Introdução
Se olharmos para as contas públicas do Brasil, veremos que no último ano foram
arrecadados mais de 2 trilhões de reais em impostos. O governo federal fica com a
maior parte desta quantia, 1,22 trilhão! E o restante fica com os estados e municípios.
Certamente o leitor já deve ter se perguntado: para onde vai toda esta riqueza?
Esta é uma curiosidade de muita gente. Todos os anos, no período da declaração
anual de imposto de renda, o contribuinte, quase sempre irritado, faz este mesmo
questionamento. Da mesma maneira os trabalhadores, quando recebem seus salários ao
fim do mês e percebem que parte dele foi reduzida em descontos relacionados a tributos
obrigatórios. A dúvida fica ainda mais inquietante quando percebemos que nos preços
de todas as mercadorias, nos supermercados, postos de combustíveis, aluguéis, feiras,
etc. estão embutidos uma série de impostos que tornam os produtos e serviços bem mais
caros.
Mas, por que isso é necessário? Afinal, para onde flui esta quantidade tão grande
de recursos arrecadados pelo Estado?
A justificativa, todos conhecemos muito bem. Fala-se em manutenção dos
serviços prestados à população, em garantir programas sociais e de transferência de
renda, em viabilizar a melhoria da infraestrutura, etc. Todas essas explicações são
amplamente divulgadas pelos meios de comunicação. Mas, será que isso é tudo? Não
parece que há algo de errado com estas explicações? Pois os serviços são péssimos, a
infraestrutura é um problema grave e os programas sociais representam muito pouco do
orçamento do governo federal. Então há alguma coisa aí que não é devidamente
esclarecida para todos nós? É exatamente isso que ocorre. As explicações que nos
oferecem os jornais e os “doutores” em economia, administração e finanças não revelam
o problema em sua totalidade. Intencionalmente, escondem das pessoas para onde vai a
maior parte do dinheiro arrecadado com impostos. Além das justificativas oficiais
existem outros motivos para que o governo se empenhe, cotidianamente, em se
apropriar de toda esta riqueza produzida pelos trabalhadores. E é justamente destes
motivos ocultos que gostaríamos de falar um pouco.
Uma primeira coisa que os programas de TV, jornais, revistas, escolas, as
universidades e seus “doutores” não deixam claro para as pessoas é que quase a metade
de tudo que o Estado arrecada é usada, pelo governo, para pagamento de juros e
amortizações1 de uma dívida que, segundo a organização Auditoria Cidadã2, é ilegal. As
provas e argumentações sobre a ilegitimidade desta dívida são taxativas. Os políticos no
parlamento e o Poder Executivo negam sistematicamente o pedido de realização de uma
revisão desta dívida. E assim, ano após ano, grande parte dos recursos arrecadados com
impostos segue para os bancos privados, que fazem empréstimos a juros altíssimos. O
1
Pagamentos parcelados do valor principal de uma dívida.
2
Ver documentos no site http://www.auditoriacidada.org.br/
1
que não se diz nos meios de comunicação é que no último ano 42,4% de todo
Orçamento Geral da União, cerca de R$ 962 bilhões, foi destinado ao pagamento desta
dívida que, como falamos acima, é completamente irregular3. Calculando na ponta do
lápis, nem deveria existir mais. Quando levamos em consideração apenas o que era
realmente devido, sem as fraudes financeiras, verificamos que a dívida já foi paga faz
tempo. E várias vezes. Porém, muita gente continua ganhando com ela todos os anos.
E quem exatamente ganha com isso? Os grandes bancos em primeiro lugar, além
de investidores nacionais e estrangeiros, latifundiários, e as grandes corporações
industriais e comerciais. O que acontece é que o Estado transfere a riqueza produzida
pelos trabalhadores do país para o setor financeiro, que por sua vez a “redistribui” entre
outros setores da economia. E, com isso, contribui para sustentar e manter o sistema
capitalista funcionando.
Além do pagamento da dívida pública, outra parte do que é arrecadado com
impostos, o que também é pouco comentado na mídia, vai para a manutenção da
máquina estatal, com todo seu aparato: burocracia administrativa, sistema educacional,
sistema judiciário, força policial, parlamento, etc. Parte do que produzimos anualmente
são recursos que fluem para os cofres do Estado para garantir sua própria existência.
Deixando bem claro: a reprodução do poder estatal, com todos seus órgãos, instituições
e funcionários, é garantida pelo produto do trabalho de milhões de pessoas.
Neste momento, nosso leitor já percebeu que a maior parte dos impostos vai para
o pagamento da dívida e para a manutenção do aparelho estatal. E os tão falados
serviços prestados pelo Estado? E as políticas de assistência? Pois bem. Depois de
satisfeitos os apetites do grande capital e as necessidades de manutenção da estrutura
burocrática/repressiva/ideológica, só então o que sobrar (e se sobrar) é repassado na
forma de serviços e programas sociais. Basta um único exemplo para entendermos isso.
Ao passo que o pagamento da dívida promove a transferência de 42,4% do Orçamento
da União para o sistema financeiro, um programa social considerado um sucesso, o
Bolsa Família, dispunha de menos de 1% deste orçamento.
Diante de tudo isso, ficamos incomodados e podemos perguntar: com outro
governo esta situação poderia ser diferente? O Estado pode mudar esse jogo? Se um
governo realmente comprometido com as causas populares assumisse o poder, seria
possível destinar mais recursos para beneficiar os trabalhadores e menos para o capital?
Porque nenhum governo, nem de esquerda nem de direita, faz isso?
E se o leitor estiver verdadeiramente indignado, pode até pensar da seguinte
forma: se o Estado existe apenas para colher impostos e, a partir daí, transferir riqueza
para grandes empresas e bancos, para que os trabalhadores precisam do Estado?
Podemos viver sem o poder estatal? Algum grupo social na história da humanidade já
viveu sem o Estado?
Para pensarmos sobre todas essas perguntas precisamos começar refletindo sobre
outra questão que é anterior a todas elas e que servirá de fundamento a partir do qual
buscaremos todas as nossas respostas. A questão é: o que é mesmo o Estado?
3
Sobre a ilegalidade da dívida brasileira, ver: http://www.auditoriacidada.org.br/wp-
content/uploads/2012/08/Principais-Investigações.pdf
2
Aqui chegamos ao tema central que discutiremos ao longo deste pequeno livro.
A partir desta interrogação inicial vamos refletir um pouco sobre a origem e a estrutura
do Estado. Veremos como muitos sábios pensaram este problema no passado e como
influenciam nosso modo de ver as coisas até hoje. Neste caminho chegaremos até a
análise crítica do conceito de Estado elaborada por dois grandes filósofos alemães:
Marx e Engels. Sempre que possível, tentaremos dar uma pausa nas reflexões teóricas
para observar a realidade concreta, o mundo que nos cerca, a fim de que possamos
conferir, juntos, se as teorias explicam satisfatoriamente o mundo real ou não. Caso não,
teremos de abandoná-las.
É para esta aventura que convidamos o leitor a partir de agora. Para a aventura
do conhecimento do mundo social. E aqui, particularmente, de um dos mais
interessantes e importantes fenômenos da vida em sociedade: o Estado.
Caro leitor, seja sincero. Em algum momento você já parou para refletir sobre
esta questão: o que é o Estado? Provavelmente não.
Esta é uma daquelas perguntas que as pessoas não fazem porque parece que a
resposta é óbvia, evidente. A pergunta se afigura sem sentido porque a existência do
Estado, a sua definição, características e finalidade, são compreendidas como naturais e
portanto incontestáveis. Tão naturais quanto o Sol nascer no leste ou as abelhas
produzirem mel. Ou seja, é natural no sentido de que “sempre foi assim” ou “não é
possível ser diferente”. Então, por que pensar nisso?
A ideia de Estado que foi naturalizada é a de que ele representa um “poder
soberano”, que está acima de tudo e todos, que governa a vida das pessoas por meio de
certas instituições públicas e que tem como finalidade organizar a sociedade para que os
interesses comuns sejam garantidos. Em suma, o ponto de vista da maioria das pessoas é
o de que o Estado existe para promover o bem comum.
Juntamente com esta ideia há o entendimento de que se hoje ele não está
cumprindo esta função central é, principalmente, porque as pessoas que estão no seu
controle são demasiadamente incompetentes ou corruptas. Mas, nas sociedades
democráticas atuais, há uma forma de tentar corrigir esta falha: as eleições. Se a
população, suficientemente consciente, conseguir eleger candidatos virtuosos (honestos,
inteligentes, ativos, eficientes, justos, etc.) e que sejam comprometidos com as causas
populares, aí então o Estado voltará a ser o órgão máximo de promoção do bem-estar
geral e da paz social.
Nesta forma de pensar, o Estado seria uma instituição indispensável para a
existência humana, pois sem ele o que restaria seria o caos, a desordem, o desrespeito à
vida e à propriedade. A vida social só é possível por intermédio do poder estatal.
Esta visão do problema não é nova. Na verdade, é muito antiga.
A origem e sedimentação da ideia de Estado descrita acima nos leva até a Grécia
antiga. Passa pelo mundo medieval e moderno, sofre algumas alterações e acréscimos
neste percurso, e nos chega até os dias de hoje. Vejamos isso um pouco mais.
3
1.1 – Os sábios do passado e suas influências sobre o que pensamos hoje
Aristóteles
4
Por visão de mundo queremos dizer todo um conjunto de ideias, valores, emoções, práticas e
comportamentos que a sociedade produz, em dadas circunstâncias, acerca da vida, da natureza e das
relações entre os indivíduos e destes com a coletividade.
4
não buscar a vida em comunidade. Deste fato decorre que os homens têm a tendência
natural de buscar a realização dos interesses coletivos, deixando em segundo plano os
interesses particulares. Quem age de maneira diferente faz isso porque não tem virtude,
ou porque sua alma está corrompida. Mas isso não é o normal, é uma exceção. As
relações entre a sociedade e o indivíduo são estruturadas na harmonia, e o interesse
político, ou social, sempre deve predominar nas ações humanas. Este seria o verdadeiro
sentido da vida das pessoas.
Lembremos que o ambiente social do filósofo era a Grécia Antiga, civilização
que em seu auge criou a democracia e que na sua dinâmica de desenvolvimento os
interesses de cada cidadão só poderiam efetivamente se realizar com o esforço de todos.
Assim, o que ocorre é que em certo momento das relações sociais escravistas,
predominantes no mundo grego, este tipo de interação entre individuo e sociedade era
uma realidade que Aristóteles elaborou teoricamente.
Dito isto, sigamos em frente. A partir destas ideias centrais Aristóteles
desenvolve a teoria de que a prática política deve sempre ter como objetivo o bem
comum. A política seria, então, uma atividade (propriamente humana) que busca
alcançar a felicidade da comunidade. E à medida que esta fosse atingida, a satisfação
individual também seria realizada necessariamente. Somente fortalecendo a esfera
pública seria possível conquistar o bem-estar privado. A sociedade, conforme o
pensador grego, era o fundamento, a própria essência, do indivíduo.
Neste ponto de vista, o Estado se confunde com a sociedade política. É a própria
expressão da coletividade. Por isso, todos estão subordinados a ele na medida em que os
indivíduos estão subordinados aos interesses da comunidade. Fora do Estado não há
vida humana possível. Quando desarticulados do corpo estatal os indivíduos ou as
famílias perdem o seus poderes e funções. Tornam-se inúteis. Quem acha que pode
viver sem o Estado, ou seja, fora da comunidade política, ou “é um deus, ou uma besta”.
Os interesses do Estado não estão em desacordo com os interesses coletivos nem
individuais. Há, na verdade, uma unidade entre eles. Por isso, o governante deve ser
aquele que consegue promover a felicidade comum dos cidadãos. Caso exerça o poder
tendo este objetivo como meta e realizando ações políticas que caminhem neste sentido,
então o governante será justo, correto e bom. Assim, é fundamental para o governante
ter virtude política, ou seja, ter disposição e ser capaz de dirigir os negócios públicos de
tal maneira que a finalidade da vida social, a saber, o bem da comunidade, a autonomia
e a felicidade coletivas se tornem realidade. O governante deve, portanto, possuir a mais
importante das virtudes humanas: a ética.
É bom lembrar, antes de prosseguirmos, que Aristóteles viveu em um período de
decadência da democracia e da sociedade grega como um todo. Assim, ele estava
sempre observando o presente com a intenção de superá-lo para tentar recuperar, no
futuro, o esplendor vivenciado pela Grécia no passado.
Alguns aspectos desta maneira de entender a política e o Estado permaneceram
no tempo e chegaram até os nossos dias. Por exemplo, até os dias de hoje as pessoas
acreditam que a política deve ser uma prática essencialmente voltada para o bem
comum e que o Estado é a organização política que vai concretizar este propósito.
Podemos notar isso quando verificamos que todos os candidatos afirmam coisas do tipo:
5
“Meu objetivo sempre será buscar o melhor para todos”, “eu vou lutar pelo bem
comum” ou “para mim, o interesse coletivo deve estar acima dos interesses
particulares”.
Buscar a felicidade para a totalidade dos cidadãos continua sendo o ideal
presente em todos os discursos políticos e na imaginação das pessoas como um todo.
Afinal de contas, é com a esperança de que algum político, algum dia, possa
efetivamente dedicar-se ao bem-estar de todos (ricos e pobres, trabalhadores e
empresários, servidores públicos e donas de casa, etc.) que de dois em dois anos as
pessoas seguem para as urnas e votam nos candidatos que acreditam ser os melhores
para realizar esta tarefa.
Outro aspecto duradouro do pensamento aristotélico (ou seja, elaborado por
Aristóteles) é a noção de que o Estado desejável (justo, livre e ético) é aquele em que
não há diferenças entre os cidadãos e por isso não há espaço para que interesses
particulares sejam priorizados em relação aos interesses públicos. Se o Estado vai bem,
todos os indivíduos estão bem. Sendo assim, todos os cidadãos teriam interesses em
comum e lutariam juntos para alcançá-los. Não haveria sérios conflitos, pois a ação
política é realizada por iguais, e cada um, ao agir, buscaria o bem de todos.
Muita gente até hoje ainda imagina que é possível constituir um Estado desta
natureza, sem conflitos. Acreditam que se ainda não alcançamos este objetivo, é porque
os políticos não foram bem escolhidos pelo povo. Mas, nas próximas eleições, preste
atenção, leitor, pois haverá muitos candidatos afirmando “trabalharei para garantir a paz
e a harmonia social” ou “é preciso costurar um pacto de união nacional”.
Por trás destas frases, e de outras semelhantes, encontra-se a ideia de Aristóteles
de que a sociedade pode e deve buscar viver sem conflitos, em harmonia. Isto porque o
objetivo da vida social é a busca do bem-estar da coletividade. Os diferentes interesses
particulares podem ser conciliados tendo em vista que a realização dos interesses da
comunidade é meio e pressuposto para a realização dos interesses privados (dos
indivíduos, das famílias e de grupos sociais específicos).
Merece, ainda, destaque nesta forma de pensar o fato de que se o Estado é a
expressão da coletividade e os interesses desta coletividade estão acima das vontades
individuais, o poder estatal, por ser esta manifestação do poder da sociedade, é
soberano. Ou seja, possui autoridade suprema para organizar, regular, legislar e decidir
sobre as questões fundamentais da vida social.
Por fim, interessante notar que no que diz respeito ao que seja o bom governante
o ponto de vista aristotélico também se acha presente no mundo atual. O que dizia o
filósofo grego? Os governantes devem ser virtuosos, pois assim poderão buscar o bem
comum sem se corromperem. De outro lado, o que as pessoas querem saber quando
pensam em votar em alguém é: é honesto? fala a verdade? é justo? possui conhecimento
necessário? tem coragem de enfrentar os poderosos? Tudo isso diz respeito a certas
virtudes pessoais.
O que percebemos é que as pessoas ainda acreditam que caso governantes
virtuosos assumam o poder político, as coisas vão melhorar. E é também por causa desta
certeza que sempre depois das eleições há um longo período de desilusão, mas quando
se aproxima um novo período eleitoral vive-se novamente um curto momento de
6
renovação das esperanças e volta-se a acreditar que tudo pode melhorar. Basta escolher
corretamente desta vez. Resultado: mais uma vez, decepção e, de novo, nas próximas
eleições, renovação da esperança.
Esta teoria política predominou, quase exclusivamente, durante séculos e se
solidificou como parte da visão de mundo das pessoas até os dias de hoje.
Mas, espere aí! Que história é essa de que a prática política sempre busca a
realização dos interesses coletivos? Então, não existem conflitos de interesses na
sociedade? Como é possível justificar o poder soberano do Estado e afirmar que ele
sempre exerce sua autoridade em favor do bem comum?
O leitor que vem acompanhando os noticiários do dia a dia da política já deve ter
percebido que o pensamento dos sábios antigos, e especialmente de Aristóteles, serve
para nós hoje muito mais como um alvo a ser alcançado do que como algo efetivamente
existente. Mesmo se olharmos para o país que é apresentado como “modelo” de
democracia para o mundo, os Estados Unidos, concluiremos que também lá a prática
política passa longe deste ideal aristotélico. Quando, por exemplo, verificamos que no
momento mais grave da crise de 2008 o governo americano transferiu trilhões de
dólares dos cofres públicos para salvar grandes fabricantes de automóveis e bancos
quase falidos, e mais ou menos no mesmo período o Congresso impediu a criação de um
sistema de saúde pública voltado para atender aqueles que não têm dinheiro para pagar
planos caríssimos, levando, com isso, à morte de aproximadamente 45 mil pessoas por
ano, quando observamos estes fatos fica claro para nós que, mesmo no melhor dos
regimes democráticos que o capitalismo pode conceber, o Estado e a política passam
muito longe daquilo que foi idealizado pelo filósofo grego.
Bem antes de nós, outro sábio já havia compreendido que as ideias políticas
tradicionais estavam voltadas muito mais para dizer o que o Estado deveria ser do que
para expressar o que ele realmente era. Estamos falando do italiano Nicolau Maquiavel.
Resumindo as ideias de Aristóteles:
O homem é, na sua essência, um animal político. A formação do Estado é a
consequência necessária da natureza social humana. O Estado é a manifestação de uma
comunidade em que os interesses gerais são sempre considerados e priorizados por
todos. O objetivo do Estado é o bem comum. O Estado como espaço de realização do
bem-estar comum se estrutura de forma harmoniosa, sem interesses divergentes e
conflitos entre os cidadãos. Os governantes devem possuir certas virtudes,
especialmente a ética.
Maquiavel
7
e todos os filósofos depois deste diziam, logo fica desconfiado de que alguma coisa não
se encaixa.
O pensamento tradicional não fazia muito sentido para Maquiavel. Insatisfeito,
elabora um conjunto de concepções sobre política e sobre o Estado, extremamente
inovadoras e que permaneceram no tempo, chegando até os dias de hoje e influenciando
nosso modo de pensar e fazer política.
Mas porque o italiano não se contentou com a tradição? Fundamentalmente
porque o pensamento baseado em Aristóteles não ajudava a compreender a sua
realidade. E não ajudava simplesmente pelo fato de que o mundo não era o mesmo. A
Grécia Antiga era bem diferente da Itália do tempo de Maquiavel. Muita coisa havia
mudado em 1900 anos.
O escravismo, que foi a forma predominante de produzir e distribuir os bens no
mundo antigo, já havia sido superado pelo feudalismo. E, no tempo de Maquiavel,
novas relações sociais de produção já se desenvolviam e caminhavam apressadamente
no sentido de deixar as relações feudais no passado. A nova classe social que emergia
neste momento conduzia este processo. Assim, a burguesia no século XVI se
empenhava em construir um novo mundo. Um mundo em que a lógica mercantil fosse a
base de todas as relações humanas e que o comércio e o lucro estivessem livres das
barreiras impostas pela sociedade feudal. Neste “admirável mundo novo”, do cálculo
frio do comerciante e da busca pelo lucro, não havia mais espaço para a consideração,
acima de tudo, dos interesses da comunidade. A vantagem pessoal é, agora, o objetivo a
ser perseguido. Deste modo, aflora o individualismo, a ganância e o egoísmo. Neste
mundo o direito individual prevalece ao direito coletivo.
O que está ocorrendo neste momento da história é um processo de transição do
feudalismo, que está ficando para trás, para o capitalismo, que inicia sua marcha até
tornar-se o modo de produção predominante.
Este era o mundo nos tempos de Maquiavel. Um mundo em transição, que está
se transformando rapidamente. E ele soube muito bem captar a essência do que estava
acontecendo.
Um primeiro aspecto que gostaríamos de chamar a atenção é que o autor
italiano não busca simplesmente desenvolver uma ideia abstrata de política ou de Estado
justo, perfeito. O que ele faz é investigar como é o Estado realmente existente na sua
época. O objeto de suas investigações é, neste sentido, a vida real, a política como ela é
feita na prática, o poder estatal tal como ele é exercido, as instituições políticas em sua
história (como surgem, se desenvolvem, se mantêm, ou degeneram). Para ele, quem
fosse refletir sobre política e sobre o Estado deveria fazê-lo tal como um cientista.
Examinar cuidadosamente os fatos, perceber repetições e elaborar previsões de
desenvolvimentos futuros.
Deste modo, Maquiavel se propõe a explorar o mundo real, os acontecimentos,
situações e relações efetivamente existentes, e deles colher as informações necessárias e
úteis para os governantes. De posse deste conhecimento, seria então possível planejar e
executar ações para garantir a estabilidade do Estado. Verificamos que o sábio italiano
parte da realidade concreta e propõe um retorno a ela com um conjunto de orientações
práticas que visam guiar os governantes em suas intervenções sobre a realidade.
8
Para que estas orientações sejam realmente proveitosas para os governantes, é
indispensável investigar de forma profunda os fatos reais já ocorridos no passado. O
estudo da história serve para a identificação de recorrências de certos acontecimentos no
decorrer do tempo e para o aprendizado de como os homens venceram certas situações
difíceis ou foram destruídos por elas. Isto é importante tanto para repetirmos o que foi
feito com sucesso quanto para evitarmos o que deu errado.
Se pensarmos bem, isto só poderia dar certo se a história fosse entendida como
um ciclo, ou seja, como uma sequência de acontecimentos que se repetem de tempos em
tempos. E era exatamente esta compreensão da história que tinha Maquiavel. Por isso,
dedicou-se muito a estudar o passado. Acreditava, assim, que olhando para o que estava
realmente acontecendo no mundo no presente e comparando com o que já havia
ocorrido no passado, seria possível prever os desdobramentos futuros dos fatos e
situações e se antecipar a eles.
Além desta compreensão diferenciada da história, concebida como um “eterno
retorno”, o pensador italiano também traz ideias novas no que diz respeito à natureza
humana. A visão predominante estava baseada nas formulações de Aristóteles que,
como vimos acima, entendia o homem como um ser essencialmente político. Neste
sentido, o Estado era a expressão da natureza humana, pois era o órgão em que a própria
comunidade discutia e resolvia os problemas coletivos. Todas as decisões tomadas no
interior deste organismo político afirmavam a prioridade dos interesses públicos em
relação aos interesses privados. Por isso, as ações do Estado sempre buscavam o bem
comum.
Porém, para Maquiavel, tal como na teoria do Estado, esta visão da natureza
humana estava mais voltada a como os homens deveriam ser do que ao que eles
realmente são. Ao investigar as ações dos homens na vida real, em suas relações reais,
no dia a dia, o autor italiano chega a uma conclusão bem diversa. Para ele, todos os
homens são egoístas, ambiciosos, covardes, ingratos e instáveis. Assim, os homens
estavam naturalmente inclinados para a prática do mal.
Como vimos antes, para Aristóteles os homens eram, por natureza, “animais”
políticos. Em consequência, essencialmente destinados a viver sob o comando dos
interesses coletivos. Por isso, tendiam a buscar o bem comum a partir da prática política
estruturada nas instituições do Estado.
Para Maquiavel, a coisa era bem diferente. Como os homens são essencialmente
egoístas, estão sempre agindo em prol de seus próprios interesses. A vida social só tem
sentido na medida em que pode servir para atender aos interesses pessoais. Como os
homens têm sede de lucro, estão sempre enganando, roubando e traindo, para a
obtenção de maiores riquezas.
Diante deste quadro, é necessário que exista um poder soberano que mantenha a
ordem. Caso contrário, a vida humana torna-se impossível. Imagine se todas as pessoas,
com as características que citamos acima, pudessem fazer o que quisessem, sem freios.
Com certeza seria um caos. A sociedade se dissolveria. Para o pensador italiano, o único
poder capaz de colocar ordem em um mundo habitado por seres naturalmente egoístas,
ambiciosos e sedentos por lucro é o Estado.
9
Mesmo que o leitor discorde e pense que esta percepção da natureza humana é
muito pessimista, não pode deixar de notar que ela existe até hoje. Reflita um pouco e
tente lembrar se já não escutou (ou falou) coisas do tipo: “o ser humano é um bicho
ruim mesmo, não tem jeito”, ou “ser humano é tudo igual, só pensa em si mesmo”.
Talvez até já tenha conversado com alguém que disse: “eu tenho mesmo é que pensar
em mim. Sou eu em primeiro lugar, e depois minha família” ou “todas as pessoas são
assim, sempre querem mais, nunca estão satisfeitas com o que têm”. Essas frases e
muitas outras parecidas confirmam a teoria de Maquiavel.
Gostaria de destacar, agora, outros aspectos muito interessantes da teoria política
do filósofo italiano.
Quando ele nega a ideia de que o homem é um ser político por natureza, nega
também que exista na sociedade uma harmonia entre as pessoas e os grupos sociais, não
acreditando que seja possível qualquer tipo de conciliação de interesses. A ideia de que
todos teriam um interesse maior, que era o bem da comunidade, e os interesses
particulares poderiam se adequar sem problemas a isso era, para ele, completamente
falsa.
Quando olha para a vida real, Maquiavel não vê harmonia ou unidade de
interesses. Ao contrário, as ações concretas dos homens em sociedade demonstram que
há, sim, um conjunto de interesses antagônicos que não podem ser conciliados. Há
interesses de indivíduos e de grupos sociais que entram constantemente em choque com
os interesses de outros indivíduos e grupos sociais. E é justamente para mediar estes
conflitos que o Estado se mostra como um órgão político indispensável. Os choques de
interesses existem e não podem ser superados, pois são manifestações da própria
essência humana.
Em sua obra mais conhecida, O Príncipe, Maquiavel explica que em toda cidade
há duas forças opostas. Uma que vem do povo, que luta para não ser dominado e
oprimido; e outra que vem dos “grandes”, que desejam dominar e oprimir o povo cada
vez mais. A ideia de que há unidade e harmonia na vida social, no entendimento do
filósofo italiano, é falsa. É a forma com que os “grandes” tentam encobrir a realidade
para iludir, oprimir e controlar o povo.
Para não deixar que este conflito possa evoluir até a destruição de um grupo ou
de outro (ou, mesmo, dos dois), o Estado deve usar a força e a lei, garantindo, deste
modo, a ordem e a paz necessárias. Ao Estado cabe agir no sentido de assegurar a
estabilidade em meio a disputas que expressam certa correlação de forças no interior da
sociedade. Assim, em alguns momentos favorece um grupo específico e, quando este
começa a sobressair demais, muda o foco e privilegia os interesses de outro grupo.
Segue desta maneira tentando manter o equilíbrio social.
Neste ponto de vista, o Estado é entendido como um poder soberano que está
acima da sociedade e o único capaz de organizar e regular a vida social. A autoridade
estatal não se encontra mais no fato de ser o Estado a expressão dos interesses públicos,
o legítimo representante da força da coletividade, como acreditava o pensamento
tradicional. Ao contrário, seu poder se impõe pela força, por meio da lei e do exército.
A política e o poder estatal estão assim intimamente relacionados com os
conflitos de interesses e as lutas sociais. Partindo desta descoberta e aprofundando seus
10
estudos sobre a sociedade, Maquiavel argumenta, de forma inovadora, que o propósito
da política não é a realização do bem comum e da justiça. A política, na verdade, é
apenas o meio para se conquistar o Estado e se manter no poder.
Para isso o governante precisaria possuir certas virtudes. Aqui, novamente se
afasta do pensamento dominante de sua época, pois, com base em Aristóteles, aqueles
que ocupam o poder do Estado deveriam demonstrar virtudes como justiça, honestidade,
amor pela verdade, humildade, honra, moderação, etc. Já para Maquiavel tais virtudes
morais não seriam as mais apropriadas ao exercício do poder. Para o governante chegar
ao poder e mantê-lo, deve, antes de tudo, preocupar-se em fortalecer o Estado; para isso
tem que ser virtuoso. Porém, as virtudes de que precisa não são as virtudes morais, mas
as virtudes meramente políticas. Segundo o filósofo, a moralidade convencional,
seguida à risca, pode até mesmo conduzir o governante à sua ruína.
E qual seria a virtude própria dos bons políticos? A capacidade de interferir na
história agindo conforme as circunstâncias exigem. Alguém que está muito preso a
valores morais vai agir da mesma forma em qualquer situação, e em todos os momentos
vai falar a verdade, ser honrado, moderado, etc. No entanto, em certas circunstâncias,
agir conforme estas qualidades pode fazer fracassar um governo.
Para manter o poder, e isso quer dizer a estabilidade e a ordem, é preciso
adaptar-se às diversas situações imprevistas colocadas pela dinâmica da realidade
(natural e social), sobre as quais não temos controle. O que o governante virtuoso tem
de fazer é tentar “domar” estes acontecimentos inesperados e até aproveitá-los a seu
favor. Caso seja necessário, para salvar o Estado, pode (e deve) o governante até
incorrer no que a maioria das pessoas considera defeitos de caráter: mentira,
intemperança, desonra, violência, etc.
O leitor provavelmente já ouviu a expressão “os fins justificam os meios”. Pois
é, foi inspirada no pensamento de Maquiavel. Ele mesmo disse que desde que o
governante alcance os objetivos de superar as dificuldades e manter o Estado (ou seja, a
ordem, a estabilidade), “os meios para isso nunca deixarão de ser julgados honrosos, e
todos os aplaudirão”.
Como já comentamos acima, o sábio italiano foi o primeiro a questionar de
forma profunda toda a visão tradicional de política e do Estado baseada nas ideias de
Aristóteles. Gostaríamos de apresentar ao leitor mais um pensador que ao contestar a
teoria dominante vai abrir caminho para uma concepção de Estado e política que
também está muito presente hoje em dia. Estamos falando do inglês Thomas Hobbes.
Resumindo as ideias de Maquiavel:
Partindo de uma visão diferente do que é a natureza (ou essência) humana,
Maquiavel propõe uma nova forma de entender o Estado, a política e a própria
sociedade. Nega a possibilidade de conciliação dos interesses entre diferentes grupos
sociais, principalmente entre o povo e os grandes. Neste contexto, o Estado seria o
poder soberano, capaz de garantir a ordem e a estabilidade da vida social. Aponta as
virtudes políticas, e não as morais, como sendo as virtudes próprias de um bom
governante.
Thomas Hobbes
11
Ao investigar a sociedade de sua época, Hobbes chega à conclusão de que o
homem é um ser essencialmente solitário, que busca naturalmente satisfazer seus
próprios interesses individuais. A vida social ou política não é algo inato aos seres
humanos. Hobbes afirma que os “homens não tiram prazer nenhum da companhia uns
dos outros”. A sociedade é uma invenção que vai contra a natureza das pessoas. Nada
mais distante do pensamento aristotélico.
Junto a este individualismo natural, os homens são também essencialmente
iguais e livres para fazer o que quiserem.
Se os homens são assim individualistas, iguais e livres por natureza, é claro que
quando cada um quiser algo que já pertença ao outro ou que não pode ser dividido, só
haverá uma saída: a luta pelo que se quer. Esta luta se daria por meios violentos. Além
disso, como nunca se sabe o que o outro deseja, é comum se imaginar que alguém está
querendo tomar o que é seu. Assim, o mais coerente a ser feito nestas circunstâncias é
atacar os outros antes de ser atacado. Os seres humanos estariam, então, em um
constante estado de competição e desconfiança.
Neste quadro, os seres humanos se encontrariam permanentemente envolvidos
em conflitos violentos. Uma verdadeira guerra de todos contra todos. Assim, a vida
seria uma fonte de constante preocupação e medo. Sozinhos e inseguros, podendo ser
atacados de forma violenta a qualquer momento, os homens têm uma vida bastante
desagradável e instável. Mas, como viver de outra forma?
A resposta de Hobbes é que os homens, buscando segurança, ordem e paz,
fazem um pacto entre si e se associam para resguardar a vida e a propriedade. Aqui
encontramos a ideia do sábio inglês sobre a origem da sociedade. A vida social nasce,
assim, de um contrato estabelecido entre os homens que resolvem abrir mão de sua
liberdade plena e do poder absoluto sobre suas próprias vidas para garantir a paz e a
estabilidade. Somente dessa maneira poderão garantir o respeito mútuo ao direito
natural mais fundamental do indivíduo: o direito à autopreservação.
Neste momento, o leitor pode estar a se perguntar: ora, se o homem é egoísta e
competitivo por natureza e está sempre disposto a lutar para que seus interesses
particulares sejam atendidos em prejuízo dos outros homens, quem garante que todos
irão cumprir o acordo de não agressão ou de não apropriação, pela violência, da
propriedade alheia?
Essa é uma boa pergunta. Dada a essência humana, a quebra do pacto social
aconteceria inevitavelmente. O próprio Hobbes nos diz que os contratos sem a “força da
espada” não passam de palavras que, consequentemente, não têm nenhum poder de
fazer valer o que foi combinado. A insegurança e a desconfiança permaneceriam.
Para impor o respeito ao pacto social é necessário instituir um poder que esteja
acima de todos e que regule as relações entre os homens de tal forma que garanta o
atendimento dos direitos naturais e mantenha a paz e a estabilidade na sociedade.
Porém, de onde virá este poder? Dos próprios homens.
Cada um deve abrir mão da sua liberdade plena e do poder ilimitado sobre sua
vida. E ao fazer isso vai, ao mesmo tempo, transferir seus poderes e forças para outro
homem, ou para um grupo de pessoas que passarão a decidir e executar as ações
12
necessárias para que seja estabelecida e mantida a paz social. Assim, os homens
alienam, ou seja, entregam para outro, sua vontade e seu poder de deliberar sobre seu
próprio destino, em troca da garantia do direito natural de autopreservação.
Este poder que contém em si a força e os recursos de todas as pessoas, e que vai
unir os indivíduos isolados em um só corpo social, é o Estado. A potência social,
enquanto síntese das forças e capacidades dos indivíduos, será transferida às instituições
políticas que compõem o Estado. Este deve se constituir como um poder soberano que
inspira medo aos súditos e desta forma os obriga a respeitar o contrato social firmado
por todos. Por isso, o direito de usar a violência para manter a paz e fazer justiça deve,
também, ser transferido ao Estado. Os órgãos estatais, possuindo o monopólio do uso da
violência, podem lançar mão desse direito contra qualquer pessoa para impor seu poder.
Por isso Hobbes usa o termo “grande Leviatã” para se referir a ele.
Diante do que foi dito acima, o Estado é responsável pela própria existência da
sociedade. É o poder estatal que funda e mantém a vida social. Sem ele os homens,
naturalmente egoístas e individualistas, não conseguiriam viver em sociedade e a
insegurança desta situação implica que a guerra de todos contra todos se perpetuaria
indefinidamente.
Um ponto importante que gostaríamos de ressaltar é o fato de que para o filósofo
inglês o poder e a autoridade do Estado não são um desdobramento da natureza humana,
nem são conferidos pelo poder espiritual superior de alguma divindade. Muito menos
pelo acaso. Nem natureza, nem religião, nem a sorte legitimam o poder. A legitimidade
do poder estatal deriva dos próprios homens. Eles fazem uma escolha, movidos pela
necessidade, em que “emprestam” suas forças e potencialidades para que o grande
Leviatã possa governar, sem restrições, a vida de todos.
Já quem ocupa o papel de governar – um homem ou uma assembleia – deve
exercer o poder usando todos os meios necessários para alcançar os objetivos do poder
estatal, inclusive com o uso da violência. Não há limites para o poder do soberano. O
Estado é um verdadeiro Deus mortal ao qual devemos nossa existência. Por isso,
devemos obedecer-lhe sem vacilar. Estar conforme a justiça significa, neste contexto,
respeitar e cumprir as determinações do soberano.
Outro teórico que realizou importantes reflexões sobre o problema do Estado foi
o professor alemão Georg W. F. Hegel. Vejamos rapidamente algumas de suas ideias.
Resumindo as ideias de Hobbes:
Os homens são solitários por natureza e, por isso, sempre colocam seus
interesses particulares em primeiro lugar. Para conseguir o que querem, os seres
humanos usam até mesmo a violência contra seus iguais. A vida seria fonte de medo e
preocupação. Os homens fazem um pacto buscando segurança, ordem e paz. A vida
social e o Estado são fruto do pacto feito entre os indivíduos.
Hegel
13
pudessem viabilizar a vida social. Por outro lado, também não o entende como
expressão direta e necessária da essência política dos homens.
Na visão deste autor, o Estado é a expressão visível dum certo estágio do
desenvolvimento humano. A história dos homens teria evoluído até alcançar um
momento superior caracterizado pela identidade entre razão e realidade. A indicação
mais clara desta identidade é justamente a constituição do Estado. O Estado seria, nesta
perspectiva, a manifestação plena da própria razão, que orientou e determinou o
desenvolvimento histórico de maneira velada até aquele momento, mas que agora se
revela na própria estrutura estatal. Por isso, o autor nos diz que entre o Estado e o
racional há uma “unidade substancial”.
Não é, portanto, por causa de acordo, contrato ou decisões humanas que nasce o
Estado. Ele é um desdobramento necessário dos movimentos da razão universal que
regula e dirige o funcionamento tanto do mundo social quanto do mundo natural.
Além disso, o Estado é o único meio de tornar uma ideia abstrata como a de
gênero humano em realidade efetiva. Assim, o homem só poderia alcançar sua
dimensão genérica e ao mesmo tempo afirmar sua individualidade reconhecendo-se
como membro de um Estado. Somente por meio deste seria possível a elevação de um
indivíduo à condição de ser genérico.
Isso não é pouca coisa. Dá para imaginar o que é viver excluído do próprio
gênero humano? Ou não pertencer a nenhum grupo que compartilhe com você algumas
características e padrões culturais em comum? Já imaginou como seria ruim ser
forasteiro em qualquer lugar que se vá, sem nenhum vínculo afetivo, cultural, político,
etc. com as pessoas que estão ao seu redor? Seria terrível! Pois, para Hegel, esta é a vida
fora do Estado.
O Estado seria a ponte concreta e real entre o indivíduo (singular) e a
coletividade humana (universal). Deste modo, “somente como membro do Estado é que
o indivíduo tem objetividade, verdade e moralidade”. A vida coletiva é o verdadeiro
conteúdo e o verdadeiro fim da existência humana. Os indivíduos só se realizam como
singularidades humanas na medida em que participam de uma universalidade. Somente
no Estado é possível encontrar, de maneira efetiva, esta universalidade.
Mais uma vez estamos diante de um conjunto de ideias que apontam o Estado
como algo fundamental para a vida humana, sem o qual não poderíamos viver. Ou, pelo
menos, não poderíamos nos realizar completamente como seres humanos sem nos
integrarmos como membros desta entidade.
Resumindo as ideias de Hegel:
O Estado nem é uma decorrência imediata da natureza humana, nem é resultado
de um pacto ou decisão dos homens. A vida particular dos homens não é separada da
vida universal. Somente no Estado o indivíduo se realiza como sujeito universal. O
Estado é produto de um momento superior do desenvolvimento da história.
14
Estado sempre existiu? Esta foi a única forma que os homens encontraram, em toda sua
história, para organizar a vida social?
Se você prestou bastante atenção no que foi dito até aqui, percebeu que todo o
pensamento político examinado até agora responde positivamente a essas perguntas.
Mas, será que estão realmente certos nestas respostas? Vamos olhar um pouco para a
história e tentar encontrar algumas pistas que possam nos ajudar a responder a essas
questões com mais segurança.
O leitor já deve ter ouvido falar que a história humana se divide em:
Pré-história;
Idade Antiga,
Idade Média,
Idade Moderna e
Idade contemporânea (o mundo atual).
Pois bem, a época histórica mais longa entre estas citadas acima foi justamente
a pré-história. Já vivíamos em sociedade, tínhamos linguagem, cultura, religião, enfim
já éramos, sob todos os aspectos, efetivamente humanos.
E o que nos dizem os estudos científicos acerca desta época no que diz respeito à
organização da sociedade?
Para começo de conversa, não havia nada parecido com o Estado. Isso mesmo.
Não existia nenhum aparato de controle, nenhum poder que fosse exercido de fora da
sociedade e ao qual todos estariam submetidos. As decisões relacionadas ao coletivo
não ficavam ao encargo de um grupo restrito de pessoas que tinham a única tarefa de
pensar e tomar decisões sobre a vida da comunidade. Todos, homens e mulheres, eram
responsáveis pelos destinos da coletividade. Ninguém transferia este poder de decisão
para uma outra pessoa ou para uma instituição separada e que exercia exclusivamente o
poder com o objetivo de organizar a vida social. Em poucas palavras, o coletivo não se
submetia a um grupo de pessoas que exerciam o poder a partir de um instrumento
complexo como o Estado.
Assim, não havia um órgão separado para fazer justiça, para reprimir o
comportamento indesejado, para recolher tributos, etc. Os próprios membros da
sociedade pensavam o que era necessário fazer e definiam o que era mais apropriado
naquelas circunstâncias.
A vida dos homens se desenrolou desta forma por pelo menos 90% de sua
história!
Então a resposta sobre aquela pergunta inicial – o Estado sempre existiu? – é
uma só: NÃO. O Estado nem sempre esteve presente na história humana. Na verdade, a
sua invenção é bem recente. E mesmo quando ele vai se tornando predominante na vida
das diferentes sociedades, algumas delas continuaram a existir sem a presença desta
instituição. Basta pensarmos nas comunidades indígenas da América do Sul ou do
continente australiano. No Brasil, por exemplo, até os anos 1960 existiam muitas tribos
que viviam isoladas (no que hoje é o território do Mato Grosso e na Amazônia) que se
organizavam sem a presença do conjunto de mecanismos de poder que caracterizam o
Estado.
15
Pois bem, partindo desta constatação podemos fazer outra afirmação importante
para a nossa reflexão. Se o Estado nem sempre existiu, significa que os seres humanos
podem viver sem ele. Ou seja, a vida social não depende do aparato estatal. E se já
vivemos antes sem ele, também poderemos futuramente nos organizar sem o Estado.
A pergunta agora é a seguinte: por que o Estado existe hoje? Por que há,
atualmente, a necessidade de todo um aparato de repressão, de imposição da justiça, de
tomada de decisões relativas a coletividade, etc.? Se podemos viver sem ele, por que
escolhemos viver com ele?
No próximo capítulo faremos alguns apontamentos que nos ajudarão a pensar
sobre estas questões.
16
a sociedade para uma enorme instabilidade, desordem e até para uma verdadeira guerra
civil. É para controlar este conflito que existe o Estado.
Quando trabalhadores de qualquer setor entram em greve, o que acontece? A
justiça corre para julgá-la e, na maior parte das vezes, decretá-la ilegal, tentando forçar
os trabalhadores a suspender o movimento grevista. Se eles insistem, o seu sindicato
pode até ser fechado. Caso decidam manifestar-se nas ruas, enfrentarão a força policial
e suas lideranças podem ser presas. E se ainda quiserem continuar com suas
reivindicações, a imprensa reporta notícias de tal forma que a opinião pública se volta
contra a greve. Deste modo, os trabalhadores que ainda sofrem ameaça de demissão só
têm uma saída: retornar às suas atividades sem nenhum ganho ou com ganhos mínimos.
A “paz” é restaurada e a vida segue como antes. Muitos trabalhadores prejudicados
neste processo vão pensar duas vezes antes de entrar em uma nova luta.
Exemplo prático. O leitor lembra quando no ano de 2013 milhares de jovens
foram às ruas de São Paulo protestar contra um aumento de passagem e a polícia
reprimiu o movimento com extrema violência? Neste caso o tiro saiu pela culatra e,
durante um tempo, o movimento cresceu e ganhou outras cidades do país. Mas, passado
o calor do momento, o Estado se reorganizou e agiu. Lideranças foram perseguidas, a
polícia criou novas táticas e passou a reprimir os protestos de forma igualmente
violenta, porém mais eficaz. As leis foram modificadas para impedir novas
manifestações parecidas com aquelas e a Justiça mostrou-se bastante severa com
aqueles que foram presos por participarem das lutas nas ruas. Além disso, a imprensa
promoveu uma enorme campanha para desacreditar o movimento. A todo instante, em
cadeia nacional e no horário nobre, chamavam os jovens que participavam das passeatas
de vândalos. Resultado: a “ordem” foi restabelecida. Depois de umas poucas semanas,
as passagens foram aumentadas e os empresários do setor de transporte garantiram o
aumento de seus lucros. É para isso que serve o Estado: para controlar o conflito entre
as classes e possibilitar o bom funcionamento do capitalismo.
Neste ponto de vista há o entendimento de que o Estado foi criado como um
mecanismo de exercício do poder. Serve como instrumento de dominação de uma classe
sobre a outra. O caráter de dominação, de exercício de poder de uns sobre outros,
constitui a própria essência do Estado. Desse modo, não é possível a constituição de um
poder estatal que sirva ao bem comum e que, por conseguinte, concilie os interesses das
classes antagônicas sem, obrigatoriamente, oprimir uma delas. “Todo Estado, seja ele
qual for, não poderá ser livre nem popular”.
O discurso de que a democracia seria a realização política de um Estado em que
predominam a liberdade e a igualdade e, ainda, que as decisões em uma democracia são
tomadas pelo conjunto da sociedade é completamente falso. Pense bem. De quais
decisões verdadeiramente importantes para o país nós participamos ativamente? Os
trabalhadores são de fato ouvidos quando o governo quer implementar uma reforma na
previdência? Os estudantes e professores são chamados para construir as mudanças no
sistema escolar (como, por exemplo, a reforma no ensino médio)? O Estado consulta a
sociedade quando vai definir os gastos públicos?
A participação política da maioria em um Estado democrático não passa de uma
ilusão. O que acontece de fato é que apenas uma minoria controla o aparelho estatal.
17
Isso significa que os políticos e juízes é que se acham no comando do Estado e exercem
todo o poder sobre a sociedade? Não! O poder político é na verdade apenas uma
expressão do verdadeiro poder, que não se encontra no campo da política. O poder
verdadeiro em nossa sociedade provém de certas relações econômicas que têm como
fundamento a propriedade privada e a exploração do trabalhador. Simplificando: pode
mais quem tem mais. Quem realmente tem e exerce poder são, portanto, os donos de
grandes fábricas, os banqueiros e financistas, as grandes corporações comerciais e os
latifundiários. Ou seja, quem possui capital.
O Estado e seus órgãos assim como os políticos de maneira geral estão todos a
serviço deste grupo. Voltando à frase de Marx e Engels citada acima: “o Estado
moderno não é mais que um comitê para administrar os negócios coletivos de toda
classe burguesa”.
Se o leitor ainda não se convenceu disso, vamos olhar para a vida real e tentar
verificar se esta ideia faz sentido ou não.
Quem vem acompanhando o noticiário nestes últimos meses certamente ouviu
falar da relação entre as empreiteiras e o governo. As informações mais recentes dão
conta de que as maiores empresas deste ramo financiavam campanhas de inúmeros
candidatos, de diferentes partidos, a vários cargos. Além disso, para os que conseguiam
se eleger, os empresários garantiam o pagamento de enormes quantias aos políticos.
Tudo isso, é claro, para que suas empresas fossem favorecidas pelo Estado e seus lucros
aumentassem.
Um exemplo prático e que demonstra bem para quem serve o Estado é o da
empreiteira Odebrecht. Esta empresa pagou uma enorme quantia para deputados e
senadores ou financiou campanhas para que em troca fossem aprovadas medidas
provisórias que a beneficiavam. Segundo o site de notícias da UOL (18/12/2016), o total
de benefícios que a Odebrecht e outras empresas nacionais obtiveram com a compra das
medidas provisórias pode chegar a R$ 140 bilhões! Somente com duas medidas
provisórias a maior empreiteira do país lucrou R$ 8,4 bilhões. Conseguiu que nove
medidas fossem aprovadas e se convertessem em lei. Para alcançar este sucesso, um ex-
diretor da empresa afirma que foram gastos R$ 16,9 milhões, pagos diretamente aos
parlamentares ou por meio de doação de campanha.
Outro exemplo. O leitor lembra-se da maior tragédia ambiental ocorrida no
Brasil? Na ocasião, uma barragem de rejeitos de mineração, que era administrada pela
mineradora Samarco, controlada pelas empresas Vale S.A. e pela australiana BHP, se
rompeu, matou 19 pessoas e deixou centenas de desabrigados. Além disso, espalhou 50
milhões de metros cúbicos de lama tóxica pela região, chegando até mesmo ao rio Doce.
Este evento gerou um desequilíbrio ambiental que dificilmente será revertido. A
Samarco foi responsabilizada e provou-se que, a fim de economizar e aumentar os
lucros, não foram observados os procedimentos de segurança e por isso a tragédia
tomou enormes proporções.
É importante mencionar um detalhe nesta história: as empresas controladas pela
Vale, inclusive a Samarco, foram grandes doadoras de dinheiro para campanhas de
diversos políticos no ano de 2014. Resultado: a defesa dos interesses da empresa estava
garantida. Mesmo depois de ser responsabilizada pelo maior desastre ambiental do país
18
e, segundo promotores de justiça e moradores da região, de não cumprir com suas
obrigações para com as vítimas, a empresa ainda opera no país sem muitas pressões dos
poderes Judiciário, Legislativo e Executivo. Pouco mais de um ano depois da tragédia,
as ações do grupo Vale ainda estão em alta na bolsa de valores.
Poderíamos dar uma série de outros exemplos, mas bastam estes para
demonstrar como o poder econômico é a verdadeira força que controla o Estado. Os
políticos são apenas representantes deste poder e devem lealdade aos grupos
econômicos que os financiam e os mantêm no jogo político.
Até mesmo entre os setores da burguesia (daqueles que detêm o poder
econômico) há um permanente conflito. Todos querem uma parcela maior da riqueza, e
para isso é fundamental controlar o Estado. Por este motivo, todos desejam se apropriar
cada vez mais do aparelho estatal; ninguém consegue controlá-lo sozinho. É preciso
ceder em alguns momentos, avançar em outros, e assim ir tentando encontrar certo
equilíbrio de poder para que não exista instabilidade política e seu possível
desdobramento: uma rebelião dos de baixo. Isto seria o pior cenário para a classe
dominante. Por isso, nos momentos difíceis ela se une muito rapidamente para assumir
novamente o controle e frear a insatisfação, a revolta e o desejo de mudança dos
trabalhadores.
Como vimos anteriormente, a maior parte da Filosofia e da Ciência Política
tradicional, ao entender que a origem da política se encontra-se num contrato, na própria
natureza humana ou na razão, postula que o Estado é um órgão que está acima da
sociedade e, portanto, das classes sociais. Seria um poder que já não é mais controlado
pelos próprios homens, mas que controla e submete a todos. Isto acontece em grande
medida porque o poder de decisão da maioria é roubado pela minoria, e este “roubo” é
garantido pelo poder estatal.
Este poder de decidir sobre os destinos da comunidade no âmbito da política só é
retirado das pessoas porque lá onde nasce o verdadeiro poder (na esfera da produção das
riquezas), a maior parte da sociedade já não tem mais controle sobre o que e como as
coisas são produzidas e, consequentemente, também não controla a forma como elas
vão ser distribuídas. Resumindo: sem poder sobre a produção da riqueza não há poder
sobre os espaços políticos de decisão, nem sobre o aparelho estatal.
Deste modo, as classes dominantes criam e difundem ideias que distorcem a
realidade, para esconder o fato de que o verdadeiro poder nasce como resultado da
atividade dos trabalhadores, ao produzirem toda a riqueza social. Assim, as forças e
capacidades humanas são projetadas em uma instituição, o Estado, que aparece para os
próprios homens como superior a eles mesmos, como possuidora de qualidades que
estão além do alcance de qualquer indivíduo e mesmo da coletividade. Com isso
esconde-se o fato de que o Estado não passa de uma força social que foi roubada da
sociedade e apropriada por uma minoria a fim de garantir a realização de seus
interesses.
O leitor pode estar pensando: certo, estamos falando do Estado na sociedade
capitalista, onde há claramente um conflito de interesses entre a burguesia e os
trabalhadores, e por isso ele se objetiva como instrumento de dominação de uma classe
sobre a outra. Porém, se estou convencido de que o Estado não é eterno, sei também que
19
ele existia antes do capitalismo. Será que em outras épocas históricas o poder estatal não
possuía outras finalidades e objetivos?
Vamos lá. Lembra-se de quando tratamos no capítulo anterior sobre o fato de o
Estado não ter sempre existido na história da humanidade? Pois bem, o caro leitor
naquele instante não se perguntou por que o Estado surgiu em um determinado
momento da história? Por que não antes? Por que não depois? O que ocorreu de tão
especial na sociedade para que ela “inventasse” o Estado?
A resposta é: a luta de classes. Na pré-história não existiam classes sociais; a
produção e a distribuição do que era produzido se davam sempre de forma coletiva:
todos tinham uma função que ajudava na reprodução da sociedade e todos tinham
acesso a tudo o que era produzido. Aqui não há interesses antagônicos. Todo o mundo
queria a mesma coisa: sobreviver em um mundo extremamente hostil.
Em um dado momento isto muda e, por causa do desenvolvimento dos
instrumentos e técnicas de produção, começa a ser possível, por vários motivos que não
dá para contar agora, que uns trabalhem e outros vivam do trabalho alheio. Neste
instante a produção continua sendo coletiva, mas a apropriação começa a ser privada.
As forças sociais que garantem a reprodução da sociedade são privatizadas. Aqui se
inicia um conjunto de relações sociais que colocam os interesses de certos grupos de
pessoas em choque. Desse conflito nasce a luta de classes.
Para mediar esses conflitos, as formas de controle e liderança existentes até
então na pré-história já não eram suficientes. Estas se baseavam nas tradições, usos e
costumes da coletividade, sendo o poder e a capacidade de decisão conferidos de forma
espontânea pela comunidade, com base nas qualidades efetivas de certos indivíduos ou
mesmo exercidos pela comunidade em conjunto.
Neste momento, porém, com o antagonismo de classes, faz-se necessária uma
nova forma de exercício do poder. Este deixa de ser uma força social voltada para o
desenvolvimento da comunidade e torna-se meio de defesa de privilégios de uma parte
da sociedade e, também, de administração dos conflitos sociais. O instrumento
fundamental para impor este poder é justamente o Estado.
Resumindo: onde quer que exista apropriação privada da produção social, haverá
interesses antagônicos de classes distintas e, consequentemente, um poder que servirá
para manter a estabilidade, a ordem e garantir a reprodução social em meio à luta de
classes. Neste ambiente a existência do Estado é inevitável.
Conclusão
Depois de todas essas reflexões, gostaria de chamar a atenção para três lições
que não podemos esquecer.
A primeira: o Estado tem uma função social específica. Ele nasce para cumprir
uma certa missão. Qual? Garantir o domínio de uma classe sobre outra ou outras. Onde
quer que ele exista, qualquer que seja a sua forma, quem quer que esteja no seu
comando, o Estado sempre foi e sempre será instrumento de dominação. Sempre se
utilizará de violência contra parte da sociedade. Por isso, nunca vai ser um meio efetivo
20
de conquista da verdadeira liberdade humana e da igualdade substancial (e não apenas
formal).
Outra coisa para não se esquecer é que o Estado nem sempre existiu. Ele é fruto
de um certo grau do desenvolvimento social e nasce depois que a humanidade já
contava com muitos milênios de história. Em outras palavras, nós já vivemos muito
tempo sem estarmos submetidos ao poder estatal. A conclusão disto é que nós podemos
viver sem ele! O Estado não é algo essencial para a nossa vida. “Ele aparece onde e na
medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados”.
Porém, em uma sociedade em que as classes sociais não existam mais, ou seja, em uma
sociedade comunista, o Estado também não teria função alguma. Seria supérfluo. Ao
desaparecerem as classes sociais, o poder estatal não teria mais sentido e desapareceria.
Uma terceira lição importante. Tudo que aprendemos na escola ou o que vemos
e ouvimos na mídia nos faz acreditar que a realidade atual (o mercado como regulador
da produção e distribuição, as classes sociais, o sistema do trabalho assalariado, enfim a
ordem social capitalista) é algo eterno. Que não podemos viver em um outro mundo. A
história aparece para nós como um poder superior, quase místico, que não podemos
controlar. Devemos apenas aceitar e nos resignar. Contudo, assim como o Estado é uma
força social que foi “roubada” da sociedade, a história também é resultado das ações
humanas. E se nós coletivamente construímos este mundo do jeito que ele é, podemos
também fazer diferente e construir uma nova sociedade. Cabe somente a nós buscarmos
esta transformação radical da vida social e fazer nascer, como disseram Marx e Engels,
“uma associação onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre
desenvolvimento de todos”.
21