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A angústia existencial e as configurações do Ideal

Como vimos pelas referências anteriores, Antero foi um homem empenhado


em causas sociais, lutando pelos ideais que nunca o abandonaram. Foi um
poeta sem se esquecer de ser um homem comprometido com o seu tempo e
projetou na sua poesia o seu desejo: o desejo (impossível) de aliar a vida ao
Ideal. 

Fernando Pinto do Amaral refere a inquietação que assolava o poeta açoriano


de tentar dar sentido à existência humana, de conciliar, enfim, o Ideal e o
Real.

Ao percorrer rapidamente os Sonetos, o panorama geral que se nos oferece


é, acima de tudo, o de uma incessante inquietação espiritual, a infinita
procura de qualquer coisa capaz de conceder um sentido ou uma finalidade à
existência humana. Tal entidade aparece quase sempre sob contornos vagos
ou indefinidos e (sobretudo nos sonetos mais antigos) pode assumir o nome
de Deus – um Deus que infunde nos homens a aspiração de um ideal sempre
mais alto [...].

Fernando Pinto do Amaral, “O arquipélago das sombras”, in Antero de Quental, Poesia Completa 1842-1891, Dom
Quixote, 2001

A dualidade que rege Antero também é analisada por Amélia Pinto Pais em
termos de dicotomia luz/sombra, em que ao primeiro polo correspondem os
sonetos marcados pelo otimismo crente e revolucionário, nos quais o poeta é
guiado pela Razão, enquanto ao segundo polo correspondem os poemas
marcados pelo pessimismo desencantado de quem desistiu de perseguir o
sonho.

Desta forma, os dois tópicos estruturantes da poesia de Antero acabam por


estar unidos, pois é da impossibilidade de alcançar tudo o que o seu espírito
combativo e racional tinha como Ideal que o poeta caiu no desânimo de quem
não se deixa já iludir por quimeras, por palácios, onde já só habita o vazio.

António Sérgio considerou nos Sonetos duas tendências que designou de


“apolínea” (uma tendência “luminosa”, vertida em sonetos otimistas,
banhados pela luz da Razão e correspondendo aos períodos de maior
atividade política e revolucionária de Antero – tendência visível nos sonetos
“Mais Luz”, “Hino à Razão”, “Justitia Mater”, “A um poeta...”), e uma tendência
“dionisíaca” (uma tendência “noturna”, de pessimismo, desencanto, angústia,
dor, morbidez, frustração, cansaço – tendência visível em tantos sonetos
como [...] “O Palácio da Ventura”, “Mãe”, “Tormento do Ideal”, [...]
correspondendo a um Antero mais passivo, mais contemplativo, mais
propenso à reflexão filosófica e à crise).

Amélia Pinto Pais, História da Literatura em Portugal – Uma perspetiva didática, vol. 2, Areal, 2004

O soneto, estrutura formal clássica desvalorizada pela primeira geração


romântica, é o corpo que sustenta os poemas mais amadurecidos de Antero.
Segundo o prefácio de Oliveira Martins na edição de Os Sonetos Completos,
estas composições podiam ser divididas em cinco fases, e que passamos a
apresentar:

• 1.ª fase (1860-1862): representa o corte com a fé da infância e revela a sua


insatisfação;
• 2.ª fase (1862-1866): corresponde ao período de crise sentimental e
consequente sentimento de frustração;
• 3.ª fase (1866-1874): revela o seu espírito combativo;
• 4.ª fase (1874-1880): alude ao período do pessimismo metafísico;
• 5.ª fase (1880-1891): consagra a reconciliação mística.

Síntese de conteúdos

Angústia existencial
• Disforia da consciência da inutilidade da vida
• Angústia existencial, pessimismo, tédio e vazio de viver
• Inquietação metafísica, espiritual
• Ânsia do Absoluto
• Entrega à Noite, como libertação, refúgio
(Poemas exemplificativos: “O Palácio da Ventura”; “Despondency”; “Lacrimae
Rerum”)
Configurações do Ideal
• Busca filosófica ou metafísica
• Dilema interior: razão abstrata vs. sentimento (consciência, religião,
realidade)
• Espírito religioso
• Importância do Sonho
(Poemas exemplificativos: “Hino à Razão”; “Ideal”; “A Um Poeta”)

Tensão
• Espírito lúcido e crítico, com exaltação do Amor e da Razão
(Poema exemplificativo: “Hino à Razão”)
                                                                  vs.
• Pessimismo, desejo de morte, repouso em Deus, como figura apaziguadora
(Poema exemplificativo: “Na Mão de Deus”)
► Linguagem, estilo e estrutura

O discurso conceptual

O discurso conceptual caracteriza-se pelo recurso a conceitos abstratos, a


noções filosóficas, metafísicas e abstratas, de maior ou menor densidade,
que apresenta nos seus poemas.

Passemos, então, à análise dos poemas, começando por um texto que


apresenta uma progressão narrativa ao nível temporal e espacial, numa clara
dicotomia entre sonho/realidade.

O Palácio da Ventura

Sonho que sou um cavaleiro andante.


Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino (1) do amor, busco anelante (2)
O palácio encantado da Ventura!
Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura... 
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!
Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas d’ouro, ante meus ais!
Abrem-se as portas d’ouro com fragor...(3)
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão – e nada mais!

(1) cavaleiro andante, defensor obstinado.

(2) ofegante.

(3) estrondo.

• Através da metáfora de um “cavaleiro andante”, o sujeito poético imagina-


se, qual D. Quixote, a corajosamente enfrentar as adversidades até
encontrar “O palácio encantado da Ventura!”. Este defensor incansável do
Amor universal parece determinado em encontrar o local que lhe trará a tão
ansiada calma e que significará o fim da sua demanda.

• A segunda estrofe, contudo, a partir da adversativa “Mas”, desvenda já o


final inglório deste cavaleiro, que desmaia e está “exausto e vacilante”, e a
frustração das suas intenções, pois os símbolos de luta – a espada e a
armadura, que o poderiam proteger – estão inutilizados. O desafio é inumano
e as forças teimam em falhar. Porém, subitamente, esse “palácio” do domínio
onírico é avistado, “fulgurante”, com “pompa e aérea formosura”, o que faz
renascer a esperança.

• Chegado ao local, o poeta exige nele entrar, apresentando-se como “o


Vagabundo, o Deserdado”, aquele que lutou, que superou provas e que
precisa de se acolher de tão dura travessia.

• No entanto, quando as portas se abrem, apenas encontra “Silêncio e


escuridão – e nada mais!”. Acentuando a desilusão do sujeito poético, o
último terceto revela a tomada de consciência de que os desejos e as
expectativas são inatingíveis. Aspirando ao absoluto, o “eu” lírico só a si
próprio se encontra, numa luta constante para alcançar a felicidade
inatingível.

• Não é neste local que o poeta poderá exorcizar os seus medos, os seus
desesperos, as suas angústias.
Um dos mais conhecidos poemas de Antero, “O Palácio da Ventura” é a
expressão metafórica do balanço de vida do sujeito poético, pressagiando já
o desalento que marcará poemas posteriores.

Após a sua análise, é possível distinguir diferentes momentos:

• vv. 1-4: entusiasmo inicial;


• vv. 5-6: desalento;
• vv. 7-11: renascimento da esperança;
• vv. 12-14: expectativa e desilusão final.

Ao nível dos recursos de estilo, podemos apontar:

• a metáfora: vv. 2, 4, 6, 9;


• a imagem: vv. 1-2, 4-6, 11-12;
• a adjetivação expressiva e conotativa do imaginário de luta
(“andante”, “escura”, “anelante”, “exausto”, “vacilante”, “Quebrada”, “rota”, “f
ulgurante”, “aérea”, “grandes”);
• a antítese: v. 2;
• a apóstrofe: v. 11;
• a dupla adjetivação: v. 5;
• a enumeração: v. 2.

Hino à Razão
Razão, irmã do Amor e da Justiça,
Mais uma vez escuta a minha prece.
É a voz dum coração que te apetece,
Duma alma livre, só a ti submissa.
Por ti é que a poeira movediça
De astros, sóis e mundos permanece;
E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça.
Por ti, na arena trágica, as nações
Buscam a liberdade entre clarões;
E os que olham o futuro e cismam, mudos,
Por ti, podem sofrer e não se abatem,
Mãe de filhos robustos, que combatem
Tendo o teu nome escrito em seus escudos! 

É possível distinguir dois momentos neste poema: 

• na primeira quadra, o sujeito poético, através da apóstrofe, interpela a


Razão, a “irmã do Amor e da Justiça”, revelando os laços indissociáveis que
unem estes valores universais;

• nas estrofes seguintes, é explicitada a invocação da Razão, através de uma


estrutura anafórica – “Por ti” –, porque só através desta é possível:
› compreender o funcionamento do Mundo (vv. 5-6);
› que haja valores nobres, como a virtude e o heroísmo (vv. 7-8);
› aos povos oprimidos conquistarem a sua liberdade, ainda que com guerras
trágicas, derrotando a tirania e a opressão (vv. 9-10);
› aos oprimidos do presente terem esperança num futuro melhor, não se
deixando abater (vv. 12-13).
• Retomando a apóstrofe inicial, Razão, “Mãe de filhos robustos”  (v. 13), o “eu”
lírico exalta os que combatem em sua defesa.

Para o poeta, a tríade Razão, Amor e Justiça é una e indivisível, o que nos
permite caracterizá-lo como um profeta dos valores universais.

A Razão é essencial para o conhecimento humano, sendo de notar a


influência de Hegel, filósofo alemão, que influencia o pensamento anteriano.

Os recursos expressivos em destaque são:


• a apóstrofe: reiterada ao longo do soneto, mas explícita nos vv. 1 e 13;
• a personificação: vv. 1-2 e 13;
• a metáfora: vv. 3-4, 5-6, 8-10, 14;
• a imagem: vv. 5-6, 9-10;
• a anáfora: vv. 5, 7-9, 12;
• a adjetivação
expressiva: “livre”, “submissa”, “movediça”, “trágica”, “mudos”, “robustos”;
• a enumeração: v. 6.

Despondency

Deixá-la ir, a ave, a quem roubaram


Ninho e filhos e tudo, sem piedade...
Que a leve o ar sem fim da soledade
Onde as asas partidas a levaram...
Deixá-la ir, a vela, que arrojaram
Os tufões pelo mar, na escuridade
Quando a noite surgiu da imensidade,
Quando os ventos do Sul se levantaram...
Deixá-la ir, a alma lastimosa,
Que perdeu fé e paz e confiança,
À morte queda, à morte silenciosa...
Deixá-la ir, a nota desprendida
Dum canto extremo... e a última esperança...
E a vida... e o amor... deixá-la ir, a vida!

Partindo de imagens-símbolo, Antero reflete sobre a desesperança:

• em primeiro lugar, apresenta um ser frágil, uma ave “a quem


roubaram/Ninho e filhos e tudo,” e que fica, portanto, sem razão para existir.
O tom de sofrimento atroz está instalado, pois tudo lhe foi tirado, “sem
piedade”, e “as asas partidas” estão;

• em segundo lugar, refere a vela que os tufões arrojaram, isto é,


arremessaram, na escuridão, “Quando a noite surgiu da imensidade”. Esta
vela, levada pelos ventos do Sul, não tem qualquer hipótese de salvação;

• em terceiro lugar, apresenta a “alma lastimosa”, condenada à “morte queda,


à morte silenciosa”, porque perdeu “fé e paz e confiança”, ou seja, os pilares
da vida. A abdicação é a única saída para quem perdeu os princípios
orientadores da vida;

• em quarto lugar, é a nota que concretiza o spleen, o tédio existencial, a


tendência romântica do mal du siècle, com a representação do cansaço e do
desespero, sendo a morte a derradeira felicidade.

Podemos apontar, enquanto recursos expressivos:

• o paralelismo anafórico, a reforçar a fragilidade da vida e o desejo de


abandono;
• a repetição da conjunção coordenativa copulativa, evidente no último
terceto, a enfatizar a ideia de comoção e de abandono;
• o recurso a formas verbais de tom disfórico
(“roubaram”, “leve”, “levaram”, “arrojaram”, “perdeu”);
• os adjetivos que realçam a ideia de tristeza
(“lastimosa”, “queda”, “silenciosa” e “desprendida”);
• os nomes que reforçam o pessimismo que percorre o poema
– “tufões”, “escuridade”, “morte”;
• o uso de reticências a intensificar a emoção pungente e o desprendimento
da vida.

O soneto

O que há no soneto? Uma unidade perfeita: desenha-se cada ideia parcial


de per si, mas não tão independente das outras que não haja entre elas
relação, até que, afinal, juntando tudo num só se apresenta por todos os
lados simultaneamente como em resumo, o fecho – chave de ouro! Daí, a
unidade. E simplicidade? Toda: as partes conservam estreito laço entre si, é
só um sentimento, só uma ideia; não são várias, mas vários lados: a unidade
final funde-os num todo.

Nuno Júdice, “Prefácio à Edição dos Sonetos de 1861”, in Antero de Quental, Sonetos (organização, introdução e
notas de Nuno Júdice), INCM, 2002

O soneto acaba por ser o intérprete perfeito da Ideia anteriana, pois a


apresentação e o desenvolvimento da tese são apresentados nas duas
quadras e no primeiro terceto, sendo o último a chave de ouro, isto é, a
conclusão do tema apresentado, à boa maneira de Petrarca ou do nosso
Camões.

É de assinalar, igualmente, o uso da adjetivação de cunho latinizante


(“mesto”, “gélido”, “rudo”), por vezes utilizada em formas duplas (“largo e
fundo”, “pálido e triste”).
Os sonetos são, em Antero, um testemunho de um estado de alma em
agonia, de que o poema “Despondency”, analisado anteriormente, é um belo
exemplo.

Recursos expressivos: a apóstrofe, a metáfora, a personificação

Analisemos os recursos predominantes na poesia de Antero de Quental, a


partir da exploração do poema “Lacrimae Rerum”, um dos seus sonetos mais
pessimistas.

Lacrimae Rerum (1)
(A Tommaso Cannizzaro)

Noite, irmã da Razão e irmã da Morte,


Quantas vezes tenho eu interrogado
Teu verbo, teu oráculo sagrado,
Confidente e intérprete da Sorte!
Aonde vão teus sóis, como corte
De almas inquietas, que conduz o Fado?
E o homem porque vaga desolado
E em vão busca a certeza que o conforte?
Mas, na pompa de imenso funeral,
Muda, a noite, sinistra e triunfal,
Passa volvendo as horas vagarosas...
É tudo, em torno a mim, dúvida e luto;
E, perdido num sonho imenso, escuto
O suspiro das coisas tenebrosas... 

(1) “Lágrimas das coisas”.


• Através da apóstrofe inicial, são convocados conceitos que regem o
discurso conceptual do poeta, sendo a Noite símbolo e personificação da
própria morte. Embora questione a Noite, o sujeito poético não obtém a
resposta desejada.

• A metáfora “Aonde vão teus sóis” configura o acolhimento que as “almas


inquietas” podem encontrar na Noite, embora essa esperança logo se
apresente como vã.

• O “eu” lírico busca uma resposta que lhe dê conforto, mas a Noite arrasta-se
lentamente, enquanto interlocutora muda, como a tripla adjetivação
acentua (v. 10).

• “E, perdido num sonho imenso” (v. 13), o sujeito poético apenas ouve o
suspiro das “coisas tenebrosas”, que acentuam o drama de uma existência
vazia.

• O anseio por respostas conduz o “eu” poético a locais noturnos e solitários,
onde espera encontrar a chave para a sua angústia existencial.

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