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Agulha Revista de Cultura


1999-2022 | ARC Edições | A nova idade da Agulha

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022 Agulha Revista de Cultura

LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | René Ménil, o poeta trickster de


Tropiques ou Teoria e crítica, humor e criação em uma revista-
laboratório antilhana

Do ponto de
vista antropológico, o que é exatamente
um trickster?
De um modo muito simples: é o que Índice # 2 (2022)
semeia a desordem no mundo da ordem ou o que
Agulha Revista de Cultura #
inventa [1] uma nova ordem quando o caos
se instala no
mundo; é o que joga com o tempo e o espaço, e também Agulha Revista de Cultura #

com a linguagem;
aquele que, em mitologias muito
diferentes, ou longínquas, dialectiza o que se crê
Índice # 1 (2012-2021)
perfeitamente sabido e conhecido, jogando o jogo
insolente de inverter ou desregular
a série cronológica ARC | Fase II | Edição # 01

dos acontecimentos; [2] o que


brinca, irreverente, com ARC | Fase II | Edição # 02
os deuses, enganando-os e finalmente o que repõe, em ARC | Fase II | Edição # 03
movimento,
o mundo, imobilizado pela chegada da
ARC | Fase II | Edição # 04
Morte. É o corvo ou o coiote nos mitos ameríndios;
é a
raposa (o velho “goupil” da Idade
Média ocidental, ora ARC | Fase II | Edição # 05

chamado Renard, ora Till Eulenspiegel) nos contos da Europa;


é Loki, a divindade da trapaça e da ARC | Fase II | Edição # 06
travessura na mitologia nórdica, também ligado
à magia e podendo assumir a forma ou o tamanho
ARC | Fase II | Edição # 07
que quiser; em suma, o trickster é Exu ou Papa Legba, no universo
cultural das Américas negras. O
ARC | Fase II | Edição # 08
trickster
aparece, ainda, transposto para a literatura, em personagens como o fool shakespeariano
do King Lear ou o arlequim da commedia dell’arte italiana. ARC | Fase II | Edição # 09

ARC | Fase II | Edição # 10


Estranho
destino da revista Tropiques, um meteorito
imprevisto que explode no mar das
Caraíbas, em 1941, em plena II Guerra, numa periferia
do mundo, transformada em revista quase ARC | Face II | Edição # 11
mítica pelas ondas que provocou em torno
do seu ponto de impacto e de difusão, por todas as ARC | Fase II | Edição # 12
Antilhas (Haiti, Cuba) e até
mais além no continente (Venezuela, México, Nova York), e só
ARC | Fase II | Edição # 13
redescoberta, muito
tardiamente, pelo público, graças à reprodução anastática, realizada sob a
direção
de Jacqueline Leiner, pela editora Jean-Michel Place de Paris, mais de trinta e
cinco anos ARC | Fase II | Edição # 14

depois, em 1978. É então que o público leitor teve enfim acesso à série
de números de uma revista ARC | Fase II | Edição # 15
composta e publicada em condições muito modestas e precárias
em Fort-de-France, pequena ARC | Fase II | Edição # 16
cidade colonial da Martinica. Aliás, é preciso não esquecer
que um dos seus redatores – no caso,
ARC | Fase II | Edição # 17
uma mulher, Suzanne Césaire – solicita e busca,
inclusive, papel de impressão ao censor oficial de
Vichy, durante o período da Dissidência
antilhana até ao seu término. E os seus números se ARC | Fase II | Edição # 18

sucedem de 1941 a 1945 sem interrupção,


o que é uma proeza numa revista literária em condições ARC | Fase II | Edição # 19
normais. Até então, conheciam-se,
de Tropiques, apenas algumas citações
lacunares e às vezes com ARC | Fase II | Edição # 20
bastante falhas, da primeira tese pioneira de Lylian Kesteloot.
ARC | Fase II | Edição # 21
Tropiques, por um lado,
confirma um extraordinário poeta (Aimé Césaire, que já publicara a 1ª ARC | Fase II | Edição # 22
versão do
Cahier d’un retour au pays natal, em 1939,
numa revista de Paris, Volontés) e por
outro,
ARC | Fase II | Edição # 23
revela dois grandes escritores: René Ménil e Suzanne Césaire, praticamente
desconhecidos entre
nós e de perfis diferenciados. ARC | Fase II | Edição # 24

ARC | Fase II | Edição # 25


Suzanne
Césaire acaba de ser publicada, no Brasil, pela editora Papéis selvagens (da UFRJ).
Por
outro lado, o leitor encontrará uma nova apresentação da sua obra, em outro
pequeno ensaio, ARC | Fase II | Edição # 26

igualmente nesta série “Surrealismo Surrealistas”, da Agulha Revista de Cultura, vista de uma outra ARC | Fase II | Edição # 27
perspectiva, que, invertendo a simples sequência cronológica, espelha a escritora
da Martinica, já
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falecida, no olhar de Aimé Césaire, seu ex-marido, graças a um


poema escrito na sua velhice diante Agulha Revista de Cultura #
de um rochedo que avança para o mar com perfil
de mulher adormecida. Agulha Revista de Cultura #

René
Ménil, pelo seu lado, professor de filosofia no liceu Schoelcher de Fort-de-France,
fez uma Agulha Revista de Cultura #
carreira importante de ensaísta embora nunca tenha eu encontrado, nas bibliografias
de trabalhos Agulha Revista de Cultura #
brasileiros, uma referência ao seu ensaio fundamental, Tracées: identité, negritude, esthétique aux
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Antilles (Robert Laffont, 1992), o que é surpreendente pois, já em 1932, ainda
em Paris, ele é um
cofundador da revista Légitime
défense. [3] Dito
de outro modo: Ménil permanece ainda mais Agulha Revista de Cultura #

desconhecido, entre nós, do que Suzanne


Césaire, cuja figura vem saindo, aos poucos, da Agulha Revista de Cultura #
obscuridade e da clandestinidade.
Estas podem ser explicadas, de certa forma, pela brevidade da Agulha Revista de Cultura #
sua obra (apenas sete
textos, mais uma peça teatral, ao que parece, irremediavelmente perdida),
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pela sua
produção que se concentra em apenas quatro anos durante a II Guerra Mundial (1941-
1945)
e enfim, pelo seu trágico desaparecimento precoce. Agulha Revista de Cultura #

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René
Ménil tem, pelo contrário, vida longa, bem preenchida e produtiva. Ele faz brilhantemente
a
ligação entre o marxismo clássico dos anos 1950 e os ensaístas da descolonização:
o Césaire do Agulha Revista de Cultura #

Discurso sobre o colonialismno,


o Fanon de Pele negra e máscaras brancas,
o Édouard Glissant da Agulha Revista de Cultura #
crioulização e seus epígonos.
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O
que nos interessa mostrar aqui são as duas faces de Ménil, a de poeta em prosa e
a de teórico, o Agulha Revista de Cultura #
primeiro a repensar criticamente a própria revista Tropiques.
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Repensando criticamente
Tropiques Agulha Revista de Cultura #

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Deixaremos para
o final o prazer de descobrir o jovem – imprevisto – René Ménil dos anos 1940, no
período da Dissidência antilhana, teórico sobre literatura e poeta surrealista em
prosa. Agulha Revista de Cultura #
Comecemos, senão pelo fim, pelo menos in media res. Em 1978, no momento da reprodução Agulha Revista de Cultura #
anastática da revista
pela editora Jean-Michel Place, muitos anos depois da experiência coletiva da
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revista-laboratório,
Ménil assina um texto importante intitulado “Pour une lecture critique de
Tropiques”. [4] Ele afirma
inicialmente: Agulha Revista de Cultura #

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Agulha Revista de Cultura #
A leitura que pretendemos
aqui fazer para os leitores é uma leitura crítica – preocupada, por
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consequência,
em encontrar as implicações e as consequências desses textos de modo a extrair
as
suas significações objetivas, entre as quais deverão ser encontradas até aquelas
que teriam Agulha Revista de Cultura #

escapado aos redatores da revista por qualquer razão. (Tradução


de Lilian Pestre de Almeida) [5] Agulha Revista de Cultura #

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Para
tal, Ménil aponta um certo número de problemas, de natureza diferente aliás: a)
em
Tropiques, a censura prévia obrigatória
produziu efeitos de estilo e de pensamento; b) os seus Agulha Revista de Cultura #

leitores – essencialmente
estudantes de liceu, nascidos e vivendo na Martinica – sabiam ler nas Agulha Revista de Cultura #
entrelinhas,
preencher os silêncios, interpretar os símbolos, as elipses e as antífrases e c)
os textos Agulha Revista de Cultura #
publicados dirigiam-se, ao mesmo tempo, ao leitor antilhano e ao censor
francês. Assim, Pétain e
Agulha Revista de Cultura #
seu regime eram denunciados por meias palavras mas nunca
claramente nomeados enquanto dura
o período da chamada “Dissidência” antilhana.
Enfim, a autocensura interior (freudiana) Agulha Revista de Cultura #

acrescentava-se ainda aos redatores de


Tropiques. Ménil observa com propriedade:
“os limites do Agulha Revista de Cultura #
passado só são vistos no presente”. Agulha Revista de Cultura #

Outra
observação sua: “o empréstimo ao surrealismo,
que é simplesmente proclamado em Agulha Revista de Cultura #
diversos lugares nos textos, não deve paralisar
a análise nem sugerir preguiçosas interpretações Agulha Revista de Cultura #
mecanicistas”.
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Ménil
nota ainda presenças e ausências nos textos de Tropiques: Agulha Revista de Cultura #

  Agulha Revista de Cultura #

Agulha Revista de Cultura #

Assim, o comentário
poético, ao que parece, não ilumina o homem no trabalho, os instrumentos de Agulha Revista de Cultura #
trabalho,
as obras de trabalho. Ao contrário, a paisagem (em deflagração), a vegetação (em
tumulto), Agulha Revista de Cultura #
a animalidade (raivosa), o coração humano e a sociedade (em tormento)
– gestos e cores – em
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realizações patéticas. (Ibidem.)
Agulha Revista de Cultura #
 
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Em
suma, para Ménil, a revista tem “literatura
demais” Agulha Revista de Cultura #
(trop de littérature), insistindo
no “mistério”, por Agulha Revista de Cultura #
definição, quase impenetrável
e remetendo ainda ao
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“romantismo” mais
exaltado que trabalha todos os textos,
do interior. É portanto literatura altamente
elaborada, de Agulha Revista de Cultura #

segundo grau, que se inscreve e desenvolve a partir da Agulha Revista de Cultura #


literatura
francesa em relação à qual toma, de forma Agulha Revista de Cultura #
contraditória, distância numa “constante contestação”.
Agulha Revista de Cultura #
Quanto a isso, o
exemplo citado por Ménil é o do cubano
Wifredo Lam, na pintura, marcando a sua total Agulha Revista de Cultura #
solidariedade com a revista e, logo a seguir, apresentando- Agulha Revista de Cultura #
se como “expressão plástica do 3º mundo”. Para Ménil,
la
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Jungle, o grande quadro emblemático
de Lam, mestiço de
Agulha Revista de Cultura #
chinês com negra cubana,
não é certamente um dado
“naïf” mas
o resultado de muitas reflexões sobre culturas e Agulha Revista de Cultura #
civilizações, sobre a “cosa negra” (sic), ao mesmo tempo, Agulha Revista de Cultura #
em relação e em contradição, com os pintores do
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Ocidente.
Agulha Revista de Cultura #
A
observação merece um comentário para apreciar a sutileza de Ménil que não cita nenhum
dos
Agulha Revista de Cultura #
redatores, seus colegas, da revista. Sua expressão em espanhol “cosa negra” joga com o famoso
aforismo de
Leonardo da Vinci em italiano: “la pittura
è cosa mentale”. Assim, para Ménil, o Agulha Revista de Cultura #

exotismo de Tropiques joga com duas linguagens diferentes no interior da mesma língua
(o Agulha Revista de Cultura #
francês). Daí um certo maneirismo e preciosismo que apreende e talvez surpreenda,
o leitor atento Agulha Revista de Cultura #
e culto.
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Ménil
sugere igualmente que os textos de Tropiques
deveriam ser lidos e analisados em Agulha Revista de Cultura #
confronto com a estética elaborada das literaturas
latino-americanas, em espanhol. [6]
Agulha Revista de Cultura #
Entre
os pontos positivos da revista, René Ménil destaca a pesquisa sobre história, fauna
e flora Agulha Revista de Cultura #
locais, o inventário de elementos do folclore oral antilhano, a busca de
componentes vindos de
Agulha Revista de Cultura #
África. É, segundo ele, a leitura posterior de Bachelard,
sobretudo do livro Matérialisme rationnel
(de 1953) – ainda não feita em 1945, claro – que permite a compreensão “retroativa” dos esforços, Agulha Revista de Cultura #

mostrando a imbricação
das intuições de cada um com os fatos observados. Na análise dos contos Agulha Revista de Cultura #
orais, lamenta
ainda a ausência de leituras estruturalistas. Agulha Revista de Cultura #

Para
Ménil, o interesse dos textos está, sobretudo, no plano filosófico-político e a
reedição da Agulha Revista de Cultura #
revista responde a uma “necessidade
social” e, de certa forma, demorou demais. Emprega em Agulha Revista de Cultura #
relação a si próprio e
aos seus companheiros a forma “écrivant”
(e não écrivain): “nesse laboratório
Agulha Revista de Cultura #
de pesquisa, cada um deles
sendo absolutamente livre no seu trabalho de produção do texto”. Hoje,
percebem-se
melhor “dissonâncias” e “contradições” entre os textos que remetem
a diversas Agulha Revista de Cultura #

filosofias do grupo. Agulha Revista de Cultura #

Ménil
refere ainda a predominância da poesia sobre a política, o que acentua o “lado idealista” Agulha Revista de Cultura #

(hegeliano) e “irracional” (surrealista), presente aliás


já desde Légitime defense (de 1932), face
ao Agulha Revista de Cultura #
racionalismo de Marx. Mas o enraizamento emocional (sobretudo da dimensão racial)
revela Agulha Revista de Cultura #
claramente a dura realidade antilhana.
Agulha Revista de Cultura #
O
que lhe parece grave, no entanto, é que as oposições, diferenças e contradições
nos conceitos
Agulha Revista de Cultura #
filosóficos da revista permaneçam ainda como não-existentes, porque
não identificados, não
Agulha Revista de Cultura #
analisados nem aprofundados. O filósofo marxista que existe
em Ménil, esperava uma análise
abordando a questão. “Tropiques foi a expressão das perspectivas, esperanças,
vontade da esquerda Agulha Revista de Cultura #
revolucionaria antilhana dos anos 40”. Agulha Revista de Cultura #

Esta,
no fundo, é a grande questão. Os números de Tropiques
não foram reimpressos por longo Agulha Revista de Cultura #
tempo e foi praticamente impossível encontrá-los,
em livraria ou biblioteca, durante mais de 30 Agulha Revista de Cultura #
anos. Assim, uma boa parte das reflexões,
feitas nos anos 1940, extraviou-se. A esquerda antilhana
Agulha Revista de Cultura #
perdeu, de certa forma,
a sua memória crítica uma vez que a leitura atenta da revista não foi feita
Agulha Revista de Cultura #
pela
geração seguinte e a “herança de conceitos
filosóficos” não foi digerida. Uma ruptura se fez por
problemas, inclusive,
vários: “problemas de línguas mal definidas
na sua natureza e no seu Agulha Revista de Cultura #
funcionamento” (Ménil refere-se evidentemente à diglossia
antilhana francês-crioulo que não é de Agulha Revista de Cultura #
modo nenhum bilinguismo, uma vez que há hierarquização
social e cultural das duas línguas), “do
Agulha Revista de Cultura #
folclore
ainda não diferenciado da literatura” e mesmo “sem perspectiva de ação política”.
Agulha Revista de Cultura #
Por
essas breves notas que percorrem e resumem as 35 páginas do seu juízo crítico sobre
a revista
Agulha Revista de Cultura #
Tropiques, o leitor pode avaliar
não só as qualidades como as exigências intelectuais de René Ménil.
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No momento em
que, no Brasil, se começa a traduzir ensaístas antilhanos francófonos é urgente Agulha Revista de Cultura #
traduzi-lo. Agulha Revista de Cultura #

O jovem trickster-poeta
em ação Sobre o diretor

  FLORIANO MARTINS (Fort


Poeta, editor, ensaísta, artist
tradutor. Criou em 1999 a Ag
A
mina minada do humor. Cultur. Coordenou (2005-20
“Ponte Velha” de autores po
René Ménil, “Laissez passer la poésie”, Escrituras Editora (São Paul
coleção “O amor pelas palav
in
Tropiques,
V, 25. parceria, de circulação exclu
entre ARC Edições e Editora
dos projetos Atlas Lírico da A
  Hispânica, da revista Acroba
Hispânica, da Agulha Revist
O intermédio
anterior serviu para que o leitor pudesse avaliar a perspectiva do écrivant René Ménil Organizou algumas mostras
dedicadas à literatura brasile
que pensa, sempre, transitivamente.
Cabe-nos, agora, voltar atrás e apreciar a sua outra face, jovem em países hispano-american
e insolente. Nascido
em 1907, em Gros Morne, [7] na Martinica,
no momento da criação de poetas de Brasil” (Blanco Mó
1998), “La poesía brasileña b
Tropiques, em
1941, Ménil é um dos mais velhos do grupo
[8] e tem
apenas 34 anos. Seus textos são la contemporaneidad” (Alfor
ora sérios e eruditos, ora joviais, francamente
humorísticos, ora líricos e oníricos. Alguns e “Poesía brasileña” (Poesía,
2006). Também organizou a
totalmente imprevistos. Estes são, na verdade, pelo menos cinco: Drame légendaire au crépuscule peruana no século XX” (Poe
Brasil, 2008), ao mesmo tem
(Tropiques, IV), Couleurs d’enfance, couleurs de sang (Tropiques, V), Le Dictateur
(Tropiques, VI- corresponsável pelas edições
VII), Poème (Tropiques, X) e Dernière insurrection
(Tropiques, XI). y narradores portugueses” (B
México, 2003), “Surrealismo
Intermundos, Lisboa, 2003)
Ao
lado de Suzanne Césaire, Ménil é o outro teórico do grupo além de ser o que lê alemão,
o que prosadores venezolanos” (Bl
implica conhecimento direto dos filósofos e poetas alemães, assim como de
Freud. Depois de México, 2006). Esteve prese
de poesia realizados em país
Césaire, Ménil é, ainda, o segundo autor com maior número de textos
na revista-laboratório. Colômbia, Costa Rica, Repúb
El Salvador, Equador, Espan
Apresentemos
cronológica e resumidamente todos os seus textos ao longo dos números de Nicarágua, Panamá, Peru, P
Venezuela. Trabalha ainda c
Tropiques: o resumo dará ao leitor uma noção
da grande variedade das suas contribuições, dentre colagem e design, tendo real
as quais, a seguir, destacaremos
algumas, ou mais precisamente, cinco, para um exame mais e capas de livros. Curador da
Internacional do Livro do Ce
minucioso. Esta análise
mais de perto, o leitor a encontrará na parte final. 2008), e membro do júri do
Américas (Cuba, 2009), Con
  de Poesia (Venezuela, 2010)
da Fundação Biblioteca Naci
2015). Professor convidado d

I de Tropiques, abril de 1941: “Naissance
de notre art”. de Cincinnati (Ohio, Estados
Tradutor de livros de César M
Texto
importante, em que Ménil toma, como ponto de partida, o desolador vazio cultural [9] da García Lorca, Guillermo Cab
Vicente Huidobro, Hans Arp
Martinica e a possibilidade
de “nascimento da nossa arte” (não se
trata de renascimento), com uma Juan Calzadilla, Enrique Mo
epígrafe de Nietzsche. A última frase é: “a existência do Poeta vai coincidir com a nossa
existência, Borges, Aldo Pellegrini e Pab
Cuadra. Entre seus livros ma
nós, homens ainda aproximativos.” Note-se que o texto é anterior
à chegada a Fort-de-France, do destacam Un poco más de su
barco de refugiados Le Capitaine Lemerle, com a sua carga de intelectuais e artistas franceses
e hará ningún daño a la realid
México, 2015), Um novo con
estrangeiros a caminho do exílio (Breton e sua família, Claude Lévi-Strauss e
a mulher, o pintor e surrealismo na América (e
André Masson, Wifredo Lam e sua companheira, a alemã Helena Holzer
etc.). 2016), O iluminismo é uma b
Brasil, em parceria com Zuca
Antes que a árvore se feche (
  Brasil, 2020), 120 noites de
surrealistas (ensaio, Brasil, 2
Nº II de Tropiques,
julho de 1941: “Orientation de la poésie”. Naufrágios do tempo (novela
Lucía Estrada, 2020). Conta
floriano.agulha@gmail.com.
Texto
crítico sobre poesia, com uma epígrafe inicial de Novalis: “toda poesia deve ser legendária e
feérica”.
Insiste sobre a importância do sonho e glosa uma imagem de Suzanne Césaire sobre
o
“funâmbulo que caminha sobre a corda”,
cita Hegel e Éluard, Breton e os manifestos do
Surrealismo, terminando com a recusa
radical do realismo. Última frase: “é o tempo
da liberdade de
espírito”, o que não deixa de ser paradoxal porque se vive então
sob censura militar na ilha, mas a
declaração sugere ainda, por um lado, a importância
do encontro com Breton e, por outro, um
caminho de libertação (interior) que devia
suscitar grande entusiasmo nos jovens leitores da revista.

 
1. Atlas Lírico da América

III de Tropiques, outubro de 1941: dois
textos, “Introduction au merveilleux” e “L’action
fulgurante”.

“Introdução
ao maravilhoso” é um denso ensaio filosófico dividido em 9 partes e precedido por
um resumo revelador: “Estamos à procura do
nosso verdadeiro rosto. Condenamos suficientemente
a literatura artificial que,
dele, nos pretende dar a imagem: poetas atrasados, heróis de clichés,
supersticiosos
fazedores de alexandrinos, cobardolas declamadores de nada. Narciso martinicano
onde te reconhecerás? Mergulha o teu olhar
no espelho do maravilhoso: os contos, as lendas, os
cantos. Verás aí inscrever-se,
luminosa, a segura imagem de ti mesmo.” O ensaio é a introdução 2. Conexão Hispânica

teórica para
dois textos do número seguinte sobre literatura oral em crioulo.

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Nas
Notas, com o subtítulo de “A ação fulminante” e como uma nota-comunicação, René
Ménil,
acrescenta um pequeno texto de três páginas na mesma direção: citando a psico-análise
(sic) e a
etnografia, reafirma, segundo
Hegel, a unidade humana do sonho e da ação. Última frase: “Cada um
sabe que a palavra do mago produzia o seu efeito com a certeza do
relâmpago.”

3. Escritura conquistada -

IV de Tropiques, janeiro de 1942: dois
textos, hispanoamericana
“Introduction au folclore martiniquais” e “Drame
légendaire au crepuscule”.

A
primeira frase do primeiro texto começa como um
conto para crianças: “Era uma vez…” e articula-se
evidentemente
com os dois ensaios anteriores de Ménil.
Assinado em parceria com Césaire, o texto
de janeiro de
1942 funciona como uma demonstração da teoria para 4. Partituras do Maravilh
analisar a produção
anônima e popular: com pouco mais
de quatro páginas, coloca a problemática da literatura
oral em crioulo, modo de expressão alusivo e metafórico
de “um povo que tem fome” e que exprime, a seu
modo,
o seu “medo” através da figura do
“zumbi” (haitiano).
Nas duas últimas partes
do ensaio, os autores analisam
pari passu
um conto popular sobre a derrota de Colibri
5. Surrealismo Surrealist
com o seu tambor, personagem tradicional,
morto por
vários animais (Cavalo, Boi, Peixe-Armado), enviados
pelo Bom Deus contra
a pequena ave e o seu instrumento que marca o ritmo. A última frase retoma
o tom
do conto infantil: “Era uma vez um homem negro
agarrado à sua terra”.

O
texto final é uma total surpresa, desestabilizando qualquer leitor: um conto fantástico
sob a
forma de uma carta, escrita quase à moda do século XVII, em que o Destinador
emprega o “vous”
dirigindo-se a um “caro amigo”, não nomeado. Este surge como
avatar de Dom Quixote a cavalo e
empunhando uma lança no alto de um morro, desce
até à “imensa catedral” de um burgo da
Martinica, justamente Gros-Morne, seu burgo natal. Ironia e pastiche, alegoria e
simbolismo, tudo
se conjuga num texto imprevisto em que o muito sério Ménil revela
sua faceta de trisckter. A frase
final
é: “Mas, sabei-o, não escapareis mais, desde
então, à injunção trovejante do vosso desejo
armado. Já disse demais. Adeus.”

Nº V de Tropiques,
abril de 1942, dois textos: “Laissez passer la poésie” e “Couleurs d’enfance,
couleurs
de sang”.

O
texto “Deixai passar a poesia…” é um ataque feroz à pequena burguesia mulata da
Martinica,
dividido em nove partes e, ao mesmo tempo, um poema em prosa. Anuncia
a descoberta da “mina
minada, o humor”.
“Anunciamos a chegada do humor às Antilhas”.
Dirigindo-se com ironia ao “meu
colonial amigo”,
evoca ainda o célebre passeio coletivo em companhia dos novos amigos (Breton e
Jacqueline,
Lam e Helena, Masson), à floresta de Absalom através do jogo surrealista do “belo
como”: [10] … belo como o encontro na floresta antilhana, no
coração de uma clareira iluminada por
uma fina luz sangrenta, de um canibal e de
uma mulata [11] de tez cor de cinza”, o que retoma
um
texto anterior de Suzanne Césaire, repetindo-lhe a frase sem indicar a fonte:
“A poesia da Martinica
será canibal. Ou não
será”, apenas com mudança da pontuação. A frase final – “Deixai passar nas
Caraíbas tumultuosas, à altura
do gavião, a voz total, mortal, exaltante da poesia” – retoma e
sintetiza o
início do Cahier em que o narrador descreve
as Antilhas em voo planado de um grande
pássaro que desce progressivamente à terra,
numa espécie de zoom cinematográfico.

Em
“Cores de infância, cores de sangue”,
Ménil apresenta um poema em prosa, de quase três
páginas e meia, em torno do tema
partida e volta, exílio forçado e retorno. O título “Cores de
infância, cores de sangue” retorna como fecho do poema. Voltaremos
ao texto mais adiante.


duplo VI-VII de Tropiques, fevereiro de
1943: três textos “In Memoriam”, “Le Dictateur” e
“Notes sur Mallarmé”.

“In
memoriam”, no interior da revista, tem como subtítulo, [12] “Aquele
que chamávamos o
mestre”: Ménil presta homenagem, bastante corajosa para a época
e em nome da redação, a Jules

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24/01/2022 12:41 Agulha Revista de Cultura: LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | René Ménil, o poeta trickster de Tropiques ou Teoria e crítica, h…

Monnerot, falecido no ano anterior (Fort-de-France,


julho de 1874-setembro de 1942), obrigado a
suspender todas as suas atividades públicas
sob o regime do Almirante Robert. Advogado, professor
de filosofia e jornalista,
Jules Monnerot é o fundador do Partido Comunista da Martinica e do jornal
Justice. Último parágrafo do elogio fúnebre:
“Se a vida tem um sentido, ele existe na morte.
Logo
que apareceu a morte, esta existência que se simplificava até à lenda, se decantava
ainda mais para
traçar, como pelo fogo do espírito, a estrada, única, da nossa dignidade.”
Em nota de pé de página,
Ménil deseja que um estudo sério venha fixar a trajetória
e “o papel considerável que este professor
de civismo verdadeiro, este advogado brilhante, este político humano, este historiador
da nossa
miséria colonial, representou na geração dos Grandes republicanos”.

O
segundo texto é um delicioso e, ao mesmo tempo, assustador conto surrealista, intitulado
“O
Ditador”. Amante de trevos de 4 folhas e habitando uma torre, o personagem central
desvela desde a
primeira frase o seu aspecto inquietante-grotesco: “O ditador caminhava na pradaria. Sem muito
pensar,
colhia trevos de 3 folhas e, sem muito pensar, seja pela saliva, seja por discreta
sutura, seja
por hábil dissimulação, fazia trevos de 4 folhas”. O conto incorpora
dois discursos outros: o de um
cronista legendário e a “teoria” posta em ação pelo
ditador. Este discorre sobre seus projetos de
modelar o novo homem com ajuda de
engenheiros-psicólogos e grandes encenações psicodélicas.
Última frase: “O trevo, no céu, se tinha acentuado com luz florescente,
e dir-se-ia, hipnótica. O
ditador, no elevador, esmigalhava entre os dedos um falso
trevo natural de 4 folhas que colhera num
dos jardins suspensos da torre de marfim.”
Voltaremos ao texto mais adiante.

No
terceiro texto do número, René Ménil com “Notas
sobre Mallarmé” retoma um diálogo interno
da revista – diálogo com Césaire –
sobre a poesia francesa. [13] A última
parte é voluntariamente
polémica: “Mallarmé
no ápice de uma história em que alguma coisa podia ainda ser feita por
reflexão.
/ Suprema poesia. / Mallarmé tão perto de fazer o grande salto, estanca.” E
Ménil termina
as suas notas articulando Mallarmé a Breton, este, aliás, exemplo
de quem não interrompeu a sua
trajetória.

Nº duplo VIII-IX de Tropiques,


outubro de 1943: “Évidences touchant l’esprit et sa vitesse”.
Dossiê sobre Surrealismo
Ménil,
em “Evidências referentes ao espírito e à sua rapidez”, dividido em 14 partes, geralmente
curtas, aborda sucessivamente: o espírito e o inconsciente, a lógica da imagem é
a lógica do
absurdo, o todo está no todo, a rapidez do espírito, a multiplicação
contemporânea dos poetas
malditos, a vidência poética, “o pensamento é bio-lógico ou não é”, a clareza não está nos objetos,
o
irracional tem a sua luz “diferente”,
o inconsciente coletivo está no inconsciente individual e vice-
versa, a tensão poética
se mantém pelo movimento metafórico, “o espírito
rápido é o espírito-
soberano”, a metáfora é um meio de conhecimento do mundo
e do homem. A última frase: “o último
destino
da poesia sendo o de se multiplicar, dialecticamente, em força nua da multidão.”
O ensaio
Surrealismo a palavra mágic
retoma, de certa forma, no final, a exigência, ao mesmo tempo emblemática
e paradoxal de
Lautréamont, de que a poesia deva ser feita por todos. Uma das respostas
possíveis ao paradoxo
seria a reescritura literária da oralidade tradicional (os
críticos haitianos diriam “a oralitude”). 21 mulheres surrealistas


X de Tropiques, fevereiro 1944: “Poème”.

Primeiro
número de Tropiques a circular depois
da grande crise do final de 1943: a proibição de
publicação da revista pela censura
oficial e, logo a seguir, o fim da “Dissidência” antilhana, ou seja, o
fim do regime
de Vichy nos territórios franceses da América (Martinica, Guadalupe e Guiana
francesa).
O ano de 1944 é importante ainda porque o casal Aimé-Suzanne Césaire, a partir do
verão, passa mais de seis meses no Haiti, deixando os filhos com as avós em Fort-de-France.
Aimé 21 mulheres surrealistas
Césaire é convidado para um colóquio internacional e uma série de conferências.
A guerra
terminou no mar das Caraíbas embora continue na Europa e no Oriente.
CEL - FLORIANO MARTIN
René
Ménil publica, neste número de recomeço, um poema em prosa. A primeira frase:
“Colhíamos injúrias do chão para com elas fazermos
diamantes.” A ele voltaremos mais adiante.


XI de Tropiques, maio de 1944, dois textos:
“Situation de la poésie aux Antilles” e “La dernière
insurrection”.

René
Ménil refaz o panorama literário da Martinica, três anos depois do primeiro número
da Séries Especiais

revista: “Situação da poesia nas Antilhas.” Primeira frase: “Todo renascimento põe na ordem do dia Agulha Hispânica 2010-2011
a velha
querela do fundo e da forma.” O fim do texto aborda o romantismo: “O romantismo Agulha Revista de Cultura -
antilhano aí está com sua nova concepção
da beleza crioula”. E resume: “Romantismo
antilhano: 1999-2009

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movimento cultural do povo antilhano tomado convulsivamente pelo sentimento


da sua própria O rio da memória [Parte 1]
vida. Concebido em 1932 em ‘Legítima defesa’, esse movimento só foi
efetivamente desenvolvido em
S36 | O RIO DA MEMÓRIA
1940, de modo insólito, por voluntária sugestão poética.
Foi constantemente orientado por meio de CASTILLO
técnicas seguras, vindas das ciências humanas,
tais como a psicanálise, o materialismo histórico, a
S37 | O RIO DA MEMÓRIA
etnografia. O mestre operador
desta revolução foi Aimé Césaire”. O ensaio apresenta, ao leitor, a CORTÉS CABÁN
face de
Ménil, ideólogo marxista.
S38 | O RIO DA MEMÓRIA
MOSCHES
“A
última insurreição” é um excelente exemplo de conto surrealista, narrado na primeira
pessoa.
Uma “cabeça cortada” [14] – no caso feminina – é jogada
no meio dos negros que dançam numa S39 | VOZES POÉTICAS | E

praça de uma cidade fantástica e tropical, denominada


“Rivière-aux-écailles” (= Ribeira das S40 | VOZES POÉTICAS | E
MONTEJO
Escamas). A cabeça é de Méloré, a amada do
narrador. Num pátio pendem três cadáveres –
igualmente femininos – enforcados, e
todos sorriem “luminosamente”. Numa assembleia
secreta, se S41 | VOZES POÉTICAS | JU
CALZADILLA
reúnem dois padres e duas mulatas sob o olhar intruso do narrador, voyeur, e que lá chegou por um
caminho secreto.
O voyeur, saindo do labirinto, encontra
a seguir uma mulher de uma beleza S42 | VOZES POÉTICAS | B
terrível com quem faz amor. Ela insinua que Méloré
não amava o narrador: “é a liberdade de S43 | VIAGENS DO SURREA
espírito
que ela procurava nos teus braços. E mais ainda, talvez ela pensasse no outro enquanto
te ALFONSO PEÑA

beijava”. No final, sob os faróis/holofotes que iluminam o céu, a mulher


misteriosa propõe ao S44 | VIAGENS DO SURREA
narrador: “vá ver como
dorme a cidade”. O conto lembra o clima de um filme de Dalí ou de Buñuel. SÁNCHEZ PELÁEZ

É
uma das joias escondidas, a meu ver, de Tropiques,
e o conto surrealista mostra a outra face de S45 | O RIO DA MEMÓRIA
REVISTAS
Ménil, poeta em prosa. Sobre o texto
ainda ver mais adiante.
S46 | O RIO DA MEMÓRIA
  MARTINS [Parte 1]


XII de Tropiques, janeiro de 1945: “Introduction
à 1945”, segundo o sumário inicial. S47 | O RIO DA MEMÓRIA
MARTINS [Parte 2]
De
René Ménil, um novo texto teórico muito importante intitulado, no interior da revista,
“O S48 | O RIO DA MEMÓRIA
humor: introdução a 1945”, a ser lido integralmente e em que se destacam, na
sua longa história, MARTINS [Parte 3]
Sócrates, Lautréamont e Dada. E na literatura moderna: Baudelaire,
Breton, Éluard, Langston S49 | ACAMPAMENTO MU
Hughes, Césaire para exaltar “os tiros de salva do humor atroz.” Num parágrafo anterior descreve o BELCHIOR

humor camponês nas Antilhas: “No camponês


antilhano, é preciso confessar, sempre existiu um S50 | O RIO DA MEMÓRIA
humor que geralmente se ignora
mas do qual se encontra a expressão quotidiana nas piadas e nas KLINTOWITZ

canções em que o
negro toma a si próprio como alvo dos seus sarcasmos.” S51 | VOZES POÉTICAS | M
LUCCHESI
 
S52 | ACAMPAMENTO MU
HERMETO PASCOAL

Projeto Editorial Banda Hisp


Humor e criação Argentina

A diversidade
dos textos de Ménil não deixa de surpreender Projeto Editorial Banda Hisp
o leitor que, conhecendo seus ensaios
posteriores sobre Vanguardas no Século XX - A
literatura antilhana, tem dele apenas uma imagem de Hispânica

ensaísta-marxista-professor
de filosofia. Viagens do Surrealismo [Par

Como
um verdadeiro trickster, ele surge, de
repente, em AGULHA REVISTA DE CUL
ÍNDICE GERAL
Tropiques, com outro tom e
outro estilo, entre lirismo e
paródia, confissão e crueldade, comicidade e leveza,
humor
e onirismo. O mundo parece, então, ser visto, ao mesmo
Acervo de Matérias
tempo, pelo olhar novo
da criança e do fool sem ilusões e
Janeiro (24)
sem
peias na língua. E sobretudo com um alto grau
presciência, anunciando o que só será
revelado ou Dezembro (111)
conhecido mais tarde. Novembro (55)

Destacamos,
a seguir, cinco textos de René Ménil que nos Outubro (23)
parecem dever ser olhados de mais perto
e com mais vagar. Setembro (54)
A face do verdadeiro écrivain
e não mais simples e utilitariamente écrivant,
como modestamente
Agosto (33)
tenta se apresentar,
neles se revela, herdeiro de uma dupla linhagem que, em francês, vem de
Nerval,
Rimbaud, Lautréamont, confluindo com os seus amados poetas do Romantismo alemão: Julho (43)

Novalis, Heine, Hördelin. Junho (33)

Maio (22)
 
Abril (22)
“Drama legendário
ao crepúsculo” ou o desejo armado de um Quixote antilhano
Março (11)
No nº IV de
Tropiques, “Drama legendário ao crepúsculo”
é um verdadeiro conto imprevisto, pondo
Fevereiro (22)
em cena, na paisagem antilhana, o fantasma
de Dom Quixote a cavalo, debaixo de uma mangueira
(árvore inexistente evidentemente
em terras da Mancha espanhola). Do ponto de vista da formal, o Janeiro (127)

conto é uma carta


pessoal, escrita em estilo do século XVII, a um “querido amigo” (cher ami),
não Dezembro (201)

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nomeado, mas que só pode ser Aimé Césaire. Narra uma aparição fantástica e termina
por uma Novembro (30)
injunção ao amigo não nomeado. Outubro (33)

A
aparição, no início, imóvel no alto da colina, “entre a mangueira meditativa e o abrigo Setembro (11)
desabitado”, atravessa depois
teatralmente o cenário ambíguo que junta elementos europeus e Agosto (11)
africanos, antilhanos
e imaginários, passa diante da “catedral”
do burgo de Gros Morne (onde
Julho (22)
nasceu Ménil, como já se sabe) e avança pela “ponte-levadiça do castelo de vidro com enormes
arcos de terra batida”. Construir em argila ou terra batida é, aliás, uma forma
de construção Junho (22)

africana. [15] Maio (22)

A
carta é ao mesmo tempo uma parábola e um sonho de olhos abertos, que cada leitor
deve Março (11)

interpretar à sua maneira. Tudo sugere que esse cavaleiro ao mesmo tempo literário
e mítico, Fevereiro (10)
patético na sua desmedida e grandioso no seu sonho ideal (com toda a carga
conotativa do Dezembro (11)
“Cavaleiro da triste figura” diante da decadência da Espanha e seus
impasses), é uma injunção ao
Novembro (33)
amigo Aimé Césaire num estilo quase paródico de grandiloquência
arcaizante:
Setembro (22)
 
Agosto (33)
Quant à vous, cher ami, vous ne cessez, les yeux écarquillés, malgré l’ombre
tombée, de voir la Julho (22)
flame impérieuse de la fausse lance et, soudain, le coeur battant,
vous reconnaissez votre propre
Junho (33)
désir, crucifié, équestrement debout au haut de la
colline… Mais sachez-le, vous n’échapperez
plus, dès lors, à l’injonction tonante
de votre désir armé. Maio (11)

Abril (33)
J’en ai trop dit. Adieu. (Ibid.). [16]
Março (22)
 
Fevereiro (17)
“Desejo
armado” retoma de certa forma não só a injunção do Cahier, presente desde 1939, como
Janeiro (34)
ainda a de Suzanne, que a cita ipsis litteris: “voici le temps de se ceindre les reins comme un vaillant
Novembro (33)
homme.”
Outubro (22)
 
Setembro (22)
“Cores de infância,
cores de sangue” ou o mundo visto pelo olhar infantil
Agosto (22)
No volume V,
de abril de 1942, o texto, com pouco mais de três páginas, é um verdadeiro poema
em Julho (11)
prosa, dividido em quatro partes. Começa como conto
fantástico: “En ce temps-là, le ciel était
une
Maio (11)
merveilleuse teinture bleue, frémissante, où s’ecrasait la fleur d’encre des
cocotiers. Ma vie n’était
pas encore
quotidienne.” [17] Abril (44)

Março (11)
Nesse
tempo fora do tempo cronológico, destacam-se as tardes, momento em que começavam
as
Fevereiro (23)
viagens nas asas das borboletas, viagens de exploração da terra de diferentes
cores: terra vermelha,
terra amarela. Dezembro (13)

A
segunda viagem do menino é a descoberta de um feiticeiro, na realidade, um galo
colorido, ao Novembro (12)

mesmo tempo amado e detestado. O galo traça o limite do território


que lhe é permitido e do alto Outubro (12)
do qual o menino assiste, pela primeira vez, uma descida
fúnebre de um corpo morto. [18] Setembro (24)

Na
terceira secção do texto, aparece, nos seus sonhos noturnos, um cavalo terrível,
a seguir Agosto (79)
lentamente domesticado pelo olhar infantil: Julho (13)

  Junho (22)

C’est vers la même époque qu’apparut pour la première fois, dans mes rêves et
dans mes Maio (35)

rêveries, un cheval. C’est un cheval géant, à la croupe et la tête géantes.


Son apparition me fait Abril (12)
basculer dans l’angoisse. Il est rouge ou peut-être bleu.
Il se cabre, sur le ciel, démesuré… Et moi Março (12)
je reste devant lui, pantelant, un grain
de poussière à la main…
Fevereiro (24)
A la fin je recevais sans trembler ce terrible visiteur. Dezembro (12)

Je l’avais apprivoisé. [19] Novembro (57)

  Julho (56)

Junho (90)
A
quarta secção, a mais longa, descreve o encantamento infantil diante de vidros de
diferentes
cores. A alegria do menino torna-se “frenesia” ao descobrir cristais com múltiplas facetas que Maio (69)

brilham sobretudo
à noite diante da chama trêmula da lâmpada a petróleo. O final do poema em Abril (56)
prosa é: Março (23)

  Fevereiro (22)

Janeiro (67)

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Dans mon miroir aux alouettes le monde était pris au piège. Dans mon miroir
tout se précipitait, Dezembro (11)
se concentrait, gelait, crépitait, de chaud, de froid, de vie. Novembro (23)

Je ne marchais plus qu’avec un bouchon de cristal dans la main.. Dans le bouchon,


était le flacon. Outubro (44)
Dans le flacon, était le monde, tous les mondes. Setembro (56)

Et cela frissonnait dans ma main comme un oiseau. Agosto (22)

Couleurs d’enfance, couleurs de sang. [20] Junho (15)

Abril (14)
 
Março (68)
“O ditador”
ou o delírio do poder e a criação do novo homem
Novembro (317)
No volume VI-VII,
de fevereiro de 1943, em plena guerra e no seu momento talvez mais dramático e
ainda
incerto, Ménil, numa cidadezinha de uma ilha antilhana que sobrevive com dificuldade,
isolada pelo bloqueio naval anglo-americano, escreve um conto entre farsa rasgada
e fantasia
desabrida sobre o sonho e as aventuras do poder absoluto.

O
conto tem sete páginas e incorpora dois outros textos diferentes, impressos aliás
em itálico: a)
Floriano Martins
a citação de um cronista antigo (legendário) chamado Brocelte [21] sobre uma rainha também muita
antiga, chamada Etha (igualmente legendária, claro), que percebeu, uma noite, a
importância de
uma certa lua iluminando os chifres de elefante colocados no alto
de uma torre de marfim; e b) o
discurso do ditador que se põe em cena, com a ajuda
dos seus engenheiros-psicólogos (sic),
diante
de uma multidão, ou seja, a totalidade dos habitantes do seu país (imaginário).
O momento que se
vive então é o encerramento do “PLANO DECENAL PSICOLÓGICO”. E o
ditador fala a “vários
milhões de homens,
mulheres e bebês” (sic).

Um
exemplo claro de farsa rasgada:

Quand la lune vint docilement s’inscrire, pour le dictateur, dans l’encoche


d’ivoire, un silence
venu d’où, s’imposa à la foule. Les adultes cessèrent même
leur ruminante méditation; les enfants
eux-mêmes cessèrent de rugir et de se désarticuler.
[22]

E
o ditador fala durante horas e horas aos seus 20 milhões de ouvintes hipnotizados
“pela lua e
pelo elefante”. Todo o conto
deveria ser citado.

“Poema” ou o
retorno ao lirismo surrealista

No volume X
de Tropiques, de fevereiro de 1944, Ménil
volta a publicar um poema em prosa, de uma
única página, impresso integralmente
em itálico, exceto o título. A linguagem é ao mesmo tempo
vaga e melodiosa. A marca
de Nerval e do Rimbaud das Illuminations
me parece clara. É o poema
provavelmente mais surrealista de Ménil.

Escrito
quase todo no imperfeito do ponto de vista de um nós (nous) coletivo, narra
a trajetória
(com a expulsão não se sabe ao certo de quem nem de quantos, mas com
retorno no final) e a
felicidade utópica dos “filhos da derrisão”. Derrisão é o riso zombeteiro ou o comportamento,
dito
ou gesto, que denotam desprezo por outrem, geralmente de forma irônica ou sarcástica.
O trisckter
é um mestre e um filho da
derrisão.

Dividido
em três partes, a segunda de apenas 4 linhas, inserida entre duas partes maiores,
respectivamente de 9 e 11 linhas, o poema narra: a) na primeira parte, a saída forçada
e muito cedo
pela manhã, de um grupo indistinto de jovens da cidade (no singular);
b) na segunda, a reação dos
pássaros [23] descrita
em imagens aquáticas que terminam aparecendo nos sonhos, também
aquáticos, de mulheres
adormecidas; e c) na terceira, em um movimento inverso ao da primeira
parte, a procura
das cidades (agora no plural) que partem em busca dos jovens, antes expulsos.

O
texto é muito absconso jogando com sinestesias e semelhanças fônicas de palavras
de
significação muito diferente, [24] constrói-se
a partir de sensações e movimentos vagos de euforia
claramente ascendente. Sua tradução
seria um desafio para qualquer tradutor. Constitui um relato
alusivo e metafórico
de uma expulsão das cidades, e pelas cidades, dos “filhos” que usam a derrisão
e
o humor (as grandes armas de Lautréamont), e que, no final, vêm a reconhecer os
seus exilados e
partem ao encontro dos que partiram, levando prendas a oferecer-lhes.

Para
que se tenha uma ideia, citamos o início de cada uma das partes:

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Nous ramassions des injures pour en faire des diamants. Le temps avait la blancheur
du blé. Nous
étions forcés de sortir de la ville tôt. Le linge séchait déjá sur
les villages. Sous chaque porte il y
avait un baiser […]

Bientôt pourtant, dans le bol des collines, mijotèrent la rumeur et le geste


d’oiseaux rendus fous
par le jour. […]

Les villes venaient à nous. Chacune avait son nom, son amour
et ses dons. Chacune s’abritait
derrière une parole de bal, derrière un loup vivant.
Chacune
brûlait d’un feu secret, d’une secréte
ardeur. […] [25]

“A última insurreição”
ou um outro conto surrealista

Em maio de 1944,
quando, nas Antilhas francesas (Martinica, Guadalupe e Guiana), a guerra já
terminara
desde o ano anterior, Ménil publica um conto estranho sobre uma derradeira
insurreição,
que não aconteceu, aliás. É, portanto, uma narrativa imaginária que se desenrola,
numa cidade desconhecida (ou inexistente), banhada por uma ribeira (Rivière aux écailles) cujo
nome junta água
e escamas/placas de animais marinhos brilhando ao sol, tudo se passando fora do
tempo (uma revolta negra não acontecida) e dentro do tempo contemporâneo (com holofotes
varrendo o céu noturno em leques abertos ou flechas de luz). Por outras palavras:
uma narrativa
dentro e fora de um espaço, que vários indícios apontam como antilhano,
dentro e fora do tempo
histórico (o da II Guerra).

Narrado
na primeira pessoa por um homem que acabou de perder a mulher amada, de nome
Méloré,
cuja cabeça cortada é lançada no meio de negros que se divertem, junta o espetáculo
de
uma revolução sanguinária e cruel, encontro sigiloso de padres e mulatas numa
Cidadela de outro
tempo, com salas e túneis secretos, um espaço que parece sair
da imaginação do marquês de Sade
ou de um filme de Buñuel.

Trata-se
de uma insurreição também com muitas mulheres, ora torturadoras cruéis, ora vítimas
mortas, nas ruas: além da degola da amada, há três enforcadas num pátio e que sorriem,
um cavalo
esventrado pela turba feminina com “horríveis crueldades”, além das duas mulatas e a mulher
desconhecida
encontrada no próprio quarto de Méloré e que é, provavelmente, uma encarnação da
Morte. Ambos, narrador e desconhecida de tez de argila, fazem amor. Mas o narrador
não morre,
sendo reencaminhado, no final, para ir ver como está agora a cidade adormecida,
depois dos
terríveis acontecimentos da noite:

  Bientôt nous fûmes à l’air


libre. La rumeur de la ville nous reprit. Maintenant les maisons
éclairées montraient
des scènes de couleur. Maintenant, j’étais seul. Je me débarrassai de mon
fardeau
et j’entrai dans la maison où vivait Méloré – il n’y avait pas un jour. Il y avait
une femme
dans la chambre. C’était l’une des femmes de la citadelle. Son teint était
d’argile heureuse et il y
avait de la violette dans son teint. Elle me sourit mais
ses dents étaient cruelles. Elle était d’une
beauté terrible et l’on avait envie
qu’elle fût, une bonne fois, cruelle pour en finir. Elle me prit
pourtant affectueusement
par la main comme pour me faire les honneurs de toutes ces choses
qui appartenaient
à Méloré. [26]

A
narrativa acompanha assim a trajetória do narrador, completamente atordoado (hébété) pela
cidade, do meio-dia, com o sol
a pino, até o momento em que toda a gente dorme, passando pelo
crepúsculo. “Le soleil lançait vers nous la meute devorante
de sa lumière” (= o sol lançava na nossa
direção a matilha devoradora da sua
luz) é a primeira frase e a frase final reza: “va-t-en voir
comment dort la ville” (= vá ver como dorme a cidade).

 Nesse intervalo, do sol a pino à noite fechada,


transcorre a ação, num espaço sempre orgiástico,
ora aberto (praças, ruas), ora
secreto (pátio), ora fechado (Cidadela ou quarto de Méloré). O conto
leva a marca
de Lautréamont e de Sade, com seus sucessivos encontros funestos e cruéis, do qual
sai o narrador, não se sabe como, ainda com vida.

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O
diálogo que fecha o conto é melancólico. Note-se que a descrição física da mulher
morta e da
mulher-Morte aproxima-se: ambas têm a tez de argila clara com um toque
de violeta na pele. São,
talvez, a mesma, como no soneto “Artémis” de Nerval: “La Treizième revient… C’est encore la
première”
(= A décima terceira retorna… É ainda a primeira).

À guisa de conclusão
aberta

Pretendeu-se
aqui somente apresentar, forçosamente por alto, não só um escritor antilhano de
língua francesa praticamente desconhecido no Brasil e na América hispânica, como
dar uma ideia
da sua primeira produção, muito variada, dentro de uma revista-laboratório,
afiliada ao
Surrealismo, nos anos 40 do século passado.

René
Ménil, em Tropiques, é ao mesmo tempo
um teórico e um crítico (como Suzanne Césaire,
aliás) que trabalha e continuará
a trabalhar sobre identidade e ainda um poeta em prosa, herdeiro
de uma dupla tradição
(o romantismo alemão e a poesia da revolta francesa).

Seria
urgente analisá-lo no contexto dos escritores que pensam a problemática da descolonização
e da identidade americana com suas múltiplas camadas de significação e suas temporalidades
diferentes e arriscar traduzi-lo, uma vez que a sua obra nos ajudaria a compreender
as Américas.

 
NOTAS

1. Inventar, do ponto de vista etimológico, é achar/revelar o que está escondido


e não se vê.

2. Do tipo: com a pedra lançada ontem, mata o pássaro hoje. Este, aliás,
é um dos orikis de Exu.

3. Légitime défense, fundada em Paris, em 1932,


por jovens intelectuais antilhanos, com um só número, reúne
além de René Ménil,
Jules-Marcel Monnerot, Thélus e Marcel Léro, Auguste Thésée, Michel Plotin, Maurice-
Sabas
Quitman, Pierre e Simone Yoyotte: a revista é uma reflexão crítica, de cunho marxista,
sobre literatura e
identidade na Martinica. Três anos mais tarde, em 1935, sempre
em Paris, surge L’Etudiant noir, dirigido
por
Aimé Césaire e com a colaboração de Aristide Maugée, Léopold Sédar Senghor,
Paulette Nadal, Gilbert
Gratiant, Léon Damas. Este, seu secretário de redação, assim
define mais tarde a publicação que alcançou três
números: “L’Etudiant noir, jornal corporativo e de combate, tinha por objetivo o fim
do tribalismo, do sistema
de clãs em vigor no Quartier Latin! Deixava-se de ser
estudante martinicano [caso de Césaire],
guadalupeano,
guianense [caso de Damas, ele próprio], africano [caso de Senghor] e
malgache, para ser apenas um só e
mesmo estudante negro.” Havia, portanto, já
uma tradição, em Paris, de estudantes negros, de diferentes
origens, reunirem-se
em torno de uma revista. Tropiques herda
dessa tradição coletiva. Enfim, além de laços
de amizade, criam-se igualmente, no
grupo, novos laços familiares: Aristide Maugée, por exemplo, é cunhado
de Césaire,
tendo casado com uma das suas irmãs.

4. Ver Tropiques. Jean-Michel Place,


1978, vol. I. Texto assinado e datado de outubro de 1973.

5. A obra de Ménil não


tem ainda nenhuma tradução para o português. Os seus trechos de crítica, reproduzidos
no vernáculo, para não alongar demasiado esta apresentação, são traduções da autora.
Entretanto, os seus
trechos de prosa poética serão apresentados, mais adiante, em
dupla versão, no original e em tradução em pé
de página. Há uma qualidade especificamente
literária a ser apreciada pelo leitor.

6. Note-se que, em nenhum momento,


mesmo em 1978, na sua reavaliação crítica, Ménil fala de literatura
brasileira.
Entre todos os poetas e escritores de Tropiques, o único em que o Brasil aparece,
ao mesmo tempo,
como país imaginário e real, é Aimé Césaire.

7. Situada na parte
norte-atlântica da Martinica, Gros-Morne é uma das comunas da ilha e foi colonizada
tardiamente no século XVIII. Hoje vive essencialmente da agricultura do ananás e
da mandioca. A sua altitude
permite uma visão da costa atlântica. No seu território
existe ainda a Habitação Saint-Etienne, fabricante
tradicional de rum.

8. Aimé Césaire,
nascido em 1913, tem então 28 anos incompletos e Suzanne, nascida em agosto de 1915,
ainda
não fez 26 anos.

9. A mesma constatação
desolada reaparece em vários outros colaboradores da revista: Césaire, Suzanne
Césaire,
René Hibran.

10. Na verdade, o jogo


da comparação surpreendente e inédita “belo
como…”, retoma uma passagem de
Lautréamont (Chants de Maldoror, Canto VI). Este passeio à floresta tropical, “higrófila”
segundo os guias de
turismo de hoje, e claramente iniciático para os que chegam
da França em 1941, reaparece igualmente em
textos de Suzanne Césaire, Breton (Martinique, charmeuse de serpents) e Masson,
repercutindo ainda na
grande tela de Wifredo Lam (La Jungle) em que o pintor cubano, vivendo na Europa (Espanha e França)

muitos anos, reencontra um espaço ancestral. Está claro ainda que, para os viajantes,
o próprio nome Absalão
evoca o filho rebelde do rei David, retomado aliás pelo romance
de Faulkner, publicado em 1936, Absalom,
Absalom!
Mas não é o caso de Breton que sempre se recusou não só falar como aprender
outra língua, além do
francês.
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24/01/2022 12:41 Agulha Revista de Cultura: LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | René Ménil, o poeta trickster de Tropiques ou Teoria e crítica, h…
11. Nas Antilhas, diz-se
chabine: é uma mulata clara, de traços
finos, de pele cinza claro, muitas vezes de olhos
verdes. A “chabine” é sempre Suzanne Césaire, tanto
em Breton como em Ménil.

12. Uma das estratégias


do grupo é: ao apresentar o sumário para um novo número ao censor oficial, escolhe-se
um título bastante vago que, depois, no interior da revista, ganha um subtítulo
mais explícito.

13. Ver Tropiques, nº V: “Vues sur


Mallarmé”, de Césaire.

14. O tema da “cabeça


cortada” ou da “degola” é importante na obra de Césaire, no seu caso, cabeças sempre
masculinas, lembrança de Boukman (“hougan”
do vodu que liderou o primeiro massacre na guerra de
Independência no Haiti) e de
Zumbi (no Brasil). Ver a propósito a nossa análise do poema “Batouque”.

15. A grande mesquita


de Djenné no Mali, construída pela primeira vez no século XIII, é reconstruída,
segundo as
técnicas tradicionais em argila, no início do século XX (1906-1909).
O leitor tem interesse em ver, na Internet, a
monumentalidade que a construção tradicional
em terra batida pode alcançar.

16. Quanto a vós, meu


querido amigo, não cessais, de olhos bem abertos, apesar da noite que cai, de ver
o brilho
imperioso da lança fingida, e de repente, o coração aos saltos, reconheceis
o vosso próprio desejo, crucificado,
equestremente de pé no alto da colina… Mas
sabei-o, não escapareis, daqui por diante, à injunção trovejante do
vosso desejo
armado. / Já disse demais. Adeus.

17. Naquele tempo, o


céu era uma maravilhosa tapeçaria azul, fremente, onde se esmagava a flor de tinta
dos
coqueiros. Minha vida não era ainda quotidiana.

18. O tema da descida


fúnebre de um morto do alto de um morro (morne)
até á igreja na várzea é um tema
frequente em poesia e na narrativa antilhanas.
Chama-se “descente de corps” (= descida
de corpo). O tema
reaparece, em particular, no romance de Edouard Glissant e seus
seguidores. Ver sobretudo Malemort.

19. Foi na mesma época


que apareceu pela primeira vez, nos meus sonhos e nos meus devaneios, um cavalo.
Um
cavalo gigante, com a garupa e a cabeça enormes. Sua aparição me faz cair na
angústia. Ele é vermelho ou
talvez azul. Ele se empina, contra o céu, desmedido…
E eu, diante dele, tremendo, um pouco de poeira na
mão… / No final eu recebia sem
tremer esse terrível visitante / Eu o tinha domesticado.

20. Na minha miragem


o mundo caía na armadilha. No meu espelho tudo se precipitava, se concentrava,
congelava,
queimava, quente, frio, vivo. / Eu só andava com uma rolha de cristal na mão. Na
rolha estava o
frasco. No frasco estava o mundo, todos os mundos. / E isso tremia
na minha mão como um passarinho. /
Cores de infância, cores de sangue.

21. No nome, está implícito


uma raiz “celta” e a palavra se assemelha vagamente a Brocéliande, a famosa floresta
dos poemas medievais na chamada Matière de
Bretagne. O texto, de certa forma, tem características
borgeanas.

22. Quando a lua veio


docemente inscrever-se, para o ditador, no entalhe de marfim, um silêncio, vindo
não se
sabe de onde, impôs-se à multidão. Os adultos cessaram a sua ruminante meditação;
até as crianças cessaram
de rugir e de se desarticular.

23. Haveria uma intratextualidade


a explorar em Tropiques: assim como a
Alouette/Andorinha que fuma no
fundo do pântano, no poema de Césaire (ver texto,
nesta mesma série da Agulha Revista de Cultura)
traz a
mudança, aqui são os pássaros que “cozinharam lentamente” (mijotèrent) que provocam a revolução, no
sentido preciso da palavra, nas cidades.

24. Por exemplo, mares (= charcos) e mariées (= jovens casadas); un


loup vivant (ao mesmo tempo máscara negra
de carnaval cobrindo apenas os olhos
e lobo, animal) etc.

25. Colhíamos, no chão,


injúrias para com elas fazer diamantes. O tempo tinha a brancura do trigo. Estávamos
obrigados a sair da cidade muito cedo. A roupa lavada secava já nas aldeias. Debaixo
de cada porta havia um
beijo […] Logo, no entanto, na tigela das colinas, cozinharam
lentamente o rumor e o gesto de pássaros
enlouquecidos pelo dia […] As cidades vinham
até nós. Cada uma tinha seu nome, seu amor e seus dons. Cada
uma abrigava-se atrás
de uma palavra de baile, atrás de uma máscara negra viva. Cada uma queimava de um
fogo secreto, de um secreto ardor […].

26. Logo, chegamos ao


ar livre. O rumor da cidade nos retomou. Agora as casas iluminadas mostravam cenas
cheias de cor. Agora, eu estava só. Desembaracei-me do meu fardo e entrei na casa
em que vivia Méloré –
apenas um dia antes. Havia uma mulher no quarto. Era uma das
mulheres da cidadela. Sua tez era cor de argila
feliz e havia um toque de violeta
na sua pele. Ela sorriu para mim, mas seus dentes eram cruéis. Era de uma
beleza
terrível e tinha-se vontade de, uma vez por todas, que ela fosse cruel para acabar
com tudo. Ela me
tomou entretanto pela mão afetuosamente como para me fazer as honras
de todas as coisas que pertenciam a
Méloré.

LILIAN PESTRE
DE ALMEIDA | Romanista de formação,
ensaísta e tradutora, publica em francês e/ou português
sobre literaturas francófonas,
literatura comparada, iconografia e iconologia. O nº 115 da Agulha Revista de
Cultura, de julho de 2018, publicou uma edição especial sobre o seu trabalho,
sob o titulo “Entre o Mediterrâneo
e as Caraíbas”. Últimas publicações: Vampire
liminaire: de Lautréamont aux Césaire. Königshausen & Neumann,
2019, e os
posfácios às traduções de Suzanne Césaire: Escritos de Dissidência (Papéis
selvagens, 2021) e Sony
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/01/lilian-pestre-de-almeida-rene-menil-o.html 12/14
24/01/2022 12:41 Agulha Revista de Cultura: LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | René Ménil, o poeta trickster de Tropiques ou Teoria e crítica, h…
Labou Tansi. O ato de respirar (Cultura e Barbárie,
2021).

JAN DOČEKAL
| Historiador de arte e artista, nascido em Třebíč, República
Tcheca, em 1943. Formado como metalúrgico, estudou história da arte e
estética, foi operário, tecnólogo, publicitário, diretor de vendas em uma gráfica
e professor de educação artística. Preparou
mais de cem exposições de arte e
foi comissário do Simpósio de Esculturas Mladá
tvorba Žďár nad Sázavou
(2000). Colaborou com a Galeria Moravian de Stanislava
Macháčková por 25
anos. É membro do grupo
surrealista Stir up e já realizou trinta
exposições
originais. Livros e catálogos publicados: Jaroslav Vyskočil (1996), Horácka Fine
Arts Club (1999), Horácka Fine Arts Club (2000), About Graphics (2001), Max
Švabinský Graphics (2001), Everyday Things / Beyond the Art of Arts
(2004),
Reviews Texts Interviews (2005),
Interviews 2005-2013 (2014), Josef Kremláček (monografia, 2020).
É coautor do
Dicionário de Belas Artistas
Tchecas e Eslovacas (1998) e editor do livro Vlastimil Toman, Life Journey (2015). 

Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 02

Número 201 | janeiro de 2022

Artista convidado: Jan Dočekal (República Tcheca, 1943)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

ARC Edições © 2022 

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