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Pslcomotrlcldndu

da melodia cinótica ao corpo político


SUMÁRIO
Direitos reservados para a Língua Portuguesa: Eline Maria Fernandes Rennó
Email para contato: elinezatd@uol.com.br

PREFÁCIO....................................... .........................................................................
Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, sejam quais forem os meios,
sem a permissão, por escrito, da autora. INTRODUÇÃO............. ........................................................................................... 13
1. PSICOMOTRICIDADE.......... .......................................................................... 21
1.1 História da Psicomotricidade.................. .................»..••......................... 25
Capa (concepção): Sebastião Miguel
1.2 Psicomotricidade: Ciência, Prática ou Paradigma?.................................. V)
Designer gráfico: Andréa Maria Esteves
Revisão: Marlene Hostalácio de Andrade 2. CONCEITO DE PSICOMOTRICIDADE...................................................... 47
2.1 Os Conceitos Originadores da Prática Psicomotora.............................. 53

3. PROPOSTAS CLÁSSICAS................................................................................. 59
3.1 Reeducação Psicomotora....................................— .................... 60
3.2 Educação Psicomotora........................................................... ...... . 63
3.3 Terapia Psicomotora................. .................... .........., ......................... 66
3.4 Relações e Técnicas................. ........................................ ..... —............ 70
3.5 Boneca de Bano (sic)................. ................. 73
FICHA CATALOGRÁFICA
4. TONICIDADE, MOTRICIDADE E AFETIVIDADE.................................. 75
4.1 Teoria da Emoção em Wallon.............. 79
Rennó, Eline
R414p Psicomotricidade : da melodia cinética ao corpo 5. ESQUEMA CORPORAL OU IMAGEM DO CORPO................................. 83
político / Eline Rennó . — Belo Horizonte : Editora Ar­ 5.1 Concepções Neurofisiológicas: O Corpo Cortical................ ..............- 84
tesã, 2012. 5.2 Concepções Psicanalíticas: O Corpo Erógeno e o
292 p. Corpo Fantasmático.............. ......................... ...................... ....... — —• 85
5.3 Concepções Psicológicas: O Corpo Consciente ........................... 90
ISBN: 978-85-88009-24-0 5.4 Concepções Fenomenológicas: O Corpo Vivido................................... 94
5.5 O Corpo Próprio e o Corpo Carne em Merleau-Ponty.............. 94
1 .Psicomotricidade.2.Terapia pela dança.I.Título.
6. NOÇÕES DE ESPAÇO E DE TEMPO.......................................................... 101
CDU 615.85 6.1 O Espaço e o Tempo em Henri Wallon........... ................—101
159.9 6.2 O Espaço e o Tempo em Merleau-Ponty............................. .................. 105

Elaborada por Rinaldo Moura Faria - CRB6 ne 1006


7. DESENVOLVIMENTO PSICOMOTOR......................................................... 115
7.1 A Psicogenética e a Psicomotricidade.......... ......... ............................... . 117
7.2 Os Estágios do Desenvolvimento ........... ..... ........................................... 123
7.3 O Pequeno A - uma análise genética......................... 129
8. CLASSIFICAÇÃO DOS DISTÚRBIOS PSICOMOTORES........................... 135
8.1 Evolução dos distúrbios instrumentais.................. ..... ...............•............140
8.2 Síndromes, tipos e relações psicomotoras em Wallon................ 141
8.3 Apraxias infantis..................... ........................................-...... ....... ....... —• 142
8.4 Praxias da escrita e do grafismo............ 144
8.5 Outra versão sobre os distúrbios psicomotores......... ......... 146
I. PSICOMOTRICIDADE

O que é Psicomotricidade? Para que serve? Como e a quem se


aplica? Responder a essas perguntas implica, em primeiro lugar, situar a
Psicomotricidade ao longo da História. O itinerário de seu conceito, as
teorias que a influenciaram ajudando-a em sua composição, as práticas que
foram propostas, os lugares e atores que se beneficiam dela mostram a
convergência e a pluralidade de sua aplicação, o que me permite considerá-
la ciência essencialmente interdisciplinar, originária de outras ciências,
emprestando-se a outras tantas, carregada de promessas futuras.
Busco, portanto, ao longo dos textos que se seguem, responder a
essas questões necessárias aos estudantes e profissionais que tomam a
Psicomotricidade como bandeira norteadora de seu exercício prático.
Os textos presentes foram extraídos das aulas ministradas, desde
1991, aos alunos da Ênfase de Psicologia Educacional e Clínica do Curso
de Psicologia, e do Curso de Fisioterapia da PUC-Minas, Unidade Cora­
ção Eucarístico.
Antes, porém, sobrevoando de helicóptero a História, é importan­
te apresentar, de forma breve, as noções sobre a construção do conheci­
mento desde que o homem se preocupou em explicar os fenômenos.
Aricó (1993) destaca três perguntas que orientam a direção para
que possamos conhecer algum fenômeno.
A primeira: E possível conhecer? Ou, conhece-se alguma coisa? Se
a resposta for sim, estamos no campo do Dogmatismo; se a resposta for
não, estamos no campo do Ceticismo. A segunda: Qual a origem do co­
nhecimento? De onde ele vem? Se o conhecimento tem a experiência como
fonte, estamos no campo do Empirismo; se a fonte é o pensamento, o
campo é o do Racionalismo. A terceira: Qual é a essência do conhecimen­
to - é o sujeito ou o objeto? Se for o sujeito, o campo é o do Subjetivismo
e do Idealismo; se for o objeto, é o campo do Realismo.
Os campos do Fenomenalismo e do Construtivismo são os que
permitem conhecer, ao mesmo tempo, o espaço entre as polaridades da

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experiência e da razão, do sujeito e do objeto. ( )u(t»in coi rniirn IiI«»moI u hs do, se reduzido às nuiih panes. I '.Hiubclecc irês substâncias: a alma (m ct^ihvis)
poderíam ser citadas, mas, basicamente, essas sào as que respondem me­ tia ordem pensante; o corpo (m ex/ema), que corresponde à ordem mate
lhor às tres questões de Aricó. riftl; e Deus, a ordem infinita. Passa a definir a Ciência moderna como
Pode-se perguntar então: É possível conhecer o fenômeno quantitativa (circunscrita ao cálculo), deixa de lado a qualidade e influencia
psicomotor? De onde ele se origina? Qual é a sua essência? É o que passo também os rumos da Psicologia. C) Mecanicismo do Universo se torna o
a tratar. paradigma dominante.
Desde que o mundo é mundo, o Homem vive sua experiência A partir de Descartes, nos séculos XVII e XVIII, o fenômeno
individual, a experiência determinada pela hereditariedade e a experiência passa a ser concebido como inato, na perspectiva do racionalismo (de den
histórico-social. Para viver essas três experiências e conhecer sobre o mundo tro para fora), mas também na perspectiva do empirismo (de fora para
e sobre as coisas, ao lado de uma visão mítica, mística e supersticiosa, não dentro). A preocupação e a explicação do fenômeno passaram a ser a sua
organizada e emocional, o Homem construiu uma visão filosófica, racio­ representação.
nal e organizada de forma lógica. Kant mostra que é possível a síntese crítica (1724) desses fenôme
Foram os gregos os primeiros a querer a explicação do mundo, da nos. Para ele, o entendimento se dá a priori, no momento da experiência.
natureza, do espírito, das artes, da política e da técnica. No século IV a. C, Depois de Kant, as relações do corpo e da alma continuaram como
os pré-socráticos se preocuparam com o cosmos; Sócrates, com a filoso­ dilema a ser desvendado. O Idealismo, como princípio único para explicar
fia; Platão, com o homem; Aristóteles, com a liberdade, com as emoções, a realidade e o Positivismo do século XIX permitiram a Kant configurar o
com a mente, o corpo e o espírito. A Razão era tida, então, como condição pensamento moderno como entrecruzado em um “x” entre o Racionalismo
do conhecimento, do meio e do homem. e o Positivismo, o Empirismo e o Idealismo.
Até o século V da nossa era, o pensamento dos gregos e romanos O Positivismo, que considera a verdade a partir de dados sensíveis
predominou. Com a queda do Império Romano, na Época Medieval, a e fatos observáveis, estabelece o método indutivo e causai dos fenômenos,
razão é submetida à fé. As respostas, os homens, os religiosos sabiam-nas para a elaboração de leis.
pelas escrituras; a Verdade só podia ser revelada pela religião judaico-cris- A partir da segunda metade do século XIX, sob a influência do
tã. A Idade Média durou dez séculos e, por volta de 1500/1600, conflitos paradigma dominante e do Positivismo, a Psicologia perguntou-se: Por
diversos - sociais, políticos, religiosos, artísticos - impulsionaram o mundo que não submeter o estudo do pensamento a essa abordagem, já que as
para a Era Moderna. Já não se podia viver com a certeza da morada finita, outras ciências o faziam? O conhecimento psicológico passa a ser influen­
a abóbada celeste não era mais o limite e a garantia da eternidade e da paz. ciado pelo Positivismo, e a Psicologia define seu objeto de estudo como
Na Era Moderna Galileu Galilei (1564) introduz o método cientí­ atividades psíquicas, ou consciência, ou comportamento. Na perspectiva
fico, ao constatar a necessidade da observação, da experimentação, do es­ de uma metodologia científica, a Psicologia da alma e do espírito é substi
tabelecimento de hipóteses e de leis. O fundamento da experiência predo­ tuída pela Psicologia fundada em dados obtidos pela Neurologia, Fisiolo
minou na Renascença. O pensamento indutivo, o desenvolvimento de leis, gia, Medicina e Psicofísica.
a linguagem matemática, a partir de Francis Bacon (1516), elevam a É criado o primeiro laboratório de Psicologia Experimental (1879),
Metafísica à essência imutável das coisas. na Alemanha, por Guilherme Wundt, que se preocupou com o estudo das
Mais tarde, a crítica de Descartes (1596), em relação ao conheci­ imagens, dos pensamentos e dos sentimentos, na visão atomista das ativi­
mento, cria a dúvida metódica das coisas, afirma que o pensamento é es­ dades mentais. A estrutura da consciência, investigada pelo método
sência das coisas e introduz o método racionalista. Trata-se de um método introspectivo da época, passou a ser vista como a combinação de elemen­
analítico e atomista. Segundo ele, qualquer evento pode ser compreendi­ tos associados numa atividade psíquica.

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Surgiram oposiçòes dc psicólogos, como Willíainjiuncn, mmn I;,hih No século X\, surgem as chamada» Teorias dc Tampo, como rr
dos Unidos, mostrando uma reação à posição atomista dc Descartes, con ação ao behaviorismo, suslentandoquc o comportamento não é fracionável.
siderando a unicidade dos fenômenos da consciência, na interação dc cor­ C) ser humano é dotado dc estruturas pré-formadas que determinam as
po e mente. experiências perccptuais. Na Alemanha, a Psicologia da Gcstalt, ou da for
A Escola Estruturalista de Wundt e a Escola Funcionalista de James ma, destaca-se entre elas. Sua base epistemológica vem do racionalismo < mi
permitiram uma Psicologia de base racionalista e empirista, que se expan­ do idealismo.
diu pela França, Inglaterra e Estados Unidos. A Rússia, a França e a Suíça A Psicomotricidade é uma teoria? Pode ser considerada teoria pai
tornaram-se adeptas da Psicologia de base construtivista e dialética. cológica, ou é a configuração de algumas delas? Quais são suas bases
As bases filosóficas e científicas apontadas deram origem às dife­ e pis temológicas?
rentes teorias às quais o psicólogo se atém no exercício de sua prádea. São O próximo item trata da noção de Psicomotricidade ao longo da
as Teorias Psicológicas do Desenvolvimento e da Aprendizagem, as Teori­ I listória e permite aproximar outras respostas.
as Maturacionais, as Teorias Comportamentalistas, as Teorias de Campo,
as Teorias Psicanalíticas, as Teorias Construtivistas (de bases interacionistas), I. I História da Psicomotricidade
as Teorias Psicogenéticas (Piaget, Wallon, Vygotsky) que fazem do univer­
so da Psicologia, muitas vezes incompreendido e criticado, um campo do Para compreender a evolução histórica e dialética do desejo tio
saber heterogêneo, pela diversidade inerente às suas influências históricas. casamento entre o psiquismo e a motricidade, ou mente e corpo, e os
E a partir desse campo, entretanto, que se podem conceber diferentes for­ reflexos práticos dessa evolução, recorro à divisão histórica que Le Camus
mas de conhecimento do trato humano, e é nesse campo que se pode (1986) apresenta em seu livro 0 Corpo em discussão: da reeducação
revisar o objeto de estudo da Psicologia, pela influência das diferentes psicomotora às práticas de mediação corporal (1986). O autor considera o
Teorias Contemporâneas. Corpo Sutil a superestrutura que abriga o corpo somático, o corpo mecãni
A título de exercício, é interessante destacar em que bases filosófi­ co e o corpo energético, o “emblema55 dos psicomotricistas, ponto Fixo de
cas se apoiam algumas das teorias psicológicas. onde podem ser conduzidas operações de análise, escrita e ação. Para pro
As Teorias Maturacionais sustentam que o organismo é progra­ ceder ao estudo genético, estrutural e diferencial do Corpo Sutil, o autor
mado pela sua constituição genética que apresenta uma sequência ordena­ invoca a noção de organizador que unifica o sistema de conhecimentos,
da no desenvolvimento do comportamento humano, influenciada pela normas e práticas e explica os efeitos das doutrinas e métodos da trajetória
maturação, pela aprendizagem e pelos princípios do desenvolvimento. Em do conceito de Psicomotricidade. Os organizadores permitem mostrar que
que bases elas se apoiam? Em base racionalista ou empirista? A resposta é concepção e execução estão estruturalmente unidas e dependem dos mes
em base racionalista. mos fatores econômicos, políticos e culturais. Destaca três fases princi
As Teorias Comportamentistas mostram bases empiristas e pais: a fase do Corpo Hábil (final do século XIX e início do século XX),
positivistas? Sim. Em 1914, o Behaviorismo, nos Estados Unidos, rompe cujo organizador é o paralelismo; a fase do Corpo Consciente (terceiro quartel
com a questão da alma, e os fenômenos psíquicos. Estabelece como obje­ do século XX), como organizador, o ifnpressionismo; e a fase do Corpo Signijicantc
to de estudo, o comportamento. Segundo a teoria, o organismo vivo pode (terceiro quartel do século XX), como organizador, o expressionismo.
ser observado nas respostas a estímulos do ambiente, que também é Faço uma adaptação das três fases destacadas por Le Camus, a fim
observável. O controle objetivo do estímulo do meio é primordial na de­ de causar efeitos mais didáticos de compreensão sobre o leitor. Passo a
terminação das respostas do sujeito. Há previsão do comportamento, a destacá-las como a fase do Corpo Passivo, que justapõe o corpo anátomo
partir do raciocínio mecanicista, fracionado, associacionista. fisiológico e o pensamento, na qual ao corpo só coube se deixar investigar,

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scr esmiuçado cm seus detalhes, deixando-se ver em passividade. A fase ponuável por uma delas. () filòlofo Tissié preocupou se com a relação
do Corpo Receptivo, quando pode ser visto mais lado a lado com o pensa­ entre pensamento e movimento. Seu método, a Psieodinnmia, é considera
mento e pode acolher, organizar a informação que vem de si mesmo e do do a prcconcepçâo da Psicomotricidade. Ele adaptou a ginástica sueca a
meio. E a fase do Corpo Expressivo, capaz de expressão e comunicação, uma ginástica educativa ou pedagógica (para todas as crianças) e médica,
como chamamento ao outro, portador de significações. para retardados (como se dizia naquela época).
O esboço do método psicomotor coube a E. (Juilmain, considera
Ia Fase - Corpo Passivo - de 1870 a 1945 do “pai da RPM” (1901-1983), pelo destaque de áreas a serem pesquisadas
As consequências do dualismo cartesiano foram alvo e obsessão nas chamadas crianças inadaptadas, em casa e na escola. Estudos baseadi >x
dos psicomotricistas. Os invesdgadores da Neurofisiologia já conheciam em Wallon foram aplicados em crianças “instáveis” e “perversas”, na nb
uma área cortical que provocava um movimento na parte contrária do cor­ servação da função tônica que intervém nas atitudes e na busca das rela
po de uma cobaia, se estimulada eletricamente. Por volta de 1870, eles des­ çòes entre atividade e afetividade assim como um modo de atuar num e
cobrem uma nova área que mostrava uma função misteriosa entre a ima­ noutro sentido. Elaborou o primeiro exame psicomotor (1935) como me
gem mental e o movimento, a qual foi chamada de área psicomotora. A elida para diagnóstico, indicação terapêutica e prognostica. O exame
partir daí, surge o adjetivo psico-motor, escrito com hífen. Os progressos psicomotor passou a ser indicado para a aplicação da RPM - Reeducação
da Fisiologia indicaram depois o papel integrador da medula espinhal e o Psicomotora - em duas direções, a saber: na corrente médico -pedagógica,
sintoma sem lesão, modificando a noção de que nem sempre o distúrbio a teve-se à educação sensorial e ao desenvolvimento da atenção em traba
se apresenta associado a uma lesão focal, pois também pode ser considera­
llios manuais; já na corrente educativa, dedicou-se à educação motora de
do simbólico.
retardados, termo hoje não mais usado, mas de uso corrente à época refe­
Ernest Dupré, médico neurologista, em 1907, destaca a noção de
rida. Ao isolar os distúrbios das funções psicomotoras que acompanham
concordâncias motoras consideradas a primeira operacionalização do con­
os distúrbios de caráter, destinou a educação motora aos retardados. A
ceito de Psicomotricidade, em suas observações de bebês, indicando uma
reeducação motora ou psicomotora foi destinada a crianças inteligentes,
equivalência entre debilidade motora e debilidade mental. Todo recém-
com distúrbios motores isolados, somada à ginástica rítmica e ao trata­
nascido, portanto, foi ddo por ele como débil motor e débil mental. Havia,
mento psíquico e quimioterápico. Era preciso reeducar a atividade tônica,
segundo ele, uma concordância entre inteligência e motricidade. Mais tar­
melhorar a atividade de relação e o controle motor de crianças mal- adap­
de, essa lógica nem sempre se apresentou em diferentes crianças. São dele
tadas, em desarmonia com o meio. O primeiro quadro de indicações di ri
os conceitos de paratonia, a contração involuntária da musculatura, consi­
giu-se aos instáveis, impulsivos, paranóicos leves, jovens delinquentes,
derada essencial no exame psicomotor, para a descrição de quadros de
debilidade, inibição e instabilidade psicomotora. emotivos, obsessivos e apáticos.
Após a Segunda Guerra, surgem condições sociopolíticas para a
Outro neurologista, Henri Wallon publica o livro As origens do cará­
criação de serviços preventivos de diagnósticos e cuidados. Em 1946, a
ter na criança, em 1925. Também era psicólogo. Foi o primeiro a sair do pa­
criança mal-adaptada na escola era encaminhada a Centros Psicopedagó-
ralelismo psicofísico da época. Para Wallon, motricidade e caráter mostra­
vam uma coocorrência, não apenas se justapunham em paralelo, mas con­ gicos.
Segundo Le Camus, no contexto sociopolítico e institucional, até
corriam. Os dois médicos neurologistas são considerados os pioneiros ao
buscarem as manifestações dos aspectos corporais e mentais, articuladas meados do século XX, essas práticas não atingiram a devida institucionaliza
entre si. ção, nem a profissão do psicomotricista foi reconhecida. Não se levou em
As primeiras práticas psicomotoras começam a aparecer, a partir consideração uma sintomatologia psicomotora. No contexto filosófico, a
de 1890-1939. Paul Tissié, interessado na dinâmica do movimento, é res- representação do corpo subentende a teoria e a prática psicomotora e se

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organiza cm torno do conceito de paraldism% isto é, nu rrhtçíln entre os 2. Psicólogo* do Desenvolvimento (Psicologia Infantil)
fenômenos psicológicos e motores. Os principais representantes da Psicologia Infantil que contribuí
ram para as noções de desenvolvimento psicomotor foram Gesell (1880-
2a Fase - Corpo Receptivo - de 1945 a 1973 1961), Wallon (1879-1962) e Piaget (18964 980).
I ísta fase é considerada a “fase de ouro” da Psicomotricidade, quan­ Gesell preocupou-se com as esferas de atividade do comporta­
do ocorre o estabelecimento e o aprofundamento do conceito, a mento: a motricidade geral, a motricidade óculo-manual, a linguagem e a
especificação da metodologia e o reconhecimento das práticas, no século sociabilidade.
XX. As primeiras influências são destacadas a seguir. Wallon dedicou suas observações a crianças perversas, ao papel do
outro na consciência do eu, às etapas da socialidade da criança, ao papel do
1. Gestaltistas fenomenólogos movimento e das emoções no desenvolvimento psicológico dela. No estu­
A noção de formas consideradas fenômenos físicos, fisiológicos e do da gênese do Esquema Corporal, o autor aponta que o EC não é um
psicológicos inseparáveis dos gestaltistas inspira a construção do conceito dado inicial, nem uma entidade biológica ou psíquica, mas uma constru­
de Esquema Corporal, principal referência teórica e prática, à qual se agre­ ção. O estudo da gênese do EC nos leva a conceber como a criança chega
gam todos os outros conceitos psicomotores. Bernard e Corraze (1972- íi representação de seu próprio corpo diferenciada do corpo do outro.
73) estabelecem que, a partir de distúrbios da sensação, uso e apropriação Mais tarde, (1962-1977), R. Zazzo, Lézine e J. de Ajuriaguerra estabelecem
e do conhecimento do próprio corpo, ocorre uma espécie de referencial, O diálogo tônico ou diálogo corporal como a primeira comunicação humana,
ao qual o indivíduo transfere sua experiência psicossomática. Paul Schilder a partir das experiências tônicas, motoras e afetivas, (hipertonia de solicita­
(1923-1935), psiquiatra vienense, mostra uma espécie de síntese entre o ção e hipotonia de relaxamento), na relação entre mãe e filho, consideran­
modelo neurológico do corpo, de Head e o modelo psicanalítico do corpo do-o o prelúdio do diálogo verbal.
libidinal e fantasmático, de Freud. A imagem tridimensional que cada um Piaget é reconhecido por Ajuriaguerra, a partir de 1960, e, até 1975,
tem de si, essencialmente dinâmica, que integra as experiências perceptivas, é considerado como o segundo pilar mais influente para a Psicomotricidade.
afetivas e motoras, foi assim utilizada como noção de Esquema Corporal O movimento é definido por ele como único instrumento do psiquismo,
ou Imagem do Corpo. A educação ou reeducação do EC tornou-se tarefa portanto, para ele, a inteligência. A origem da inteligência na criança de­
prioritária assumida pelos psicomotricistas. pende do desenvolvimento de esquemas sensório-motores (sensações e
A concepção fenomenológica da conduta deve a Merleau-Ponty movimentos) ativados pela assimilação (incorporação) e acomodação (ajus­
(1942-45) o último ato de condenação do dualismo, cujas influências re­ tamento ao mundo exterior).
percutiram na Psiquiatria e Pedagogia francesas. Como citado por Camus Piaget e Wallon, Piageon e Wallet, como é costume chamá- ios (ta­
(1986): “A união da alma e do corpo não é selada por um decreto arbitrário manha a proximidade entre alguns de seus conceitos) são considerados os
entre dois termos exteriores, um deles objeto, o outro, sujeito. Ela se reali­ dois gigantes reconciliados pela Psicomotricidade. Para Camus, o conflito
za a cada instante no movimento da existência”. “Eu sou meu corpo” que permanece de suas contribuições diz respeito à continuidade das for­
(MERLEAU-PONTY, 1999). mas de inteligência: prática e simbólica. Alguns teóricos e práticos da
O movimento como relação e valores vitais, na sua concepção Psicomotricidade censuram a ambos por não terem se preocupado mais
funcional, de Buytendjik (1957), não estuda os processos, mas a função, o com o destino da “inteligência das situações” ou da inteligência sensório-
conjunto indivisível de movimentos. A captação do sentido do movimen­ motora, uma vez instalado o poder de representação que nos torna “falan­
to e não a sua fisiologia indica que o ato de agarrar qualquer coisa é defini­ tes”.
do pelo objetivo, pelo grau e resultado, portanto, pelo futuro.

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3. Psicanalistas estào vinculadas aos afetos, mais ligadas ao soma” (AJURIAGUFRRA;
A compreensão da etiologia e patogênese dos distúrbios »S(HJBIRAN, 1960). Tal classificação, baseada na sintomatologia, estabele­
psicomotores, por volta de 1945, leva a França a conhecer Freud, e o es- ce que: “Entrarão neste quadro certas formas de debilidades motoras num
i alui o do corpo da criança se modifica. sentido mais bem definido, instabilidades psicomotoras, inibições
Freud não considera o corpo como sede das reações emocionais psicomotoras, certas inabilidades de origem emocional ou por desordens
que unem a criança a seu grupo (como pensava Wallon), nem como o instru­ de late rali/ação, dispraxias evolutivas e certas disgrafias, certos tiques, a
mento com o qual a inteligência é construída (como postulou Piaget). O gagueira e outros tipos”, (idem)
corpo passa a ser lugar do prazer e a pontuação da zona erógena é que gera () diagnóstico, após o término do exame psicomotor, passou a ser
a evolução libidinal. O que não aumenta a complexidade da natureza do considerado uma prova em seis rubricas: particularidades tônicas e
movimento. A realidade do movimento não se limita à sua manifestação sincinéticas, controle motor, adaptação ao espaço e orientação em relação
mecânica e neurofisiológica; a função mecânica (alimentar-se, por exemplo), ao corpo, estruturação espacial e adaptação ao ritmo. O diagnóstico serve
ou a motora (a marcha) serão exercidas adequadamente se forem “investidas”. para orientar a intervenção e a distribuição de crianças em grupos homo­
Estudiosos da Psicanálise, como Juan de Ajuriaguerra, Franz gêneos. A necessária conduta de reeducação, as chamadas liçào-lipo, consti-
Alexander e René Spitz foram os responsáveis pela aproximação entre a incm-se cm lições adaptadas em 12 exercícios específicos. A especificidade
Psicanálise e a Psicomotricidade. Os distúrbios psicogênicos ajudam consiste em adaptar crianças que poderiam ser valorizadas em seu “poten­
Ajuriaguerra a lançar as bases da patologia psicomotora, e a F. Alexander a cial inativo” e passíveis de uma “reorganização”.
edificar conceitos da Medicina Psicossomática. Spitz (1945) se volta sobre Pela ampliação e refinamento da proposta, pelo aperfeiçoamento
os efeitos das carências afetivas na personalidade. c difusão das pesquisas e reconhecimento dos especialistas, as Terapêuti­
A descoberta do corpo pulsional como substrato e revestimento cas Psicomotoras despertaram o interesse dos psiquiatras.
do corpo funcional passa a guiar os novos rumos da Psicomotricidade, Em 1961, foi criado o primeiro ensino, com certificado de capaci­
afirmando sua autonomia metodológica e institucional. dade em RPM, pela Faculdade de Medicina de Paris. Em 1964, surge o
Se, em 1945, a criança era tida como inadaptada na escola, com Sindicato Nacional dos Reeducadores Terapeutas em Psicomotricidade.
atraso escolar, nos anos da década de 1950, ela é recebida nos primeiros Em 1974, o Diploma de Psicorreeducador substitui o de RPM.
Centros Psicopedagógicos. Os anos de 1960 vão revelar a efervescência As Práticas Terapêuticas foram ajustadas por psiquiatras e
doutrinária e tecnológica dos novos rumos. reeducadores em equipes de diagnóstico e atendimento. A partir de então,
J. de Ajuriaguerra e sua equipe de pesquisadores, com base na in­ dois grupos se distinguem para atores diferentes, e não por princípios teó­
vestigação dos distúrbios psicomotores e de linguagem (no Hospital Henri ricos e metodológicos. O grupo das práticas terapêuticas (avaliadas pelo
Rousselle), permitem a construção e o reconhecimento da Escola France­ poder público), conduzidas por psiquiatras e reeducadores para distúrbios
sa de Terapia Psicomotora. Os resultados dão origem a uma ruptura mais bem definidos. O grupo das práticas educativas (toleradas, discreta-
epistemológica (1947-1958), ao se constatar a educabilidade da debilidade rnente combatidas, sem receber a etiqueta de método), orientadas por pro­
psicomotora e sua não organicidade e, consequentemente, o distúrbio motor fessores de Educação Física e Esportiva, para crianças de todos os tipos.
como diferente do distúrbio psicomotor. O primeiro tem a ver com a Entre a TPM (Terapia Psicomotora) e a RPM (Reeducação
perturbação do mecanismo do movimento, o segundo, com a perturbação Psicomotora), (1960-1973), a diferença é de estatuto, consequência da rup­
da vontade do movimento. tura entre o esporte e a Psicomotricidade.
A primeira Carta da Escola Francesa de Terapia Psic< um>lorsi (1960) Nessa fase, o corpo não é considerado um dos elementos da fa­
define: “As síndromes psicomotoras não correspondem a uma lesão focal; mosa dupla, mas caminho obrigatório da gênese da personalidade c estofo
de sua estrutura. Ao Esporte, coube o corpo energético; à Psicomt itricldadc Nào sc podiam confundir, cm 1973-74, a Psicanálise e a RPM,
(sem confundir com os profissionais da reabilitação), coube o corpo capaz pois tratava sc de intervenções diferentes (verbal e nào verbal). Podiam até
de receber, estocar e estruturar informações - permeável às impressões — hc complementarem, mas eram ofícios diferentes.
impressivo. Mas ainda impressionista e mudo: compreende sem poder fa­ ()s teóricos psicanalistas mais influentes, que participaram da for-
lar. tnaçàt> dos novos psicomotricistas, foram E Dolto, S. Lebovici,J. Laplanche,
O professor de Educação Física, o educador esportivo e os | B. Pontalis, D. Anzieu, Sami-Ali, (que chegou a fazer um esboço de ma­
cinesioterapeutas delimitaram suas áreas de atuação de forma diferente téria psicanalítica para a Psicomotricidade, em 1977), W. Reich, cuja teoria
das do psicoterapeuta, do ergoterapeuta e do ortofonista. originou a gestaltterapia (Perls), o grito primai (Janov) e a bioenergética
Com a Carta Metodológica da RPM, Juan de Ajuriaguerra, em 1960, (Lowcn), embora em 1980 tenha ocorrido o declínio das inspirações
torna pública a especificidade da Psicomotricidade, inscrita num projeto reichinianas, consideradas contracultura. Para Reich, a história socioafetiva
terapêutico e defendida pelo Sindicato Nacional, em Paris, 1964. Em 1968, incrusta-se no estado tônico do sujeito e os defeitos da “couraça” muscu­
o Ministério dos Trabalhos Sociais estabelece: lar traduzem os avatares da pulsão. A cultura psicanalítica obtida pelos
técnicos em Psicomotricidade nào dissuadiu os formadores psicanalistas
A psicomotricidade é uma atividade terapêutica destinada a agir por dc que o modelo da RPM e o da cura analítica não deveriam confundir-se.
intermédio do corpo sobre as funções mentais perturbadas e sobre as reações Entre 1947 e 1959, Ajuriaguerra já havia integrado parte da contri­
comportamentais do sujeito. Isto deve permitir à criança um desenvolvimento
buição de Freud e de seus adversários: os fiéis Spitz, M. Klein, A. Freud e
harmonioso e, ao adulto, o reequilíbrio psicomotor por intermédio da experi­
D.W. Winnicott, e os infiéis, como Reich.
ência corporal. (LE CAMUS, 1986)
Em relação à Psicologia das comunicações nào verbais, destacam-
3a Fase - Corpo Expressivo - de 1974 a 1980 se Parlebas (1976), que introduziu a sociomotricidade à luz da Educação
Para Camus, o corpo que compreende (impressionista, permeável, Física, da Psicologia Social e da Linguística, C. Pujade- Renaud (1968),
mas mudo) recebe, nessa fase, licença para falar. E a fase de maior partidários da expressão corporal libertadora contra o esporte repressor,
M. Bernard (1972), que utilizou a Psicologia do corpo na Filosofia e J.
questionamento teórico, da ampliação das bases teóricas, das práticas que
respeitam as fases do desenvolvimento infantil (Wallon, Piaget e Freud). Corraze (1973-80), que fez um estudo sobre comunicação, EC e imagem
especular do corpo.
Ao mesmo tempo, as práticas sensório-motoras são rebaixadas como téc­
A Etologia Infantil preocupou-se com o estudo dos mecanismos
nicas e a preocupação a respeito da relação terapêutica, com a influência
da comunicação não verbal na criança, das mensagens a partir das mímicas
da Psicanálise, deu origem ao refrão - “Abaixo a técnica - viva a relação!”.
c posturas de bebês, por H. Montagner (1972-76) e C. Rochourse (1978).
Os psicomotricistas são agora chamados de psico-reeducadores, revelan­
As chamadas Técnicas Semiomotoras indicaram a motricidade como emis­
do a marginalizaçào das práticas psicomotoras, com objetivo educativo. E
sora de informação para a Neurologia e para a Educação Física. Da Neu­
destaque o chamado movimento do psicotropismo e do somatropismo. Profis­
rologia e da Educação Física, a RPM foi impelida para a Psiquiatria
sionais de áreas psi interessando-se pelas questões do corpo, e profissio­
(psicotropismo).
nais da área do corpo fazendo o inverso.
As práticas terapêuticas, em 1970, foram desenvolvidas a partir de
D. Anzieu aponta o corpo ausente, figurado, negado (de 1974),
B, jolivet, que ampliou a nomenclatura dos distúrbios, considerando a RPM
como fator responsável pela revolução cultural de 1968. Era preciso mu­
como mais próxima do distúrbio instrumental ou funcional, sem levar em
dar de vida, dar a palavra ao corpo. conta os problemas afetivos.
Influências mais fortes dessa fase continuam sendo as da Psicaná­
A Psicoterapia Corporal aproxima mais as características
lise, mas também da Psicologia das comunicações não verbais e da Etologia.
psiconfetivas, por meio da Expressão Corporal com os recursos da trans-
ferêncin. Daí cm diante, o psicomoiricista, o oriofoiiiMH c o pNleólngn «no considerar a capacidade do corpo de informar se c emilir informações
afastados do modelo de recducador, testador-reparador. I1. questionada a (captando, estocando c informando), diferente do espaço definido pela
utilidade do exame psicomotor. capacidade energética ou termodinâmica do corpo - assimilar, estocar e
A proposta de Lapierre (1972), a chamada Psicomorricidadc produzir energias. Camus (1986, p. 70) acredita que os psicomotricistas
Relacionai e o Relaxamento Relacionai de Thuriot passam a valorizar a chegarão a fazer nome, um dia, se se inscreverem no campo da lógic a
experiência do paciente e a capacidade de empada do terapeuta. informacinnal (adeptos da impressão e da expressão corporal) em vez da
Chega ao auge a força da sedução da experiência analítica (1973- psicanálise de contrabando.
79). Fora da Psicanálise, para muitos, não havia salvação. Na mesma épo­ Camus também levanta questões em torno da RPM: Para quem?
ca, o somatropismo se intensifica, e os psicoterapeutas psicanalistas tor­ Para quê? Como? Do polo neurológico e psiquiátrico, a Psicomotricidade
nam-se atentos ao corpo não só na ação, como na encenação imaginária desliza acentuadamente, em 1960, diante do destino traçado para o disnir
do corpo, principalmente com a influência do psicodrama de Moreno, o hio psicomotor, afastando-o da margem instrumental para aproxima Io da
Relaxamento de sentido analítico, de M. Sapir, e a Análise analítica (expe­ margem relacionai. A carta de 1960 já não propõe uma reeducação, mas
riência sensorial e motora vista como trampolim para a verbalização), de uma terapia e, embora agindo sobre o componente físico, as terapêuticas
Robertie. psicomotoras são, de fato, atividades psicoterápicas. A mesma evolução se
Os não freudianos, como Lewin, Moreno, Rogers e Reich introdu­ produziu na ação da RPM, cujos programas diferenciados foram concebi
zem os efeitos catárticos da ação em grupo, na experiência de Esalen, dos em função de distúrbios diferentes, salientando-se o aspecto qualitati
tornando a terapia de Lowen, Perls e Janov mais rápida. As práticas vo da Psicomotricidade. Vinte anos depois, andou-se mais longe da
educativas entram em estagnação, os Grupos de Ajuda Psicopedagógica desinstrumentalizaçào e o exame psicomotor de diagnóstico ou de con
ficam circunscritos à escola pública (1975) e a Educação Física marginaliza irole perdeu seu rigor e importância, quase foi abandonado. O texto da
as técnicas psicomotoras. A Escola Maternal mostra-se mais receptiva, já SNRTP— Sociedade Francesa de Educação e Reeducação Psicomotora,
que o esporte se estende, na escola, à Expressão Corporal, mediante o publicado em 1976, determina que “para obter-se uma ação global na pes
emprego da dança, da mímica e da arte dramática, e a experiência com os soa, a prioridade é deslocada da técnica para a relação” (CAMUS, 1986), o
bebês nadadores, enriquecendo a experiência motora c relacionai, como que acelerou mais ainda a deriva em direção à psicoterapia.
antídoto do esporte. Camus considera a RPM como uma especialidade francesa, um
Segundo Camus, foi como meio de linguagem, dos significantes sistema teórico, metodológico e institucional, gestado em um país rico c
mudos, que o corpo interessou aos psicomorricistas. O autor faz uma dis­ capitalista. O sucesso da RPM na França, para ele, se deve menos à situa­
tinção entre o corpo que interessa ao psicomotricista e o corpo que inte­ ção sociopolítica e mais a uma reação contra a pressão forte do dualismo
ressa a outros profissionais, que também têm o corpo como objeto de platônico, agostiniano e cartesiano, do intelectualismo dos racionalistas do
investigação e tratamento. século XVIII e XIX, e do verbalismo dos lacanianos. A difusão cm países
Quem são ospsicomorricistas} pergunta ele. São os que têm como cam­ de cultura latina, como.na Itália, na Espanha, na América do Sul, se deve
po de ação o da motriádade em relação, que têm a seu cargo as pedagogias ou ao fato de serem países impregnados da mesma ideologia da primazia da
as terapias de mediação corporal. Sua prática é considerada, ao mesmo alma, do pensamento, da palavra sobre o corpo, onde o corpo é mais es
tempo, corporal e relacionai, como técnica pedagógica ou terapêutica, o carnecido. A RPM é ignorada por onde os sistemas de educação e terapia
que ainda não os diferencia do cinesioterapeuta, nem do educador espor­ valorizam o papel do corpo, como nos países escandinavos, nos da Euro
tivo, nem do psicanalista, que utiliza o corpo no relaxamento analítico. A pa oriental, Inglaterra e, com exceções, na Alemanha, Estados Unidos e
proposta de Le Camus, para legitimar a existência do psicomotricista, é Canadá. O sucesso na França e nos países em desenvolvimento deve-se a

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dificuldades da civilização, à agitação, à agressividade, à passividade, à ini UFMC» no llniil desHH meNinii décudit. No Curso de Psicologia da PUC
biçào e ao fracasso escolar. Nos países subdesenvolvidos e de democracias Minas, a disciplina passou a lazer parte do Currículo em finais dos anos de
populares, o autor afirma que, antes de a criança ser cuidada pela RPM, é 1980, assim como do Curso de Fisioterapia. A partir de 1991, passei a
necessário cuidar das suas necessidades sociais de primeira urgência: ali­ lecionar a disciplina teórica e, em seguida, a supervisionar os estágios na
mentação, saúde e alfabetização. Para ele, a inadaptação e o fracasso esco­ PUC 1- Minas. Na Faculdade de Ciências Médicas, a disciplina foi ministrada
lar não são privilégios dos países capitalistas, e todos os sistemas políticos por Dinah Meireles no Curso de Especialização de Fisioterapia e Terapia
do mundo têm necessidade de estabelecer instituições de ajuda e cuidado Ocupacional (1988 a 1990). De igual modo, faz parte também do Currícu
para a infância. A RPM não é uma invenção capitalista e não existe em lo de Psicologia e do Curso de Pós-Graduação da FUMEC.
países socialistas e capitalistas, que conheceram a revolução industrial, a A chegada da Psicomotricidade ao Brasil precede, em pouco tem
economia de mercado e o advento da democracia moderna, como Ingla­ po, as modificações que a França iria propor a partir dos anos de 1970, ao
terra, Alemanha Ocidental e Estados Unidos. introduzir o termo Terapia Psicomotora. O distúrbio psicomotor passou a
Para Le Camus (1986), o longo caminho percorrido pela ser considerado como sintoma, como forma de exteriorização de um pro­
Psicomotricidade torna a composição de seu conceito uma tarefa difícil. blema, que afeta todo o indivíduo e que pode ter raízes muito amplas, seja
Mas se considerarmos as diferentes influências teóricas que ela recebeu, na afetividade, seja nos aspectos motores ou nos cognitivos.
mais os interesses de profissionais de campos diversificados no contexto Hoje, entende-se que o corpo está universalmente presente em
sociopolítico de cada época, que culminaram cm diferentes conceitos todo sintoma, em todo ato inteligente, em toda emoção, nos sonhos e na
operativos, os quais, por sua vez, orientaram as diferentes propostas e téc­ linguagem. No distúrbio psicomotor, o indivíduo propõe seu corpo como
nicas, a ideia de ciência encruzilhada, interdisciplinar, permite avançar na um enigma.
direção de uma resposta. A Sociedade Brasileira de Psicomotricidade - SBP, atualmente de­
No Brasil, os estudos sobre os distúrbios psicomotores iniciaram- nominada Associação Brasileira dc Psicomotricidade - ABP, com sede no
se em São Paulo, nos anos de 1960, ligados ao curso de Psicologia da Rio de Janeiro, foi fundada em 1980 e os Capítulos Regionais estendem-se
Faculdade Sedes Sapientiae, que adotou o ponto de vista psiconeurológico. a várias cidades e estados brasileiros como Minas Gerais - em Belo Hori­
Na Universidade de São Paulo, os estudos foram introduzidos em 1970, zonte, Pernambuco - Recife, São Paulo, Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
com a inclusão das disciplinas “Psicomotricidade” e “Reeducação Ceará - Fortaleza. A Associação tem como sócia-fundadora Suzana Velloso
Psicomotora”, no currículo do curso de Psicologia. Dessa introdução re­ Cabral, psicóloga e psicomotricista, responsável pelo desenvolvimento e
sultou a sua maior utilização por parte de psicólogos, em São Paulo, en­ propagação da Psicomotricidade, em Minas Gerais e no Brasil. Ao ofere­
quanto, no Rio de Janeiro, isso se deu pelos fonoaudiólogos e, no Rio cer Formação em Psicomotricidade Relacionai, em Belo Horizonte, por
Grande do Sul, por professores de Educação Física. volta de 1990, Suzana permitiu a formação profissional de vários
Difundida por outros estados brasileiros, a Psicomotricidade con­ psicomotricistas.
ta com um Curso de Graduação no Rio de Janeiro e diversos Cursos de Como referido anteriormente, ao terminar o curso de aperfeiçoa­
Especialização (Rio de Janeiro, Niterói, Fortaleza, Recife, Belo Horizonte mento em Psicomotricidade, em 1972, no Instituto Psicopedagógico de
e outras cidades mineiras). Minas Gerais, timidamente, fiz uma proposta para articular os conheci­
Trazida para Belo Horizonte, primeiramente por Maria Sylvia mentos de dança com os conceitos da Psicomotricidade, que foi aceita
Machado, psicóloga, no final dos anos de 1960 e, depois, por Jannê de pela diretora do Instituto. Passei a elaborar uma técnica auxiliar, associan­
Oliveira Campos, também psicóloga, no início dos anos de 1970, a do alguns movimentos da dança que, supunha, contribuiríam para o de­
Psicomotricidade foi introduzida no Currículo do Curso de Psicologia da senvolvimento das noções de espaço, tempo, lateralidade, coordenação

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motora c expressividade corporal de crianças e adolesi ciue\ iiinidldan em lórin da PgjcomotricidAilc, indiouluH por CtimuH. ()s resultados, eniman
RPM, no Instituto. Iniciei os atendimentos a partir dos casos encaminha lo, mostravam mais articulações, por meio das expressões e da fala dos
dos pela direçào do Instituto, em 1973. Nesta época, encontrava mc na pacientes. A descoberta, na contradição entre meu próprio pensamento e
segunda fase, a do Corpo Receptivo, mencionada no Capítulo 1.1, basean­ o que a prática mostrava, levou-me para mais perto da dialética de Mcrleau-
do-me nos ensinamentos de Wallon e Winnicott. Ponty. Embora a dialética do método de Wallon indique a saída do
A medida que atendia às crianças e aos adolescentes, procurava paralelismo psicofísico, a linha evolutiva sustentada por sua teoria impele a
escrever sobre a experiência e, no caminho do Instituto para o Palácio das sensório-motricidade em direção à representação mental, à consciência de
Artes, onde era bailarina profissional, surgiu o nome Coreoterapia, a terapia «i e do inundo, e o adulto se torna dicotômico. Na tentativa de articular o
pela dança, diante dos pedidos insistentes de Maria Sylvia. Posteriormente, corpo e o pensamento, criei, então, o conceito de articulação horizontal e
o atendimento ampliou-se para adultos, em outras instituições, hospitais articulação vertical para a revisão e a reorganização do que é do corpo e da
psiquiátricos e em consultório particular. Tive o privilégio de encontrar mente. Posteriormente, as noções e a experiência com o pensamento
diretores psiquiatras e psicanalistas, como Márcio Pinheiro, Luiz Carlos sistêmico, aplicado à psicoterapia de famílias e casais, mais os estudos so­
Ferreira Drummond, Carlos Motta Navarro, Djalma Teixeira de Oliveira, bre as idéias de Walter Benjamin ampliaram meu entendimento sobre a
Clóvis Sette Bicalho, que acreditavam na filosofia da comunidade terapêu­ sensibilidade, a presença e o significado do corpo no mundo.
tica, introduzindo-a em Belo Horizonte, no Centro Psicoterapêutico, o Os dois métodos desenvolvidos a partir das concepções da
primeiro hospital-dia inaugurado em Belo Horizonte, e no Hospital Santa Psicogenética de Wallon e fenomenológicas, de Merleau-Ponty, nos quais
Margarida. Alguns colegas, como Pedro Coura Filho, Martha Pedrosa, Suely também a Coreoterapia se baseia, serão apresentados mais adiante, após as
Machado, Simone Caporalli Ribeiro, Selma Andrade, Zlática de Farias, Maria definições de Psicomotricidade, dos conceitos principais e da classificação
Elisa Aun, Mônica Bruno, Lúcia Faria de Sá, Danilo Bastos Jardim, Diego tios distúrbios.
Valu Rodrigues participaram de grupos de formação em Coreoterapia, ali­
mentando discussões, revisando e introduzindo questões fundamentais para 1.2 Psicomotricidade: Ciência, Prática ou Paradigma?
mais objetividade teórica e prática da técnica, encarregando-se de difundir
a proposta em outros lugares. A partir de uma retrospectiva das influências teóricas e confluên-
A Coreoterapia foi apresentada em alguns Seminários e Congres­ cias metodológicas nos conceitos da Psicomotricidade, por diferentes áre­
sos de Belo Horizonte. No TV Congresso Brasileiro de Neuro- Psiquiatria as do saber, são apontadas as contradições inerentes à sua própria história.
Infantil e IV Congresso Latino-Americano de Psiquiatria Infantil, em 1977, Ciência que tem o corpo como objeto de estudo e tratamento, a
apresentei-a como Tema Livre. No mesmo Congresso, frequentei o curso Psicomotricidade deve ser considerada uma epistemologia que nega vali­
sobre “O inato e o adquirido” ministrado pelo Professor Juan de dade ao fenômeno psicomotor fora do contexto das relações histórico-
Ajuriaguerra. Em 1980, foi publicado o livro Coreoterapia-. terapia através Npciais. A intenção, ao longo deste livro, é apresentar a Psicomotricidade
da dança. (Belo Horizonte, Editora Interlivros) além das suas características de ciência e técnica, como o paradigma do
Inicialmente, procurando organizar a proposta técnica, passei a século XX e não como um reservatório de paradigmas.
me preocupar com sua metodologia (o como), definindo melhor o objeto Como vimos, a Psicomotricidade nasceu em berço francês, como
formal abstrato (o que), tocado pela técnica. Outros teóricos passaram a reação aos excessos do verbalismo e do intelectualismo do século XIX,
me esclarecer com mais propriedade o que eu pretendia invesdgar. A ques­ oscilando entre os polos pedagógico e médico, psiquiátrico e psicológico.
tão do dualismo corpo/psiquismo intensificou-se, pois ainda me via, teo­ Cresceu alimentada pela renovação dos conceitos da Psicogenética, da
ricamente, como os psicomotricistas da primeira e da segunda fase da his- Iv.nomenologia e da Psicanálise, afirmando-se como ciência autônoma,

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no século XX. A Fisioterapia, a primeira a aparecer no mui fio paramédico cortical. F.sia área mosirava uma junção meio misteriosa entre a imagem
como técnica de reabilitação, por volta de 1846, é considerada sua irmã mental e o movimento e recebeu o nome de área psico-motora. () termo
mais velha. Inicialmente, professores de Educação Física, Fisioterapeutas vem da composição entre a Psicogetiética: psico história do gesto e da
e Pedagogos foram os que mais se interessaram pela prática da ação motora, c da Neurologia: motricidade - ação motora que o corpo
P sicomotricidade. exibe no tempo e no espaço, que depende da integração dos sistemas pira
Por herdar seu conceito a partir da combinação de outros, tem si­ midal, extrapiramidal e cerebelar. Além das descobertas neurofísiológicas,
do considerada ciência encruzilhada (COSTE, 1981), na qual vários pontos as concordâncias entre a motricidade e a inteligência, observadas posteri
de vista se cruzam. Essa confluência, que caracteriza suas origens, me faz ormente por E. Dupré, em 1907, e as coocorrências entre a motricidade e
considerá-la uma ciência essencialmente interdisciplinar, pois como ciên­ o caráter, apontadas por H. Wallon, e publicadas em 1925, ajudaram a
cia do corpo e das relações, a Psicomotricidade empresta-se a outras fortalecer a Psicomotricidade que tem se esforçado, desde então, em se
áreas do saber que têm o corpo como objeto de estudo, investigação e tra­ guiar pelo princípio fundamental na consideração do ser humano em sua
globalidade.
tamento.
A Psicomotricidade é também considerada uma terapia que se pro­ O grande mérito da Psicomotricidade é o de ter aproximado o
corpo do psiquismo, retirando-o do limbo, de uma categoria inferior, rele­
põe a tratar as capacidades impressivas e expressivas do sujeito. Nas tera­
gado por Platão e Descartes. A doutrina do paralelismo psicofísico permi-
pêuticas psicomotoras, é possível reinventar o corpo em relação, na busca
tiu, a princípio, a possibilidade de investigação e tratamento dos aspectos
de novo projeto de vida, para que o corpo possa andar de braços dados
físicos e psíquicos de crianças e jovens, por meio de técnicas de caráter
com o pensamento. Resgatar o corpo que carrega a subjetividade atrás de
ortopédico, em discursos pedagógicos e paramédicos. Vem daí a reação e
si é um dos objetivos da Psicomotricidade. Decodificar a linguagem do
contribuição da Psicomotricidade: a de ter aproximado, pelo menos de
corpo na comunicação é tarefa do psicomotricista. As manifestações psí­
forma paralela, até dez anos de idade mental, o corpo do psiquismo, ou a
quicas estão entrelaçadas com as expressões do corpo. Separadas, indicam
motricidade do pensamento. A própria doutrina do paralelismo se encar­
que estamos doentes. Separá-las, é uma questão de paradigma.
regará de dar continuidade ao pensamento dicotômico da época, pois não
Todo psicomotricista tem obsessão pelo movimento e, onde ele
se pode esquecer que duas paralelas jamais se encontrarão!
estiver, põe-se como sentinela na defesa do estatuto do corpo.
Abre-se, portanto, um momento para pensarmos a Psicomotricida­
Mas, de qual corpo se fala em Psicomotricidade? O corpo do qual
de não só como ciência e técnica, mas também como o novo paradigma da
se fala neste texto é tratado tanto em sua dimensão real, como representa­
ciência, por romper com o modelo atomista, dicotômico e cartesiano da
do simbolicamente. época: o paradigma do cálculo, do mecanicismo do universo.
O conceito de Le Camus (1975) define o corpo como capaz de
Para se chegar a essa afirmação, é preciso repassar como se cons­
informar-se, estocando informações sobre si mesmo, e informar, emitin­ truiu o conhecimento ao longo do tempo. Sabemos que o homem sempre
do informações a partir de si mesmo. Segundo o autor citado, é o corpo da se preocupou em conhecer os fenômenos do céu e da terra. A história nos
lógica informacional, da impressão e da expressão corporal. Na concep­ conta que os gregos acreditavam que para se conhecer alguma coisa devía­
ção de Merleau-Ponty (1999), é o corpo na comunicação, na possibilidade mos usar a razão, a lógica. Posteriormente, na época medieval, a fé substi-
de se ver e ser visto, num campo de presença. Podemos identificá-lo, por­ tuiu a razão e aprisionou o fenômeno na ilusão do espírito. Ai daquele que
tanto, como o corpo ação-comunicação. ousasse conhecer, ou inventar fora dos muros, dos recintos e preceitos
Como vimos, a história da Psicomotricidade começa com o pri­ religiosos!
meiro adjetivo psico-motor, escrito com hífen, em 1870, quando os pro­ Quando, então, Galileu apontou sua luneta para o céu, no século
gressos da Neurofisiologia permitiram a descoberta de uma nova área XVI, o mundo veio abaixo! Instituiu-se, assim, a ideia de que o conheci­

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mento só linha validade se fosse adquirido pela observado, pela expcfi diante da prática. Ao procurar seu próprio caminho, com mais autonomia,
mcntaçao e pela elaboração dc leis. 0 psicomoiricista está sempre se esbarrando em contradições: alguns en­
Descartes, no século XVII, observa o fenômeno a partir de três caminham seus pacientes para outros profissionais, quando se veem às
substâncias: a alma, o corpo e Deus, e instaura o método científico voltas com problemas de ordem emocional, ou motoras, ou familiares. O
cartesiano, indicando ao mundo que só é possível conhecer o fenômeno que, muitas vezes, representa uma escolha, a que temos direito, outras ve­
se ele for separado em várias partes. As ciências, então, passam a aplicar zes pode revelar a dificuldade de se pensar o fenômeno em seus diferentes
esse método em seus devidos campos de investigação. aspectos. Afinal, somos criados e formados sob a perspectiva atomista, e
A Psicologia também adota essa direção e funda seu primeiro la­ cisões estão em todos os lugares: na família, na escola, na cultura.
boratório experimental, em 1879, na Alemanha. Encontra reações na In­ Se considerarmos o contexto histórico do século XIX, quando
glaterra, que preferiu pensar que o fenômeno deve ser conhecido no seu surge a Psicomotricidade e imaginarmos a vida à época, podemos vê- la
todo, na perspectiva de sua unicidade. Marcados historicamente por essas como pioneira ao romper a membrana tênue que separa o mundo físico
formas de pensar e conhecer os fenômenos, nós, psicólogos, também nos do mundo psíquico. Ao propor ao mundo uma forma prática de casar a
dividimos entre elas e concebemos o fenômeno ora em seus aspectos mente com o corpo, mesmo com as contradições inerentes ao seu exerci­
comportamentais, ora inconscientes, ora cognidvos, ora relacionais. do técnico, pautado pelas diferentes influências teóricas, a Psicomotricidade,
A intervenção na clínica psicológica passa a depender, portanto, a meu ver, inaugura, na prática clínica, nova maneira de ver e tratar a com­
dos métodos e das técnicas sustentados por uma e outra determinada con­ plexa condição de sujeito, diante das ciências, como novo paradigma das
cepção epistemológica. Tal diversidade teórica, ao mesmo tempo em que ciências.
possibilita a escolha, nos divide e atrapalha, enquanto se é um estudante de E só no século XX, no entanto, que a Psicomotricidade se impõe
Psicologia. Ora ele é capturado pelos parâmetros de evolução, progresso e c( imo disciplina autônoma, ao se separar de sua irmã mais velha, a Fisiote-
controle da Modernidade implicados na Psicologia, ora é estimulado a ca­ riipia, e da Educação Física. Em 1960, J. de Ajuriaguerra desata os laços
minhar em direção às epistemologias contemporâneas, que absorveram que as confundiam, ao fazer um corte epistemológico em relação à defini-
concepções da Filosofia. i,;io dos distúrbios motores (os que dizem respeito ao mecanismo do mo­
A necessidade de controle e a perspectiva de evolução e progresso vimento) e dos distúrbios psicomotores (os que dizem respeito à vontade
que a Psicologia absorve da Modernidade gera, em suas diversas teorias, do movimento), tornando pública a independência da Psicomotricidade.
diferentes conceitos do campo psicológico. Em nós, tal herança leva a ( ) corpo não é mais reconhecido apenas como um dos elementos da fa­
atitudes práücas que separam aptos de não aptos, em instituições, clínicas mosa dupla, mas caminho obrigatório da gênese do pensamento.
e escolas. Vamos ficando cada vez mais vesgos diante de nossos pacientes, Já em sua adolescência, a Psicomotricidade recebe outras influên-
numa expectativa de que alcancem um progresso rápido e eficiente em sua 1 i.is teóricas e é muito criticada pela Psicanálise, que não considera possí­
tarefa de ser alguém mais inteligente, ou mais habilidoso, ou mais harmo­ vel ,i relação dc transferência em sua prática. Mas, como todo adolescente,
nioso, bem-adaptado ao mundo e à escola, obediente à família, normal! A .i I '■ icomotricidade vive entre as contradições e os paradoxos da vida com
contradição acaba aparecendo também no modismo das questões da in­ i**» mais velhos. Continua procurando afirmar sua identidade, seguindo à
clusão, muitas vezes, excluindo o diferente. iim .i a perspectiva de conhecer o fenômeno em suas dimensões psíquicas,
Ao se constituir a partir das influências de outras ciências, a ,iletivas, cognitivas, motoras e sociais, entre bolas, tambores e transferência.
Psicomotricidade também herda diferentes formas de pensar e intervir em Filtre os anos de 1970 e 1980, surgem, então, várias propostas
sua prática, apesar de defender seu princípio básico: o ser humano é uno e para ampará-la nesse caminho obstinado. Passa a ser bombardeada com
deve ser considerado no seu todo, o que nos põe em constantes paradoxos métodos e técnicas diferentes, com bases da Psicogenctica, da própria Psi-
conáliae, que a critica, recebe contribuições da (íestalt:, da IvnimHMinlugm, lis* niatiilfHittçào da inteligência, ao fazer a distinção cnire a motricidade
da Psicologia das comunicações nào verbais e da Elologia. lunhora seja humana e a animal. Da natureza a uma civilização, dos reflexos motores a
considerada a ciência do corpo, a Psicomotricidade nunca apresentou um uma reflexão psicológica, a Psicomotricidade, para o autor, decorre de um
corpo teórico. Ao longo de sua história, as características da evolução do processo de aprendizagem dependente da mediatização que opera num
conceito de Psicomotricidade conferem a ela sua dimensão de ciência e de contexto social concreto (FONSECA,1998, p. 104).
tccnica. A definição de Psicomotricidade dada pela SBP, na ocasião do I
Para decifrar os códigos nào verbais que as crianças, os adolescen­ Congresso, de 1982, é aqui transcrita: É uma ciência que tem por objetivo o
tes e os adultos usam na comunicação com o mundo, o psicomotricista estudo do homem, através do corpo em movimento, nas relações com o seu mundo interno
deverá escolher um desses caminhos teóricos, em sua prática, que susten­ e externo.
tam também suas noções de corpo. Mediante essas observações, fico tentada a apresentar uma ques­
Na perspectiva fenomenológica de Merleau-Ponty (1998), por tão: Em vez de pensarmos a Psicomotricidade como um reservatório de
exemplo, o mundo tem um significado porque podemos tocá-lo e paradigmas, será que poderiamos considerá-la como o paradigma do sécu­
lo XX? Penso que o mais importante é deixarmos de nos preocupar com
representá-lo de uma só vez, com o nosso corpo e a nossa mente. Não é
seu objeto de estudo e passarmos a vê-la num campo híbrido de presença
preciso tocar o mundo primeiro para depois representá-lo, como sustenta
no mundo, capaz de acolher o que há entre as disciplinas que a configura­
a Psicogenética, ao considerar a motricidade a primeira expressão do
ram e o que há naquelas às quais empresta sua direção teórica e prática.
psiquismo, configurado evolutivamente ao longo de estágios do desenvol­
Aponto essa direção epistemológica, pedindo emprestado o raciocínio
vimento da criança e do adolescente.
sistêmico-cibernético, que nega validade ao fenômeno fora de seu contex­
Ao apresentá-la, também, como o paradigma das ciências, é preci­
to. Antes do surgimento dos princípios de globalidade, equifinalidade e
so, entretanto, citar alguns autores que buscam as bases epistemológicas

Í
retroalimentação, conforme propostos pela Teoria Geral dos Sistemas
da Psicomotricidade. No VII Congresso Brasileiro de Psicomotricidade,
(1930) da Cibernética (o comando da comunicação), por volta de 1940,
realizado em Fortaleza, Fonseca (1998) aponta que a Psicomotricidade está
vejo a Psicomotricidade como pioneira ao lançar as bases do sistemismo,
rodeada por um sem-número de práticas corporais desconceitualizadas,
na tentativa de aproximação de dois sistemas: a motricidade e a inteligên­
com discursos teóricos inconsistentes entre a Neurologia restritiva e a Psi­
cia. Podemos vê-la, portanto, como a ciência das ciências, que tem o corpo
cologia do tipo racional, ou relacionai, presa a emoções e afetos, sem, con­
e o psiquismo como objeto de estudo e tratamento. Passemos a considerá-
tudo, ter definido seus conteúdos, seus paradigmas e seus objetos de pes­
la, então, como a ciência das ciências, que tem um pouco de cada uma
quisa. E que as tentativas de abordagem epistemológicas da motricidade
delas. A Psicomotricidade não é Neurologia, não é Psicologia, não é Peda­
humana sustentadas em análises filosóficas atraentes e correntes do pen­ gogia, nem Psicanálise, nem Filosofia, mas tem um pouco de cada uma
samento contemporâneo, ao lado de fundamentos neurológicos, psicoló­ delas. Ao apontá-la como o paradigma do século XX, a Psicomotricidade
gicos, psiquiátricos e patológicos, tornam o objeto de estudo da negará validade ao fenômeno psicomotor fora de seu contexto, podendo,
Psicomotricidade um desafio mais sério de integração teórica. O autor ela própria, ser vista como uma epistemologia psicomotora. O que deve
aponta que o termo Psicomotricidade, diante da ambiguidade dos concei­ interessar a nós, psicomotricistas, são os mediadores entre o corpo e a men­
tos a que ela se associa, assim como sua significação, é definido na Enciclo­ te, o que se passa na junção misteriosa entre a imagem mental e o movi­
pédia Universal de forma ampla e vaga, como campo de todas as tentativas para mento, na articulação das expressões do corpo com a mente, na relação
analisar e realizar a perfeição do comportamento. Traça, então, as históricas influ­ com o outro e com o mundo, apesar de ainda sermos considerados como
ências e convergências de propostas teórico-práticas e apresenta o objeto profissionais auxiliares ou meros arlequins, entre a colombina e o pierrô
de conhecimento da Psicomotricidade como a chave da criação cultural, apaixonado.

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Autores contemporâneos sugerem que deixemos de pensar em
polos opostos: sujeito/objeto, homem/natureza e nos preocupemos mais
com os mediadores que ocorrem entre eles. Nada mais apropriado para
repensarmos nossa presença no mundo.
Ao apontar a Psicomotricidade como o novo paradigma da ciên­
cia, na revisão do raciocínio caracterísdco do homem moderno e abstrato
diante de si e dos outros, podemos considerar, por exemplo, a capacidade
de sermos “visíveis e videntes” na nossa condição no mundo, focalizando
a intervenção não verbal diante das relações que permeiam entre nosso
corpo e mente, com o corpo maior, ou seja, com o contexto onde vive­
mos. Talvez possamos nos colocar em uma interação corporal mais direta
com as pessoas que observamos, não nos esquecendo de nos ver nessa
relação, enquanto assim o fazemos, ao sermos vistos por elas.

Adotar essa direção paradigmática da Psicomotricidade nos per­


mite buscar a vertente educativa e a vertente clínica, segundo as três moda­
lidades de aplicação: a Educação Psicomotora, a Reeducação Psicomotora
e a Terapia Psicomotora.

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