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CAPITULO IV ACAO E DEFESA 73, direito de acao — conceito — a evolugdo histérica da teoria da agéo Segundo o entendimento preponderante nos paises de cultura pro- cessual romano-germanica, e especialmente no Brasil, a a¢do € 0 direito a obter do Estado-juiz um pronunciamento a respeito de uma pretensaio trazida a juizo (decisao de mérito), independentemente de esse pronun- ciamento ser favordvel ou desfavoravel aquele que o tiver pedido. Tal € a teoria abstrata da ago, que surgiu na Alemanha e na Austria na segunda metade do século XIX e sucedeu a teoria imanentista e a teoria da agao como direito concreto (supra, n. 4). O Codigo de Processo Civil brasileiro consagra a teoria abstrata da acao, mas na formulagdo resultante de sua retificagdo, proposta por En- rico Tullio Liebman em famosa aula inaugural proferida na Universidade de Turim no ano de 1949, quando combateu os exageros a que sua for- mulacao radical conduzia. Disse o Mestre que, embora a ago prescinda da existéncia do direito subjetivo material sustentado pelo autor — sendo por isso abstrata -, sua existéncia depende do modo como em cada caso concreto 0 direito a sentenga de mérito se relaciona com a ordem juri- dica material e com a situago em que 0 autor se encontra em relagao a sua pretensdo. Foi dada entio muita énfase as condigdes da acdo como requisitos para que, em cada situagao concretamente considerada, 0 au- tor tenha direito ao pronunciamento jurisdicional de mérito. Em resumo. Na teoria de Liebman, que 0 novo Cédigo de Processo Civil adota, 0 direito de agao é direito a obter o pronunciamento do juiz sobre uma pretensdo, ou sobre o mérito, ainda quando o autor nao tenha razio no plano do direito material. Estando presentes as duas condigdes da agdo interesse de agir ¢ legitimidade) o juiz pronuncia sim uma sen- 116 TEORIA GERAL DO NOVO PROCESSO CIVIL tenga de mérito mas julga a causa contrariamente aos interesses do autor (improcedéncia da demanda), Quando uma das condigdes faltar o juiz nega-se a julgar a pretensdo do autor, porque nesse caso ele nao tera 0 direito de agao. O interesse de agir e a legitimidade ad causam incluem- -se entre os pressupostos de admissibilidade do julgamento do mérito (infra, n. 126). Segundo esta no art. 485, inc. VI, do Cédigo de Processo Civil, “o juiz no resolverd o mérito quando (...) verificar a auséncia de legitimidade ou de interesse processual”. Assim concebido, 0 direito de ago é mais que o mero direito de demandar, que nao passa do direito de ingressar em juizo com uma pretensdo qualquer, ainda que em falta de uma das condigées da ago. Nesse caso 0 autor nao tera direito a sentenga de mérito, ou direito de ago, mas direito de comparecer em juizo ele tera (direito de demandar), porque esse direito no depende de condicao alguma e constitui um dos aspectos da garantia constitucional da ago, contida no art. 5°, inc. XXXvV, da Constituicao Federal (supra, n. 28). Verificando a falta de uma das condigées da a¢ao, ou de ambas, o juiz indeferira a petigao ini- cial (CPC, art. 330, incs. I-III), impedindo que 0 processo siga avante, porque de antemio ja saber que nao sera factivel qualquer decisao sobre o meritum causce - mas ele nao pode negar-se a se manifestar sobre essa petigao, mesmo que seja para indeferi-la (e essa é uma ineréncia da ga- rantia constitucional do direito de demandar). 74. condigées da agao - a caréncia de acéo As condigdes da a¢40 constituem requisitos sem os quais 0 direito de acdo inexiste em dado caso concreto. A teoria das condigdes da ago foi debatida nas ultimas décadas a luz dos referidos conceitos lancados por Enrico Tullio Liebman (supra, n. 73), que em sua formulagao origi- nal de 1949 enunciou como condigées da agdo a possibilidade juridica do pedido, o interesse de agir e a legitimidade ad causam. Essa formula foi integralmente acolhida no sistema do Cédigo de Processo Civil de 1973. Mas a possibilidade juridica do pedido sempre foi alvo de inameras criticas, dada a dificuldade de ser tragada uma distingZo precisa entre a decisiio que extingue 0 processo por impossibilidade juridica do pedido a decisdio de mérito que julga a demanda improcedente. Essas criticas foram acolhidas pelo novo Cédigo de Processo Civil, que nao faz mais referéncia a possibilidade juridica entre as condigées da ago, referindo ACAO E DEFESA 117 apenas 0 interesse de agir e a legitimidade ad causam (arts. 17, 330, incs. II e III, 337, inc. IX , ¢ 485, inc. V1). Em fase ulterior de sua produgio 0 proprio Liebman veio a re- pudiar a categoria juridico-processual da possibilidade juridica como condigdo da ag3o no momento em que a legislagdio de seu pais instituiu 0 divércio — 0 pedido de dissolugao do vinculo conjugal era, na ligo do Mestre, o principal exemplo ilustrativo da caréncia de ago por falta de possibilidade juridica. O interesse de agir € 0 nucleo do direito de agao. Esta presente quando 0 provimento jurisdicional postulado for capaz de efetivamente ser Util ao demandante, operando uma melhora em sua situagao na vida comum — ou seja, quando for capaz de trazer-Ihe uma verdadeira tutela, a tutela jurisdicional. Por isso, s6 se legitima 0 acesso ao processo e s6 é licito exigir do Estado 0 pronunciamento de mérito pedido na medida em que ele possa ter essa utilidade e essa aptidao. Interesse, em direito, é utilidade. Ha dois fatores sistematicos muito tteis para a aferigdo do inte- resse de agir, como indicadores de sua presenga em casos concretos: a necessidade da realizagao do processo ¢ a adequacao do provimento jurisdicional postulado. $6 hd o interesse-necessidade quando sem 0 processo e sem 0 exercicio da jurisdigao 0 sujeito seria incapaz de obter o bem desejado. Um exemplo muito expressivo de falta do interesse- -necessidade ¢ a propositura de demanda com 0 pedido de condenagao do devedor que j4 houver posto o valor do débito a disposigao do credor. O interesse-adequagdo liga-se a existéncia de miltiplas espécies de provimentos ¢ tutelas instituidos pela legislagao do pais, cada um deles integrando uma técnica e sendo destinado a solugao de certas situagdes da vida indicadas pelo legislador (infra, n. 79). Em principio nao é fran- queada ao demandante a escolha do provimento e portanto da espécie de tutela a receber. A titulo de exemplo, o credor que nao dispuser de um documento qualificado pela lei como titulo executivo (CPC, art. 784) nao pode propor execugao por titulo extrajudicial para a satisfagao de seu crédito (infra, n. 88). Deve propor demanda condenatéria e, apés imposta a condenagao pelo juiz, buscar a satisfagao do crédito em sede de cumprimento de sentenga (infra, n. 80). A legitimidade ad causam é a qualidade para estar em juizo como demandante ou demandado em relagdo a determinado conflito trazido ao exame do juiz. Ela depende sempre de uma concreta relagdo entre o sujeito e a causa e se traduz na relevancia que o resultado desta vira a 18 TEORIA GERAL DO NOVO PROCESSO CIVIL, ter sobre a esfera de direitos do autor, seja para favorecé-la ou para res- tringi-la. Tem portanto legitimidade ativa para uma causa 0 sujeito que em tese poder vir a se beneficiar juridicamente dos efeitos da tutela ju- risdicional pleiteada; e tem legitimidade passiva aquele que também em tese podera sofrer algum impacto desfavoravel em sua esfera juridica. Em falta de uma das condigdes da aco ou de ambas (interesse necessidade) diz-se que 0 autor é carecedor de agao, ou seja, que ele nao tem 0 direito de ago em dado caso concreto. Carecer significa ndo ter. E, por nao ter 0 autor direito de ago, o mérito da causa nao podera ser julgado (CPC, art. 485, inc. VI) e 0 processo sera extinto sem esse julga- mento, mediante uma sentenga que nao sera de mérito mas terminativa. 75. a teoria da assercao E frequente e muito forte na doutrina a defesa da denominada teoria da asser¢do, referente 4s condigdes da agdo. Segundo seus seguidores, estas deveriam ser aferidas in statu assertionis, ou seja, a partir das alegacGes apresentadas pelo autor em sua peticao inicial - de modo que se estaria diante de questdes de mérito sempre que, por estarem as condigdes expostas na inicial de modo aparentemente correto, s6 depois se verificasse a falta de sua concreta implementagao. Ou, em outras pa- lavras: pela teoria da asser¢ao uma mesma materia seria apreciada como condi¢do da agdo se 0 autor, por seu advogado, houvesse descrito uma situagdio que ja a leitura da petigao inicial se percebesse que caracteri- zaria a falta de uma das condigdes da aco (p. ex., 0 autor vem a juizo cobrar uma divida exibindo um documento segundo o qual 0 titular do crédito é outra pessoa, ¢ nao ele); mas essa mesma falta de legitimidade deixaria de ser uma condig&o de ago e passaria a ser um motivo para julgar improcedente a demanda se 0 autor tivesse tido a habilidade de dissimular os fatos verdadeiros, descrevendo uma situagao em que ele teria o direito de agao, mas depois a prova demonstrasse que as coisas se passaram de modo diferente do descrito (p. ex., aquele autor alegou que o crédito constante no documento exibido fora transferido a ele pelo credor inicial, mas a prova veio a demonstrar que essa cesso de crédito jamais aconteceu). Dai levar essa linha de pensamento o nome de teoria da asser¢do, uma vez que, segundo seus intimeros seguidores, 0 critério para aferir a caracterizagao ou nao caracterizagao da falta de uma das condigdes da acao consistiria no modo como 0 autor assevera os fatos em sua petigo inicial. ACAO E DEFESA 19 Bem analisada, porém, essa teoria sustenta uma arbitraria transfor- magao de algo que de inicio seria uma condigdo para julgar o mérito e a partir de determinado momento seria motivo para julgar a demanda improcedente - com o julgamento do mérito, pois. Na realidade, porém, uma condi¢dao da acdo é sempre uma condi¢Go da agdo, ou seja, requi- sito para a existéncia do direito de acdo, sendo arbitraria essa distingdo que leva em conta 0 comportamento do autor, de modo que poderia este, dissimulando na peti¢ao inicial a verdadeira situagae de fato, transfor- mar uma questao preliminar em uma questao de mérito, como em uma milagrosa transformagio da agua em vinho. Na realidade, nao basta que o demandante descreva formalmente uma situagdo em que aparente- mente estejam presentes as condigdes da agao. Por falta de uma delas em qualquer momento 0 processo deve ser extinto sem julgamento do mérito, quer o autor jd haja descrito uma situagdo em que ela falte, quer dissimule a situagdo e s6 mais tarde a prova revele ao juiz a realidade. 76. defesa O direito de defesa, ou jus exceptionis, consiste em um conjunto de faculdades oferecidas ao réu para opor resisténcia a pretensio do autor. Embora seja esse direito um verdadeiro contraposto negativo do direito de acdo, é uma constante nas obras classicas de direito processual civil a incluso da a¢do entre os institutos fundamentais do processo (ao lado da jurisdigao e do processo), sem igual referéncia 4 defesa. Apesar de ser corrente a afirmagao da necessidade de tratamento igualitario das partes, com a garantia de plena defesa ao demandado, dedica-se a ago todo um trato sistematico, com amplo estudo de seu conceito, de suas classifica- gGes € a enunciagdo de suas condigées, mas A defesa nao. A referéncia a esta é na maioria das vezes restrita 4 mencao, no trato do procedimento judicial, das modalidades de defesas passiveis de serem apresentadas pelo demandado e classificagio das matérias que podem ser alegadas na defesa, de acordo com a potencial repercussao da alegaco (improce- déncia da demanda, extingdo do processo sem o julgamento do mérito, modificaco da competéncia) ov com referéncia a possibilidade de a questo ser conhecida ex officio pelo julgador (excegdes ¢ objegdes). Nao é usual, no entanto, o exame do direito de defesa em si mesmo ou de suas projegdes constitucionais. Essa auséncia de uma anilise siste- matica da defesa tem por resultado a persisténcia nos estudos da ciéncia processual de ideias ultrapassadas, j4 superadas no trato do direito de aco, além de conter em si uma inconstitucional discrimina¢ao entre as faculdades do autor e as do réu no processo. 120 TEORIA GERAL DO NOVO PROCESSO CIVIL, O necessério paralelismo entre a agao ¢ a defesa no tem contudo 0 condao de superar uma diferenca fundamental entre esses dois institutos. E mediante 0 exercicio da agdo que o processo tem inicio, sendo desde logo delimitado 0 seu objeto, 0 objeto do processo. O pedido deduzido pelo autor define o material sobre o qual juiz e partes desenvolverao suas atividades processuais, delimitando com isso os efeitos externos suscetiveis de serem incluidos no dispositivo da sentenga. Com a defesa, apesar do destaque que lhe deve ser atribuido, o réu simplesmente resiste ao pedido do demandante. O réu nao veicula um pedido proprio, senao 0 de rejeigao do pedido do autor, e portanto sua manifesta¢do nao implica a ampliagao do objeto do processo (infra, n. 125). Essa fundamental distingdo entre os institutos repercute na dimen- sao dos dnus impostos as partes para que os possiveis interesses de uma ou de outra possam ser reconhecidos no julgamento da causa. O autor tem o Gnus de alegar na petigao inicial todas as causas de pedir que pretenda ver apreciadas no julgamento. Sao porém poucas as matérias que precisam ser necessariamente alegadas em contestagdo para serem conhecidas pelo julgador, admitindo a lei em diversas situagdes que 0 réu apresente depois o argumento omitido ou seu exame ex officio no julgamento da causa (CPC, arts. 334, § 5°, ¢ 342). No que se refere aos possiveis contetidos da defesa, esta pode consistir na alegacao de preliminares, ou seja, razdes para que o mérito nao possa ser julgado, ou de pontos relacionados com o proprio mérito. Defesa processual no primeiro caso, e defesa de mérito no segundo — e o réu tem ampla liberdade para estruturar sua defesa segundo as estra- tégias de sua escolha. E licito cumular logo na contestag4o todas as defesas que tiver, ainda que relativamente contraditérias entre si. O réu suscita preliminares, opondo-se ao julgamento do mérito, sem prejuizo de, em prosseguimento, passar ao exame deste para pedir que a demanda inicial seja rejeitada e a tutela jurisdicional plena se conceda a ele e nao ao autor. Também na defesa de mérito é permitido que ele desenvolva uma argumentagao escalonada, de modo que o acolhimento de um dos fundamentos prejudique o conhecimento do subsequente e assim suces- sivamente. Esse é 0 sistema da eventualidade da defesa, assim chamado porque os fundamentos sucessivos s6 serao conhecidos se ocorrer 0 evento de o precedente ser afastado pelo juiz (CPC, arts. 336 e 337). Em uma formulagiio bem didatica e aderente a essas ideias enu- meram-se do seguinte modo os fndamentos de defesa que o réu pode alegar: a) a falta de uma das condigdes da agdo ou de qualquer outro ACAO E DEFESA, 121 pressuposto sem 0 qual 0 mérito nao possa ser julgado (pressupostos de admissibilidade do julgamento do mérito); b) especificamente, a incompeténcia do juiz perante o qual a demanda foi proposta pelo autor; c) a nao ocorréncia dos fatos alegados por este na petigo inicial; d) a ineficdcia juridica desses fatos, ou seja, a auséncia de fundamentos de direito suficientes para a acolhida da pretensao do autor com fundamento neles; e) a ocorréncia de fatos novos, influentes sobre a existéncia ou a vida do direito deste (fatos impeditivos, modificativos ou extintivos — CPC, art. 326). Essa variedade de defesas admissiveis pela ordem processual leva a doutrina a classificd-las de diversos modos, como a seguir se sintetiza. Todas elas so excegdes, tomado esse vocabulo em sentido bastante am- plo (como em jus exceptionis, que é 0 proprio direito de defesa). Defesas de mérito ou defesas processuais. As de natureza proces- sual visam a impedir ou retardar o julgamento do mérito da causa. As de mérito, a obtencdo de uma senten¢a de mérito favoravel ao réu. Defesas diretas ou indiretas. As diretas consistem na postulagao de um julgamento de mérito a favor do réu, e as indiretas a impedir esse julgamento. Todas as defesas processuais so indiretas. As de mérito séo diretas ou indiretas, conforme consistam em negar os fatos alegados na demanda inicial ou as consequéncias juridicas pleiteadas pelo autor ou em invocar fatos novos, influentes sobre a existéncia ou vida do direito deste (fatos impeditivos, modificativos ou extintivos). Objegées ou excegées em sentido estrito. Chamam-se objecdes os fundamentos suscetiveis de serem conhecidos pelo juiz indepen- dentemente de alegagio pelo réu, como a prescrig&o, a decadéncia, a incompeténcia absofuta ou a caréncia de ago etc. So excegées em sen- tido estrito as defesas que sé podem ser levadas em consideracao pelo juiz quando expressamente suscitadas pelo réu, como a incompeténcia relativa ¢ a preliminar de arbitragem (CPC, art. 337, § 5%, c/c art. 141, parte final). As exceces em sentido estrito podem ser de mérito ou de natureza processual.

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