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A Essência do Romanesco - A Materialização

Textual da Teoria Literária na Obra Se


um viajante numa noite de inverno,
de Ítalo Calvino

Inês Regina Waitz


Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada - UNESP/Assis
Coordenadora do Curso de Letras do Centro Universitário Anhanguera - UNIFIAN
e-mail: inês.waitz@unianhanguera.edu.br

Resumo Abstract

Este trabalho apresenta uma leitura do romance This article presents an analysis on the novel
Se um viajante numa noite de inverno, de Ítalo Calvino, written by Italo Calvino If on a Winter’s Night a

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no qual o autor materializa textualmente a teoria Traveler, through which the author materializes the
literária. Interessa-nos, aqui, mostrar que, através de theory of literature. It is intended to demonstrate that
um hiper-romance, o processo de releitura crítica da the process of critical rereading of the narrative
tradição narrativa acontece envolvendo o autor e o tradition through a hyper-novel occurs involving the
leitor numa mistura de papéis que se situam entre o author and the reader, both in a mixture of roles situated
mundo da realidade e da ficção. Nesse processo, between reality and fiction. In this process the
questiona-se o romanesco, isto é, o imaginário do texto, novelistic style is questioned ie, the imaginary of the
buscando a essência através da descontinuidade text, in search of the essence through both narrative
narrativa e da multiplicidade do narrável. descontinuity and multiplicity of the narratable.

Palavras-chave: Texto; leitura; romanesco; Key-words: Text; reading; novelistic style;


autor; leitor. author, reader.

Introdução atualização dos códigos que orientam a


construção do discurso, como a competência
A partir do rastreamento das várias teorias recepcional do leitor (STIRLE, 1979, p. 140)
como a crítica sociológica, a análise do discurso, revelada na sua capacidade de inferir, além da
a semiótica do texto, a intertextualidade e a “perspectiva do texto em si mesmo”, também a
estética da recepção, podemos definir o texto “perspectiva do sistema no texto”.
como “uma unidade comunicacional globalmente Se um viajante numa noite de inverno,
coerente, incluindo um locutor, um alocutário, de Italo Calvino constitui-se em um verdadeiro
uma referência ao mundo e marcas da situação modelo de texto inovado, no qual o autor discute
da qual emerge”. (REIS,1988, p.28). no plano da ficção algumas questões sustentadas
Pressupõe-se, assim, tanto a competência pelo pensamento literário e lingüístico dos tempos
intertextual (ECO, 1979, p. 86) do autor, na atuais. Trata-se da narrativa da jornada do Leitor,

* Bolsista FUNADESP - Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior Particular


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personagem principal do romance, em busca do onde todos os caminhos sempre se bifurcam,


fim da história. O livro começa com a leitura do somos convidados a percorrer um labirinto de
romance Se um viajante numa noite de livros, de imagens, de mistérios, de formas, de
inverno de Italo Calvino. “Você vai começar a sonhos, de violência, de falsificações, onde o
ler o novo romance de Italo Calvino, ‘Se um humor e a angústia permanecem inseparáveis.
viajante numa noite de inveno’”, anuncia o Quando percebemos a estrutura monstruosa, a
narrador logo na primeira linha. Na obra, o grande rede que vai se montando a cada página
próprio romance que o leitor (real) está a ler e o virada, é tarde demais: entramos no romance (e
seu autor (real) entram também como elementos no labirinto).
da ficção. Desde o início, o narrador, em segunda Ítalo Calvino conduz a narrativa com
pessoa, inicia uma brincadeira com o leitor, pois extrema eficiência, criando um efeito labiríntico
torna-o personagem da obra. no decorrer da estória. O triângulo autor/leitor/
O enredo mostra, portanto, o Leitor texto é inserido em um fascinante jogo de
(personagem) que inicia a leitura do livro Se um espelhos que possibilita infinitas interpretações.
viajante numa noite de inverno, de Ítalo Essa proposta de ficção é a manifestação
Calvino, e em determinado ponto da leitura, a literária de uma temática que está presente nas
melhor parte, descobre que o livro está teorizações desse século, de Pierce em diante, e
defeituoso, pois as páginas se repetem. tem em Umberto Eco um dos autores mais
Contrariado, o Leitor se dirige à livraria para representativos. O crítico italiano pondera que:
procurar o livro perdido e encontra a Leitora:
Ludmilla, que está com o mesmo problema que (...) cada um é livre para fazer o uso
ele. Ambos descobrem que o romance iniciado que quer de um texto (o que não
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não é de Calvino, mas de um autor polonês. O interessa do ponto de vista da


cooperação textual) ou então atribuir-
Leitor já não se interessa mais pelo livro de
lhe infinitas interpretações (e é este o
Calvino, ele deseja agora continuar a leitura do
tipo de leitura que efetivamente
livro polonês. Mas, novamente outro erro: o interessa). (1979, p.57)
romance que ele tem nas mãos não é polonês e
sim cimério. Intrigado, o Leitor marca um Ao leitor comum, no fundo, serve uma
encontro com Ludmilla na pequena sala do simples “des-construção” que o ajude a colocar-
professor de literatura Uzi-Tuzii, estudioso da se perante as peças do projeto do autor. A ele
língua ciméria. Quando o Leitor menciona ao caberá a tarefa de uma reconstrução muito
professor os nome dos personagens, este pessoal como contributo cooperativo para as
imediatamente o reconhece como a obra do infinitas e possíveis interpretações do texto.
maior representante da literatura ciméria: Ukko
Ahti. E se põe a traduzir a obra em cimério ao Se um viajante numa noite de inverno:
improviso. Mas, tanto a Leitora como o Leitor uma narrativa entre a tradição e o novo
verificam que, novamente, se trata de um outro milênio
romance. Destarte, saltando de história em
história, inicia-se a jornada do Leitor, e também Se observarmos as obras de Calvino, a
a nossa, no labirinto de livros apócrifos., “[do metáfora da viagem, do caminho, do percurso é
grego apókryphos: escondido, secreto]”, como evocada direta ou indiretamente, o que revela a
revela o próprio romance. (CALVINO, 1982, sua relação com os outros textos e com seus
p. 233) precursores. Sua viagem irá se realizar para trás,
O que se vê é o Leitor que abandona sua para rever, citar, parodiar e ironizar o próprio
confortável e passiva posição e parte em busca passado.
de um determinado livro que sempre o leva ao Em Se um viajante numa noite de
encontro de outro livro, totalmente diverso ao inverno dois leitores apaixonados um pelo outro
anterior, igualmente instigante e surpreendente, e pela leitura perseguem os capítulos iniciais das
mas, como o anterior, sem um fim. Nesta viagem, histórias. O título de cada capítulo constitui um
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fragmento de um quebra cabeça (pois os títulos Nas próximas histórias a tensão existencial
formarão uma outra história) e desenvolvem a é projetada através da história, da política e da
paródia intertextual. São dez tipos de romances ação “Sem temer o vento e a vertigem” e uma
de autores imaginários que expressam estilos avalanche brutal se apodera de “Olha para baixo
diferentes. Um exercício mimético apresentando na espessura das sombras”.
textos que vão do pastiche do romance negro “Em uma rede de linhas entrelaçadas”
norte-americano ao modelo revolucionário da explode o sentimento insustentável de desejo e
história címbrica, à constante invenção, de tipo de angústia enquanto que “Em uma rede de linhas
borgeano, de espaços mistificatórios. O diálogo entrecruzadas” o estilo é lógico, geométrico.
instaurado com o leitor pode ser entendido como “Sobre o tapete das folhas iluminadas pela
uma antecipação do caráter paródico do leitor lua” descreve as sensações complexas das folhas
pós-moderno, tão envolvido na história a ponto do gingko caindo dos galhos “como chuva
de não querer nada mais que uma reorganização miúda” ou “asas suspensas em vôo no ar”. “Em
de histórias já lidas: um pastiche que é a paródia torno da fossa vazia” imita o realismo mágico de
de todos os títulos possíveis. Borges e é chamado pelo próprio Calvino de
Na primeira história “Se um viajante numa telúrico-primordial. “Que história aguarda, lá
noite de inverno” a realidade é exposta em embaixo, seu fim?” é um típico romance
névoas, cujo efeito ao mesmo tempo atrai e apocalíptico: “O mundo é tão complexo, tão
confunde o Leitor: “As luzes da estação e as emaranhado, tão sobrecarregado que para ver
frases que lês parecem incumidas da tarefa e um pouco claro é necessário podar, podar.” (p.
dissolver as coisas, mais que mostrá-las: tudo 297).
emerge de um véu de obscuridade e nevoeiro.” Os dez inícios de romances, que podem

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(CALVINO, 1982, p. 18). O narrador aqui é ser lidos independentemente como contos, se
claro quanto ao estilo do livro e as estratégias colocados os títulos uns a seguir dos outros,
usadas que ao mesmo tempo que tenta previnir formam uma longa frase sinuosa e ambígua: “Se
o Leitor deixa-o mais confuso. um viajante numa noite de inverno/ fora da
Em “Distanciando de Malbork” tenta-se povoação de Malbork/ debruçado na borda da
passar uma sensação mais concreta , objetos se costa escarpada/ sem temer o vento e a vertigem/
apresentam com características corpóreas e olha para baixo na espessura das sombras/ em
sensuais: “Tudo é concreto aqui, denso, definido uma rede de linhas entrelaçadas/ em uma rede
com uma competência segura - tal ao menos é de linhas entrecruzadas/ sobre o tapete das folhas
sua impressão, Leitor...”. O leitor é envolvido eliminadas pela lua/ em torno de uma fossa vazia/
em uma “sinfonia de odores, sabores e palavras” que história, lá embaixo, aguarda o fim?”.
até que o narrador interfere para alertá-lo: “...essa Em um texto que é escrito com o
sensação de presença concreta que propósito de desviar a leitura para um ordenado
experimentaste desde as primeiras linhas do texto divertimento, o autor deixa emergir uma série de
é também uma sensação de perda, a vertigem sinais que se interrompem e figuras simbólicas
de uma dissolução; e disso te dás conta no que desnudam o aspecto negativo do universo
momento em que o experimentaste, Leitor em crise. Portanto, Se um viajante numa noite
avisado (...)”. (id. ibdem, p. 65) de inverno apresenta um duplo aspecto: um
A terceira história “Debruçado na borda patente, literário, não apócrifo, sustentado por
da costa escarpada” apresenta-se em forma de uma narrativa estilística de relevo, e aquela que
diário e lembra a obra Palomar, revelando se constitui como uma grande alegoria do caos
introspecção, reflexão: “Há dias onde tudo que que abrange todo o real.
vejo me parece carregado de significação: são No processo de desleitura, podemos dizer
mensagens que eu teria dificuldade em que o autor mostra a interdependência entre vida
comunicar, em definir, traduzir em palavras, mas e livro. Para o autor, o texto nada mais é que um
por essa razão me parecem decisivas.” intertexto, um remeter contínuo a uma cadeia de
(p.65, ,66) fatos infinita. Calvino expressa o seu interesse

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pelo lado material, sólido, da atividade da incontroláveis da palavra e da pena.


produção literária, pois a vida “real” é (p. 221)
representada na literatura pela materialidade da
escrita, como ele próprio comenta seja na forma Nesse infinito universo, a ambição de
de ensaio ou de romance: representar a multiplicidade das relações, em ato
e potencialidade, corresponde a um desafio para
O mundo se reduziu a uma folha de a literatura que Calvino já havia mencionado
papel onde ninguém chega a escrever em Seis propostas para o próximo milênio o
mais que palavras abstratas, como se de saber tecer em conjunto os diversos saberes
os substantivos concretos tivessem e os diversos códigos numa visão pluralística
desaparecido... (p. 305). multifacetada :

Frente ao mundo em pedaços, Meu intuito aí foi dar a essência do


fragmentado, em que a literatura contemporânea romanesco concentrando-a em dez
se situa, resultado de uma catástrofe romances, que pelos meios diversos
epistemológica e de uma desagregação de desenvolvem um núcleo comum, e que
valores, a escrita deve limitar-se à própria ação, agem sobre um quadro que determina
a recolher cacos do universo.1 e é determinado por ele. (1990, p.135)
Calvino, sendo um mestre do mimetismo,
marcado pela paródia, realizada por meio de Em Se um viajante numa noite de
uma intertextualidade exacerbada, monta uma inverno o autor busca a essência do romanesco
obra marcada pela citação de textos que se através da descontinuidade narrativa e da
multiplicidade do narrável, sendo que através de
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sobrepõem uns aos outros. Se um viajante


numa noite de inverno pode ser considerado pequenos contos interrompidos percebemos a
um romance do “não-romance”, da riqueza de informações, principalmente literárias,
impossibilidade de escrevê-lo. A materialidade que consagram a obra-enciclopédia materializada
da escrita é questionada através da vontade de pela consciência crítica adquirida pelo autor:
“dizer o indizível” que o escritor-personagem
Queria escrever um livro que não
Silas Flannery questiona em seu diário, de
fosse mais que um incipt, que
expressar sensações que a matéria escrita se
guardasse em toda a sua duração as
limitam: potencialidades do início, uma
expectativa ainda sem objeto. Mas
Algumas vezes penso na matéria do
como semelhante livro poderia ser
livro a escrever como algo que já
construído? (...) Hoje vou tentar
existe: pensamentos já pensados,
copiar as primeiras frases de um
diálogos já proferidos, histórias já
romance célebre, para ver se a carga
acontecidas, lugares e atmosferas já
de energia contida neste início se
vistas; o livro não deveria ser senão o
comunica à minha mão (...) (1982, p.
equivalente do mundo não-escrito
214, 215)
traduzido em escrita. De outras vezes,
em troca, creio compreender que
Assim, podemos chegar a uma primeira
entre o livro e as coisas que já existem
não pode haver senão uma espécie conclusão que remete ao conceito de texto como
de complementaridade: o livro deveria releitura do passado deixando claro a
ser a contraparte escrita do mundo interdependência entre vida e texto. Através dos
não-escrito... (p. 208) inesgotáveis diálogos que o autor faz com a
tradição, vemos que os temas da leitura e da
É nos limites do ato da escrita que a escrita já haviam se materializado em seus
imensidão do não-escrito torna-se romances anteriores, mas em Se um viajante
legível, quero dizer: através das numa noite de inverno isso acontece de forma
incertezas da ortografia, dos bastante original.
equívocos, dos lapsos, dos desvios
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No capítulo VI, em uma carta de Marana, preenchendo estes intervalos textuais, é que o
fala-se de um velho índio conhecido como “Pai processo de leitura se completará. A
das Histórias”, cego e analfabeto, que conta sem concretização do texto é individual pois depende
interrupção histórias passadas em países e do horizonte de expectativas que, por ser um
épocas completamente desconhecidos dele: “O sistema subjetivo de referências, varia de um
velho índio seria então, segundo alguns, a fonte leitor a outro. Os “não-ditos” fragmentam a
universal da matéria narrativa, o magma estrutura de significação do texto em segmentos
primordial de onde partem as manifestações que serão ordenados em grupos pelo leitor, que
individuais.” (p. 140) estabelecerá uma relação entre eles, segundo
Podemos dizer que a nova concepção da uma perspectiva própria.
literatura que enfatiza a leitura, no mundo O leitor opera a dinâmica do texto que
cibernético e lógico da contemporaneidade, assume vários significados dependendo do
retoma elementos míticos (como o velho índio) contexto, re-utiliza os códigos do repertório
inspirando uma fusão entre o processo de narrar extratextual e interpreta os dados internos da
e o conto maravilhoso, pois a literatura não deve produção textual. Quem fornece os limites de
se sentir prisioneira de uma máquina, sua tarefa interpretação é o co-texto (o texto em si mesmo,
consiste em justamente ultrapassar os limites da relacionados com as unidades sintáticas e
linguagem. Ela adquire sua função naquele vazio semânticas). O leitor pode ler o que quiser desde
da linguagem que se relaciona com o que o co-texto permita. A interpretação, portanto,
inconsciente, que fala nos sonhos, nos atos falhos, cobre os vazios contidos no espaço que se forma
nas associações. Nesse sentido, a literatura, entre a afirmação de um e a réplica do outro
livrando-se da obrigação de representar a ordem No romance de Italo Calvino as próprias

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existente, adquire a possibilidade de colocá-la interrupções das histórias formando elipses
em discussão. dentro do texto já possibilita as interpretações
Assim, podemos definir Italo Calvino do leitor quanto ao seu final. É a expectativa
como um escritor “leitor dos clássicos” e quanto ao que vem depois que marca a liberdade
preocupado com o “próximo milênio”, de imaginarmos a continuação da história. Outras
lembrando a evolução e o amadurecimento das vezes o narrador sugere a escolha ao leitor de
suas obras da primeira para a segunda fase. maneira mais explícita através do uso de
Significa a materialização da consciência do autor parênteses, de reticências ou de uma
quanto a sua tradição (os antepassados que interrogação:
marcaram sua obra) arriscando a aproximação
com o futuro através de um experimento, como Este bar (ou “restaurante da estação”,
foi feito com o romance Se um viajante numa como quiser chamá-lo) (p.19)
noite de inverno, que como uma redefinição de
No lugar do vidente índio que contava
texto, coloca em evidência o leitor, de forma a
todos os romances do mundo, te vês
valorizá-lo como categoria de interpretação e
diante de um romance-armadilha
enriquecimento da obra. preparado por um tradutor desleal,
com os inícios dos romances deixados
O Leitor e o Texto em suspenso... Como é deixado em
suspenso a revolta, já que os
Toda obra, segundo a estética da conjurados esperam em vão
recepção, deixa espaços vazios decorrentes da comunicar-se com sua ilustre
ambigüidade, do dialogismo, do discurso irônico, cúmplice, e o tempoplana imóvel sobre
da pluridiscursividade, enfim, de estratégias as costas lisas da Arábia. Será que tu
textuais as mais diversas que configuram as lês? Será que devaneias? Têm tanto
poder sobre ti as fabulações de um
estruturas de apelo do romance e orientam a
grafômano? Será que sonhas tu
presentificação da mensagem ficcional.
também com uma sultana petrolífera?
Entretanto, somente com a participação do leitor, [...] (p. 149)
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No terceiro capítulo o narrador sugere “a lábios. Mas acreditas seriamente que


idéia de que há um segredo escondido nas essa história possa continuar assim?
palavras” e a maneira de Umberto Eco (1994) Não, não a do romance: a tua! Até
compara o caminho da leitura com o de uma quando te deixarás arrastar
passivamente pelo curso dos
floresta: “abres um caminho em tua leitura como
acontecimentos? Tu te lançaras na
no mais denso de uma floresta” (1982, p. 51).
ação com um grande desejo de
O Leitor tenta preencher as lacunas deixadas aventura: que sucedeu? Tua função
pelo romance, que alternam duas folhas brancas depressa passou a ser a daquele que
com duas folhas impressas, mas não consegue. se limita a tomar conhecimento de
E o narrador brinca: situações por outros, de que sofre
arbitrariedade, se encontra implicado
“Tentas preencher a lacuna, retomar em eventos que escapam ao seu
a história, segurando-te ao fragmento controle. Nessas condições de que te
de prosa que vem após, serve teu papel de protagonista? Se
esfrangalhado como as bordas das continuas a te prestar a esse jogo, é
folhas talhadas pela espátula. Não te preciso dizer que és cúmplice, à tua
encontras mais aí: os personagens maneira, da mistificação geral.
mudaram, o contexto também, não (p. 264)
compreendes de que se fala...” (p. 52)
A participação do leitor nessa obra é
Na verdade, trazendo o leitor para o texto, controlada e consiste na apreensão de um
Italo Calvino dá-lhe crédito, mas, ao mesmo conteúdo específico. A metanarrativa reserva o
tempo, parece dirigi-lo, controla-lo, como
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espaço para a auto-apreciação do processo de


quando o conduz à livraria, logo no início que gênese da obra de ficção, reitera o papel do leitor
traça o seu caminho até a livraria: como instância do discurso ficcional. A ele é
reservado o poder de decidir e reavaliar os
Um momento. Reflete. Ordena um
problemas teóricos expostos.
pouco essa massa de informação que
Além disso o papel de protagonista dado
despenca de uma só vez na tua
cabeça. Um romance polonês. O que ao leitor é duplo, tendo o Leitor e a Leitora cada
tinhas começado a ler com tanto um a sua função. Ao primeiro não é dado uma
interesse não era o livro que pensavas caracterização ou gostos precisos, pode ser um
mas um romance polonês. Mas então leitor ocasional e eclético. A segunda é uma leitora
é este que deves procurar com de vocação, que sabe relatar seus gostos e
urgência. É este que deves ter. opiniões teóricas (embora ela use formulações
Explica claramente a coisa. (p. 36) o menos intelectuais possíveis); representa uma
leitora média porém bem consciente do seu
E o leitor parece ouvir a voz do narrador: papel. Calvino quis representar (e alegorizar) o
envolvimento do leitor (do leitor “comum”) com
- Escute, não, o Calvino não me um livro que não é o que ele espera que seja.
interessa mais absolutamente.
Enfim, o texto obriga a participação do
Comecei o polonês, é o polonês que
leitor, pois no final apresenta oito leitores
quero continuar. Você tem esse
Bazakbal? (p.37) entrando em conflito e defendendo uma
determinada concepção de leitura. Percebemos
Nestas condições, o narrador sabe que desde um protótipo de leitor fantasioso (o
pode questioná-lo no momento que desejar e o primeiro) e um escrupuloso (o último), que abrem
faz de maneira irônica: e fecham o debate na biblioteca e materializam a
alternativa dramática, o leitor entusiasmado, que
Leitor, reencontraste o livro que se deixa envolver completamente pelo enredo
procuravas; vais poder retomar o fio até confundir-se com o protagonista, até o leitor
interrompido; um sorriso volta a teus modelo que interpreta o texto segundo aquilo
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que parecia significar. As perspectivas dos oito modelo a imitar cada vez que ela quer
leitores são contraditórias, mas participam de acionar sua virtude especulativa.
uma única alegoria: a de um mundo vivido por (p.195)
meio da leitura.
Na verdade, o que se escreve neste Com o discurso na primeira pessoa, o
romance é o modo de escrever/ler. A atitude de narrador, que se define do sexo masculino e com
desvendar essa escritura acaba por refazer, aptidão para decisões práticas, relata fatos que
criticamente, a tradição narrativa: questionar o o levaram a atrair-se por elementos catóptricos
“romanesco”, isto é, o imaginário do texto. Esse que acabaram por influenciar a reconstrução de
“imaginoso mundo” confunde-se o tempo todo um projeto do “teatro polidíptico”, “no qual
com o material utilizado para levá-lo adiante: a sessenta espelhinhos forrando o interior de uma
palavra, a frase, o parágrafo, o capítulo, a grande caixa transformavam um ramo em uma
metáfora, o mito do eu autor, do narrador, a idéia floresta, um soldado de chumbo em um exército,
concretizada de leitor, etc (é uma confusão em biblioteca um caderno de notas” (p. 196)
crítica, auto-consciente). O narrador sugere Em meio a histórias o narrador confessa:
explicações incertas ao leitor que fica confuso e
É minha imagem que quero
impedido de orientar-se. Na verdade é o autor
multiplicar. Não por narcisismo ou
que conhece o raciocínio do seu leitor e o megalomania, como se poderia
manipula o tempo todo. Mas ele também é facilmente pensar: ao contrário, para
personagem dessa narrativa labiríntica e a esconder, no meio de todas estas
tentativa de fuga consiste em fazer uma viagem ilusórias duplicações de mim mesmo,
que o transporte ao “lugar da multiplicidade das o verdadeiro eu que as faz mover-se.

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coisas possíveis”, acumulando suposições sobre (p. 196)
suposições. Para Calvino, a experiência
verdadeira surge quando a certeza deixa espaço ...compreendi que apenas me
à incerteza. Quanto mais estes espaços se multiplicando, multipliacando minha
pessoa, minha presença, minhas
alargam mais aumenta o poder da experiência.
saídas e meus retornos, em suma,
Calvino procura estes espaços dentro das
multiplicando as ocasiões das ciladas,
interrupções, do não-finito, das contradições. O é que eu tornaria improvável minha
estilo do pensamento do autor não é dialético queda em mãos inimigas. (p. 198)
mas “antinômico”: a sua atenção se concentra
sempre numa relação de dependência e A narrativa, na verdade, articula-se de
condicionamento, numa interdependência entre forma a conduzir o protagonista e o leitor em um
termos opostos que se entrelaçam podendo jogo de espelhos produzindo labirintos. Após
revelar-se uma prisão, um labirinto inextricável. refletir sobre conceitos entre “falso” e
“verdadeiro” em várias situações e referir-se a
O Jogo de Espelhos história antiga dos espelhos o narrador
protagonista é preso em uma câmara catóptrica
O conto “Em uma rede de linhas que “remetiam ao infinito” sua imagem. A figura
entrecruzadas”, do escritor personagem Silas do espelho corresponde à reduplicação textual.
Flannery inicia com uma comparação entre a Calvino reaproveita a idéia do labirinto para
atividade de refletir e os espelhos, na qual um lubridiar o seu leitor que se vê inserido na
narrador masculino expressa a seguinte narrativa, onde as imagens e os acontecimentos
afirmação: se multiplicam, o leitor se perde no labirinto
construído pelo autor.
Daí, sem dúvida, a necessidade que
Na literatura o espelho pode simbolizar,
eu tenho de espelhos para pensar: não
posso me concentrar sem a ajuda das entre outras coisas, a multiplicação dos
imagens refletidas, como se minha significados ou sua inversão. Introduzido aqui de
alma tivesse necessidade de um forma simbólica mais ou menos no meio do livro,
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a citação do espelho serve para que o texto O romance que tenho mais vontade
aumente o efeito da parte tratada pelo capítulo de ler neste momento - explica ela - é
sétimo que, como o livro inteiro, se divide entre aquele que tirasse toda a sua força
uma parte do texto onde se fala do Leitor e a motriz da única vontade de contar, de
acumular história sobre história, sem
Leitora à procura do livro escrito e um trecho
pretender impor uma visão do mundo;
(ou capítulo) em que se mostram histórias
um romance que simplesmente
relacionadas com esta procura mas que, fizesse você assistir a seu próprio
aparentemente, pertencem sempre a livros crescimento, como uma planta, com
diferentes. De fato os livros procurados serão o seu intrincado de ramos de ramos e
de Italo Calvino (ou seja, o próprio Se um folhas... (p. 109)
viajante numa noite de inverno), o livro escrito
por Silas Flannery e sua tradução (ou falsificação) Ludmilla dá as costas à leitura acadêmica
pelo tradutor espião Ermes Marana. Este último, buscando a condição da leitura inocente, natural,
verdadeiro anti-herói do livro, defende posições primitiva, o prazer do texto. É ela que reflete
de vanguarda: como se ele representasse as sobre o papel do autor que “não se encarnam
posições de um crítico borgiano pós-moderno nunca em indivíduos de carne e osso, para ela
que sonha com uma literatura de apócrifos, uma só existem nas páginas publicadas, vivos ou
literatura de falsa atribuições, de imitações e mortos, lá estão, sempre prontos a se comunicar
pastiches. O objeto da luta travada por Marana com ela, seduzi-la, a maravilhá-la, e ela sempre
são os autores, mais especificamente, sua função. pronta a segui-los, com essa leveza volúvel que
O texto cria uma ilusão de verossimilhança se tem nas pessoas incorpóreas” (p. 191) É
no leitor real que parece fazer parte da narrativa. através dela que se dá o questionamento da
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A preocupação com o leitor ideal é sobretudo relação entre autor e leitor, pois ela é a leitora
sensível na forma como se constitui a que busca e reflete sobre o prazer da leitura,
personagem da leitora, aquela que melhor objetivo que o texto também procura expressar.
corresponde às qualidades de penetração, de
empatia com, de capacidade para a reescrever. Conclusão: A multiplicidade potencial do
Mas a leitora tem quase sempre o estatuto de narrável e a essência do Romanesco
personagem na terceira pessoa, só
episódicamente o Eu-narrador lhe dirá tu. Foi Em Seis propostas para o próximo
íntima namorada do tradutor falsário, o inventivo milênio, Calvino confessa que sempre teve a
Marana, cujas manobras e inverossímeis viagens ambição de representar a multiplicidade das
se entrelaçam na corrente das narrações. relações, em ato e potencialidade, pois o grande
Conhece Silas Flannery e parece ser a mulher desafio para a literatura “é o de saber tecer em
que lê na espreguiçadeira do vale, a leitora conjunto os diversos saberes e os diversos
desejada, a que deveria fazer não só uma leitura códigos numa visão pluralística e
projetiva (em que se lê a si mesma no texto) mas multifacetada”.(1990)
uma leitura total, com o entendimento profundo O conhecimento como multiplicidade é o
e perfeito do autor e da sua solidão repartida fio que ata as obras maiores, tanto que se vem
em palavras. Tem ela, por tudo isso direito a um chamando de modernismo quanto do que se vem
nome: Ludmilla. Diz por vezes o que Calvino chamando de pós-modernismo, um fio que - para
pensa e deseja como romance diferente: além de todos os rótulos - segundo o autor,
gostaria de ver desenrolando-se ao longo do
Porém eu gostaria de que as coisas milênio: “Os livros modernos que mais admiramos
que leio não estivessem todas aí, nascem da confluência e do entrechoque de uma
maciças a ponto de as poder tocar, multiplicidade de métodos interpretativos,
mas que se sentisse à volta a presença
maneiras de pensar, estilos de expressão” (id.
de uma outra coisa que ainda não se
ibdem, p.131)
sabe o que é, o sinal não sei de que.
(p. 56) Defendendo um ideal estético que visa a

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A Essência do Romanesco - A Materialização Textual da Teoria Literária na Obra Se um viajante numa noite de inverno, de Ítalo Calvino

exatidão de imaginação e de linguagem Calvino de continuidade na vida ou de inevitável na morte.


cita Jorge Luis Borges, o qual consegue, através Calvino, ironicamente, opta por um final
de seus contos, passar a idéia de infinitos tradicional para que seu leitor não reclame ter
universos contemporâneos em que todas as sido frustrado.
possibilidades se realizam em todas as O autor mostra total domínio da escrita
combinações possíveis. O modelo das “redes para persuadir o leitor e comunicar alguma
dos possíveis” pode ser concentrado nas poucas fantasia através da bruxaria de seus narradores
páginas de Borges o que possibilita dizer que, que fazem seus leitores viverem uma ilusão. Este
hoje, a regra da “escrita breve” é confirmada é o poder mítico da literatura que não deve se
até pelos romances longos, que apresentam uma sentir prisioneira de uma máquina. Aí o desejo
estrutura acumulativa, modular, combinatória. Foi de liberdade do autor, de ser outro. O texto
o que se pretendeu com o “hiper-romance” Se como escritura, como “tecido dos significantes
um viajante numa noite de inverno, que que constitui a obra” compõe a sua essência,
procura ser uma espécie de máquina de pois é ele o intermediário da comunicação entre
multiplicar as narrações partindo de elementos os mundos do autor e do leitor .(BARTHES,
figurativos com múltiplos significados possíveis. 1980, p.17)
Podemos, neste caso, pensar o texto Assim, a representação escrita de um fato
como artefato construído pela imaginação que, ou acontecimento coloca o velho problema da
como tal, possui contato com o real. Não se trata relação entre as palavras e as coisas, ou seja,
de uma transfiguração do real mas sim de uma entre o texto e o mundo.
realidade provida de imaginação. A essência do Italo Calvino cria um universo ficcional que
romanesco se constitui na espera por algo que permite ao leitor se abrir para os devaneios de

Revista de Educação
ainda está por vir, é um desejo, um sonho, uma um mundo fantástico, o que antes, em algumas
fantasia ou uma lembrança recalcada que espera de suas obras, criava alguns problemas de
encontrar espaço no mundo da ficção, afinal a verossimilhança. Nesse sentido, a agilidade do
ficção se situa num espaço entre nossa vida real autor sempre se fez presente em relação à
e nossos desejos e fantasias. narrativa que questiona a própria existência
Italo Calvino não só questiona o próprio incluindo a função do próprio autor.
texto enquanto artefato, mostrando uma Parece que o que resta de objetivo, de
consciente eficiência na maneira de escrever (ou não ficcional é apenas o caráter material da
narrar), mas também desnuda uma teoria da escrita fixado pela marca da tinta que “corre e
literatura riquíssima, resultado de uma intensa corre e floresce e envolve um último cacho
atividade de leitura de toda uma vida. Frente ao insensato de palavras idéias sonhos e acaba”
mundo capitalista o mundo da ficção funciona (CALVINO, 1991, p. 254), pois todo o resto
como um espelho mágico que refaz a realidade se torna mutável, transitório, parte de um
de maneira menos explícita. É nela que os autores imaginário que remete ao contexto das
materializam suas angústias ou “obssessões”. interpretações.
Concluímos que através da multiplicidade
do narrável a atitude por questionar o romanesco, Referências Bibliográficas
ou seja, o imaginário do texto, se deu de forma
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1980.
a parodiar o cenário literário que ganhou outra Roland.
interpretação, uma versão própria do autor que, BORGES, Jorge Luis. O aleph. Trad. de Flávio J.
através da descontinuidade narrativa, chama a Cardoso. Porto Alegre: Globo, 1982.
atenção do leitor para as questões literárias, pois _______. Ficções. Trad. Carlos Nejar. São Paulo:
o leitor é induzido a refletir. Circulo do Livro, 1995.
CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de
A multiplicidade nada mais é que um inverno. Trad. de Margarida Salomão. Rio de Janeiro:
disfarce, uma máscara que representa uma única Nova Fronteira, 1982.
essência: a vida. Por isso, o romance oferece _______. O barão nas árvores. Trad. Nilson Moulin.
dois caminhos ao leitor, como na vida: o que há São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

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Inês Regina Waitz

_______. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson


Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
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Notas

1
“Escreve-se para tentar preservar um pedaço do
universo - não maior do que a página que se escreve -
da degradação geral. Mas nesse momento é tão diícil
dizer para onde vai a literatura quanto dizer para onde
vai o mundo...”. Pier Paolo Pasolini. Empirismo eretico.
Milano: Garzanti, 1981, p. 36.

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