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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

PATRIMÔNIO CULTURAL NO BRASIL – 2º SEMESTRE DE 2021


VÍTOR TOSATO BOLDRINI

1. ORIGENS DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NO BRASIL

Sérgio Miceli nos traz a preservação do patrimônio como “a política cultural


mais bem-sucedida na área pública deste país”. O que por um lado pode ser motivo
de luto pelas outras políticas no âmbito artístico e educacional no país, também nos
leva à consideração sobre como foi possível, contra as correntes contrárias, que essa
área do poder estatal superou a tristeza tropical que define tantas instituições
construídas por aqui.
Assim, nos chama atenção a figura de Mário de Andrade, escritor, folclorista e
literato, que constitui, como define bem Silvana Rubino, uma espécie de “mito de
origem” do IPHAN, apesar de seu texto de 1936, encomendado pelo todo-poderoso
ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema, não ter muito em comum com a
lei nº 378, muito mais uma adaptação da legislação francesa.
Esses mitos têm um pouco de falsidade, mas também carregam verdades
potentes, se não pelo próprio enquadramento da memória que produzem, que
potencializam diferentes caminhos a serem tomados pelos agentes sociais. O próprio
Mário de Andrade teve atitudes bastante conservadoras relativo ao SPHAN, dando
preferências ao patrimônio arquitetônico colonial, ou riscando grande parte da cultura
do século XIX e início do século XX como desprezível. Ao mesmo tempo, o aforismo
de “temos que preservar tudo”, serviu de manifesto para que a ideia de patrimônio,
numa junção de ambiguidade jurídica e subjetividade literária, evoluísse de maneira a
abarcar definições em constante evolução, como debates de democratização e cultura
imaterial nos anos 80.
Por isso, eventos como a comemoração dos 70 anos da morte de Mario de
Andrade, no Sítio Santo Antônio, em São Roque, complexo que foi por ele adquirido
e doado ao patrimônio histórico e artístico nacional, não são apenas assombrações
de fantasmas do passado. São a confirmação de um projeto político em contínua
revolução, que constituiu e reconstitui, lembrando e esquecendo, a própria história de
sua memória com a finalidade de avançar em suas capacidades burocráticas.
2. ARGUMENTOS

Essa capacidade, como toda relação de poder, é sustentada por um discurso


ideológico. Miceli, dentro da revista do SPHAN, naturalmente as constrói em seu
discurso intrainstitucional.
Começamos pelo mito já citado. O fenômeno Mário de Andrade é definido como
“a experiência social cosmopolita de um autodidata de um gênio, mulato, sem
profissão definida entre os homens de sua classe de origem, às voltas com uma
sociedade complexa, diversificada, em ritmo alucinante de transformação, marcada
pelo trinômio imigração-urbanização-industrialização, contrastava com o projeto de
vida acalentado pelos herdeiros das elites mineiras, cindidos entres as lides
burocráticas e o renome literário.” Quantas palavras! Em um povo de construção
católica, criar um ícone é uma ótima dominação carismática. O texto crítico que segue,
sobre a maneira classista e higienista de como a preservação foi executada, não seria
capaz de manchar a melancólica nobreza do momento natal do SPHAN.
Trocando Nossa Senhora Aparecida por Joana d'Arc, vemos o próximo
argumento: a comparação da experiência da também iconólatra França, posto em
contraste com os assépticos Estados Unidos, ambos referências de políticas públicas
por produção intelectual e capacidade executiva. Apenas mencionar estes países
desenvolvidos já desenterram uma dominação tradicional por pura gravidade dessas
nações.
Na França, se foi colocado em prática um enorme sistema burocrático na área
cultural, “beirando a 5% do orçamento nacional”. Talvez como consequência natural
do Leviatã que foi criado, essa política penetrou toda a sociedade, indo muito além da
preservação material, se tornando um processo civilizatório à parte. Cada detalhe
desse processo é perfeitamente invejável, nos despertando a fantasia de paridade
cultural com la grande nation, justamente o ponto. Apenas o SPHAN, como instituição
análoga no Brasil, seria capaz de reproduzir esse efeito.
Já nos EUA, como civilização avessa ao dirigismo estatal e adepta da ética
capitalista e filantrópica protestante, tornou seu patrimônio uma grande parceira
pública-privada. A conservação, especialmente a arquitetônica, se tornou parte das
políticas educacionais, arquivísticas e urbanísticas dos diferentes níveis da federação,
enquanto a preservação, em mãos privadas, se tornou missão de sua burguesia
interessada no meio cultural. Ironicamente, essa comercialização nos EUA, seguindo
sua tradição pop, levou a uma deselitização do patrimônio, que se aproximou do
público consumidor. Se a grande exuberância do dinheiro público francês não parece
factível em deprimentes terras latino-americanas, talvez o pragmatismo
estadunidense seja atraente como alternativa a essa preocupação.
Finalmente, Miceli consegue nos persuadir localizando o SPHAN no espírito de
seu tempo, da retomada da democracia e integração do povo nas instituições antes
despoticamente dominadas por uma elite decrépita e autoritária.
“Os dilemas com que se defronta qualquer política de patrimônio
atualmente, inclusive a brasileira, se referem quase todos à questão da
democratização. Bem entendido, trata-se de democratizar o acervo, os
métodos de exposição do acervo, os meios de acesso ao acervo, os espaços
de debate sobre o acervo; trata-se igualmente de assegurar a
representatividade dos setores da comunidade e dos movimentos sociais
atingidos por decisões preservacionistas.”

3. “DEVEMOS TOMBAR O SPHAN?”

No decorrer do ensaio, chegamos a esse dilema autofágico: o SPHAN – ou,


atualizando, o IPHAN – deveria tombar a si mesmo?
A proposição não deve ser levada à sério. Mas abre uma boa discussão, visto
que a resposta óbvia – um enfático “não” – é mais difícil de responder que se pensaria
a primeiro momento.
Primeiramente, porque o IPHAN e inegavelmente parte de uma “cultura
imaterial” brasileira, talvez muito mais relevante e monumental que muitos dos
fenômenos já considerados como necessários de preservação. E o argumento
contrário que logicamente pensamos, que esse tipo de atitude engessaria uma
instituição que cresceu, floresceu e deu frutos justamente pela versatilidade
proporcionada por sua missão e legislação, essa ideia não poderia ser utilizada
também para falar de tantas outras manifestações culturais Brasil afora?
Chegamos, então, à crítica à própria atuação do IPHAN: se entendemos com
claridade que o IPHAN precisa ser preservado, mas não pode ser tombado, então
porque esse “tombocentrismo”, o tombamento como maior e melhor ferramenta de
preservação e conservação, deixando de lado outras medidas?
Se a preservação do IPHAN precisa ser preservada pela divulgação de sua
importância, a cooperação com instituições públicas e privadas e a extensão social de
suas atividades para abarcar a população em geral, o mesmo pode ser replicado com
o patrimônio histórico e artístico.

4. REFERÊNCIAS

MICELI, Sérgio. SPHAN: refrigério da cultura oficial. Revista do Patrimônio


Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 22, 1987, p. 44-48. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br//uploads/publicacao/RevPat22_m.pdf. Acesso em: 16 maio
2021.

MICELI, Sérgio. Ocupação Mário de Andrade (2013) - Parte 4/4. 2013. 1 vídeo (3min
57”). Publicado pelo canal Itaú Cultural. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=U1Dc0FioGKE. Acesso em: 15 jul. 2021.

RUBINO, Silvana. Ocupação Mário de Andrade (2013) - Parte 4/5. 2013. 1 vídeo (6min
50”). Publicado pelo canal Itaú Cultural. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=E3sAaYXFO_E. Acesso em: 15 jul. 2021.

RUBINO, Silvana. Ocupação Mário de Andrade (2013) - Parte 5/5. 2013. 1 vídeo (2min
09”). Publicado pelo canal Itaú Cultural. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=VS-MlqmmkhA. Acesso em: 15 jul. 2021.

TV BRASIL. Caminhos da reportagem. Nosso Patrimônio, nossa identidade. 2017.


1 vídeo (56min 40''). Publicado pelo canal tvbrasil. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=ZG9J3nGKjKU. Acesso em: 17 jul. 2021.

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