Educação Musical, Autismo e Neurociências
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A obra apresenta um profundo embasamento teórico sobre temas relacionados ao autismo pelo ponto de vista clínico, neurológico, pedagógico e musical e pode ser uma fonte de informações tanto para educadores musicais que tenham em suas aulas de Música estudantes autistas, quanto para profissionais da saúde que atuem em reabilitação e queiram utilizar a música como aliada. Também poderá contribuir na formação de educadores, em geral, que encaram a música como uma fonte de inclusão social, como também ser uma fonte de informação para pais de pessoas autistas no que diz respeito ao direcionamento musical a ser dado para seus filhos, quando esses demonstrarem gostar muito de música ou tiverem habilidades musicais evidentes.
O livro é dividido em 3 partes. Na primeira delas, há informações clínicas sobre autismo. Na segunda, há textos que expõem o diálogo da música com as neurociências frente a pessoas autistas. Na última parte, apresenta uma pesquisa de doutorado, de forma sumarizada, realizada pela autora entre 2012 e 2017 no Departamento de Neurologia/Neurociências da Universidade Federal de São Paulo, de mesma temática deste livro.
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Educação Musical, Autismo e Neurociências - Viviane dos Santos Louro
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO PSICOPEDAGOGIA
Dedico este livro às pessoas que me ensinaram a acreditar que é possível e a nunca desistir, mesmo diante das adversidades da vida, principalmente, à minha avó, Celina, minha mãe, Sueli, e meus irmãos Fabiana e Daniel.
Do coração veio, ao coração se dirige.
(Ludwig van Beethoven)
APRESENTAÇÃO
Atuo na área de educação musical inclusiva desde 2000. No decorrer de todos esses anos, debrucei-me sobre os estudos acerca das patologias e sobre o ensino de música inclusivo e, com isso, fui aprimorando minha prática pedagógica. No ano de 2004, fiz um curso sobre psicomotricidade e deficiência intelectual que me abriu os horizontes para algo até então por mim ignorado: a importância de se compreender o cérebro em relação à coordenação dos movimentos. Com isso, fui, singelamente, aproximando-me da literatura de psicomotricidade e aprofundando-me no assunto, o que, com o tempo, condicionou-me a querer entender melhor o processo neurológico do aprendizado e comportamento como um todo. Assim, aventurei-me a ler incansavelmente sobre neurociências, bem como a participar de congressos e pequenos cursos nessa área.
Após 8 anos estudando solitariamente sobre neurociências e psicomotricidade e colocando o conhecimento adquirido em prática nas minhas aulas de Música, tanto para pessoas com deficiências quanto para alunos sem deficiências, resolvi que era hora de me arriscar e tentar pesquisar de forma científica o que percebia empiricamente na minha prática pedagógica. Por isso, resolvi buscar um doutorado em neurociências a fim de obter subsídio para minha pesquisa. Foi quando me deparei com a Unifesp e com a professora Maria José Fernandes, bióloga e neurocientista, que aceitou o desafio de orientar um doutorado em Música dentro de um departamento de Medicina. O doutorado durou de 2012 a 2017 e, nesse período, pude estudar com professores renomados na área de neurologia e neurociências, de forma teórica e prática (no laboratório de neuroanatomia da instituição).
Não vejo mais minha vida profissional e pessoal desvinculada da neurociência. Acredito que compreender o cérebro, dentro do que já foi até agora desvendado pelos cientistas, é algo obrigatório para todos que lidam com seres humanos, seja na área educacional, social ou de saúde.
A neurociência mudou minha maneira de enxergar o mundo e o fazer musical, como também, trouxe-me mais empatia na hora de me relacionar, ensinar e avaliar meus alunos, uma vez que tal conhecimento fez-me compreender melhor as pessoas e, com isso, diminuir julgamentos levianos a respeito dos comportamentos, das escolhas e do aprendizado do outro.
Este livro é uma mistura de conteúdos advindos de meus estudos pessoais e da prática pedagógica, além dos resultados da pesquisa de doutorado que foi realizada com crianças e adolescentes autistas. A metodologia e o resultado da minha pesquisa são apresentados na última parte desta obra, de forma mais resumida e objetiva ao leitor. As duas primeiras partes do livro oferecem informações sobre o autismo e sobre a sua relação com a música e a neurociência. Tais textos foram parte retirados de minha tese de doutorado e parte escritos especificamente para este livro. Mas tudo o que aqui está exposto é fruto de anos de pesquisas, com um profundo embasamento teórico e procedimentos metodológicos rígidos.
Como a professora Maria José foi minha grande aliada em toda a pesquisa e tornou-se uma amiga e companheira de profissão, convidei-a para escrever o prefácio do livro, pois ninguém melhor que ela para apresentar esta obra, uma vez que a pesquisa foi praticamente executada a quatro mãos e, sem sua colaboração, sua paciência e seu incentivo, nada teria sido possível.
Aproveito para agradecer a todos que, de forma direta ou indireta, sempre contribuíram em minha formação humana e profissional: família, professores, alunos, amigos e pesquisadores (que nunca conheci e nem conhecerei, mas que tive acesso a suas obras e pesquisas, que me trouxeram tanto conhecimento).
Apesar de minha vida profissional ser toda focada para o ensino de música, este livro é direcionado a toda e qualquer pessoa que se interesse pelos assuntos aqui tratados: autismo, neurociências, música, aprendizado. O que aqui é abordado pode contribuir sensivelmente para a formação docente musical, mas igualmente para pessoas da área de musicoterapia, psicomotricidade, terapia ocupacional, fonoaudiologia, educação física, psicologia e pedagogia. Também pode ser um interessante informativo para familiares de pessoas autistas, pois visa a esclarecer muitas questões sobre a relação da música com o autismo e como a neurociências pode, de alguma forma, estar associada ao fazer musical inclusivo.
Espero que o livro seja de grande utilidade para o leitor e que possa contribuir em instigar a busca de novos conhecimentos e em promover a ampliação das reflexões sobre música, neurociências, autismo, dentre outros assuntos tratados e que, ao final, tudo isso sirva para um único objetivo: compreender melhor a si e ao outro.
Viviane Louro
PREFÁCIO
A publicação deste livro, vejo como um presente para a sociedade brasileira: aos amantes de leituras na Língua Portuguesa interessados em conhecer o papel da música na transformação do indivíduo. A autora transcreve um documento acadêmico, com linguagem técnica e científica, usado em sua defesa de tese para obtenção de título de Doutora em Ciência, pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp), em um texto claro e com linguagem simples, podendo ser compreendido não só por pesquisadores da esfera acadêmica, mas também por todos os interessados no assunto. Com isso, o trabalho cumpre também o objetivo de devolver para a sociedade o investimento público em pesquisa.
O ser humano é constituído por um conjunto de propriedades, sendo elas motora, emocional, cognitiva e social, e, com isso, muitos fatores podem interferir de forma positiva ou negativa sobre ele. Com uma longa atuação como professora de música para pessoas com deficiências diversas, Viviane pôde constatar os benefícios positivos que a música associada à psicomotricidade é capaz de exercer sobre os seres humanos.
Com sua personalidade inquieta e focada, Viviane não tardou em trazer esse desafio para uma abordagem científica. Apoiou-se nas bases da educação musical de Pacheco, Wallon, Asha e Dalcroze, e também da psicomotricidade de Fonseca para elaborar um protocolo de educação musical que aplicou à crianças e adolescentes com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Com o apoio do Cria – Centro de Referência da Infância e Adolescência da Unifesp, e da Apae - Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de São Paulo, Viviane reuniu grupos de crianças e adolescentes, e durante 4 meses trabalhou com muito amor e paciência, colhendo muitos frutos com a aplicação de seu protocolo. Testes de avaliação da cognição, linguagem e escala auditiva de sequências sonoras, validados cientificamente, foram aplicados antes e após as atividades das aulas, e mostraram que o aprendizado de música é capaz de promover melhora cognitiva, verbal e social nessas pessoas.
Conduzir esta pesquisa junto à Viviane foi desafiador e, ao mesmo tempo, muito enriquecedor. Tinha algo além do objetivo acadêmico no qual deveríamos responder às hipóteses formuladas com base em observações trazidas por Viviane de sua prática de vida. Havia o simples prazer de transformar o ser humano estimulando sua própria capacidade, sua neuroplasticidade. As crianças evoluíam brincando e sendo felizes.
Este livro deixará claro ao leitor a importância do ensino musical no estímulo de capacidades humanas, que por vezes estão apenas adormecidas. Viviane é musicista e possui um vasto currículo na área do ensino musical. Sua experiência logo será percebida pelos leitores desta obra.
Prof.ª Dr.ª Maria Jose da Silva Fernandes.
Bióloga, Mestre em Ciências Biológicas (Biologia Molecular) pela Unifesp; Doutora em Neurociência pela Unifesp e Pós-doutora pelo Inserm Unité 398, Neurobiologie et Neuropharmacologie des Epilepsies Généralisées. Professora associada da Disciplina de Neurologia Experimental, Depto. Neurologia e Neurocirurgia da Universidade Federal de São Paulo e Vice-Presidente da FapUnifesp.
Sumário
PARTE 1
O TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA 15
I.I BREVE HISTÓRICO E DEFINIÇÃO DE AUTISMO PELO DSM-5 15
I.II AUTISMO: ACHADOS NEUROFISIOLÓGICOS 20
I.III ALGUMAS PARTICULARIDADES NO AUTISMO 27
Processamento auditivo 27
Teoria da Mente 28
Linguagem 29
Desenvolvimento psicomotor 29
Integração sensorial 30
Interação social e Estereotipias 31
I.IV PRINCIPAIS TRATAMENTOS 32
PARTE 2
MÚSICA E AUTISMO 35
II.I A MÚSICA E O CÉREBRO DO AUTISTA 35
II.II TEORIA DA MENTE, AUTISMO E MÚSICA 41
II.III MÚSICA E AUTISMO: MUSICOTERAPIA OU
EDUCAÇÃO MUSICAL? 50
II.IV LEVANTAMENTO DE PESQUISAS NACIONAIS SOBRE EDUCAÇÃO MUSICAL E AUTISMO 54
II.V O JOGO, O LÚDICO MUSICAL E O AUTISMO 67
II.VI A CONTRIBUIÇÃO DA NEUROCIÊNCIA NA AULA DE MÚSICA
PARA PESSOAS AUTISTAS 74
PARTE 3
PSICOMOTRICIDADE, MÚSICA E AUTISMO: UMA PESQUISA DE DOUTORADO BASEADA EM NEUROCIÊNCIAS 79
III.I O MOTIVO E PROCESSO DA PESQUISA 79
III.II RESUMO 80
III.III PROBLEMA DE PESQUISA, OBJETIVOS E JUSTIFICATIVA 81
III.IV EMBASAMENTO TEÓRICO DA PESQUISA: PSICOMOTRICIDADE
E EDUCAÇÃO MUSICAL 82
O conteúdo musical das aulas 82
A concepção pedagógica de Dalcroze 85
A Psicomotricidade 86
III.V METODOLOGIA 92
Desenho da pesquisa e perfil do público pesquisado 92
Sobre as aulas de Música 96
Os testes realizados 116
Avaliação Auditiva de Sequências Sonoro-Musicais (AASSM) 116
Escala de Inteligência Wechsler para Crianças (WISC III) 119
Teste de Competência de Linguagem (TLC) 121
Questionário sobre a relação da música com a qualidade de vida dos alunos 124
QUESTIONÁRIO INICIAL 124
QUESTIONÁRIO FINAL 127
III.VI RESULTADOS 128
Aprendizado de Música: teste AASSM 128
Avaliação do QI estimado: teste WISC-III 130
Linguagem: teste TLC 139
Questionário aplicado aos pais 144
III.VII DISCUSSÃO 145
REFERÊNCIAS 175
ÍNDICE REMISSIVO 197
PARTE 1
O TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA
I.I BREVE HISTÓRICO E DEFINIÇÃO DE AUTISMO PELO DSM-5
O autismo¹, nomeado pelo DSM-5 de Transtorno do Espectro Autista (TEA), é ainda uma das mais misteriosas patologias devido a sua complexidade e variabilidade em relação aos aspectos cognitivos, comportamentais, sensoriais, psicomotores e de linguagem.
O termo autismo vem do grego autos
e significa de si mesmo
. Em 1911, Bleuler foi o primeiro a difundir o termo autismo, definindo-o como perda de contato com a realidade causada pela impossibilidade ou pela grande dificuldade na comunicação interpessoal. Referiu-se, primeiro, ao autismo como transtorno básico da esquizofrenia, pois parecia que a pessoa não tinha noção do seu eu. Nessa época, o autismo era descrito não como uma patologia isolada, mas como parte de transtornos mentais geralmente associados à histeria e à esquizofrenia (KORTMANN, 2013).
Em 1943, o psiquiatra Leo Kanner descreveu 11 casos clínicos, que chamou de distúrbios autísticos. O autor enfatizou a insistência em monotonia e rotinas, respostas incomuns ao ambiente, maneirismos motores, resistência à mudança, dificuldade em manter contato afetivo interpessoal, rebaixamento cognitivo e a incapacidade de relacionamento, como podemos observar em suas palavras:
O transtorno principal, patognomônico², é a incapacidade que tem estas crianças, desde o começo de suas vidas, para se relacionar com as pessoas e situações [...]. Assim, teremos que supor que estas crianças tenham vindo ao mundo com uma incapacidade inata para formar os laços normais, de ordem biológica, de contato afetivo com as pessoas, do mesmo modo que outras crianças vêm ao mundo com outras deficiências inatas, físicas ou intelectuais (KANNER, 1943, p. 250).
Um ano depois de Kanner, Hans Asperger descreveu casos de crianças semelhantes ao autismo, mas que não possuíam déficits cognitivos, com inteligência dentro dos padrões de normalidade, o que ele nomeou de psicopatia autística. Asperger achava que elas poderiam responder bem ao tratamento, pois não tinham deficiência cognitiva. O interessante é que ambos escreveram sobre patologias semelhantes, na mesma época, em países diferentes e sem terem conhecimento um do outro. Mais tarde, a psicopatia autística passou a ser chamada de síndrome de Asperger³ (CAMARGO, 2005).
Em 1972, Kanner redigiu a terceira edição de seu Manual de Psiquiatria Infantil e afirmou ter visto na clínica mais de 150 crianças autistas, o que nos mostra que a definição dada por ele começou a situar melhor a prevalência do diagnóstico. Antes das conceituações de Kanner, essas crianças eram tidas como pessoas com deficiência intelectual severa, esquizofrenia ou deficiência auditiva, uma vez que muitas não respondiam aos chamados dos pais, então, acreditava-se que elas eram surdas. Mas Kanner separou bem os diagnósticos ao observar que o cerne da patologia estava na dificuldade em estabelecer conexões afetivas com as pessoas e situações, desde a mais tenra idade (KORTMANN, 2013; KANNER, 1972).
Kanner (1972) também percebeu que poucas dessas crianças falavam e que a linguagem não era usada como meio de comunicação, podendo algumas delas falar e guardar nomes complexos, mas a partir de uma memória mecânica, ou seja, uma fala sem função social. Também descreveu a dificuldade que essas crianças tinham em compreender as coisas de forma simbólica, enfatizando a compreensão do sentido literal das palavras, além disso, apontou as dificuldades que elas tinham no uso do pronome, pois muitas falavam de si mesmas em terceira pessoa, como estavam acostumadas a ouvir.
Conforme Tibiryçá (2014), Kanner associou a dificuldade de relacionamento dessas crianças com as profissões dos pais, que, nos casos em que ele observou, nas primeiras descrições, eram profissões não ligadas ao trato com o ser humano, ou seja, que não exigiam o manejo com o público ou relações interpessoais muito desenvolvidas. Isso fez com que ele achasse que os pais eram frios com os filhos, isso gerou, posteriormente, teorias que ligavam o autismo intimamente à relação afetiva com os pais. Mas, a partir de década de 60, as pesquisas começaram a apontar que a causa do autismo seria multifatorial e neurobiológica, o que fez cair a teoria da frieza dos pais
.
Em 1976, a doutora Lorna Wing resumiu as características desse quadro diagnóstico no comprometimento de três áreas específicas: 1. imaginação; 2. socialização e 3. comunicação. Também foi ela quem deu os primeiros passos para o conceito de um espectro autista, ou seja, uma constelação variável de características dentro dessas 3 áreas mapeadas. Além disso, enfatizou os movimentos repetitivos, chamados de estereotipia (quando são somente motoras) e de ecolalia (quando são vocais). Toda sua teoria ficou conhecida como tríade de Wing. Em 1978, Rutter, propôs uma definição do autismo baseado em 4 critérios: 1. atraso e desvio sociais não só em função de atraso mental; 2. problemas de comunicação, também não só em função de retardo mental; 3. comportamentos incomuns como estereotipias e maneirismos; 4. início antes dos 30 meses de idade (PINHEIRO; CAMARGO JÚNIOR, 2005; LEAL, 1996; TIBIRYÇÁ, 2014).
Essas características descritas por Bleuler, Kanner, Wing e Rutter delinearam os alicerces para as definições atuais dessa patologia. Desde que foi relatado pela primeira vez, em 1906, os critérios diagnósticos têm se modificado nas diferentes edições dos manuais de classificação dos transtornos mentais, mas a essência dos sintomas são os mesmos descritos pelos autores⁴.
O autismo