famílias.
De uma maneira muito peculiar, mãe Corajacy fala sobre a rede de relações
santo é minha afilhada... Olha o rolo, olha como tem rolo... Você
foi para casa de Bia e o povo queira ou não queira... foi o avô de
anos... que eu sou parente dele. Por que... esqueci o nome dele
agora, porque eles são parentes. Meus avós são parentes dele,
então devemos ser parente, porque tem uma parentagem ali que a
gente não sabe falar como é que é. Meu tataravô é parente de não
Este caso é somente um entre muitos outros que são comuns no candomblé de
Campinas. Por exemplo, Odetalodê foi iniciado por Kitalemim que é filha de santo de
Omikassidê e que foi iniciada por uma mãe-de-santo chamada Vani, porém acabou
dando obrigação com Dangoromeia e desta forma entrou para esta família.
Dangoromeia é irmã de santo de Corajacy, porque Corajacy embora tenha sido feita
por Raismarê, deu obrigação com Munukaya, passando assim para essa linhagem. Desta
deu obrigação com Gitalanguange, recebendo uma nova dijina que é "Talaboquemim".
102
Posteriormente, Kitalemim deu obrigação com Gitalanguange e passou de mãe-de-santo
filha de Somenegué, que por sua vez é irmã de Namboazaze. Namboazaze é mãe-de-
Para facilitar a visualização desse arranjo elaborei um diagrama que pode ser
visto a seguir.
Somenegue Nambuazaze
Corajacy Dangoromeia
Nanjerecy Ubiacylê
Vani
Gitalanguange
Omikassidê
Kitalemim
(Odetalode)
Talaboquemim
39
103
Desta forma, se, de um lado, o jogo prudente das trocas propicia a aliança, o
trânsito dos filhos-de-santo entre as diversas casas e linhagens produz uma série de
conflitos. Tais conflitos, por sua vez, forçam os pais e mães-de-santo a serem mais
103
“flexíveis,” administrando as relações sociais de modo a não desintegrarem o
muito... O pai-de-santo não tinha nada a ver, e hoje que sei que
filho-de-santo que faz fuzuê. A gente não tem que entrar na dele...
agora vou à casa dele e tudo bem, nós somos amigos mesmo e
santo entre as diversos terreiros, linhagens e nações, vale notar que há entre duas das
casas pesquisadas o acato à regra tradicional, uma vez que entre elas não se dá a troca
de filhos. Não quero dizer que não exista trânsito de filhos entre os seus terreiros e
mameto Dangoroméia, elas recebem e perdem filhos para outros sacerdotes, porém elas
103
Flexibilidade para Sennet significa a “capacidade de ceder e recuperar-se da árvore, o teste e
restauração da sua forma. Em termos ideais, o comportamento humano flexível deve ter a mesma força
tênsil: ser adaptável a circunstâncias variáveis, mas não quebrado por ela.” (2001; p.53)
104
Sob esta ótica, surge a indagação: Se o trânsito de filhos-de-santo entre os
terreiros de candomblé é muito comum em Campinas, o que é que faz com que estas
A aliança
sua vida quando fala: “Eu já sou mulher, negra e do candomblé... Que moral se dá
Dangoroméia alia mais um atributo negativo que é pertencer ao candomblé. Neste caso,
104
MITO E ESPIRITUALIDADE:MULHERES NEGRAS. Helena Theodoro. Editora PALLAS, Rio de
Janeiro, R.J. 1996
105
positiva, pois sua declaração revela o preconceito contra a mulher, o negro e,
Corajacy puderam melhorar seus recursos financeiros que eram bastante parcos, além
p. 44)
conviveram muito tempo com seus respectivos maridos e foram responsáveis pela
criação e sustento de seus filhos. Ouvi certa feita de Mameto Dangoroméia: “Minha
filha, se não fosse o candomblé, não sei o que seria de meus filhos...”
106
O candomblé além de oferecer referência religiosa para seus filhos, também lhes
suas necessidades.
Mameto Corajacy conta como foi que o sacerdócio no candomblé lhe mostrou
(mameto Corajacy)
búzios”, que tem um preço mais ou menos fixo, até outros tipos
Desta forma, quando mameto Corajacy perdeu seu emprego foi com o saber e o
status que lhe foi conferido através da iniciação no candomblé que ela conseguiu suprir
(Bernardo,1986; p.44) foi ele que possibilitou a ascensão social e financeira destas
mulheres. Ou dito de outra forma: foi através do papel da “mãe-de-santo” que estas
107
mulheres ascenderam socialmente. “Ser do candomblé” é muito diferente de “ser mãe-
de- santo”, uma vez que é no cargo de mãe-de-santo que está inscrito o poder.
apoio se dá na origem banta que legitima sua nação religiosa que é angola, como
biológica com a nação do candomblé à qual pertence; além do mais, percebe-se que por
uma vez que a divisão racial e sexual do trabalho as colocava nos mais baixos escalões.
108
Ademais, a mulher negra, conforme Helena Theodoro,“é vítima do machismo do
na religião, porém ainda não têm status e poder que só se alcançam com o sacerdócio e
a liderança de uma casa religiosa. Isso só acontece quando elas se tornam mães-de-
sabedoria pelo conhecimento das tradições, pela bondade, pela simpatia, pela densidade
de sentimento materno e pelos poderes ocultos que lhe são conferidos, impondo-lhe um
identidade comuns às duas, tornando suas histórias de vida semelhantes. Essas vivências
compromisso entre as duas mulheres além de que as incitaram a realizar uma aliança.
Desta forma, para que houvesse a realização desse desejo, seria importante a
união de forças entre os semelhantes, que neste caso, significou mais do que pertencer a
109
uma mesma religião, mas também a uma mesma categoria social. Mameto Corajacy e
a constituição da aliança entre as duas sacerdotisas. Desta forma, foi através do respeito
à regra que rege a família tradicional do candomblé que as mametos efetuaram o acordo,
ou seja, não trocarem filhos-de-santo entre si. Ao preservarem suas casas do trânsito de
filhos entre si, não permitem que haja “quizila” entre elas, estabelecendo-se assim a
Porém, a “Lavagem” não resulta apenas no manifesto destas duas mametos, pois se
converte na visibilidade de todo o candomblé, mesmo daqueles que dela não participam,
neste caso, não posso reduzir todos a um só. A pluralidade cultural brasileira, segundo a
reflexão de Helena Theodoro, impõe uma análise detalhada de diversos segmentos que a
110
próprias e outras adquiridas do meio em que vive, tendo
111
CAPÍTULO IV
A Festa
40
112
A festa é fundamental para os grupos de candomblé. É neste momento que
angola semelhante ao xirê dos candomblés queto, segundo Rita Amaral, é o resultado da
sociabilidade” (2002; p. 30) entre outras relações sociais. Pode ser classificada, de
acordo com o conceito de Marcel Mauss como um “fato social total”. Ainda é Amaral
quem escreve que: “A vivência da religião e da festa é tão intensa que acaba marcando
ao mesmo tempo, também precisa agradar o paladar dos humanos, os atabaques são
proporcionar o deslumbre dos homens que assistem às danças. Assim, são muitos os
trabalhos desenvolvidos nos dias que a antecedem. A confecção dos adereços e das
roupas de cada inquice ou orixá, a colheita das ervas, a ida ao mercado, as comidas dos
lembrançinhas105, são algumas atividades que ocupam muito tempo dos adeptos em
cada festa que, normalmente, é direcionada a algum inquice ou orixá específico. A festa
é tão importante para o candomblé que Amaral escreve: “A própria vida dentro do
terreiro pode ser pensada como a permanente produção da próxima festa, pois inclui,
105
É interessante notar que a incorporação das lembrançinhas pelo candomblé se originou das festas dos
extratos médios e que, até mesmo os candomblés queto tradicionais, como o de Olga de Alaketu,
aderiram a esta novidade.
113
O imaginário e o concreto estão permanentemente presentes, propiciando
óleos, de sal são conhecimentos importantes nos preparos das comidas. Desta forma,
preparar a comida do inquice vai muito além de pilar o inhame, de moer o feijão, de
bater o acarajé, porque é essencial saber oferecer e respeitar o que agrada a cada um
cozinha do candomblé e que são servidas na festa, também são mostradas as artes nas
roupas, nas danças, no som que emana das repercussões dos atabaques e das vozes das
Rita Amaral explica a festa como o “momento em que a identidade dos grupos
mostra o que o grupo é e o que o grupo pensa. Nesse sentido pode ser entendida como o
pelo acúmulo de tarefas, em razão de terem que conciliar o tempo que vão passar dentro
do terreiro com o tempo do emprego. Ainda que seja assim, é visível, na festa, a
balançar o cintilante chorão enquanto dança na sala dissipando seu moyo108, ou quando
a mesa do inquice está posta com os bolinhos de inhame pilado redondinhos, todos do
106
Cantigas que são realizadas na roda de candomblé angola
107
Inquice relativo ao orixá Oxum
108
O mesmo que axé dos candomblés de origem sudanesa
114
carnes moles e cheirosas nos molhos condimentados, segundo a preferência do inquice,
e rubros, tudo arrumado de maneira a convidar os deuses a virem comer e festejar com
os homens. Desta forma, a festa também pode ser lazer, porque além do prazer que
festa que se conhecem pessoas, começam namoros, o povo-do-santo fica sabendo dos
festas, tudo isso enquanto se come o cudiá109 que é o banquete da festa dos inquices.
de candomblé em questão.
rosto, dançam com eles, cobrem-lhes com seus panos-da-costa para encaminhá-los de
volta à terra dos ancestrais. Também são os tatas111 que devem saber as azuelas112 e
toques para cada inquice, além daqueles especiais utilizados nas saídas de muzenza113,
que, nos candomblés angola, primeiro se canta para Aluvaiá e se despacha a rua com
farofa e água. A seguir, pede-se licença para começar a festa: Cubana gira ê, Cubana
gira, cuba gira de Roxe mokumbo, Cubana gira e nanguê. Depois se reza a pemba,
momento em que todos se ungem com o pó branco de um giz que misturado a ervas e
109
Comida servida nas festas e considerada sagrada. Equivalente ao ajeum dos candomblés queto.
110
Cargo equivalente a equeji dos candomblés queto.
111
No candomblé de rito angola , cargo masculino equivalente ao cargo de ogã nas casas de rito queto.
112
Rezas cantadas nas festas de candomblé angola
113
No candomblé de rito angola-congo, filha-de-santo.
115
sementes torna-se uma substância sagrada chamada pemba, que os adeptos acreditam
Esta é uma ordem mais ou menos comum nos terreiros de angola de Campinas,
contudo pode haver algumas diferenças conforme a festa que está sendo realizada. Os
atabaques nos terreiros de angola são repercutidos com as mãos e as cantigas são feitas
em línguas bantas.
Por ser a festa o próprio candomblé, é através dela que o candomblé angola vai
desejou realizar a Lavagem de Campinas. No seu depoimento ela conta que: “eu fui
para Salvador assistir à lavagem, porque quando eu morava lá sempre ia... quando eu
“induziu muitos a pensar que esse rito foi criado pelo povo dos terreiros. Mas trata-se
116
de uma velha tradição ibérica – que na Bahia combinou-se à lógica do culto do
Segundo esse autor, esse era um ritual comum em Portugal o qual se realizava
que era o padroeiro da igreja. No Brasil, esse rito era realizado por devotos que
lavavam não só as escadarias, mas todo a chão da igreja. Conforme descrições do século
santuário. Ordep Serra escreve que em “1889 o arcebispo dom Luiz Antonio de Sousa
conseqüências não previstas, uma vez que cerrada a porta da igreja o candomblé surgiu
Bonfim com Oxalá se deu porque Oxalá era cultuado na África, em cima da colina, pois
Como a igreja do Bonfim fica em cima de uma colina, as baianas passaram então
(2000; p.73).
117
Esta festividade tornou-se com o tempo muito popular e um paradigma para
114
Funcionária da limpeza pública que conserva limpas as ruas da cidade.
115
Funcionária da limpeza pública que, por vestir uniforme cor de laranja, era chamada de laranjinha.
118
mijeloguns 116... os meus fios de contas e o ojá 117 na
cabeça, porque eu estava careca e punha meu
chapeuzinho por cima, e ia trabalhar. Eu tomei seis
meses de obrigação, três meses de “migui de
118 119
muzala” ... porque eu sou de Angorô , então minha
mãe me deu seis meses de obrigação. E aí eu tinha que
trabalhar... Eu tinha muita amizade com um engraxate
ali. Um dia eu ali varrendo, tomei um tamanho tapa no
bumbum, que eu caí em cima do engraxate. Esse
homem disse assim: Sua feiticeira, isso, aquilo e me
xingou de outros nomes. Eu caí e ele correu (...) Aí eu
comecei a chorar, fiquei tão nervosa e olhei assim na
igreja, e aí eu falei: Olha, minha santa Nossa Senhora
da Conceição, a senhora me viu em perigo... Se a
Senhora é de verdade... Se a Senhora representa a
Iemanjá de nossa religião... naquela época não
120
conhecia Caiá ... Eu vou entrar aí (referia-se a lavar
o adro da igreja). Essa é a única coisa que eu falo pra
Senhora. Porque esse mistério desse preconceito tem
que acabar. Campinas foi a última que aderiu à
abolição, entre aspas. E continuei varrendo. Tinha
que trabalhar.”(mameto Dangoroméia)
116
Corruptela da palavra de origem ioruba merindelogum que significa dezesseis e que no candomblé são
dezesseis longos fios de contas fechados por uma pedra maior chamada firma e que tem a cor
representativa do orixá ou inquice correspondente.
117
Faixa de pano usada para diversos fins litúrgicos e rituais no candomblé e em cultos a ele associados.
118
Migui,Musala: apetrechos que os recém iniciados no candomblé angola usam no pescoço.
119
Inquice correspondente ao orixá Oxumare.
120
Caiá- inquice correspondente ao orixá Iemanjá.
119
Mãe Corajacy também era “laranjinha” e tinha o sonho de trazer o
candomblé para a rua, a fim de ser reconhecida pelo poder que sua
iniciação lhe concedera como mãe-de-santo.
Note-se que sair do barracão, da periferia, tornar o candomblé
visível e ser reconhecido como religioso, é sair do âmbito da magia e ir
para o da religião, é deixar de ser feiticeiro, charlatão para se tornar
sacerdote.
Certo dia reuniram-se as duas em frente à catedral, ambas
varredoras de rua, com o objetivo de terem um reconhecimento religioso.
Planejavam fazer a Lavagem
Por intermédio de uma amiga influente, conversaram com
repórteres e comunicaram-lhes a vontade de fazer a Lavagem da catedral.
Segundo mameto Dangoroméia e mameto Corajacy , mais que uma
conversa foi um debate. Afinal, diz mameto Dangoroméia: “o jornalista
retrucava, porque... Cidade das andorinhas... é, é, como é que se fala?
invadida por feiticeiros baianos, mineiros... Ah menina, foi uma luta.” (
mameto Dangoroméia) .
Finalmente, com a imprensa convencida, impôs-se uma conversa
formal com a Igreja católica, ficando de um lado as duas mães-de-santo,
mulheres, negras e do candomblé e, de outro, o bispo, representando a
Igreja, pois, para que pudessem dançar candomblé em praça “pública”
teriam que pedir licença para o bispo; afinal, a escada era da Catedral.
Foi uma conversa tensa, difícil, conta mameto Dangoroméia:
120
ele disse assim: Olha, e se a Senhora for proibida de
fazer? Eu disse: Olha, vai ser difícil o senhor me
proibir, sabe por quê? Se o senhor for pôr guarda lá,
nós vamos levar uma torcida. Aí vai ter uma torcida
para o senhor e uma para mim. Porque um terço da
sua população católica vai ao meu candomblé.
Eu já sou mulher, negra e do candomblé, não vai
afetar minha moral. Que moral se dá para isso? A
sociedade não dá moral mesmo..Agora, o senhor já
pensou metade da torcida do senhor e outra metade
minha? Ai ele deu aquela risada e falou: A senhora
quer saber de uma coisa? Faça. (mameto
Dangoroméia).
121
Muitos dos adeptos do candomblé têm essa concepção, de que a Lavagem do Bonfim é ligado às
“águas de Oxalá”. Oxalá é ligado às águas primordiais. Há um mito que fala sobre uma viagem de Oxalá
ao reino se Xangô onde se sucederam diversos imprevistos. Oxalá acabou preso e esquecido na prisão do
reino de Xangô. Sua tristeza foi tão intensa que causou grandes danos a esse reino, até que, através de
sacerdotes de Ifá. Xangô ficou sabendo de seu amigo que havia anos estava preso em seu reino. Então,
mandou que soltassem Oxalá, que lhe banhassem com águas perfumadas e que lhe oferecessem farto
banquete a fim de que Oxalá aceitasse suas desculpas.
Ao mesmo tempo quando a mameto denomina a Lavagem do Bonfim de “águas de Oxalá” diferenciando
da Lavagem de Campinas, ela procura legitimar sua festa dando-lhe uma identidade diferenciada da festa
de Salvador.
121
Campineira deveria ser realizada dia 8 de dezembro, dia votivo desta
santa. Da mesma maneira, não há nenhum mito afro-brasileiro que
justifique a lavagem tal como é o caso da do Bonfim.
Em Campinas, por meios hábeis do bispo, houve um novo arranjo
para a festa. Por que não ser no sábado de aleluia, quando a igreja está
fechada para os seus fiéis e quando é o dia de se malhar o Judas, que já é
uma festa pagã? Fica, então, de alguma forma, tudo no seu lugar, a saber,
as festas populares, os pagãos na rua, e o que é da igreja guardado sob
suas portas cerradas. Nada se mistura, estando do lado de dentro.
Devido à independência total em relação à santa padroeira e aos
ofícios da igreja, configura-se uma ruptura quase completa entre a igreja
e a rua, no sentido em que, neste caso, um espaço não se configura
complementar, do ponto de vista simbólico, em relação ao outro.
Porém o que se pode observar é que por ser no sábado de aleluia
em que a igreja traz suas portas fechadas, o singelo ato de devoção das
mametos se apropria do fechamento das portas do templo católico e lhe
dá novo sentido.
Em muitos aspectos, as duas Lavagens, a do Bonfim e a da
Catedral de Campinas, se assemelham, uma vez que existem diversos
componentes de inversão na devoção da Lavagem de santuários, antes
luso-brasileiras e hoje afro-brasileiras. Ordep Serra destaca dois aspectos
de inversão que acontecem no rito de Salvador, que a meu ver podem ser
identificados nas duas Lavagens. A primeira inversão é que, ”enquanto
nos ofícios regulares da Igreja o povo acorre ao templo para purificar-
se, numa “Lavagem” o templo é purificado pelo povo” (200, p. 75)
A segunda inversão é a que resulta do fechamento das portas da
igreja. Ordep, neste caso, aponta para a ausência dos sacerdotes
católicos e seus acólitos na realização dos ritos litúrgicos, permitindo
que se invertam os papéis. “Então seu rebanho tem toda a iniciativa, ao
contrário do uso normal” (2000; p. 75)
Ainda no sentido “anárquico” da inversão de valores, o afã do
serviço alegre realizado espontaneamente, segundo Ordep pode, “ser
qualificado como um anti-trabalho, numa cultura em que a idéia de
122
trabalho liga-se com a de obrigação penosa imposta, humilhante até.”
(2000; p. 75).
122
Após um ano, n a segund a ob serv ação etnográf ica pud e cheg ar ma is cedo e v er
u m alegre cor tejo do povo-do- san to cheg ando à pr aça co m qu ar tinhões enf e itado s d e
f lor es car reg ados sobr e a s cab e ça s. À fr en te, jun tos co m as ma me to s , v inh a m fa ixa s
e co lor idos estandar tes escr itos em língu a b an ta. O s grupos d e Jongo , d e tambor, d e
c ap o e ir a, ade r ir a m a o cor t ejo . To d o s tr ajan d o r o u p as b r anc a s i lu mi n ara m a p r a ç a s o b
o so l d a ma nhã . Qu anto à s d e ma is a tiv id ad es , e las o corr er a m d e ma n e ira mu ito
s e me l h an te à p r i me i r a o b ser v a ção .
123
onde vinha o som dos tambores. Entre os transeuntes, duas moças negras
com cabelos trançados com fitas coloridas conversavam alegremente com
um rapaz de longos cabelos rastafari.
Aproximei-me para ver melhor o que acontecia naquele espaço.
Sem muita dificuldade fui saindo do meio das pessoas e chegando
à frente e pude subir nos degraus do palanque. Havia uma grande roda de
baianas vestidas de branco, que dançavam num espaço anterior à
escadaria da igreja. Alguns homens também de branco se misturavam a
elas. Uma outra roda menor, ao centro, composta de homens e mulheres
trajando roupas de imaculado branco e bordadas em richelieu, dançavam
formando um centro referencial para a roda maior. Neste pequeno circulo
interior, identifiquei mameto Corajacy e mameto Dangoroméia.
No palanque, uma orquestra de tambores e seus tatas, ao microfone
tata Tawá. Esse tata viera de São Paulo para prestigiar a Lavagem
campineira. Pessoa de grande prestigio com mameto Dangoroméia, é um
articulador da recuperação lingüística banta nos candomblés angola de
São Paulo, além do desejo de valorização desta nação. Esse tata cantava
uma azuela, enquanto a roda de candomblé dançava.
Quando a música cessou, e os componentes da roda pararam de
dançar, pude identificar diversos personagens da política e do
movimento afro-brasileiro. O deputado estadual Sebastião Arcanjo dos
Santos, famoso pela luta anti-racista e assumido candomblessita, somado
a outros ativistas que se misturavam com as mulheres vestidas de
baianas.
Do lado esquerdo da escadaria da igreja havia um tapume, que
escondia talvez obras na calçada lateral. A igreja fechada silenciava-se
ao movimento do candomblé do lado de fora. A grande porta fechada do
templo católico separava os “deuses”. Os santos católicos lá dentro,
protegidos sob a majestosa construção da catedral que curiosamente fora
toda construída com mão-de-obra escrava, e os deuses negros, na praça,
no tempo, na rua, na boca dos homens, na batida dos tambores.
Do alto da igreja, dois anjos pareciam esquecer suas trombetas e
observavam a festa dos inquices.
124
Talvez naquele momento, lá de cima da torre, os anjos olhassem,
atentamente, para depois contar a Nossa Senhora da Conceição o quanto
era bonita “Caiatumbá” com quem ela muitas vezes fora sincretizada.
Ali, diferente do que muitas vezes acontece nos terreiros, tudo e
todos podiam ser fotografados. Ninguém fazia cerimônia, afinal, se
estavam na praça, era para serem filmados, fotografados, porque parece
que hoje também o povo do candomblé gosta de sair na mídia. Era o
momento do candomblé se mostrar, de dizer para toda a população que
ele existe e é forte. Hoje, ao invés da polícia fechar as casas, quebrar e
apreender símbolos afro-brasileiros ou bater no lombo dos sacerdotes e
adeptos, o candomblé tem a seu favor todo o aparato dos órgãos do
governo e da segurança pública.
Mameto Corajacy contou como isso foi importante para ela, por
ocasião primeira Lavagem:
“Mas olha, eu vou te falar, quando nós
chegamos lá na catedral... Estava(sic) ambulância, o
prefeito na época era Magalhães Teixeira, o vice dele
em cima daquela estátua, que eu tenho uma foto dele
até hoje, no jornal. Ambulância, Corpo de bombeiro,
tudinho. Aí eu percebi que Campinas... (mameto
Corajacy)
A mameto não terminou a frase, porém o que ela queria mesmo
dizer era que tinha sido naquela ocasião que Campinas dera-lhe
importância e à sua crença e que, naquele momento, ela tinha se sentido,
pela primeira vez, respeitada como uma verdadeira cidadã campineira.
Atualmente, na praça, tudo parece mais fácil e a festa flui sem
resistência.
Cada um dos componentes da roda de candomblé foi pegar seu
porrão 123 de água de cheiro enfeitado de flores brancas que estava junto
aos outros, nas escadarias da igreja. Organizada uma fila indiana,
encaminharam todos para a escada. As mães de vassoura em punho, com
alegre e contagiante entusiasmo, encenaram uma Lavagem.
123
Pote ou vasilha de barro, comumente bojuda e de boca e fundo estreitos.
125
Naquela hora varriam a escada com outro intuito, não eram mais as
“conservas”, não trabalhavam mais para a limpeza pública; na verdade,
varriam agora o preconceito sofrido por ser do candomblé e a dor de
terem nascido mulheres, negras e pobres.
Muitas pessoas pediam bênçãos. Outros queriam que elas lavassem
suas cabeças com água de cheiro. Todos distribuíam flores. A praça foi
se tornando movimentada, muita gente chegava para a outra festa que se
daria depois da realizada pelas mametos. As pessoas alegremente se
cumprimentavam.
Eram amigos, gente que identificava ou não o candomblé com a
lavagem, mas que, certamente, tinha algo a ver com a cultura afro-
brasileira. Gente da capoeira, do jongo, do maculelê ia chegando e se
espalhando pela praça, atrás do palanque. Muita gente de pele negra, com
roupas vistosas, com cabelos trançados e enormes boinas coloridas.
Um pai-de-santo que não se aventurara a participar, estava com
muitos filhos de sua casa, ali parado, cumprimentando amigos e se
deixando ver.
Uma negra gorda e jovem passou bem perto de mim e pude ver
marcas de escoriações em forma de cruz nas costas e braços. Esta é
independente da sua forma, a marca do “santo” que indica um filho do
candomblé.
Muita gente andava agora pela praça. Todos se confraternizavam
alegremente.
Em frente ao palanque, uma voz feminina chamava todos os
participantes para se reunirem novamente a fim de que fosse encerrada a
celebração. O adro estava cheio de gente conversando, o chão molhado
pela água de cheiro. A limpeza festiva da escadaria da igreja resultou
numa manifestação espontânea de alegre entusiasmo. Não havia mais
organização, apenas a devoção aos inquices e a vontade de conversar e
divertir-se.
Uma das filhas-de-santo me puxou pelo braço e disse que queria
que eu conversasse com uns americanos, porque ninguém ali falava
inglês.
126
Se, por um lado, o povo do santo aprecia a presença e o interesse
pelo candomblé de estrangeiros, de integrantes da academia e de
políticos, por outro lado, essas pessoas também valorizam o apreço que
se efetiva com a aproximação aos sacerdotes. Ao mesmo tempo em que o
candomblé pode conseguir maior visibilidade, e conseqüentemente
legitimidade e poder, através dessas pessoas, também os políticos e
ativistas conseguem com o candomblé visibilidade e influência, podendo
angariar novos votos em eleições futuras. Do mesmo modo, gente da
academia, ao se tornar mais íntima dos sacerdotes, pode realizar com
maior facilidade pesquisas e os estrangeiros acreditam conseguir receber
axé de uma religião que se configura exótica quando se compara a
cultura afro-brasileira com as norte-americanas ou européias das quais
descende.
A voz feminina novamente apelava para a reorganização das
pessoas. Acatado o pedido, foram entoados cânticos de despedida e o
povo do candomblé retirou-se para a parte maior da praça, que ficava
atrás do palanque, cercada de barracas.
As pessoas procuravam os banheiros e um lugar para trocarem as
roupas, uma vez que as armações e as grandes saias rodadas, certamente
incomodavam por causa do calor que era intenso e volume que
certamente restringia os movimentos.
Numa barraca aberta, muitos se escondiam do sol. Passei perto de
uma negra jovem de sorriso aberto que me deu um galhinho de alecrim,
convidando-me para o jongo. Ouviam-se berimbaus e as rodas de
capoeira foram se formando.
Nas barracas de bebidas e comidas formaram-se filas de gente
querendo comprar algo que os refrescasse do calor e que lhes saciasse a
fome. O cheiro do acarajé, frito no dendê, não deixava esconder que ali
havia comida de santo.
Um grupo de jongueiros se instalou bem à porta da catedral que
àquela hora já adquirira uma sombra acolhedora e ali começou a ensaiar.
Gente vestida de branco, e com roupas muito coloridas encheu a praça
para beber, conversar, comer e namorar.
127
É importante observar que, ao sair da sua cercania, o candomblé
levou para a praça central de Campinas seu povo e, mesmo que hoje seja
um candomblé freqüentado por muitos brancos, este rito na praça atraiu
as mais diversas manifestações de luta e de resistência do povo afro-
brasileiro.
41
42
128
A Lavagem e o Ideal de pureza.
comunidade do candomblé por acreditarem que este tipo de evento está associado à
igreja e aos símbolos católicos, e revela desta forma uma submissão do candomblé ao
catolicismo.
Desde as décadas de 30 e 40 do século XX, este debate já havia tomado força entre os
adeptos do candomblé e na academia, salientando uma dimensão política que até então
hoje, ele não se faz mais necessário, uma vez que há a liberdade de culto amparada
uma tomada de consciência por parte dos adeptos das religiões de matrizes africanas.
124
Lei nº 9515 de 2 de dezembro de 1997 institui, no calendário oficial da Secretaria Municipal de
Cultura e Turismo, o sábado que antecede o domingo de páscoa (sábado de aleluia) como dia da lavagem
das escadarias da Catedral Metropolitana de Campinas pelos candomblés.
125
Em Sessão realizada dia 13 de setembro de 2005, na assembléia Legislativa do Estado de São Paulo,
foram aprovados os seguintes projetos de autoria do Deputado Estadual Sebastião Arcanjo: PROJETO
DE LEI NO 1163 – Inclui a cerimônia da “Lavagem das Escadarias da Catedral de Campinas” no
calendário Turístico do Estado.
126
Consorte escreve que “no dia 29 de julho de 1983, uma sexta-feira, o Jornal da Bahia, editado em
Salvador, trazia em letras garrafais, como principal manchete da primeira página do seu primeiro
caderno, a seguinte notícia: “candomblé rompe de vez com o sincretismo.” Ilustrada com foto de mãe
Stella do Opô Afonjá e complementada em letras menores, por um resumo da matéria, de que se
129
Contudo, Consorte observa que “a ruptura do sincretismo não implicava,
p.73).
crença.” (1999; p. 73) Isto significava que acabariam as missas de iaô e as de sétimo
dia coordenadas com os ritos do candomblé, e do mesmo modo deveriam ser revistas
datas festivas do candomblé associadas aos santos católicos, como por exemplo, a
ocuparia mais amplamente em sua página 3, o articulista Vander Prata, seu autor: a notícia era
daquelas a mexer com meio mundo na cidade que fora chamada de Roma Negra por uma das suas mais
veneradas ialorixás, Mãe Aninha, a fundadora do Ilê Opô Afonjá. Estava escrito no resumo:
São Jorge não é Oxossi, Santa Bárbara não é Iansã. O candomblé resolveu romper com o
sincretismo religioso. Agora, nada de exploração folclórica. Nada de utilização em concursos oficiais ou
propaganda turística. A II Conferência Mundial da Tradição Orixá e Cultura, que se realizou em
Salvador, de 17 a 23 deste mês ( julho de 1983. Nota nossa), ajudou na decisão. Quem assina o manifesto
ao público e ao povo do candomblé , merece respeito: Menininha do Gantois, Stella de Oxossi(foto), Tetê
de Iansã, Olga de Alaketo e Nicinha do BogumAxé.”- Consorte, Josildeth Gomes Em torno de um
manifesto de Ialorixás Baianas contra o Sincretismo, in Faces da Tradição afro-brasileira.
Organizadores: Carlos Caroso & Jéferson Bacelar. Editora Pallas, Rio de Janeiro. R.J.1999.
130
Amaro; as missas das segundas-feiras na Igreja de São Lázaro,
forma, deixa claro que este é um tema complexo e que as posições divergentes das
possível perceber quão profundas são as raízes das relações entre o candomblé e o
catolicismo.
Houve uma repercussão relevante deste tema no Sudeste e dos debates que aí
131
Por um outro lado, quando Geertz escreve que ao realizar uma etnografia não se
pode ficar somente numa “descrição superficial” ,isto é, numa primeira observação
ingênua, mas que o importante é que seja feita uma “descrição densa”, isto quer dizer
que o etnógrafo tem que procurar seu caminho nas “estruturas sobrepostas de
deve ser compreendida por aquilo que está insinuado nas suas entrelinhas e o que
religioso, uma relação da sua esfera de existência com a esfera mais ampla.
santo” que estão invariavelmente vinculadas ao sagrado, e seus símbolos aludem tanto à
cenário cristão legam forte e expressivo paralelismo entre santos da igreja e santos dos
132
Os terreiros de nação angola em Campinas, além dos rituais, preservam um
Além disso, há numa outra questão que envolve o povo do candomblé que é a
p.2). Isso é um fato que também se concretiza nas ações dessas duas mametos.
movimentos políticos e sociais, tornando-se ativistas da luta anti-racista, pois nelas está
133
“não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas
daquilo que nós fazemos de nossas tradições. Paradoxalmente,
nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à
nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural.
A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se
tornar.” (2003; p. 44)
134
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de não ser um estudo comparativo, penso ser importante fazer algumas
preservação e a ampliação da força vital, pois é através dela que a vida andará
força vital pode ser medida e manipulada pelo moyo/axé. A palavra axé - termo oriundo
dos candomblés de origem nagô, grandemente difundido pela música popular elaborada
Amado - é muito mais conhecida e utilizada que moyo, por todas as nações.
Prandi escreve que axé pode ter muitos significados, a saber, pode ser bênção,
poder, carisma, dádiva dos deuses, além de ser o conjunto material que representa os
deuses e sinônimo de Amém; por fim, é a “força vital, energia, princípio da vida,
queto, o define como “a força que assegura a existência dinâmica, que permite o
acontecer e o devir... É o princípio que torna possível o processo vital” (1993; p. 39).
também é uma prerrogativa de toda a África Negra. Da mesma maneira que os nagôs,
também os bantos, conforme escreveu Tempels, tinham tal apreço pela preservação do
135
moyo - para eles a força vital- que a grande resistência que faziam em se tornarem
cristãos não era em decorrência de terem que abandonar a poligamia que praticavam,
perderem com isso a própria vida. Desta maneira, o culto aos ancestrais se configura
como uma questão de vida ou morte. A vida torna-se, neste caso, o bem supremo de
Nos candomblés de origem banta, esta força vital é chamada de moyo e é ela que
liga os ancestrais aos seus descendentes, o inquice àquele que foi iniciado, permitindo
plena ao adepto. Neste sentido, tanto o candomblé angola quanto o queto são
semelhantes em sua origem, que se efetiva na mesma procura, qual seja, a preservação e
básico no candomblé. Por ser assim, o advento da morte causa perturbação na harmonia
do grupo e exige rituais específicos, tanto nos candomblé angola quanto nos queto
(sirrum/axexê) a fim de reabilitar a simetria entre o mundo dos vivos e o dos mortos.
127
Segundo Tempels, o conceito de vida para os Bantos tem um significado ontológico. Cada ser é uma
força da vida, e cada força da vida é um ser. A noção da vida que é fundamental da ontologia banta, é
uma noção universal suprema, e é aplicada a tudo que existe : Deus, os espíritos, os mortos, os homens,
os animais, as plantas e todos os seres materiais. Ainda conforme Tempels, “ “ens” é para nós uma
realidade estática, para os negros é a força, que é uma noção e uma realidade dinâmica”. (tradução livre )
La vie du Muluba, raffermie, sauvée par l'intervention du devin, kilumbu, le médecin magique et les
défunts, court un grand risque s'il abandonne tous ces aides et moyens, pour devenir chrétien: ce n'est
pas la polygamie, ni le soi; disant conservatisme et leur attachement aux coutumes anciennes qui est la
grande raison pour laquelle les païens n'osent pas devenir chrétiens, mais c'est
la peur de perdre leur vie. La question est pour eux une question de vie ou de
mort[([47])].
La vie est donc le grand motif de tout agir essentiel des païens[([48])].
Et, chez les Bantu, ce motif est enraciné dans la connaissance ontologique des êtres, des vivants, des
morts, des êtres de rang inférieur, de tout l'univers.
On peut bien dire que la vie est le bien suprême de tous les hommes; que ce bumi ou cette théorie de la
vie des Bantu les assimile précisément à toute l'humanité. C'est vrai dans un certain sens[([49]))
PLACIDE TEMPELS - MELANGES DE PHILOSOPHIE BANTU - RECUEIL DE TEXTES
PREPARES PAR A.J. SMET C.P. Première partie - L'idée fondamentale de l'ontologie bantu.
136
Os espíritos primordiais, isto é, aqueles que deram origem aos primeiros clãs,
eram cultuados pelos bantos e pelos nagôs (bakulo/egungum), porém, no Brasil, assim
Desse modo, conquistou uma reputação que lhe deu mais apreço que o culto dos
bantos, embora na origem a importância dada aos egunguns e aos espíritos dos mortos
fossem semelhantes. Assim, as almas cultuadas nos Cruzambê das almas ou no Inso
Yombeta das casas angola passaram a ser comumente chamadas de egum ou como no
Ilê Axé Arolê, em que foi realizada a junção do Inso Yombeta com Ile Ibo Aku ( casa
dos culto dos mortos). As almas dos candomblés angola passaram a dividir o espaço
ressignificações.
é, nas matas, rios cachoeiras, fogo, ar, terra, água, raios, ventos e tempestades. Os nagôs
tinham os Orixás que representavam reinados em terras iorubas, famílias reais, e seus
mitos contam a história de guerras e conquistas de seus povos. Esses reis e rainhas em
passaram a ser entendidos como forças da natureza, uma vez que ficaram desprendidos
137
Por outro lado, também os bantos, conforme escreve Girotto, “rompido os laços
Como se pode verificar, inquices e orixás puderam ter uma correspondência que
seguinte maneira:
tem que ser isso ou aquilo, não tem que ser Iansã tem que ser
138
Matamba. Eu, para mim meu nome é Antônia, que minha mãe me
acho que a gente não tem que discutir nação. A gente tem que
dependendo o quê, meu santo vai responder sim, porque não vou
dizer que não vai. Se eu for ao jeje cantar, ela responde, então, eu
acho que nós não temos que ficar discutindo nação, porque nós
Com suas palavras essa sacerdotisa traduz de uma maneira muito peculiar o
sincretismo entre as nações de candomblé que ora é inquice, ora é santo e ora é orixá.
NÀGÓ BANTU
-------------------------------------------------------------------------------------------
128
Dados retirados de: Giroto, Ismael. Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Antropologia
da FFLCH da USP, sob orientação do Prof Carlos Moreira Henriques Serrano. 1999
139
• Òsanyin Katende
• Obalúayé Burungunço, Cuquete
• Omolu Cafunge, Quingongo
• Sànponná Kaviungo
• Òsùmàrè Angorô
• Nana Buruku Zumbarandan
• Òsun Dandalunda, Kissimbi
• Yemonja Kaitumbá, Micaiá
• Oyá Mtamba, Bamburucema
• Sangó Zaze, Luango
• Òbà Caramoce
• Yewa Cuiganga, Kissanga
• Ìbejì Vungé
• Írókò Kitembo
• Olóòkun Kalunga
• Òrìsànlá Gangarumbanda,
Lembarenganga
• Òsàlufón Gangarumbanda,
Lembarenganga
• Onile Tateto Kisanga Ria - Incungo
• Iku Tateto Kisanga Ria- Kalunge
Outra questão relevante na relação entre as nações angola e queto é sobre Exu.
uma se assemelha ao orixá Exu da concepção nagô e outra em que ele se revela como
espírito de pessoas que tiveram uma vida de moral duvidosa e hoje trabalha incorporado
nos seus médiuns para atender aos pedidos dos clientes. Embora esta diferença entre o
angola e o queto exista nos terreiros mais tradicionais, o Exu espírito que incorpora nas
140
festas e dá consultas, não é prerrogativa apenas dos terreiros de angola, pois um grande
número de terreiros de nação queto também trabalha com estes Exus, além de possuírem
do-santo. Além do mais, muitos dos seus filhos têm assentados seus Exus de rua e
Pombajiras.
nações, mas também com os santos católicos, como vimos, é uma questão que exige
muito cuidado ao ser analisada. Percebe-se entre os sacerdotes entrevistados, seus filhos
de santo, enfim, entre os adeptos do candomblé, que todos sabem, por exemplo, que o
inquice Matamba não é Iansã e também não é Santa Bárbara, mas que em alguns
momentos podem ser uma só. Os assentamentos em muito se parecem quanto aos
elementos usados na sua composição, e as danças dos inquices e dos orixás são
As duas mametos referidas nesta dissertação, por causa de uma forte aliança
entre elas, lavam, no sábado de aleluia, as escadas da Catedral de Campinas, que tem
de maneira muito mais ampla, porque abrange diversos aspectos das questões anti-
141
O que percebi estudando estes candomblés campineiros de nação angola foi que
ser mais ou menos puro significa obedecer a uma medida de pureza que varia conforme
os interesses dos grupos envolvidos. Concordando com Stuart Hall: “Sabemos que o
termo ‘África’ é, em todo caso, uma construção moderna, que se refere a uma
variedade de povos, tribos, culturas e línguas cujo principal ponto de origem comum
os obrigou. Esta “zona de contato” (Hall; 2003) proporcionou uma mistura específica
afirmar suas identidades. Conforme Stuart Hall, “as culturas, é claro têm seus “locais”.
Porém não é mais tão fácil dizer de onde elas se originam.” (2003; p. 36).
Mesmo assim, o candomblé angola procura nos reflexos pálidos dos antigos povos
bantos afirmar sua identidade. É uma questão que se torna importante na medida em
imprescindível, não se encaixa no caso das nações de candomblé, pois, embora haja um
lugar de origem, “sempre existe algo no meio” que as torna singularmente diferentes
das primordiais. A diferença aqui não pode seguir padrões rígidos de inclusão e
exclusão, mas uma relação com o outro mais fluida em que as fronteiras podem ser
outro.
142
Embora Stuart Hall escreva sobre culturas caribenhas na Europa, acredito que se
do “fazer sentido na tradução”. Desta forma, todas nações são híbridas. Não obstante a
formação sincrética estabeleça entre os vários elementos inclusos relações desiguais por
causa das relações de poder, hoje em dia o candomblé angola tem uma luta cultural que
muitas, suas origens não são únicas, tanto que algumas nações são oriundas de povos
bantos e outras de sudaneses, termos que englobam inúmeros grupos negros africanos.
mesmo tempo em que se constitui mediante uma grande plasticidade, vai à procura de
uma África banta, mítica, que não é um ponto antropológico fixo, mas “hifenizada”,
África metafórica que torna pronunciáveis o negro e o afro-brasileiro, por uma “lógica
143
desenterradas, mostrando uma cultura afro-brasileira, que diz “não” à marginalização e
à subordinação.
reconhecimento”, ao lado das lutas contra o racismo e pela justiça social. (Hall, 2003;
p.46)
144
ÍNDICE E CRÉDITOS DAS ILUSTRAÇÕES
20
1. Desenho de Carybé incluso no livro “As sete 34
portas da Bahia”
2. Desenho de Carybé incluso no livro “As sete 37
portas da Bahia”
3. Região de governo de Campinas – distribuição 45
populacional. Fonte IBGE
4. Primeiro barracão de candomblé de Campinas - 45
1980 foto baba Tologi
5. Frente do primeiro barracão de candomblé - 45
1980 - foto baba Tologi
6. Interior do salão do primeiro barracão de
candomblé de Campinas, com peji, cadeira de 45
orixá e oferendas – 1980 – foto baba Tologi
7. Lembrançinha da abertura do primeiro terreiro 55
de candomblé de Campinas
8. Planta do terreiro : Inzo dia Roxe Mokumbo ni 60
Dandanlunda
9. Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda-
2005- frente atual. Foto Ivete M. Previtalli
Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda- 2005 - 60
Corredor de entrada
10. A o fundo a entrada do salão. Foto Ivete M.
Previtalli 61
11. Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda-
2005- Entrada do barracão.Foto Ivete M.
Previtalli 61
12. Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda-
2005- salão de festas. Foto Ivete M. Previtalli 61
13. Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda-
2005- detalhe das paredes internas do salão. 61
Foto Ivete M. Previtalli
14. Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda-
2005- casa de caboclo 62
15. Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda-
2005- Assentamento do Inquice Tempo e
inquice Angorô. Foto Ivete M. Previtalli 65
16. Ilê Axé Arolê. Entrada do salão Foto Ivete
M.Previtalli
145
17. Ilê Axé Arolê. Coluna central. Foto: Ivete M. 65
Previtalli
65
18. Ilê Axé Arolê. Detalhe da coluna central. Foto:
Ivete M. Previtalli
73
19. Ilê Axé Arolê. Casas de santo Foto: Ivete M.
Previtalli
20. Ilê Axé Arolê. Casa de egungum e das almas. 73
Foto: Ivete M. Previtalli
21. Ilê Axé Arolê. Cantinho da umbanda. Foto:
Ivete M. Previtalli 74
22. Ilê Axé Arolê.Detalhes do cantinho da 74
umbanda. Foto: Ivete M. Previtali
23. Ilê Axé Arolê. Assentamento Iyámi. Foto: Ivete 77
M. Previtalli
24. Ilê Axé Arolê. Assentamento da prosperidade 77
25. Ilê Axé Arolê. Assentamento inquice Tempo. 77
Foto: Ivete Miranda Preitalli
26. Desenho Carybé. In: As sete portas da Bahia 81
27. Gráfico: Grupos aparentados de A (Iniciado no 87
candomblé)
28. Gráfico :Possibilidades de parentesco com “A” 87
em que não há proibição do incesto
29. Gráfico: casos em que a proibição do incesto
não permite que “B” esteja localizado na 88
organização familiar por causa de seu parceiro
sexual “A”
30. Gráfico: Família biológica de mameto
Dangoroméia 90
31. Gráfico: Família de santo cruzada com a
família biológica de mameto Dangoroméia
91
32. Gráfico: Família de santo cruzada com família
biológica de mameto Corajacy 91
33. Gráfico: Família de santo cruzada com família
biológica de tateto Ubiacylê 92
34. Gráfico: Família de santo cruzada com família
biológica de tateto Gitalanguange 92
146
35. I- Diagrama da família de santo de Tateto dya
N’kisse Gitalanguange
94
36. II- Diagrama da família de santo de Tateto dya
N’kisse Ubiacylê
94
37. III - Diagrama da família de santo de Mameto
dya N’kisse Dangoroméia
38. IV - Diagrama da família de santo de Mameto 95
dya N’kisse Corajacy
39. Diagrama do candomblé de angola de Campinas. 95
147
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Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )