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NEVA

GUILLERMO CALDERÓN

Tradução:

Joana Frazão

2021/2022
Produção: Suspended Box
NEVA | Guillermo Calderón

PERSONAGENS

MASHA 36 anos, atriz

ALEKO 30 anos, ator

OLGA KNIPPER 36 anos, viúva de Tchékhov

São Petersburgo. Há cem anos, durante a tarde de 9 janeiro de 1905. Na sala de ensaios de um
teatro

OLGA: “Oh, meu querido, meu doce, meu belo jardim... minha vida, minha juventude, minha
felicidade. Adeus!... Adeus!... Um Olhar para as paredes, as janelas… A nossa pobre mãe adorava
andar por este quarto…” Não consigo. Não consigo fazer monólogo este de merda. Estou a ser
menos verdadeira que Rasputine. E agora estou em pânico. Já sei o que vai acontecer. A noite da
estreia chega no próximo sábado e vêm todas as mulheres de São Petersburgo para me ver. E as
outras atrizes para me ver. Ver-me cair, ver cair Olga Knipper. Ver-me desafinar e dizer estas
lindas palavras sem alma. Vão-se rir nos momentos errados e amassar o papel do chocolate. Mas
no final, quando me virem sorrir, agradecida e humilhada... hão de aplaudir, felizes, com os dentes
cerrados. E vão ficar à minha espera à saída do camarim para me abraçar, e eu, tímida, corada do
calor, com um halo de perfume para tapar o cheiro a suor que emana de qualquer atriz dramática
que se preze… eu vou agradecer. E como uma cadelinha molhada vou perguntar: gostaram?
Gostaram mesmo? A sério? Nem imaginam como eu estava nervosa. Obrigada por estarem
comigo neste momento tão íntimo. Mas gostaram mesmo? Se não tivessem gostado diziam-me,
não era? Ma-ra-vi-lho-sa Olga! Maravilhosa. Que profundidade quando tomaste aquela bebida…
e no momento em que olhaste pela janela, o meu coração parou. Hoje representaste com as costas,
Olga Knipper, as tuas costas expressaram mais matizes dramáticos que a tua cara. E assim, entre
falsos elogios, carregando as minhas flores, vou sair deste teatro pela porta dos artistas. E lá fora
vou encontrar outras flores mais baratas, deixadas por outros admiradores que não aguentaram os
quarenta graus abaixo de zero desta cidade real de São Petersburgo. E vou entrar no meu carro
sabendo que, enquanto os carros deles se afastarem pela Nevsky Prospekt e o rio Neva deixar de
se ver, hão de dizer: Ah! Pa-té-ti-ca Ol-ga Kni-pper. A-le-mã mal ves-ti-da, Ol-ga Kni-pper. Só
viemos vê-la porque é viúva dele, do génio, de Anton Pávlovitch Tchékhov. O escritor. O maior
escritor russo desde o conde Tolstói. O amado escritor que veio ao mundo na cidade de Taganrog,
no mar de Azov, no Sul da Rússia, a dezassete de janeiro de mil oitocentos e setenta, o terceiro
de seis filhos, cinco rapazes e uma rapariga, nascido numa família de servos que lhe compraram
a liberdade, e que graças à sua própria inteligência e esforço conseguiu estudar medicina em
Moscovo. O escritor que nos deixou um maravilhoso legado de peças de teatro e contos que
interpretam a nossa alma patriótica. Anton Pávlovitch Tchékhov, que morreu tragicamente há
apenas seis meses na selva, na Alemanha, num hotel ridículo, quase um sanatório, de doença
prolongada, de tuberculose, de pulmões frágeis de verdadeiro artista. E essas vacas hão de dizer
com um bafo castanho e os lábios rebentados de vodca que eu sou má atriz. Que sou uma diletante,
que sou um fantoche descosido de Nemiróvitch-Dántchenko e Stanislavski. Que sou uma galinha,

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uma rameira, uma pastora. Eu, a primeira atriz do Teatro de Arte de Moscovo, onde tudo se ensaia,
tudo se sente, e tudo se recorda com uma emoção brutal. E pior. Vão dizer que fui má mulher.
Que deixei que o meu marido cuspisse os pulmões na casa de Ialta, enquanto eu fazia os papéis
das mulheres que ele escrevia. Mas de que me serve compreender a alma da personagem de Irina
quando ela diz que quer voltar para Moscovo? Não me serve de nada. Porque mesmo sabendo
que o meu escritor escreveu essa personagem d'As Três Irmãs para expressar as saudades que
tinha de mim, a sua atriz, a sua cãozinha, a sua pequena crocodila... Mesmo sabendo que a
escreveu a pensar em mim, na casa de Ialta, na sua Sibéria cálida... não me serve de nada, porque
eu já não sinto. Tornei-me áspera. Não sinto. E para representar é preciso sentir, e por isso não
podes representar, Olga Knipper. E não consigo fazer este monólogo nem esta cena. E vão dar
cabo de mim nesta cidade de São Petersburgo, nesta cidade francesa. E eu que pensei que sair um
mês de Moscovo para trabalhar na cidade do czar e da czarina me ajudaria a sarar um pouco o
coração, destroçado pela morte do meu escritor há uns seis meses. Mas foi pior. É tudo tão intenso
na cidade de Pedro que já nem sequer consigo chorar. Tudo o que tem água está congelado,
incluindo os homens. Os palácios brilham e fumegam à noite, e todos, até as crianças, olham para
nós e comportam-se como se este mundo fosse acabar. A coisa mais importante da minha vida é
o teatro e representar. E ser eu própria de cada vez que me visto como se fosse outra. E desprezar
a fama e aqueles que gostam de mim. E desprezar os outros famosos, e desprezar-me a mim
própria ao maquilhar-me colada ao espelho. E desprezar-me quando visto um figurino e não me
serve porque estou gorda. E desprezar-me quando devoro uma barra de chocolate entre dois atos,
sozinha no meu camarim, com a boca cheia, quase sem conseguir respirar, bufando pelo nariz,
como se fosse uma galinha, uma rameira, uma pastora. Porque para mim representar é um castigo,
Sergei. Humilha-me que olhem para mim. Mas gosto quando me chamam e me dizem que sou a
atriz perfeita para uma personagem. Disso eu gosto. E não me agrada falhar. Que gostem de mim.
Isso às vezes faz-me feliz. Porque é que não chegou mais ninguém ao ensaio, Sergei?

ALEKO: Não se deprima, Olga, nós estamos felizes de a ter aqui como atriz convidada.

OLGA: Obrigada.
ALEKO: Olga, eu gosto de ser ator. Faz-me feliz, mas tenho vergonha de ser feliz. E se não
chegou ninguém ao ensaio é porque hoje é um domingo sangrento.

OLGA: Que dia é hoje?

ALEKO: Nove de janeiro de 1905, lembre-se desta data. Quando vinha para o ensaio, vi uma
marcha de pobres que acabou em matança. Fico com medo que tenham matado o resto dos atores
da companhia. Não sei se sabe, Olga, mas parece que vai haver uma revolução na nossa pátria. E
eu não me chamo Sergei, o meu nome é Aleko.

OLGA: (Entra alguém.) Quem é?

MASHA: Masha.

ALEKO: Masha!

OLGA: Masha, representa para nós.

MASHA: O quê?

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OLGA: A cena final do meu monólogo.

MASHA: Como é que era o texto, Olga?

OLGA: "Oh, meu querido, meu doce..."

MASHA: Ah, sim... Un, deux, trois... "Oh, meu querido, meu doce, meu belo jardim... minha
vida, minha juventude, minha felicidade. Adeus!... Adeus!... Um último olhar para as paredes, as
janelas... A nossa pobre mãe adorava andar por este quarto...

ALEKO: Saiu-te sem alma.

MASHA: O quê?

ALEKO: Sem alma.

OLGA: A coisa mais verdadeira que disseste foi un, deux, trois. Masha, quero-te ver representar.
MASHA: Outra vez, Olga?

OLGA: Não, "representar". Escolhe qualquer coisa do teu repertório de atriz, que gostes de dizer...
e representa para nós.

MASHA: "Agora compreendo, Kostia... Agora compreendo, o importante não é a fama, não é o
brilho, não é aquilo que eu sonhava..." (OLGA e ALEKO riem-se.) Continuo?

OLGA: Sim, continua.

MASHA: "O importante é saber sofrer. Aprende a carregar a tua cruz e a acreditar... eu acredito
e por isso não sinto tanta..."

OLGA: Eu estou a tentar acreditar, mas é muito difícil… Aprende a carregar a tua cruz… a cruz
de seres má atriz. Porque é que respiras assim? Estás com bronquite? (Ridicularizando.) "Agora
compreendo, agora compreendo, Kostia." Não és um fole. És uma atriz. Quem se emociona é o
público por causa da beleza do texto, e não porque a atriz se está a desfigurar em cena. Já não se
representa assim, Masha. Un, deux, trois.

ALEKO: Olga, posso-lhe fazer uma pergunta técnica? Quando Anton Tchékhov morreu... há seis
meses... nos seus braços... a delirar... de tuberculose... depois de um casamento tão curto e de
terem estado juntos tão pouco tempo, enquanto a senhora fazia carreira no Teatro de Arte de
Moscovo, e ele esperava por si sozinho em Ialta... a vomitar sangue... e os pulmões. Quando
Anton Tchékhov finalmente morreu... o que é que sentiu?

MASHA: E eu não lhe tinha dito, Olga, mas os sapatos ficam-me pequenos, se calhar é por isso
que não consigo respirar bem.

ALEKO: Olga, e usa isso que sentiu quando sobe ao palco, para chorar, para representar?

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OLGA: Não me lembro. Não me lembro... Quero-me ir embora... Masha, podes abraçar-me? Não
me lembro! Sei que, na noite em que o Anton morreu, entrou uma traça no quarto, mas não sei se
a traça entrou antes ou depois de o Anton parar de respirar. Também sei que o Anton estava a
sorrir antes de morrer, mas não me lembro... Vocês podiam-me fazer um favor? Podiam
representar a morte do Anton para mim? É um favor, um favor que vos peço.

ALEKO: Olga, eu faço de Anton.

OLGA: Obrigada, Aleko.

MASHA: Eu também posso fazer de Tchékhov.

OLGA: Ah, sim? (Para MASHA.) Vamos ver, tosse. (Para ALEKO.) Tosse, Aleko. (ALEKO
tosse.) Tosse, Masha. (MASHA tosse. Para ALEKO.) Tu fazes de Anton.

ALEKO: Obrigado, Olga.

OLGA: Tu fazes de doutor Schworer. O doutor Schworer estava muito perto do Anton e dizia-
lhe qualquer coisa em alemão que eu não conseguia ouvir.

MASHA: Olga, eu não sei falar alemão.

OLGA: (Para ALEKO.) Ela é atriz e não sabe falar alemão... Então como é que pensa? Vais falar
alemão porque o doutor Schworer era alemão. Nesse momento tu dizes-lhe ich sterbe.

MASHA: O que é que quer dizer ich sterbe?

ALEKO: (Para MASHA.) Estou a morrer.

OLGA: Estou a morrer. Nesse momento, Masha, vais injetar-lhe cânfora e depois vais pedir a Lev
Rabeneck, um estudante russo de visita a Badenweiler que nos ajudou muitíssimo nessa noite,
que te traga uma garrafa de champanhe. Vais beber do copo, vais saborear, vais passar-me o
copo... e depois vais morrer... ele morre. Obrigada aos dois. Vocês são pessoas maravilhosas.
(Tomam as suas posições.) Ação! (ALEKO tosse.)

MASHA: Sou o doutor Schworer.

OLGA: Doutor!

MASHA: Ich brait sheit und wis if kurt nais kris yaikenshipnein... (Fala num alemão
improvisado. ALEKO ri-se.) Olga, não consigo continuar a representar, o Aleko está-se a rir do
meu trabalho.

OLGA: Como é que te passa pela cabeça interromper a cena quando a cena acabou de começar?

MASHA: Eu não sei falar alemão.

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OLGA: Quero lá saber que não fales alemão! Como é que te passa pela cabeça interromper uma
cena quando a cena já começou? Quem é que julgas que eu sou? Achas que sou o teu bufão
particular, para te rires da minha dor na minha cara? Que falta de respeito é esta? E não só me
faltas ao respeito a mim, ao palco, ao teatro, também faltas ao respeito ao teu colega, que estava
absolutamente concentrado no papel que tinha de interpretar. E depois olhas para mim com cara
de surpresa quando eu te digo que não tens alma. Achas que é ter alma, interromper uma cena
quando a cena já começou?

MASHA: Olga, quero-lhe pedir desculpa, eu não quis interromper a cena... Não sei falar alemão.

OLGA: Podes pelo menos dar-me espaço para eu recuperar? (Pausa.) Ação! (Retomam a cena.)

MASHA: Sou o doutor Schworer.

OLGA: Doutor!

MASHA: Depressa, Lev! Champanhe! O champanhe, Olga. O champanhe.

ALEKO: (Bebe champanhe.) Há que tempos que não bebia champanhe. (Começa a engasgar-se
e a tossir.)

OLGA: Anton! Antosha!

ALEKO: Crocodilo! (Morre.)

OLGA: Não foi assim. Não... Não foi assim.

ALEKO: Olga, se calhar não resultou por causa da cena em alemão, a Masha não fala alemão.

MASHA: Não, Aleko. Não! Olga, segundo Lev Rabeneck, ele escreveu nas suas memórias que a
senhora não estava sentada ali, e sim parada aqui. (Muda-a de sítio.)

OLGA: Ah, sim? Obrigada, Masha. És maravilhosa. (Segue as instruções de MASHA.)

MASHA: Segundo Lev Rabeneck, começou a sair um som estranho da garganta de Anton.
(ALEKO geme.) Estava tudo em silêncio, e a luz da lamparina começou a apagar-se. O doutor
pegou na mão de Anton, não disse nada, parecia que as coisas estavam a melhorar, que Anton
estava fora de perigo. Mas o doutor largou a mão de Anton, foi aí que Lev Rabeneck disse:
"Acabou-se, Herr. Tchékhov morreu." Lev Rabeneck aproximou-se de Olga e disse...

OLGA: Não, Masha.

MASHA: Olga...

OLGA: Não quero.

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MASHA: Olga... (Retomando a personagem de Lev.) Olga Leonardovna, o doutor disse que...
Anton Tchékhov morreu, Olga.

OLGA: Não, não, não. Não, doutor... diga-me que não é verdade. (Começa a desmaiar.)

MASHA: (No papel de doutor.) É verdade, Olga, é verdade! Olga!

Olga! (Pedindo ajuda.) Lev! Olga!

ALEKO: Desculpe, Olga, foi assim?

OLGA: Não, não foi assim.

ALEKO: (Para MASHA.) Pára, pára! (Ordenando uma nova cena.) Afasta isso. (Apontando para
o aquecedor.) Olga, eu sou Tchékhov. (Tosse.)

OLGA: Não, não. Tu prometeste-me que ias escrever uma peça sobre um escritor que viaja até
Moscovo porque quer ver a mulher representar as personagens que escreveu para ela... Tu
prometeste-me, Antosha.

ALEKO: Crocodilo... não imaginas como quero voltar a Moscovo.

MASHA: Aleko, Anton manteve-se digno até ao fim.

ALEKO: Doutor, estou a morrer.

MASHA: (Retomando a personagem do doutor.) Rápido, Lev, oxigénio.

ALEKO: Não é preciso, quando chegar já eu vou estar morto.

MASHA: (Interrompendo.) Olga, no dia seguinte à morte de Anton, o jornalista russo Grigori
Borisovitch Iollos do diário moscovita Russkie Vedemosti entrevistou-a no hotel de Badenweiler.
À uma da manhã, Anton começou a delirar.

ALEKO: (No papel de Tchékhov, a delirar.) Imagino uma revolução. Um dia depois das greves,
o czar, o césar russo, vai viver para o campo e nós ficamos órfãos, e há uma guerra, temos tanta
fome que as pessoas simples como eu têm de comer carne humana. Até que um dia vamos à
estação Finlândia esperar o comboio que traz um novo líder, um homem calvo, elétrico, recheado
de serradura, e entramos com ele no museu francês, junto ao rio Neva.

MASHA: (Todos retomam as personagens.) Olga põe uma bolsa de gelo junto ao peito de Anton.
Anton diz... não se põe gelo...

ALEKO: Não se põe gelo num coração vazio, ich sterbe, estou a morrer.

MASHA: Olga tira a bolsa de gelo do peito de Anton. A janela está aberta e ouve-se o canto dos
pássaros. Olga abraça Anton e beija-o com doçura.

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OLGA: Não, não! Não! (Abraça-o, beija-o, e depois começa a bater em ALEKO.)

ALEKO: Olga, quero-lhe pedir perdão.

OLGA: Porquê, Aleko?

ALEKO: Porque me apaixonei por si quando a vi a representar n'As Três Irmãs há uns meses em
Moscovo. Olga, apaixonei-me tanto que faço xixi na cama.

OLGA: Aleko, eu já amei, eu já queimei o meu carvão e o meu azeite.

ALEKO: Então, salve-me, Olga, perdoe-me. Eu desejava a morte do seu Anton e o meu desejo
cumpriu-se. Olga, por favor, perdoe-me, sou uma pessoa tão simples. Por favor, perdoe-me, Olga.

MASHA: Com licença, vou buscar gelo.

ALEKO: Não, não te vás embora!!! Não me deixes sozinho com ela!!! Olga, sou uma crosta. Não
tive sapatos até aos treze anos, bebia leite da mama da minha mãe e da minha irmã só quando
tinham mais filhos. O meu pai batia-me, nunca o vi sóbrio e nunca me olhou nos olhos. Criou-me
um cura em casa dele porque dizia que eu sabia cantar e porque no inverno não chorava de fome.
Era assim a vida no campo e era tão bonita. Eu quis viver na cidade, mas quando cheguei vi uns
bêbados a matarem um cavalo à paulada. Agachei-me, beijei-lhe os olhos e fiquei manchado de
sangue. Igual a si, Olga, manchado de sangue. Por isso, quando fui vê-la ao teatro, convidado por
uma mulher que me pagava para a amar, apaixonei-me por si. Porque é triste, porque aparenta
mais idade do que tem, porque sabe andar, porque eu gostaria de ser assim e de me vestir assim.
E desde que veio ensaiar connosco, tenho uma ereção permanente. Há duas semanas que faço xixi
na rua, o pénis fica congelado e negro. Quero... penetrá-la. Amo-a e quero que me ame, mas a
senhora não me vai amar porque sou pobre. Não se iluda com a minha cara de soldado, quando
eu estiver nu vai perceber. Nós, os pobres, somos assim, temos menos ossos e os poucos que
temos são maiores, somos díspares. Tenho mordidelas de rato nos glúteos. Tenho cheiro de
mulher onde devia ter cheiro de homem e não sei amar sem querer bater, matar, vomitar, rezar,
beber e voltar a amar. O órgão mais importante do meu corpo é o apêndice e quero enfiá-lo no
seu rim e vê-la suar.

MASHA: Aleko!

OLGA: Continue, continue.

MASHA: Aleko!

ALEKO: Não, já acabei.

OLGA: Porco, falinhas mansas. Não me consigo mexer.

ALEKO: E um monólogo que estou a ensaiar baseado em Dostoiévski. Gostou?

MASHA: Aleko!

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OLGA: Não me ama? (OLGA chora.)

ALEKO: Não. (Consolando-a.) Olga, Olga, qualquer um se apaixonaria por si.

OLGA: Estava a representar?

ALEKO: Sim.

OLGA: Não represente nunca mais, por favor. (OLGA passa bruscamente do choro ao riso.)

MASHA: (Surpreendida.) Olga, a senhora é muito boa atriz.

OLGA: Não. Era.

MASHA: Quando ensaia, consigo ver o que pensa.

ALEKO: E o que sente?

MASHA: Sim, o que sente também.

OLGA: Tu sabes o que eu sinto?

MASHA: Como é que é tão boa atriz? Acha que eu seria melhor atriz se gostasse de sexo?

ALEKO: Porquê, Masha? Não gostas de sexo?

OLGA: Masha, não fales disso à frente do Aleko, eu nem sequer falo disso à frente de uma mulher.

MASHA: Preciso de falar de mim.

ALEKO: Olga, podem falar à minha frente, nós estamos sempre a falar de sexo.

OLGA: Sim?

MASHA: Sim.

ALEKO: Sim.

MASHA: Uma vez até fizemos.

OLGA: Fizeram o quê?

MASHA: Sexo.

ALEKO: Sexo.

OLGA: Sexo?

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ALEKO: Sim, eu fiz sexo com ela.

MASHA: Sim. Foi no verão, num camarim do teatro. Estávamos sentados numa cadeira. (ALEKO
indica a cadeira em que está sentado.) Sim, nessa cadeira. Mas eu não gostei.

ALEKO: Eu sim, gostei, Olga. Mas foi só para ela poder representar melhor, porque tinha de fazer
o papel de uma mulher que se apaixona por um camponês.

MASHA: Um mineiro.

ALEKO: Um mineiro, um camponês, vai dar ao mesmo.

OLGA: E serviu-te para alguma coisa?

MASHA: Sim, percebi que, quando uma mulher não está a gostar, pode pensar num homem
melhor e assim ficar doente da alma e sofrer... (Pausa.) Olga, é verdade que não deixava que
Anton fizesse sexo consigo porque ele tinha tuberculose?

OLGA: Fala-se disso?

MASHA: Sim.

OLGA: Atores!...

ALEKO: Mas foi contagiada ou não?

OLGA: Não!!! (Pausa.) Às vezes, quando fazíamos amor, o Anton tossia e vomitava sangue, mas
eu continuava a beijá-lo. O que é que eu ia fazer... rejeitá-lo?

MASHA: Pensa nisso quando tem de fazer cenas de amor?

OLGA: Não.

MASHA: O Aleko diz que é útil.

OLGA: Ah, sim?

ALEKO: Sim, eu acho que sim. Que é útil. Por exemplo, Olga, se uma pessoa tem de dizer "amo-
te" e não o sente, lembra-se de alguém que amou.

OLGA: E se a pessoa for "outra"?

ALEKO: Substitui-a na sua cabeça.

OLGA: Como?

MASHA: Um exemplo.

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ALEKO: Por exemplo... "Mãe, perdoe-me... corte-me a mão." (MASHA ri-se.)

OLGA: Porque é que te estás a rir?

MASHA: A mão, Olga.

OLGA: Não, não te rias. Ele representou muito bem. Pensaste em quê, Aleko?

ALEKO: Na minha mãe, quando lhe bati na cara.

OLGA: Bateste na cara da tua mãe?

ALEKO: Não, Olga. Também imaginei essa parte.


OLGA: És muito bom ator, Aleko. Masha, o teu colega é muito bom ator, imaginou.

MASHA: Não, Olga, não é bom ator. É nobre, é milionário, por isso é que faz o que faz.

ALEKO: Sim, Olga. Sou nobre, sou milionário. Cresci entre cães que comiam à mesa o mesmo
que eu.

MASHA: Se conhecesse a mãe do Aleko, Olga.

ALEKO: O que é que tem a minha mãe? A minha mãe tem dentes de marfim da Índia, Olga. Eu
cresci com fatinhos de marinheiro até aos onze anos.

MASHA: Tinham um teatro em casa, Olga. Um teatro.

ALEKO: Sim, tínhamos um teatro, Olga, um teatro privado e um ator, um ator que tinha sido
servo e que me ensinava a representar. Dizia que representar era como sofrer por amor, ele era
sentimental e tinha sempre os olhos rasos de lágrimas. Graças a ele, vim para São Petersburgo e
tornei-me ator.

MASHA: Para ires de férias a França.

ALEKO: Sim, ia de férias a França. Sabes o que me aconteceu em França? Vi um


guilhotinamento; as pessoas são tão simples. Por isso é que eu estou sempre bêbado, com a língua
roxa. Por isso é que acordo duas vezes por semana estendido na rua, sem roupa. Olga, devíamos
voltar a viver como cristãos, acabar com o progresso.

MASHA: Aleko.

ALEKO: Eu viveria no campo com os meus filhos e as mães deles, apesar de serem umas velhas
de quinze anos sem dentes. Iria obrigá-las a rezar para que Deus as convencesse de que as violei
por amor e que todas essas crianças, os meus filhos, são fruto de uma paixão celestial. Quer-me
ver representar?

OLGA: Sim.

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ALEKO: Alguma cena em particular?

OLGA: Alguma coisa da minha vida. Será que podias representar o que aconteceu a Masha
Tchékhova, irmã do Anton, quando soube que íamos casar?

ALEKO: (No papel de Tchékhov.) Masha.

MASHA: Sim.

ALEKO: Irmã...

MASHA: Sim?

ALEKO: Vou-me casar.

MASHA: (No papel de Masha Tchékhova.) Não.

ALEKO: Tu vens viver connosco.

MASHA: Não. Para que é que te vais casar se eu te dou tudo?

ALEKO: Tu és minha irmã.

MASHA: E?...

ALEKO: Como assim, "e... ?"

MASHA: E…!

ALEKO: "E..." o quê?

MASHA: E... eu cozinho, limpo para ti, escrevo-te as cartas, mato os gatos com a espingarda,
inspiro-te, rio-me dos teus contos...

ALEKO: Masha, quero ter intimidade com uma mulher.

MASHA: Nojento! Para quê? Podes continuar a masturbar-te no teu jardim como fazes sempre.

ALEKO: Quero uma mulher.

MASHA: Eu sou uma mulher.

ALEKO: Uma mulher que eu possa beijar

MASHA: Podes-me beijar a mim...

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NEVA | Guillermo Calderón

ALEKO: Com a língua?

MASHA: A mim também!

ALEKO: Enquanto te toco nas mamas?

MASHA: És meu irmão, Anton! Queres-me tocar nas mamas? Pronto, toca-me nas mamas. Faz
o que quiseres comigo, mas não te cases... Ninguém te vai amar como eu te amo, Anton.

ALEKO: Eu sei.

MASHA: E?

ALEKO: Mas quero experimentar.

MASHA: Experimentar o quê?

ALEKO: Experimentar... Ter uma mulher, dormir com ela, contar-lhe os meus problemas.

MASHA: Mas que problemas é que tu tens se eu os resolvo todos, Anton?

ALEKO: Tossir. Esse problema. Ter tuberculose. Medo de morrer. Isso.

MASHA: (Pausa.) Essa gorda, essa velha, suja, marreca, Olga Knipper, alemã mal vestida,
fantoche descosido de Nemiróvitch-Dántchenko e Stanislavski, suja, galinha, pastora, coveira,
atriz, facínora, quando sobe ao palco vem um cheiro a leão.

ALEKO: Masha: eu amo-te, mas não te amo... Estou apaixonado pela Olga.

MASHA: Anton, Antosha: porque é que crescemos? Éramos tão felizes quando éramos pequenos
e brincávamos na lama. Lembras-te? Quero voltar a ser pequena, Anton. Escolhe-me a mim, eu
conheço-te há mais tempo.

ALEKO: Precisas de um marido, Masha.

MASHA: Sabes o que eu quero? Quero que te cases com ela, que escrevas peças para ela, que a
transformes numa deusa, mas que a mantenhas longe, em Moscovo, e que chores a sua ausência.
E que tussas cada vez mais, e que percebas finalmente que quem permaneceu ao teu lado fui eu,
e que o sexo e as porcarias que tu tanto querias não significaram nada na tua vida. E que um dia
morras, que morras. E que ela sofra, afogada em culpa, que sofra, que engorde. E que nunca mais
possa representar. E eu vou ficar nesta casa e deixar tudo igual até que se transforme num museu.
Vou-me transformar numa gigante egoísta e o teu jardim vai secar. "Oh, meu querido, meu doce,
meu belo jardim..."

ALEKO: Masha, Mashenka, estás doente: não bebas mais álcool, não fumes tabaco, não comas
peixe. Toma aspirina, injeta arsénico debaixo da pele das costas.

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NEVA | Guillermo Calderón

MASHA: (Para OLGA.) Porca, alemã vil, acabaste por apanhar o meu irmão. Se te transformares
na Natasha d'As Três Irmãs, vou-te estrangular com as minhas próprias mãos. Não te vou morder
o pescoço, vou-te só estrangular. Quero suicidar-me, a minha vida já não tem sentido por culpa
do casamento do meu irmão. Porque é que tinhas de aparecer, Olga Knipper, e complicar tudo
por causa de um homem doente? Não me consigo convencer de que vais passar a ser uma
Tchékhov. Olga, Olechka, eu adoro-te. Aproximámo-nos tanto nestes últimos dois anos. Por
favor, arranja-me um marido que seja rico e generoso. Por favor.

OLGA: Porque é que não descansas? Porque é que não paras de fazer tantas aulas, Masha? Porque
é que não te apaixonas?

MASHA: Eu? Nunca me apaixonei, Olga. Eu, Masha. Invejo-a, Olga, ainda que o seu Anton
tenha morrido.

OLGA: Já alguma vez te aconteceu gostares tanto de alguém que sofres com a ideia de que essa
pessoa um dia vai ficar velha e morrer?

MASHA: Sim, uma vez ia na rua e encontrei...

OLGA: (Interrompendo.) Foste muito bem, muito bem, Aleko. Temos de fazer teatro.

ALEKO: Temos de fazer uma peça que nos cure a alma.

OLGA: Quando a neve secar, é preciso fazer teatro.

MASHA: Porquê, Aleko? Tens a alma doente?

OLGA: És muito bom ator, Aleko. Masha, foste muito bem. Temos de fazer teatro.

MASHA: Olga, porque é que não representa?

OLGA: Eu?

MASHA: Sim.

OLGA: Para quê?

MASHA: Para experimentar. Para ver se agora já consegue.

OLGA: O que é que achas, Aleko?

ALEKO: Sim. Acho que sim.

OLGA: "Quando vires o Trigorin, não lhe digas nada, eu amo-o. Amo-o até mais do que antes.
Kostia, lembras-te? Que brilhantismo, que calor, que juventude, que felicidade, que sentimentos...
como ternas e delicadas flores."

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ALEKO: Olga, se calhar devia voltar a fazer amor. Talvez assim volte a sentir.

OLGA: E o que é que acontece se eu gostar de fazer amor com outro homem e me sentir bem?

MASHA: Então vai-se sentir repugnante.

OLGA: Ah, é?

ALEKO: Podia fazer comigo.

OLGA: Está bem.

ALEKO: Está bem?

MASHA: Aleko, vais-lhe dizer as mesmas coisas bonitas que me disseste a mim?

ALEKO: Que coisas, Masha?

MASHA: Que eu era a mulher mais linda do mundo e que querias ter filhos comigo?

ALEKO: Masha, eu estava com uma ereção?

MASHA: Aleko!

ALEKO: Então não vale.

OLGA: E a mim vais-me dizer as mesmas coisas que disseste à Masha?

ALEKO: Se a senhora quiser...

OLGA: Sim. Quero. E quero que me diga mais coisas. Diga que me ama, diga que estou magra,
que aparento menos idade do que tenho, que as minhas mamas estão rijas e que vai amar-me
mesmo quando eu representar mal. Diga-me que sou a sua pequena crocodila, a sua querida
luterana, abrace-me com força e parta-me duas costelas, sufoque-me e faça-me chorar. Quero que
morda a língua, que tussa sangue e que me diga que é o Anton, que vai viver muitos anos e que
vamos ter três filhas.

MASHA: Mataram o ministro Vyacheslav.

OLGA: Como?

MASHA: Atiraram-lhe uma bomba para dentro do carro. Foi Yegor Sozonov, um socialista
revolucionário.

OLGA: Que horror. Mas eu não soube nada disso...

MASHA: Foi há seis meses, Olga.

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NEVA | Guillermo Calderón

OLGA: O Anton tinha acabado de morrer.

ALEKO: Já mataram muita gente.

MASHA: Era o chefe da polícia secreta e um antissemita. Por mim, os cães que o comam.

ALEKO: Era um ser humano.

MASHA: O Aleko é cristão, Olga.

OLGA: Sim? És cristão? Mas és um bom cristão? Ajuda-me, por favor. Representa outra vez a
morte do Anton. Mas a delirar.

ALEKO: Imagino uma revolução. Imagino que a cidade muda de nome, que se chama Petroneva
ou Nevagrado ou Antontchekhovgrado. Imagino que há uma guerra branca no inverno. E
mandam-nos trabalhar para a Sibéria. Faz muito frio na Sibéria e não há tempo para ler. E depois
outro homem, um novo líder, o que tem os dedos sujos de gordura, cobre-nos de vermelho.
Imagino que todos esses soldados, operários e camponeses morrem e flutuam no rio, matou-os o
novo czar, o novo césar. E eu só queria vodca, champanhe, espingardas, cebolas, liberdade sem
Deus e bosques. Imagino que continuo a amar a Rússia. Imagino que ganhar uma guerra patriótica
e pôr uma cadela a voar pelo cosmos terá valido a pena. Estou apaixonado pela Rússia.

MASHA: Eu também penso na Rússia.

OLGA: Temos de fazer uma festa.

MASHA: Sim.

ALEKO: Outra vez?

MASHA: Aquilo não foi festa.

ALEKO: Para mim foi festa, sim.

OLGA: O que é que não foi festa?

ALEKO: Quando a recebemos no foyer do teatro.

OLGA: Com champanhe?

MASHA: Não foi festa.

ALEKO: Para mim foi uma festa, sim.

OLGA: Uma festa é outra coisa.

ALEKO: Para mim foi uma festa, sim. Comemos bolachas, bebemos vinho.

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NEVA | Guillermo Calderón

MASHA: Champanhe.

ALEKO: Bom, eu bebi vinho.

MASHA: Quando é que bebeste vinho?

OLGA: A mim não me deram vinho.

ALEKO: Dançámos... eu dancei.

OLGA: Dançaste comigo.

MASHA: Quando?

ALEKO: Tu estavas na casa de banho.

MASHA: Não.

ALEKO: Bom, então estavas a olhar para outro lado.

MASHA: Dançaram o quê?

OLGA: Uma polonesa?

MASHA: Sim, temos de fazer uma festa.

OLGA: Sim, temos de fazer uma festa, mas aqui não, noutro sítio.

MASHA: Num sítio maior.

ALEKO: Podia ser em casa do Andrei.

OLGA: Ele tem espaço para uma festa?

MASHA: Sim, mora por cima do restaurante do irmão.

OLGA: E como é o restaurante?

MASHA: Pobre, mas limpo.

ALEKO: Como a Masha.

MASHA: Também podia ser num lugar rico e sujo.

OLGA: Como o Aleko.

ALEKO: Rico e sujo, como a senhora gosta.

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NEVA | Guillermo Calderón

MASHA: Temos de fazer uma festa. Temos de convidar o Sergei para tocar harpa. Aleko, vais-
me buscar para dançar?

ALEKO: Não, vou estar a dançar com a Olga.

OLGA: Sim, mas eu vou estar a pensar noutra pessoa.

ALEKO: Já sei em quem. Eu vou pôr vinho na boca e fazer assim... (Tosse, imita Tchékhov.)
"Nunca mais representes, Olga, nunca mais te apaixones, nunca mais dances, não tens direito a
ser feliz."

OLGA: Masha, alguma vez tiveste vontade de matar alguém?

MASHA: Sim, Olga. E também tenho vontade de queimar tudo.

OLGA: Mas eu perdoo o Aleko. Adoro o sentido de humor dele.

ALEKO: Obrigado.

OLGA: Temos de fazer uma festa.

ALEKO: Sim, temos de fazer uma festa, uma festa sangrenta. Eu quero fazer um brinde. Quero
fazer um brinde à czarina que se levantou alegre e disse: Nicolau, está a nevar, quero navegar
pelo Neva. E quando a czarina se levanta e se detém na coberta do seu barco, gosta de ver a
Rússia. E então os soldados vão e constroem-lhe aldeias camponesas inteiras na margem do rio.
Porque a nossa cidade, Olga, é muito bonita, é um cenário. Aqui as pessoas saem à rua e
mascaram-se de pobres, porque somos todos milionários.

OLGA: Eu também quero fazer um brinde. À nossa família real. À czarina, que é alemã como eu,
para que tenha um filho homem e saudável.

MASHA: Eu também quero brindar. Quero brindar ao nosso encenador, que ainda não chegou.
Talvez esteja na rua cagado, morto, hirto.

OLGA: Masha, não sejas ridícula, estamos a festejar.

ALEKO: Sim, Masha. Não fales assim do nosso encenador.

MASHA: Mas eu amo-o, Aleko. Não, amava-o.

OLGA: Mas ele não está morto.

ALEKO: Eu quero brindar a Gapon.

OLGA: Adoro o Gapon, é um ator tão sensual. (MASHA ri-se.)

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NEVA | Guillermo Calderón

ALEKO: Olga. O padre Gapon. O sacerdote que organizou a marcha dos trabalhadores hoje de
manhã.

OLGA: Que tonta, enganei-me.

MASHA: (Rindo-se.) O padre Gapon, ator.

OLGA: (Para MASHA.) Dá-te vontade de rir que eu não saiba quem é Gapon. Pois então ri-te,
mas ri-te mais alto, ri bem alto. Se te vais rir de mim, ri bem alto. Que São Petersburgo inteira
fique a saber como Olga Knipper é cretina e estúpida, que não sabe quem é Gapon. (Chorando.)
Eu não tenho como saber quem é Gapon. Como é que eu havia de saber quem é Gapon? Eu acabei
de chegar de Moscovo!

ALEKO: Olga, sente-se, sente-se. Olga, o padre Gapon é o sacerdote que organizou a marcha dos
trabalhadores hoje de manhã.

OLGA: Para quê?

MASHA: Conta-lhe para que é que organizaram...

OLGA: Cala-te! (Para ALEKO.) Para quê?

ALEKO: Olga, hoje de manhã os trabalhadores levaram uma carta ao czar.

OLGA: E o que dizia a carta?

MASHA: Conta-lhe tudo o que dizia a carta.

ALEKO: Cala-te!

OLGA: Cala-te, por favor!

ALEKO: A carta pedia justiça, proteção, dizia: "Sentimo-nos empobrecidos, oprimidos, tratam-
nos com desprezo, o despotismo está a sufocar-nos."

OLGA: (Ri-se. O choro era representação. ALEKO fica incomodado.) Não, Aleko, a sério. E o
que fez o czar?

ALEKO: O czar pôs doze mil soldados na rua. O padre Gapon parou a marcha dos trabalhadores,
que eram leais ao czar, e disse-lhes: "Camaradas, será que a polícia e os soldados se atreverão a
deter-nos?" E eles responderam que não. E o padre Gapon disse-lhes: "Camaradas, é melhor
morrer pela nossa petição do que viver como temos vivido."

MASHA: "Vamos morrer, padre."

ALEKO: Cala-te!

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NEVA | Guillermo Calderón

MASHA: Foi o que disseram, Aleko.

ALEKO: Cala-te!

MASHA: "Vamos morrer", disseram eles.

ALEKO: Os trabalhadores responderam-lhe: "Morreremos." Mas quando a procissão chegou às


portas do Narva, o esquadrão da cavalaria dispersou a coluna e a infantaria disparou sobre a massa
de pessoas. Quando o padre Gapon viu o massacre, parou no meio da rua e gritou: "Não há Deus,
não há czar."

OLGA: Onde está o padre Gapon agora?

ALEKO: Não sei.

OLGA: Morreu? Aleko, está morto?

MASHA: Não, Olga. Não está morto.

OLGA: E como é que tu sabes?

MASHA: Estive com o padre Gapon antes de vir para o ensaio. Em casa de Gorki.

OLGA: Tu estiveste em casa do meu amigo Máximo Gorki?

MASHA: Gorki chamou-me. Precisavam de uma atriz que percebesse de maquilhagem. Tinham
de tirar o padre Gapon da cidade. Eu pintei-o de mulher e pus-lhe uma peruca.

OLGA: E onde está o padre Gapon agora?

MASHA: Não sei, Olga. Deve andar pelas ruas, imagino, à procura da sua gente... ou a boiar no
rio Neva. Não sei.

OLGA: E como estava o Gorki?

MASHA: Bem. Eu disse-lhe que, se houvesse estreia no próximo sábado, aqui no teatro, para ele
a vir ver.

OLGA: O quê?

MASHA: Ele queria vê-la em cena.

OLGA: Mas porque é que o convidaste? Não percebes que eu já não sei representar? Não percebes
que, desde que morreu o Anton, eu sou incapaz de dizer bem uma linha que seja? Não consegues
entender isso porque tu nunca amaste ninguém, mas eu sim, eu amei, amei, e sempre fui uma
mulher ciumenta... que fica doente...

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NEVA | Guillermo Calderón

MASHA: Eu também sou ciumenta, Olga.

OLGA: Masha, incomodou-te muito que eu tenha vindo trabalhar como atriz na tua companhia,
neste teatro?

ALEKO: Olga, enrolou-se na cortina a chorar de raiva, porque tem ciúmes de mim.

MASHA: Sim, chorei. Mas queria conhecê-la, Olga. Queria aprender consigo.

OLGA: Masha, tu és como eu quando tinha sete anos. Nessa idade eu também não me tinha
apaixonado e também era virgem... O Anton ia adorar-te. Se ele aqui estivesse, eu estaria a chorar
de raiva enrolada numa cortina do teatro.

MASHA: Ele teria gostado de mim?

OLGA: Ele ia adorar-te, havia de escrever uma peça para ti.

MASHA: Como é que se chamaria?

OLGA: Neva.

MASHA: Neva, do rio Neva?

OLGA: Não, Neva de nevar. (Pausa.) Quem é que andou aos beijos com quem nesta companhia?

MASHA: Ninguém com ninguém.

ALEKO: (Irónico.) Não, Olga, não gostamos de falar disso.

MASHA: É privado, Aleko.

ALEKO: É propriedade privada?

MASHA: Não, não é propriedade privada, é pessoal, é secreto.

OLGA: Lamento, Masha, só pergunto porque gosto de saber como são as pessoas com quem
trabalho. Mas se é um assunto privado, não me interessa.

MASHA: Pessoal.

OLGA: Privado, pessoal: vai dar ao mesmo. Não me interessa. Falemos de outra coisa. (Pausa.)

ALEKO: Olga, sabia que o diretor da nossa companhia foi cantor de ópera?

OLGA: Ah, sim?

ALEKO: Sim. (Pausa.) E também engravidou a rapariga da bilheteira.

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NEVA | Guillermo Calderón

MASHA: Aleko! Chega!

OLGA: Não! Mas isso é terrível. Ela deve ter uns dezoito anos.

MASHA: Tem catorze, Olga.

OLGA: Catorze! Masha, isso é um abuso. Estou desiludida com o diretor da vossa companhia,
parecia-me um homem tão digno, tão reservado.

MASHA: Digno...

ALEKO: Reservado...

OLGA: E além disso ele é tão baixo e tão magro. Foi cantor de ópera?

ALEKO: Péssimo.

OLGA: Não consigo imaginar como é que uma rapariga tão rosada se foi interessar por ele. Se
calhar, violou-a.

ALEKO: Parece que lhe pagou.

OLGA: Não. Não. Não. Não está certo falarem assim duma pessoa que não está presente e que
além disso é o vosso diretor. Acho isso repugnante.

MASHA: Olga, tem de aconselhar o Aleko.

OLGA: Eu não vou participar nesta conversa. Ponto final.

MASHA: Tem de lhe dizer para não contar nada ao seu namorado.

OLGA: Eu não tenho namorado, eu já queimei o meu carvão e o meu azeite.

MASHA: Não, Olga! O namorado da rapariga da bilheteira.

OLGA: Tem namorado?

MASHA: Sim.

OLGA: Quem é?

MASHA: É ator da companhia.

OLGA: Quem?

MASHA: O Ossip.

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NEVA | Guillermo Calderón

OLGA: Quem é o Ossip?

MASHA: O que faz de criado, de camponês.

OLGA: O gordo?

MASHA: Não lhe chame gordo, Olga.

OLGA: Mas porquê? Eu olho para o homem, acho-o gordo e chamo-lhe gordo.

MASHA: O Ossip sofre. Está sempre a tentar emagrecer. Há meses em que só bebe vodca e come
pão, mas engorda mais. Não sei porque é que a rapariga foi para a cama com o diretor, Olga.

ALEKO: O problema é que o gordo está feliz porque acha que o filho é dele, mas quando vir que
o miúdo é magro como o diretor vai morrer de desgosto. Eu acho que temos de lhe dizer a verdade.

MASHA: Não, Aleko. Tu não tens de lhe dizer nada. A rapariga está apaixonada pelo Ossip.

ALEKO: É um engano, Masha.

MASHA: Como é que sabes que o filho não é do Ossip?

ALEKO: Não, não acredito, o diretor é um sátiro.

OLGA: E o diretor tem mulher?

ALEKO: Não, diz que a família dele somos nós. Ama-nos. Agora vive com a irmã e tem dois
filhos com ela.

OLGA: O quê?

ALEKO: Com a irmã.

OLGA: O diretor tem dois filhos com a própria irmã?

MASHA: Com a irmã, Olga... E vêm com ele ao ensaio. As crianças são normais, mas têm os
olhos separados.

ALEKO: Como cordeiros.

MASHA: Eu digo ao Aleko para não dizer nada, Olga. O Ossip que seja pai e resolva os problemas
dele.

OLGA: Sim, Aleko. Não tens de dizer nada.

ALEKO: Olga, eu não vou compactuar com uma mentira. O gordo é meu amigo.

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NEVA | Guillermo Calderón

OLGA: Pois. Já chega, Aleko. Basta. Somos humanos, somos pessoas frágeis. Deixa o pobre
gordo em paz.

MASHA: O Ossip.

OLGA: O Ossip. Deixa-o em paz. Olha para mim. Quando olhas para mim, o que é que vês?

ALEKO: Vejo a melhor atriz do mundo.

MASHA: Imbecil.

OLGA: O que é que vês? Vês Olga Knipper, uma mulher destruída, uma ex-tudo, uma pele de
réptil. Não. Não me julgues, não te rias de mim, tens de dizer que eu sempre estive apaixonada
pelo Anton e que sou uma ave, uma ave simples.

ALEKO: Olga, a senhora sempre esteve apaixonada por Tchékhov e é uma gaivota.

OLGA: Quando o Ossip chegar, não lhe vais contar absolutamente nada. (Pausa.)

MASHA: Olga, lembra-se da Sasha?

OLGA: De quem?

MASHA: Da Sasha.

OLGA: Não.

MASHA: A alta, que faz de Irina.

ALEKO: A cantora.

MASHA: A que canta bem. (Canta.) "Sopra, sopra o vento..."

OLGA: Ah, sim.

MASHA: É muito boa atriz, a Sasha.

OLGA: Não me parece que seja assim tão boa atriz.

MASHA: Não é tão boa atriz como Olga Knipper.

ALEKO: É muito boa atriz, Olga. Quando chega tarde, chateia-se e até mete medo.

MASHA: Olha, pergunta-me porque é que cheguei tarde.

ALEKO: Sasha, o ensaio era ao meio-dia. Porque é que chegaste tarde?

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NEVA | Guillermo Calderón

MASHA: "É que, que, que, que, que, que."

ALEKO: Sim, é verdade. Ela diz todos os "ques" com diferentes entoações.

MASHA: É muito boa atriz, a Sasha.

ALEKO: Eu acho-a muito bonita.

OLGA: Eu acho-a com cara de homem.

ALEKO: Sim, por isso é que faz muito bem papel de má. E além disso fuma, cospe e tosse.

MASHA: Como uma tuberculosa.

OLGA: E como é que os tuberculosos tossem, Masha?

MASHA: Desculpe.

ALEKO: Mesmo que esteja a nevar, ela vai fumar lá fora com o Yegor.

OLGA: Não deveríamos ir para a rua procurá-los?

ALEKO: Não.

MASHA: Não.

ALEKO: Não.

MASHA: "Não."

ALEKO: "Não, não, não, Shuvochka, não faças isso. Para quê?"

MASHA: "Amo-te loucamente, sem ti a minha vida não tem sentido, não tem felicidade. Tu és
tudo para mim."

ALEKO: "Não faças isso, Shuvochka... não percebo nada, meu Deus, Shuvochka, não faças isso."

OLGA: "Na minha infância, tu foste toda a minha felicidade, amava-te a ti e à tua alma como a
mim mesma. Agora preenches os meus pensamentos dia e noite, e isso impede-me de viver. Amo-
te, Nikolai Alekseievitch."

ALEKO: "O que significa isto? Significa que tenho de recomeçar a minha vida desde o princípio.
É isso que significa, Shuvochka? Tenho de retomar a minha vida, a minha flor, a minha
juventude."

MASHA: "Prometo-te todo o meu amor, toma a minha mão. Logo virão tempos melhores. Sê
corajoso e vê como eu sou corajosa e feliz."

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NEVA | Guillermo Calderón

OLGA: Representaste muito bem, Masha. Porque ela diz que é feliz mas chora.

ALEKO: Foi muito bonito.

MASHA: Obrigada, meu público. Quero dedicar a sessão de hoje a Olga Knipper, famosa atriz
do Teatro de Arte de Moscovo que nos visitou, mas foi ontem encontrada morta, a boiar no rio
Neva.

OLGA: Coitadinha, Olga Knipper, foi tão feliz e morreu tão triste. Saiu para apanhar ar, tossiu,
vomitou sangue e atirou-se ao Neva. Fim.

MASHA: Olga, a senhora é corajosa?

OLGA: Sim, acho que sim. Sim, sou corajosa. Sou corajosa. Porque é preciso muita coragem para
viver a vida como eu a penso viver. Nunca mais me vou voltar a apaixonar, vou morrer sozinha,
vou-me entupir de vodca e ficar vermelha como uma cebola. Vou meter dó, vou dar pena, vão-se
rir de mim. Vão dizer que já não sei representar, que me tremem as mãos e me esquecem as deixas.
Vão-me receitar cocaína, como se eu fosse uma morfinómana. As mulheres e as outras atrizes vão
dizer que o Anton levou o meu talento com ele para a tumba quando morreu em Badenweiler.
Nunca mais hei de pisar um palco e vou-me envenenar de inveja, sabendo que atrizes como tu
vão calçar os meus sapatos.

MASHA: Olga, a senhora é feliz. Talvez não perceba isso agora, mas é feliz.

OLGA: Aleko, delira. Mas delira mais.

ALEKO: Não te desejei assim tanto, Olga. Tive gonorreia. Se tivesse de escolher entre ti e a
minha irmã não saberia o que dizer. Não tenho medo da morte. A questão é que durante a minha
vida fui incapaz de decidir se acreditava em Deus ou não. Mas sim, desejei-te tanto, Olga. A
questão é que estou a morrer e só consigo pensar em mim e na Rússia.

OLGA: Não te preocupes, Anton. Muito em breve vou-me esquecer de ti e de como morreste... e
daqui a cem anos ninguém se vai lembrar de nós.

MASHA: Eu também desconfio desses bolcheviques de merda.

OLGA: O que é que está a acontecer no nosso país?

ALEKO: Os revolucionários puseram-se a matar pessoas.

MASHA: Sim, e o czar matou muitas mais.

OLGA: Porquê tanta morte?

MASHA: Porque queremos enterrar o czar, queremos que o povo governe.

ALEKO: E eleger um parlamento. Não te esqueças disso.

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NEVA | Guillermo Calderón

MASHA: Sim, mas não é para governarem os nobres, os teus tios e os teus primos. É para que
ninguém governe. Queremos dissolver o exército, queimar o dinheiro.

ALEKO: Olga, a Masha acabou de descobrir que o czar não é o rei benevolente que todos
julgávamos que era.

MASHA: Não, Aleko, tu é que acabaste de descobrir. Olga, o Aleko vai defender o czar, vai dizer
que os burocratas é que são maus, que a marcha de hoje foi organizada por agentes estrangeiros
e que o padre Gapon é um agente estrangeiro.

ALEKO: Ninguém está a defender o czar, Masha.

OLGA: Masha, o Aleko não está a defender o czar, isso é ridículo. Todos sabemos que o czar é
cego, estúpido e cobarde. O Anton dizia sempre que já ninguém acredita que vamos ganhar a
guerra contra o Japão. Já toda a gente percebeu que os nossos generais são uns bêbados e que não
sabem combater.

MASHA: Isso, Olga. Viva o Japão e morra o império russo.

OLGA: Eu não disse isso.

ALEKO: Que ninguém te oiça dizer isso, Masha. É isso que queres? Queres guerra, queres morte?

MASHA: A última guerra vai ser a guerra de classes, Aleko. Vai haver uma revolução. Até os
marinheiros do Mar Negro se estão a rebelar porque os obrigam a comer carne bichada.

OLGA: Isso é verdade, Aleko. No nosso país as pessoas nem sequer têm o que comer. E o que é
que faz o czar? Toma chá e caça pássaros.

ALEKO: Não é só isso, Olga. A Masha também toma chá, caça moscas e não sabe o que quer.
Está à espera que os seus líderes revolucionários voltem do exílio nos cafés de Paris e Genebra.

MASHA: Esses não são os meus líderes, Aleko. Eu não tenho líderes, e sei muito bem o que
quero. Quero ver o czar chorar quando perceber que os súbditos já não o amam. E quero votar, e
quero nascer outra vez para crescer em tua casa e ter esse teatro maravilhoso e poder representar.

ALEKO: Não, porque serias como eu, pensarias que está errado atirar barris de pólvora às pessoas
que sabem dançar a valsa.

MASHA: Ah, isso está errado?

OLGA: Isso está errado, Masha.

ALEKO: Muitas pessoas pensam como a Masha, Olga. Vamos lá ver, responde-me, responde-
me: como é que vamos impedir os assassínios, os linchamentos? Como é que vamos mudar o
carácter do povo?

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NEVA | Guillermo Calderón

MASHA: Com uma greve geral.

ALEKO: Que boa ideia!

MASHA: E preciso acabar com os milionários que permitem que tudo isto continue assim.

ALEKO: Olga, às vezes, a Masha acorda com vontade de matar nobres.

OLGA: Isso é verdade, Masha?

MASHA: Sim, mas passa-me a seguir ao almoço. Apesar de continuar com vontade de queimar
herdades e entregá-las aos coletivos de camponeses para que cultivem a terra.

ALEKO: E sabem cultivar a terra?

MASHA: Sabem, Aleko, claro que sabem. E enquanto eles cultivam, os nobres como tu vão caçar
e leem a Bíblia.

ALEKO: Queimemos herdades então, queimemos herdades. Há algumas datchas com bibliotecas
e teatros privados.

MASHA: Há muitas coisas que têm de arder neste país.

OLGA: O que mais é que tem de arder, Masha?

MASHA: As igrejas, os museus, as prisões e algumas pessoas, Olga.

OLGA: Achas-te tão inofensiva e olha o que estás a dizer.

MASHA: Sim, mas sou malvada, seria capaz de matar alguém na rua só porque me olhou de lado.

ALEKO: Não acredite nela, Olga. Ela desata a chorar quando chove e os cães se molham. Bebe
vinho e diz que somos todos irmãos e que o amor vai salvar a Rússia.

OLGA: Não queimes nada, Masha, talvez o czar se vá embora para Londres e não seja preciso
queimar absolutamente nada.

MASHA: Talvez o czar fique aqui a matar pobres.

OLGA: Bom, talvez sim.

MASHA: Como assim, "talvez sim"?

OLGA: Talvez sim. Mas a Rússia precisa de um governo.

MASHA: Não.

28
NEVA | Guillermo Calderón

OLGA: O exército e a nobreza sabem governar.

MASHA: Não.

OLGA: Lamentavelmente, os nossos pobres bebem e depois batem nas mulheres.

MASHA: Não, Olga.

OLGA: Sim. Por isso é que primeiro temos de dar educação aos pobres, para que no futuro possam
governar. Mas primeiro é preciso dar-lhes educação.

ALEKO: A questão é que a Masha pensa que os pobres são bons porque são pobres.

OLGA: E tu o que é que pensas, Aleko?

ALEKO: Eu penso que temos de voltar a viver no campo, com simplicidade. Temos de trabalhar
a terra, estudar e rezar. E quando formos velhos, caminhar até um convento, encontrar Deus e
morrer.

MASHA: Aleko, por favor.

ALEKO: A questão é que o dinheiro nos tornou pobres, Masha. Olga, devíamos ir embora de São
Petersburgo e começar isto tudo de novo.

MASHA: Tudo o que o Aleko sabe de política foi buscar ao Sermão da Montanha.

ALEKO: E então?

OLGA: Não queimes nada, Masha. Não queimes nada. Talvez a Rússia se incendeie sozinha.
Aconteça o que acontecer, teremos sempre a arte. Talvez passe muito tempo e continue tudo na
mesma. Talvez continue a haver pobres, continue a haver ricos, continue a haver soldados a
disparar contra as pessoas na rua. Mas vamos sempre poder sonhar, e vamos poder dizer: nada
muda, continua tudo na mesma, é preciso queimar tudo. É a vida, Masha.

MASHA: Olga, eu admiro-a, acho-a uma atriz incrível, já lhe disse isso. Mas não está a perceber
nada.

OLGA: O que é que eu não estou a perceber?

MASHA: Agora as coisas vão mudar.

OLGA: O que é que vai mudar?

MASHA: Vai haver uma revolução na nossa pátria. Finalmente vamos ser livres, as pessoas vão
ser solidárias, não vai haver ricos. Acorde, Olga, acorda, Aleko, não vai haver ricos!

ALEKO: A Masha tem razão, Olga.

29
NEVA | Guillermo Calderón

MASHA: Eu tenho razão, Aleko.

ALEKO: Vamos ser todos pobres.

OLGA: (Canta.) "Sopra, sopra o vento...” Este teatro tão vazio mete-me medo.

ALEKO: Eu uma vez fiquei aqui sozinho de noite, mas não consegui dormir porque ouvi alguém
a tossir.
OLGA: Aleko! O Anton tossia sempre escondido nos teatros.

ALEKO: Como é que tossia? (OLGA tosse.) E a cara?

OLGA: Terrível... caminhava assim.

ALEKO: E o que é que a senhora fazia quando ele ficava assim?

OLGA: Eu representava, fazia cara alegre. Dizia que ele ia ficar melhor.

ALEKO: Mas ele sabia...

OLGA: Aleko, tosse.

ALEKO: (Tosse, imitando Tchékhov.) "Quero voltar para Moscovo, quero abraçar a minha irmã.
Não queimem tudo, não acabem a revolução. Champanhe!"

OLGA: Não, não morras, fica melhor.

ALEKO: "A febre passou, já me sinto melhor. Quero voltar para Moscovo, tenho uma ideia para
outra peça de teatro. Uma tragédia chamada Neva.”

MASHA: Neva de nevar?

ALEKO: "Não. Neva do rio Neva. Quero comer, quero nadar no rio. Há tantos livros que nunca
cheguei a ler."

OLGA: Anton, estou grávida. Não vou poder representar na tua tragédia.

ALEKO: "Masha, minha irmã, vais ser tia."

OLGA: Estamos a ficar velhos, ainda bem que não houve revolução.

ALEKO: "E agora há tantos doutores. Encontraram a cura para a tuberculose. Estamos tão felizes.
Fazem as minhas peças como comédias e as pessoas riem-se. Passaram tantos anos e eu ainda não
morri. Há tantas árvores, tantas flores."

OLGA: Anton, estou a morrer, estou a morrer antes de ti. É o meu coração, amei demasiado,
gastou-se.

30
NEVA | Guillermo Calderón

ALEKO: "O meu também. Teria gostado de continuar a viver, de ter a barba branca, comprida.
Não me quero ir embora."

OLGA: Não vás.

ALEKO: "Quero sair para protestar contra o czar, posso?"

OLGA: Não, lá fora não há rua. Lá fora é a selva negra.

ALEKO: "E se estivéssemos em São Petersburgo... deixavas-me sair à rua, Olga?"

OLGA: Não, Anton. Lá fora o rio está congelado, os soldados dispararam contra as pessoas na
rua. Ainda te matam, ainda te constipas. Lembras-te de quando tossias? Deliravas. Dizias que ia
acontecer uma coisa terrível na nossa pátria.

ALEKO: Tens razão, está a acontecer uma coisa terrível na nossa pátria. Vou sair à procura dos
outros atores... Não consigo... Não consigo... Não consigo representar, Olga... Tenho vergonha
que olhem para mim. Como é que vou representar se nunca sofri o suficiente? Às vezes, tenho
pena de como vivem os pobres, mas nunca me partiu o coração. Como é que eu vou representar
se nunca chorei por amor?

OLGA: E eu? Percebes o que significa ser eu, Olga Knipper? Como é que me vou voltar a
apaixonar se já não sei seduzir? Além disso, os homens têm cheiros e coçam-se. Ficam
adormecidos, calados, cansados. Comem e sujam os bigodes de gordura. Perdoa-me, Anton, por
te ter arruinado a vida, por ter casado contigo. Terias sido mais feliz dormindo com prostitutas?
Terias preferido morrer de gonorreia, com a bexiga a arder, a urinar leite com morangos? Terias
preferido morrer de sífilis em vez de morrer sufocado, louco, babado, operático, desafinado?

ALEKO: Quer-me seduzir, Olga?

OLGA: Queres que eu te deixe apaixonado e depois te parta o coração?

ALEKO: Sim. Quero.

MASHA: Não, Olga. Alguém vai acabar a chorar.

OLGA: Olha para mim, Aleko. Ama-me. Quero-te salvar, preciso de ti. Espero um filho teu,
espero cachorrinhos teus. Não tenho nada para te oferecer, gosto de sexo servil, gosto de dizer
obscenidades em alemão e de fazer sons guturais. Depois de copular adormeço, mas acordo com
vontade de cozinhar e limpar a casa. Gosto do teu cheiro a cebola, gosto de te ver defecar, vou-te
tratar como uma criança, vou-te fazer chorar, vou-te dar a minha placenta para tu a comeres, vou-
te amar. De tempos a tempos vou-te bater e pedir perdão em lágrimas. Vou fazer escândalos nas
estreias, vou comer frango na cama e engordar, vou esperar até que me humilhes para emagrecer
e parecer um homem. Vou-te achar perfeito, vou-te perdoar tudo, vou gostar de ti como se fosses
um cavalo. Meu Aleko, meu novo Antosha, meu novo Anton. Meu Alexander, vais-me amar
como eu já te amo?

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NEVA | Guillermo Calderón

ALEKO: Já te amo, Olga.

MASHA: Olga, vai haver uma revolução na nossa pátria e vai ser tão bonita. As pessoas vão sair
pelas ruas a cantar e depois vão morrer. Às vezes, penso que teria gostado de ser homem. Teria
gostado de beber vodca até cair e lutar na rua para ver correr o sangue. E usar botifarras e casacos
de cabedal. Fumar. Assobiar. Ofender as mulheres, rir das minhas próprias piadas, gostar do meu
próprio fedor. Tomar banho no rio Neva com os ursos polares no inverno. Teria gostado de ser
homem, de ter estado preso, de ter levado pontapés, de não acreditar em Deus, mijar na rua, dormir
de dia, não ter medos, Aleko, de ter queimado casas de ricos, violado condessas, duquesas,
princesas. Teria gostado de ser homem. De ter matado. De ter linchado, comido carne humana,
lutado na guerra, matado crianças, violado crianças e velhas. Teria gostado de ser homem. Sentir-
-me-ia feliz. Quer dizer que se amam? Vão-se casar? Vão ter filhos? Assim vão representar
melhor? A revolução fez-se para pessoas como vocês, para vos poder queimar. Por quanto tempo
é que se pode falar de amor? Sim, Olga. O teu marido morreu e queres reviver a morte dele porque
não és capaz de representar. Queremos lá saber. Lá fora há um domingo sangrento, as pessoas
estão a morrer de fome e tu queres fazer uma peça de teatro. A história passa como um fantasma,
vai haver uma revolução. E quem é que é suficientemente imbecil para ficar trancado numa sala
de teatro e sofrer por amor e pela morte? Tenho vergonha de ser atriz. É tão egoísta, é uma
armadilha burguesa, uma lixeira, um estábulo de éguas. Olga, és uma cavala, não, uma burra.
Aleko, és uma desgraça, reza por mim quando esta cidade arder. Reza por mim quando houver a
revolução para que eu morra na Sibéria. Reza quando te queimarem as igrejas. Atores de merda.
Indolentes, ignorantes, pretensiosos, vazios, cascas de amendoim, tomates podres. Aleko, se
chegares ao céu olha para mim a arder. Querem fazer uma peça de teatro? Quantas vezes se pode
dizer amo-te e não te amo? Cansei-me. Quantas vezes se pode chorar e clamar verdade num palco
e encontrar novos símbolos? Basta. Estamos no ano de 1905 e eu acho que o teatro acabou. Isto
já não é o século XIX, agora o capitalismo tem máquinas. Metem-me nojo. Podia começar por
queimar este teatro, gostava de o ver a arder e com ele a arrogância e a vaidade. Detesto o amor
do teatro, os gestos falsos, a classe, o sarcasmo. Sufoca-me, Olga. Não quero trabalhar pintada,
não quero parecer bonita. Querem fazer qualquer coisa que seja de verdade? Saiam à rua e vejam
a força simples da violência política, o fim do regime. É tão bonito matar um general e rebentar
um ministro com uma bomba, vem um cheiro a justiça. Os outros atores não vão chegar, mataram-
nos. Detesto as tuas lágrimas negras, o teu riso de gorila, as tuas pausas merengadas. Galinheiro,
lixeira de ideias mortas. Vai haver uma revolução e os que ficarem vivos vão ser livres. Vamos
beber, vamos ganhar guerras e vamos cantar nos funerais. Mas, Olga, Aleko, não me falem de
amor, falem-me de fome. Fundem um hospital, marchem, roubem armas, matem um nobre,
matem um general, façam qualquer coisa que não provoque vergonha alheia, por uma vez na vida
não falem com um nó na garganta. Oh, meu querido, meu doce, meu belo teatro. O amor faz-me
rir. O teatro é uma merda. Os atores são uma merda. Imagino uma revolução. O mundo vai acabar
e nunca vamos ser livres. Para quê perder tempo a fazer isto? Como é que se pode estar em cima
de um palco sabendo que lá fora, na rua, no mundo, há pessoas a morrer? Arte burguesa, teatro
burguês. Odeio o público que vem até cá para sentir, odeio-me por ser atriz. Olga, Aleko, vocês
dizem que eu não tenho alma... Eu tinha alma, mas usei-a muito, gastou-se. Porque é que há
pobres? Quero morrer, desbaratei a minha vida por ser um pavão real e agora sou uma chorona,
uma amargurada. Daria tudo para estar morta hoje, estar morta como o Yegor, a Sasha, o diretor,
a rapariga da bilheteira, o Ossip. Gostaria de estar morta. Mas enquanto morro, enquanto me
esvaio em sangue, pensaria: chorem, representem, amem, riam, vai dar ao mesmo, vai tudo dar
ao mesmo. O que vocês dizem para mim é um vómito. O amor é sexo, e o sexo é a nossa cruz, a
nossa miséria. Somos como os cães e vocês estão como cães a fornicar em cima do palco,

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NEVA | Guillermo Calderón

inchados, colados, é preciso deitar água a ferver para vos separar. Detesto o teu cheiro a pó de
talco e as tuas lágrimas doces. Queres sofrer sentada, confortável, como se sofre no teatro? Senta-
te na Pérsia, na Turquia, na Manchúria, na Polónia, e deixa que a guerra te esmague. Queres
chorar? Anda trabalhar para uma fábrica como fazem as crianças, até os pulmões te secarem com
fuligem de carvão. Mas não me venhas dizer que se sofre em cena. Porque não se sofre. Sofre-se
na vida. Detesto o público, estes simplórios que se vêm entreter enquanto o mundo acaba. Vêm à
procura de cultura, a suspirar. Deviam ter vergonha. Deviam entregar o dinheiro aos pobres. Há
gente a morrer de fome na rua, os dentes de leite caem às crianças e não lhes nascem outros.
Atores de merda, vaidosos, julgam-se artistas mas são fantasmas, nabos, bonecas, como vocês.
Querem teatro? Querem chorar? Eu dou-vos o palco e as lágrimas. Vamos morrer e vão-nos
esquecer. O amor vai acabar. O sol nunca mais vai nascer para ninguém. A Rússia vai acabar, e
nós vamos morrer de vez. A vida foi um enorme erro. Mas por favor não continuem a falar de
amor. E não falem de morte porque não a percebem. Vão para casa, ou trabalhem como toda a
gente. No futuro, quando o mundo acabar, só vai haver filmes, e o ecrã vai-nos fazer chorar como
galinhas, como Olgas Knipper. "Não morras, Anton, não morras, meu escritor, escreve-me umas
últimas palavras..."

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